COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL CÍVEL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Sumário

1 - A solução do problema da qualificação dos actos praticados pelos titulares de órgãos ou agentes de uma pessoa colectiva pública, como de gestão pública ou de gestão privada, consiste em apurar se os mesmos se compreendem numa actividade da pessoa colectiva, que se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, ou se, contrariamente, esses actos se compreendem na realização de uma função pública, independentemente do exercício de meios de coerção e das regras, técnicas ou de outra natureza que, na prática dos actos, devem ser observadas.
2 - O tribunal comum de comarca é o competente, em razão da matéria, para conhecer de uma acção, em que o autor Município se limita a pedir o reconhecimento pelo réu da propriedade plena do prédio, com a consequente restituição do imóvel, completamente, livre e devoluto, com fundamento na falta de residência permanente na habitação, que a este foi atribuída, por concurso público, sob o regime da propriedade resolúvel, mas sem impugnar o acto em que se baseou a atribuição do mesmo ao réu.

Texto Integral

ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


O Município de A..., na acção com processo sumário que move contra B...., ambos, suficientemente, identificados nos autos, interpôs recurso de agravo da decisão que declarou incompetente, em razão da matéria, o Tribunal Judicial da Comarca de Soure e, em consequência, absolveu o réu da instância, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, formulando as seguintes conclusões:
1ª – O Município de A... intentou a presente acção de reivindicação de propriedade, porquanto conforme alega no artº 1º da petição inicial é proprietário do prédio urbano que identifica no mesmo articulado.
2ª - O título aquisitivo do direito de propriedade do recorrente sobre o prédio urbano constituído pela casa pré-fabricada com o nº 29 do Bairro de Casas Pré-fabricadas do Município de A... encontra-se junto à petição inicial como (Doc. nº 1).
3ª - O Município de A..., por cessão do Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado, adquiriu a propriedade de 23 fogos de casas pré-fabricadas em regime de renda social e 7 fogos de casas pré-fabricadas em regime de propriedade resolúvel das quais faz parte a casa com o nº 29 que está em causa na presente acção, a qual foi implantada no terreno adquirido pelo autor (recorrente) por escritura publica de 21 de Junho de 1977, junta aos autos como documento nº 1 da sua “Resposta”.
4ª - A partir da data em que teve lugar a mencionada cessão – 16 de Março de 1989 – o recorrente para além de proprietário passou também a assegurar a gestão de toda aquele parque habitacional.
5ª - Gestão do mencionado parque habitacional, feita no exercício dos direitos e deveres inerentes à qualidade assumida pelo Município de A..., de proprietário da casa nº 29 do Bairro de Casas Pré-Fabricadas de Soure.
6ª - A circunstancia de a casa ter sido distribuída ao réu (recorrido) por concurso aberto pelo Fundo de Fomento de Habitação – de 21 de Junho de 1979 – (vid. ofício enviado pelo F.F.A. ao Presidente da Câmara Municipal onde se faz referência ao processo nº 4260, o qual se encontra junto com a p.i.) antes de ter sido efectuada a cessão do património (casas pré-fabricadas), em nada altera a qualificação do acto de gestão privada do Município de A... que está na origem da propositura da presente acção.
7ª - Ao adquirir a propriedade das casas pré-fabricadas nas quais se inclui aquela que o réu ocupa ilegitimamente, já a mesma casa havia sido atribuída ao réu pelo Fundo de Fomento de Habitação.
8ª - Há cerca de quinze anos, o réu passou a residir em Coimbra, pelo que se esvaziaram os requisitos que haviam preenchido a condição de atribuição da referida casa de habitação social ao réu (conforme o recorrente alega nos artigos 16º, 17º, 19º, 20º, 21º, 22º e 23º da p.i.;
9ª - Tem legitimidade o Município de A..., para promover a entrega da casa que o réu ilegitimamente ocupa, através da presente acção de reivindicação onde pede que o réu seja condenado a reconhecer a propriedade plena do autor sobre a referida casa pré-fabricada e a restituir o imóvel livre e desocupado ao autor nos termos do disposto no art.º 1311º do Código Civil;
