CONSIGNAÇÃO EM DEPÓSITO
QUITAÇÃO
MORA
Sumário

I – O devedor, entre outros casos, poderá livrar-se da sua obrigação mediante a consignação em depósito, quando o credor estiver em mora – artº 841º, nº 1, C. Civ.
II – O artº 813º C. Civ. estabelece que o credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceite a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação – o credor tem o dever de cooperar no cumprimento da obrigação.
III – O envio de um recibo de quitação por parte de uma seguradora, condenada a indemnizar num determinado montante, a fim de ser assinado pelo credor, não é nem pode corresponder à prestação debitória – artº 787º, nº 1, C. Civ..
IV – O nº 2 do artº 787º C. Civ., que permite ao devedor recusar a prestação enquanto a quitação não for dada, tem de ser interpretado no sentido de que se trata de pagamento e quitação simultâneos, efectuados na mesma altura.

Texto Integral

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- A Companhia de Seguros, A... , com sede na Rua X... , Lisboa, propõe contra B... , residente na Rua Y... , Pombal, a presente acção especial de consignação em depósito, pedindo se ordene a emissão de guias para depósito na Caixa Geral de Depósitos, da quantia de 31.038,47 euros.
Fundamenta este pedido, em síntese, alegando que, por sentença transitada em julgado no processo que menciona, foi condenada a pagar ao R., a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, a quantia de 30.214,00 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ou àquela que a vier a substituir, desde a notificação para a contestação do pedido cível e até integral pagamento. Uma vez transitada em julgado a aludida sentença, enviou ao R. um recibo, no valor de 31.038,47 euros, com vista a cumprir a obrigação em que fora condenada, tendo ainda solicitado ao R. que assinasse o mencionado recibo, juntasse cópia do seu bilhete de identidade e indicasse a forma como pretendia receber a importância constante do recibo, tendo-se recusado o R. a assinar tal recibo e, em consequência, a receber a referida quantia. Acrescenta ainda que o constante do recibo em causa, se encontra em perfeita conformidade com a sentença proferida.
1-2- Contestou o R., também em síntese, alegando que não foi a ele, R., que se recusou a receber a indemnização, pois foi a demandante que se recusou a pagar. Esta pretendia que ele, R., assinasse um recibo de quitação duma quantia que ainda não tinha recebido, sendo que nos termos do art. 787º do C.Civil a prestação deve ser efectuada simultaneamente com a quitação. Tinha também o direito a exigir o pagamento no seu domicílio, nos termos do art. 774º do mesmo Código. Além disso a demandante não tinha o direito de exigir que o demandado declarasse estar indemnizado de prejuízos não tratados na sentença e renunciasse a direitos relativos à demandante e a terceiros, também não tratados na sentença e sub-rogasse a demandante em direitos igualmente não tratados na sentença. Ele, R., só tinha o direito de exigir a quitação da quantia fixada na sentença (incluindo juros e retenção de I.R.S.). Remeteu à A. dois faxes, assim como, à sua mandatária, manifestando a posição que já assumira, telefonicamente, nesse mesmo dia, ou seja, que só entregaria o recibo de quitação contra pagamento simultâneo da indemnização. Alega, ainda, que a A. litiga de má fé, nos termos do disposto no artigo 456°, n° 1, alínea d), do C.P.Civil, por fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, devendo tal responsabilidade ser extensível à sua mandatária, nos termos do disposto no artigo 459° do C.P.Civil, uma vez que a esta tinha conhecimento do conteúdo do recibo em causa nos autos e dos faxes supra referidos.
Conclui, pedindo que a acção seja julgada improcedente e a A. condenada como litigante de má fé, declarando-se tal responsabilidade extensível à sua mandatária.
1-3- Notificada da contestação, a A. veio dizer, em síntese, que o texto do recibo em causa nos autos obedece ao decidido na sentença e, quanto à litigância de má fé, alega que recorreu à consignação em depósito quando verificou que as divergências com o R. não eram susceptíveis de serem sanadas e, ainda, com vista a sustar o acréscimo dos juros de mora, tendo feito um uso devido do processo.
Conclui, pedindo a improcedência da impugnação, declarando-se extinta a obrigação com o depósito e condenando-se o R. nas custas e a improcedência do pedido da sua condenação como litigante de má fé, assim como da sua mandatária.
1-4- Por decisão judicial de 14-8-2006, foi julgada a impugnação improcedente e declarada extinta a obrigação com o depósito efectuado.