10ª - Calamandrei afirma: os “índices de competência” dos Tribunais Especiais encontram-se fixados nas normas que estabelecem essas mesmas áreas de competência do foro próprio de cada um desses referidos tribunais.
11ª - «Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção – seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjacentes (identidade das partes).
12ª - Ensina Redenti (vol. I, pág. 265), “que a competência do tribunal, afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor”.
13ª - “E o que está certo para os elementos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes” (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1º -88).”
14ª - Sobre o mesmo assunto e no mesmo sentido se pronunciou do modo seguinte Oliveira Ascensão – Direito do Urbanismo, pag. 340 a 342 onde conclui que o proprietário está fundamentalmente na seguinte situação: «-Ou invoca o próprio direito de propriedade, e tem opção entre impugnar o acto administrativo ou defender directamente a propriedade perante os tribunais comuns».
15ª - Como parece ser a orientação pacífica da Jurisprudência: “A competência do tribunal em razão da matéria afere-se sempre pela pretensão ou pedido formulado pelo autor” (Ac. R.E., de 8.11.1979: Col. Jur., 1979, 4º 1397).
16ª - “O contrato pelo qual a Câmara Municipal dá de arrendamento a uns particulares, ao abrigo do DL nº 198-A/75, de 14 de Abril, um andar de um prédio urbano é um acto de direito privado, e não acto administrativo, e as acções relativas a tal contrato são da competência do tribunal comum”; (Ac. STJ, de 3.2.1981: BMJ, 304º - 341).
17ª - A competência determina-se, em princípio, pelo pedido do autor. Só no caso de haver lei que submeta o caso em apreço à jurisdição do foro administrativo deixará o tribunal comum de ter competência para conhecer dele. Não há lei que atribua competência aos tribunais do contencioso administrativo para julgar questões sobre títulos de propriedade ou posse.
18ª - “A competência do tribunal em razão da matéria afere-se sempre pela pretensão ou pedido formulado pelo autor. É da competência dos tribunais comuns, e não do contencioso administrativo, o conhecimento da acção em que os autores pretendem, por um lado, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre uma parcela de terreno e, por outro, a condenação da ré, Câmara Municipal, a fazer-lhes a sua entrega no estado em que se encontrava antes da sua posse” (Ac. RP, de 6.12.1990: BMJ, 402º -669).
19ª - “Consequentemente, cabe aos tribunais judiciais, e não aos administrativos, a competência material para conhecer da acção, intentada pela Câmara Municipal contra o comprador, tendo em vista o reconhecimento da verificação da condição resolutiva e da reversão dos lotes a favor da autora”. (Ac. STJ, de 26.6.2001: CJ/ST, 2001, 2º -129).
20ª - Bem pode dizer-se que o foro materialmente competente (comum ou administrativo) define-se em função da natureza do acto atacado: se de gestão pública, competente é o foro administrativo, se de gestão privada, competente é o foro comum.
21ª - Ora, na qualidade de proprietária do imóvel em causa nesta acção, o Município de A..., tem o dever e a obrigação de gerir o património municipal, de modo a dele retirar os melhores proveitos económicos possíveis.
22ª - Como órgão da Administração Autónoma, o Município de A... tem, tal como a Administração Central, a prerrogativa de praticar actos de gestão sobre o seu património, actos esses que tanto podem ser de gestão pública como de gestão privada, consoante sejam feitos através do uso do ius imperium ou do ius privatum.
23ª - Na esteira da melhor doutrina, é entendido como domínio privado da administração pública: “O conjunto de bens que, por não se encontrarem integrados no domínio público, estão em princípio, sujeitos ao regime de propriedade estatuído na lei civil e, consequentemente, submetidos ao comércio jurídico correspondente (acepção objectiva). Conjunto de normas que definem e regulam os direitos que se exercem sobre as coisas corpóreas não submetidas ao regime do domínio público (acepção institucional).”
24ª -“Basta analisar o DL nº 477/80 de 15 de Outubro, no seu art.º 7º/nº2, que define o domínio público indisponível do Estado e quais os bens que a ele pertencem, bem como pela interpretação a contrario sensu do art.º 3º do referido diploma, para concluirmos que os bens pertencentes ao domínio privado indisponível se encontram afectos a fins de utilidade pública”.
25ª - O domínio privado disponível, segundo o nº3 do citado art.º 7º: “compreende os bens do Estado não afectos a fins de utilidade pública e que se encontram na administração directa da Direcção Geral do Património do Estado”.
26ª - A gestão do domínio privado do Estado e analogicamente das Autarquias, tem por objectivo a obtenção da maior rentabilidade económica, que esses bens podem proporcionar no comércio jurídico.
27ª - “A aquisição de bens para o domínio privado do Estado, pode verificar-se, como no Direito Civil, a título oneroso (compra, troca) ou a título gratuito (sucessão, doação, usucapião)”.
28ª - “As aquisições de bens pelo Estado no quadro do Direito Privado, podem verificar-se através de compra, troca, doação, sucessão de particulares, usucapião, ocupação, acessão, sendo todas estas formas de aquisição reguladas pela lei civil e não por normas de direito público”. (Vide: José Pedro Fernandes - Dicionário da Administração Pública, Vol. IV- Lisboa 1991, pag. 160 e ss).
29ª - Mais se afirma, que em todo o ordenamento legal que regula a Administração Pública Autónoma e bem assim a actuação da Administração Local, não existe um só diploma legal de direito público-administrativo que regulamente as formas de gestão dos bens do domínio privado das Autarquias.
30ª - É por demais evidente que no caso concreto em análise neste recurso, a reivindicação por parte do Município de A... da casa identificada sob o nº 29 do Bairro da Cerca dos Anjos, mais não é do que um acto de gestão do domínio privado do seu património imobiliário, que por analogia iuris se identifica com os actos de gestão dos bens do domínio privado do Estado.
31ª - O Município de A..., na qualidade de proprietário da casa supra referida, ao reivindicar para si a propriedade da dita casa, mais não faz do que usar as prerrogativas legais ao dispor de um proprietário, quando pretende reclamar de novo para si a propriedade de um bem que lhe pertence, conforme dispõe o art.º 1311º/nº1 do Código Civil.
32ª - “Na medida em que o seu direito tenha natureza exclusiva, o proprietário tem a faculdade de reagir contra quaisquer actos de terceiro que o violem”. “Se o proprietário ficar privado da coisa, por se ter constituído sobre ela uma posse contrária ou uma detenção ilegítima, haverá lugar à acção reivindicatória, que é um corolário da faculdade do direito de sequela”. “ (…) Na acção de reivindicação, o proprietário apenas necessita de provar o seu domínio – e não a inexistência de qualquer direito que o Réu porventura se arrogue sobre a coisa”. (Vide: Manuel Henrique Mesquita – Direitos Reais – Sumários das Lições ao Curso de 1966-67, pág. 159 e ss).
33ª - Tratando-se no caso sub júdice, de uma acção de reivindicação de propriedade, o foro competente para apreciar esta acção é o foro civil, dado esta se destinar à apreciação de um direito de índole privada.
Nas suas contra-alegações, o réu defende que deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
O Tribunal «a quo» sustentou a decisão questionada, entendendo não ter causado qualquer agravo ao recorrente.
O autor invoca, na petição inicial, a seguinte factualidade, com interesse relevante para a decisão do mérito do agravo:
1 – O Município de A... alega a qualidade de proprietário de um prédio urbano, que faz parte do seu património, por cessão de bens do IGAPE, sucessor legal do Fundo de Fomento de Habitação, que cedeu ao réu o referido prédio, por concurso público, no âmbito de um programa de habitação social.
2 – Que o réu optou pela aquisição do prédio, através do regime em que a propriedade é constituída sob condição resolutiva, que se extinguiria com o pagamento da última prestação, nunca tendo sido celebrado qualquer contrato entre o réu e o Fundo de Fomento da Habitação, nem com o autor.
3 – Tendo o réu deixado de residir, permanentemente, no prédio, o autor vem pedir o reconhecimento do seu direito de propriedade, com a consequente restituição do mesmo.