1-6- Não se conformando com esta decisão, dela veio recorrer o R., recurso que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo.
1-7- O recorrente alegou, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões, que se resumem:
1ª- O local de pagamento da quantia fixada na sentença não está definido em legislação especial nem foi fixado na sentença por acordo das partes, pelo que tal quantia teria de ser paga no domicílio ou por acordo das partes, pelo que tal quantia teria de ser paga no domicílio do credor, ou seja no domicílio do recorrente.
2ª- Não tem cabimento o entendimento da A., segundo o qual, por só ter duas tesourarias em Lisboa e Porto, o R., se pretendesse receber a indemnização contra a entrega imediata do recibo, teria que se deslocar àquelas cidades.
3ª- O art. 787º nº 1 do C.Civil, só permite o entendimento de que a recorrida apenas tinha o direito de exigir a quitação simultaneamente com o pagamento, nunca antes com o envio do recibo para a sua sede.
4ª- É inconstitucional, por violar os arts. 13º, 60º e 62º da Constituição a interpretação do art. 787º nº 1 do C.Civil, no sentido de que tal disposição legal permite à recorrida exigir o envio de recibo de quitação antes de proceder ao respectivo pagamento, como fez na carta de fls. 81, ao indicar o endereço para devolução do documento de quitação e indicar no recibo de fls. 82 as formas de pagamento, todas posteriores à quitação.
5ª- Se o recorrente enviasse à recorrida o recibo de quitação antes de receber a correspondente indemnização, em caso de litígio, teria de fazer a prova de que não havia recebido a prestação de que deu quitação, o contrário do que declarou, ou seja, fazer “contraprova daquilo que resulta do documento”.
6ª- Constando impressa, do documento de fls. 82, uma declaração de quitação ampla, de sub-rogação e de renúncia, num texto distribuído por quatro períodos, onde apenas o último se referia à quantia fixada na sentença, exigindo a recorrida o envio prévio do respectivo documento para um dos seus dois endereços, a sua conduta configura uma dupla violação do princípio da boa fé consagrado no art. 762º nº 2 do C.Civil.
7ª- Embora a prescrição do direito a indemnização estabelecida no art. 498º do C.Civil só ocorra relativamente aos danos conhecidos (sem prejuízo do prazo ordinário de prescrição) ao dar quitação de todos e quaisquer direitos de indemnização por quaisquer danos emergentes do acidente e ao renunciar a quaisquer direitos, o recorrente estaria a renunciar à reparação de quaisquer danos não conhecidos ou que possam verificar-se no futuro resultantes do acidente.
8ª- Na quitação apenas se poderá referir à indemnização fixada pelo tribunal.
9ª- A exigência da referência a factos dados como provados e não provados é da mesma forma inadmissível, por não corresponder à quitação da quantia fixada.
10ª- É inconstitucional, legal e eticamente inadmissível, a parte da decisão recorrida onde se diz “no que respeita ao terceiro parágrafo da quitação, o seu conteúdo resulta das disposições legais, designadamente do disposto no art. 19º do D.L. 522/85 de 31 de Dezembro, pelo que o mesmo não deveria constar da quitação, aliado ao facto de se tratar de uma questão entre a Seguradora e o seu segurado, alheia ao credor. A sua inclusão na quitação não traz quaisquer consequências para o credor”, sendo que as consequências de tal declaração, só em face dum litígio poderão ser avaliadas, além de que o recorrente não tem o dever de ser obrigado a participar na resolução de questões relativas a direitos entre a recorrida e terceiros, sem que essa posição esteja definida na sentença.
11ª- Não se pode dizer que haja mora do recorrente, uma vez que este solicitou a alteração da redacção do recibo, restringindo-a ao 4º § e se prontificou a deslocar-se aos escritórios da recorrida em Leiria para receber a indemnização a que tinha direito.
12ª- O recorrente não estava em mora, nos termos do art. 813º do C.Civil, pois não recusou receber a indemnização que lhe foi atribuída na sentença em causa.
13ª- Foi a recorrida quem recusou cumprir ao pretender manter a inclusão no recibo, a declaração de liberação de outros danos morais ou patrimoniais da sua responsabilidade e de terceiros, resultantes ou não do acidente e não descritos na parte decisória da sentença e a inclusão da declaração de renúncia da direitos ou sub-rogações de direitos ao pretender o envio por correio da quitação antes do respectivo pagamento.
14ª- A recorrente tinha o direito de exigir a emissão de outro recibo, com a alteração do anterior, no sentido de que dava quitação da quantia fixada na sentença e nada mais e tinha também o direito de exigir o envio simultâneo do cheque e respectivo recibo, devolvendo depois o recibo assinado, ou de lhe ser entregue o recibo (para assinar) e o cheque (para pagamento) na agência mais próxima da sua casa, como consta dos docs. de fls. 83 e 90, não impugnados pela recorrida.
15ª- Não estando o recorrente em mora, a recorrida não poderia recorrer à consignação em depósito com o fundamento no art. 841º nº 1 al. b) do C.Civil.
16ª- A impugnação do depósito deveria ter sido julgada procedente com o fundamento no disposto no art. 1027º al. a) do C.P.C. e o depósito declarado ineficaz, nos termos do disposto no nº 2 do art. 1028º do mesmo Código.
17ª- Face aos documentos de fls. 81 a 90 (não impugnados na resposta) deve a recorrida ser condenada como litigante de má fé, por fazer do processo ou dos meios processuais uso manifestamente reprovável (art. 456º nº 1 al. d) do C.P.Civil.
1-8- A recorrida contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida.
1-9- Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas (arts. 690º nº1 e 684º nº 3 do C.P.Civil).
Nesta conformidade, serão as seguintes as questões a apreciar e decidir:
- Se se justificou, ou não, a consignação em depósito requerida.
- Se a recorrida agiu como litigante de má fé.
2-2- Como se disse acima, na douta decisão recorrida, nos termos do disposto no artigo 1028°, n° 3 do Código de Processo Civil, julgou-se a impugnação improcedente e declarou-se extinta a obrigação com o depósito efectuado. Isto é, entendeu-se justificada a consignação de depósito.
Na petição inicial a A. justificou a consignação em depósito que requereu no facto de ter enviado ao R. um recibo, no valor de 31.038,47 euros, com vista a cumprir a obrigação em que fora condenada na sentença judicial que referencia, tendo, ainda, solicitado ao R. que assinasse o mencionado recibo de quitação, juntasse cópia do seu bilhete de identidade e indicasse a forma como pretendia receber a importância constante do recibo, tendo-se recusado o R. a assinar tal recibo alegando discordar do seu conteúdo e, em consequência, a receber a referida quantia. Acrescenta ainda que o constante do recibo em causa, se encontra em perfeita conformidade com a sentença proferida (arts. 8º, 9º, 10º e 11º).
Portanto, segundo a A., a consignação em depósito justificava-se por o R. se recusar a assinar o recibo de quitação e consequentemente a receber a quantia constante nesse recibo.
Sustenta assim, apesar de o não dizer expressamente, que o R. está em mora pela recusa em receber o pagamento que lhe é devido.
Estabelece o art. 841º nº 1 do C.Civil (diploma de que serão as disposições a referir sem menção de origem) que:
"1. O devedor pode livrar-se da obrigação mediante o depósito da coisa devida, nos casos seguintes:
a) Quando, sem culpa sua, não puder efectuar a prestação ou não puder fazê-lo com segurança, por qualquer motivo relativo à pessoa do credor;
b) Quando o credor estiver em mora.
2. A consignação em depósito é facultativa."
Quer dizer, que o devedor, dentre outros casos (sem interesse para aqui realçar), poderá livrar-se da sua obrigação mediante a consignação em depósito, quando o credor estiver em mora.
Estabelece, por sua vez, o art. 813º que “o credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação”.
Significa isto que acontece a mora do credor, quando exista uma omissão injustificada por banda do mesmo com vista ao cumprimento da obrigação. O credor tem o dever de cooperar no cumprimento da obrigação. Não o fazendo injustificadamente, constituiu-se em mora.
Em relação a esta disposição refere o Prof. Antunes Varela (in RLJ 118º,52) que “o art. 813º inclui no perímetro legal da «mora credendi» não só os casos em que o credor recusa, sem motivo justificado a prestação que lhe é oferecida mas também os casos em que ele, faltando àquele dever geral de cooperação que tanto caracteriza a relação creditória, não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação”.
Tendo-se definido o que se deve entender como mora do credor, verifiquemos se, no caso vertente, se indicia a sua existência, sendo que, como já se disse, foi na mora do credor que o A. se estribou para pedir a presente consignação em depósito.
Na decisão recorrida e sem contestação da parte do recorrente, deram-se como provadas as seguintes circunstâncias:
- A Requerente, Companhia de Seguros A... foi condenada, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n° 16/02.2GBPBL, que correu termos neste Juízo, no pagamento ao ora Requerido, B..., da indemnização, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, na quantia de 30.214,00 euros (trinta mil, duzentos e catorze euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ou aquela que a vier a substituir, desde a notificação daquela para contestar e até integral pagamento.