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Tudo visto e analisado, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
A única questão a decidir no presente agravo, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), consiste em saber qual o tribunal competente, em razão da matéria, para conhecer de uma acção de reivindicação, proposta por um Município, com fundamento na falta de residência permanente de um particular, a quem foi atribuída a habitação, por concurso público, sob o regime da propriedade resolúvel.

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DA COMPETÊNCIA MATERIAL

Para que o Tribunal possa decidir sobre a procedência ou o mérito de um pedido, é, desde logo, indispensável que a acção seja proposta perante o Tribunal competente para a sua apreciação, o que significa que a competência é um pressuposto processual que se determina pelo modo como o autor configura o pedido e a respectiva causa de pedir, que importa analisar, antes de se conhecer do fundo da causa, de que depende poder o Juiz proferir decisão de mérito sobre a mesma, condenando ou denegando a providência judiciária requerida pelo demandante [1] , mas, também, que deve haver uma relação directa entre a competência e o pedido [2] .
Com efeito, os pressupostos processuais constituem as condições mínimas de que depende o exercício da função jurisdicional e, no caso da competência, visam assegurar a justiça da decisão, a garantia de que a mesma é dimanada do Tribunal mais idóneo [3] .
Em consonância com o princípio da existência de um nexo jurídico directo entre a causa e o Tribunal, a competência afere-se pelo “quid disputatum” ou “quid decidendum”, em antítese com aquilo que, mais tarde, será o “quid decisum”, isto é, a competência determina-se pelo pedido do autor, o que não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da acção, mas antes dos termos em que a mesma é proposta, seja quanto aos seus elementos objectivos, como acontece com a natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, seja quanto aos seus elementos subjectivos [4] .
Por outro lado, a competência material dos tribunais civis é aferida, por critérios de atribuição positiva, segundo os quais pertencem à competência do tribunal civil todas as causas cujo objecto seja uma situação jurídica regulada pelo direito privado, nomeadamente, civil ou comercial, e por critérios de competência residual, nos termos dos quais se incluem na competência dos tribunais civis todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são, legalmente, atribuídas a nenhum outro tribunal [5] .
Por isso, os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual, a quem pertence o conhecimento das causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, princípio este que se encontra plasmado no texto dos artigos 66º, do CPC, e 18º, nº 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), quando estabelecem que "são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Por seu turno, no âmbito dos tribunais judiciais, são os tribunais de competência especializada cível aqueles que possuem competência residual, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 34º, 57º e 94º, da LOFTJ, resultando do texto deste último normativo legal a concretização acabada do mesmo princípio, ao preceituar que "aos juízos de competência especializada cível compete a preparação e o julgamento dos processos de natureza cível não atribuídos a outros tribunais".
Ora, aos tribunais de competência genérica, que são todos os tribunais de primeira instância, cujos poderes não se encontram espartilhados em áreas de competência especializada ou de competência específica, «in casu», o Tribunal Judicial da Comarca de Soure, pertenceria, segundo o autor, a competência material para o conhecimento do pleito.
Por seu turno, à categoria dos Tribunais Administrativos compete o “julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas…”, de acordo com o disposto pelos artigos 209º, nº 1, b) e 212º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, a solução do problema da qualificação dos actos praticados pelos titulares de órgãos ou agentes de uma pessoa colectiva pública, como de gestão pública ou de gestão privada, consiste em apurar se tais actos se compreendem numa actividade da pessoa colectiva em que esta, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e, portanto, com submissão às normas de direito privado, ou se, contrariamente, esses actos se compreendem no exercício de um poder público, na realização de uma função pública, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observadas [6] .
O que está em causa, no fundo, é a questão de saber se a relação jurídica invocada pelo autor reveste, ou não, natureza administrativa.
Revertendo ao caso em apreço, importa destacar que, tendo sido atribuída ao réu, mediante concurso, o prédio de habitação controvertido, segundo o regime da propriedade resolúvel, com o pagamento da última prestação correspondente à integralidade do preço acordado com o Fundo de Fomento de Habitação, antecessor legal do autor, nos termos das disposições combinadas dos artigos 3º, d) e 18º, nº 1, do Decreto nº 49033, 14º, nº 1 e 30º, nº 1, do Decreto nº 49034, ambos de 28 de Maio de 1969, consolidou-se na sua pessoa a propriedade perfeita da moradia, permanecendo, até então, na titularidade do autor-cessionário, sem que à Administração seja lícito recusar a passagem do respectivo documento de quitação, para efeitos de registo predial, atento o disposto pelo artigo 36º, do DL nº 23052, de 23 de Setembro de 1933 [7] .
Verificada a condição suspensiva em que se traduziu o pagamento integral do preço, a transferência do domínio para o réu ocorreu, automaticamente, ainda que carecida do respectivo averbamento no título de inscrição e aquisição do prédio, a realizar pela Conservatória do Registo Predial, a requerimento do interessado, nos termos do estipulado pelo artigo 36º, do DL nº 23052, de 23 de Setembro de 1933, citado.
Com efeito, o autor limita-se a pedir o reconhecimento pelo réu da propriedade plena do prédio, com a consequente restituição do imóvel, completamente, livre e devoluto, sem impugnar o acto em que se baseou a sua atribuição ao réu.
No acto firmado entre o Fundo de Fomento de Habitação e o réu, aquele actuou, concretamente, na veste de um particular, inexistindo nele qualquer cláusula donde se possa retirar que a intervenção do referido ente visou a realização de uma função pública, ainda que, anteriormente, como deve ter acontecido, tivesse havido publicitação das condições da atribuição do prédio de habitação.
Porém, tal não significa que se esteja perante uma relação administrativa, mas, tão-só, em face de uma relação de natureza privada, porquanto aquela entidade não foi conferida qualquer prerrogativa que originasse uma posição de supremacia em relação ao réu.
Por outro lado, a cláusula de reversão do prédio para o Fundo de Fomento de Habitação, ou para o autor, seu actual cessionário, por eventual incumprimento das condições fixadas, mais não representa do que uma simples condição resolutiva, sempre possível, em qualquer negociação entre particulares.
Inexistindo, de facto, qualquer relação directa e imediata entre o clausulado e a satisfação das necessidades públicas que o autor ou o seu antecessor legal [8] prosseguem, este actuou numa posição de paridade, sem dependência ou subordinação do réu quanto à prática de actos unilaterais, por parte daquele, que interveio desprovido do seu «ius imperii».
Como assim, estando em causa um acto de gestão privada, ainda que praticado por um órgão da administração, encontra-se excluída a competência dos tribunais administrativos para o julgamento da acção, com base no estipulado pelo artigo 4º, nºs 1, 2 e 3, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro [9] .
Ora, fixando-se a competência, no momento em que a acção é proposta, o que, no caso da competência em razão da matéria, se determina pelo pedido do autor e pela respectiva causa de pedir, importa reconhecer que, face aos termos em que a acção está configurada, é o tribunal comum de comarca o competente, em razão da matéria, para conhecer da acção de reivindicação proposta pelo autor Município, com fundamento na falta de residência permanente do réu, na habitação que lhe foi atribuída, por concurso público, sob o regime da propriedade resolúvel, atento o preceituado pelo artigo 11º, nº 1, d), do DL nº 167/93, de 7 de Maio.
Assim sendo, a competência material para a apreciação da presente acção pertence aos tribunais judiciais, no caso, ao Tribunal Judicial da Comarca de Soure, nos termos das disposições combinadas dos artigos 66º, do CPC, e 18º, nº 1, da LOFTJ.
Procedem, pois, as conclusões constantes das alegações do autor.