- Conforme resulta de fls. 81 e 82 dos autos, no dia 10.03.2005, a Requerente enviou para o escritório do mandatário do Requerido uma carta, à qual anexou o recibo n° 2005112927, datado de 10.03.2005, do qual constava a inscrição do montante de 31.038,47 euros, intitulado por "Quitação Responsabilidade Civil C/Sub-rogação", com o seguinte teor:
"O abaixo assinado declara ter recebido da Companhia de Seguros A... a quantia acima para pagamento de todos os prejuízos patrimoniais e não patrimoniais que lhe advieram em consequência do sinistro acima referenciado.
Consequentemente declara que tanto a Companhia de Seguros A..., como o seu segurado e condutor do veículo ficam relevados de toda a obrigação relativa ao dito acidente, passando o presente recibo, definitivo e sem reservas, por renunciar expressamente a todos os direitos e obrigações que lhe possam corresponder de acordo com as disposições legais.
Declara ainda que a Companhia de Seguros A... fica sub-rogada em quaisquer direitos, acções ou recursos contra os eventuais responsáveis pelo referido acidente”.
- Na referida carta consta, ainda, que o pagamento deverá ser efectuado numa das modalidades que constam do recibo, estando os juros contabilizados até ao dia 17.03.2005 e que o recibo deverá ser enviado para os endereços da Requerente em Lisboa ou no Porto.
Quer dizer, sem ter efectuado qualquer pagamento ao credor, a devedora, Companhia de Seguros A..., exigiu quitação de responsabilidade daquele. Ou seja, antes de efectuar o pagamento da quantia de 30.214,00 euros, acrescida de juros de mora, nos termos fixados na sentença indicada, a A. exigiu ao credor, o ora recorrente, que lhe passasse um recibo de quitação.
O R., pelas razões já mencionadas, recusou assinar e devolver tal quitação.
Face a esta recusa, poder-se-á dizer que existe mora por banda do credor?
A primeira razão por que R. se recusou a efectuar a assinar e devolver o recibo de quitação, foi porque ainda não havia recebido a quantia a que se referia o documento, sendo que nos termos do art. 787º, a prestação deve ser efectuada simultaneamente com a quitação. Acrescentou que se ele, R., enviasse à recorrida o recibo de quitação antes de receber a correspondente indemnização, em caso de litígio, teria de fazer a prova de que não havia recebido a prestação de que deu quitação, o contrário do que declarou, ou seja, fazer “contraprova daquilo que resulta do documento”.
Como se viu, existe mora quando o credor, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação.
Temos para nós que o envio de um recibo de quitação não é, nem pode corresponder à prestação debitória. Esta, no caso, consiste, como nos parece evidente, na entrega ao credor do montante monetário e dos juros moratórios fixados na aludida sentença.
Mas também existirá mora da sua parte, quando o credor não pratique os actos, atribuíveis a si, precisos para o cumprimento da obrigação. Nesta conformidade, a pergunta que haverá a formular será a de saber se a assinatura e a devolução do recibo de quitação exigidos pela A., constituem actos necessários ao cumprimento da obrigação.
E a resposta à questão não poderá deixar de ser negativa, porque para o cumprimento da obrigação/pagamento da quantia objecto da condenação, bastava que a Seguradora efectuasse directamente ao R. tal pagamento, ou endereçasse a ele um qualquer meio de pagamento (por exemplo, cheque ou vale postal) podendo, pedir, simultaneamente, o recibo de quitação (art. 787º). Não se vê, pois, que para se pudesse efectuar esse pagamento, o R. tivesse que realizar qualquer acto prévio.
O art. 787º no n° 1 estabelece que "quem cumpre a obrigação tem o direito de exigir quitação daquele a quem a prestação é feita, devendo a quitação constar de documento autêntico ou autenticado ou ser provida de reconhecimento notarial, se aquele que cumpriu tiver nisso interesse legítimo."
Acrescenta o n° 2 do mesmo artigo que, "o autor do cumprimento pode recusar a prestação enquanto a quitação não for dada, assim como pode exigir a quitação depois do cumprimento."