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CONCLUSÕES:

I - A solução do problema da qualificação dos actos praticados pelos titulares de órgãos ou agentes de uma pessoa colectiva pública, como de gestão pública ou de gestão privada, consiste em apurar se os mesmos se compreendem numa actividade da pessoa colectiva, que se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, ou se, contrariamente, esses actos se compreendem na realização de uma função pública, independentemente do exercício de meios de coerção e das regras, técnicas ou de outra natureza que, na prática dos actos, devem ser observadas.
2 - O tribunal comum de comarca é o competente, em razão da matéria, para conhecer de uma acção, em que o autor Município se limita a pedir o reconhecimento pelo réu da propriedade plena do prédio, com a consequente restituição do imóvel, completamente, livre e devoluto, com fundamento na falta de residência permanente na habitação, que a este foi atribuída, por concurso público, sob o regime da propriedade resolúvel, mas sem impugnar o acto em que se baseou a atribuição do mesmo ao réu.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar provido o agravo e, em consequência, revogam a decisão recorrida, declarando antes competente, em razão da matéria, o Tribunal Judicial da Comarca de Soure, devendo os autos prosseguir a sua tramitação subsequente.

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Custas, a cargo do réu-agravado.
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[1] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 74 e 75; Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, 1970, 379.
[2] Castro Mendes, Direito Processual Civil, I, 557.
[3] Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, 1970, 379 e 380.
[4] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 91; STJ, de 21-2-01, Acórdãos Doutrinais do STA, 479, 1539; STJ, de 9-2-99, BMJ nº 484, 292; STJ, de 9-5-95, CJ (STJ), Ano III, T2, 68.
[5] Miguel Teixeira de Sousa, A Nova Competência dos Tribunais Civis, Lex, 1999, 31 e 32.
[6] Tribunal de Conflitos, de 5-11-81, BMJ nº 311, 195.
[7] Tribunal Pleno, STA, de 4-4-68, Ac. Dout., VII, nº 83, 1540; STJ, de 22-11-88, BMJ nº 381, 660; e de 24-1-75, BMJ nº 243, 249.
[8] STJ, de 12-10-2000, Procº nº 2337/00; STJ, de 19-11-98, Procº nº 830/98; STJ, de 14-10-987, Procº nº 547/97, in www.dgsi.pt
[9] STJ, de 26-6-2001, CJ (STJ), Ano IX, T2, 129.