Face a esta disposição poderá igualmente existir mora quando o credor se recuse a dar quitação do pagamento, quando isso lhe for previamente solicitado. Haverá aqui a considerar que o credor não praticou um acto, imputável a si, fundamental para o cumprimento da obrigação
Foi precisamente nesta disposição que o Mº Juiz a quo justificou a mora do credor, dizendo que “há mora do credor, B..., uma vez que este se recusou a dar quitação antes de receber a prestação e, sem motivo justificado, não aceitou a prestação quando a mesma lhe foi oferecida”.
Não podemos aceitar esta forma de ver as coisas.
Com efeito, como se viu, nenhuma prestação, em rigor, foi oferecida ao credor. Por outro lado, o direito à quitação consiste no direito daquele que cumpre a obrigação, de exigir daquele que a recebeu, documento onde isso conste. É que o recibo de quitação serve, precisamente, para provar o cumprimento do crédito. O nº 2 do art. 787º que permite ao autor do cumprimento recusar a prestação enquanto a quitação não for dada, terá que ser interpretado, a nosso ver, no sentido de que o dispositivo trata de pagamento e quitação simultâneos, efectuados na mesma altura. Só assim a disposição, com referência ao nº 1 do artigo e ao princípio geral aí enunciado, faz sentido.
Mas mesmo que assim se não entenda, existe, no caso, outra causa justificativa de recusa do credor em passar a quitação. É que o documento enviado, cujo teor acima já se referiu, pretende extinguir obrigações para além das que diz respeito à obrigação decorrente da condenação proferida na sentença [1]
. O documento enviado só deveria respeitar à obrigação decorrente dessa condenação, até porque era a obrigação decorrente da sentença, que a Seguradora (devedora) pretendia cumprir. Assim, porque o teor da quitação enviada pela A., traduzia o recibo de valores superiores àqueles que os que estavam em causa, foi legítima a recusa do credor da indemnização em assinar tal quitação.
Por tudo o exposto, poderemos concluir que não existe mora do credor e, por isso, a consignação em depósito pedida, carecia de fundamento, pelo que deveria ter sido indeferida (art. 1027º al. a) do C.P.Civil)[2] e, consequentemente, deveria ser o depósito declarado ineficaz como meio de extinção da obrigação (art. 1028º nº 2 do mesmo diploma).
O recurso terá provimento e a decisão recorrida será revogada.
2-4- Sustenta ainda o apelante que face aos documentos de fls. 81 a 90 (não impugnados na resposta) deve a recorrida ser condenada como litigante de má fé, por fazer do processo ou dos meios processuais uso manifestamente reprovável (art. 456º nº 1 al. d) do C.P.Civil).
De forma muito sumária diremos que não se nos afigura que a A. tenha agido de má fé, pese embora a sua posição tenha ficado vencida na presente acção.
Nos termos do art. 456º nº 1 do C.P.Civil que “tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir”. Acrescenta o nº 2 al. d) da mesma disposição “diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, como o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
Portanto para o que para aqui releva, diz-se litigante de má fé aquele que com dolo ou negligência grave, der ao processo um uso manifestamente reprovável, como o fim de conseguir um objectivo ilegal.
Como se vê, a lei faz depender a declaração de litigância de má fé, de um uso manifestamente reprovável, isto é, claramente censurável, do processo.
Apesar de o recorrente, nas alegações, não evidenciar essa utilização abusiva do processo, somos em crer que a sua posição se fundamenta na circunstância de, no seu ponto de vista, não se justificar legalmente, no caso vertente, a consignação em depósito e, portanto, o presente processo.
Ora a posição assumida pela A., não pode ser entendida como clara e patentemente injustificada. Isto porque não só tal orientação teve acolhimento na decisão de 1ª instância, mas também porque entendemos que a interpretação que fizemos às disposições em causa (principalmente ao disposto no art. 787 nº 2 do C.Civil) não é isenta de qualquer dúvida.
Por outro lado a litigância de má fé, está dependente de uma acção dolosa ou, pelo menos, de uma actividade denunciando negligência grave. Ora assumindo a A. uma posição que o máximo que se poderá dizer, será controversa, constituindo até, o cerne da questão (o envio do recibo de quitação anteriormente ao pagamento), como é notório, uma prática corrente das Seguradoras, somos em crer que todo e qualquer juízo de culpa (principalmente nas formas mais censuráveis a que se refere a disposição evidenciada, dolo e negligência grave), terá que ser afastado.
Por estas razões, não se justifica a condenação da A. como litigante de má fé.

III- Decisão:
Por tudo o exposto, dá-se provimento parcial ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, julgando-se a acção improcedente, declarando-se o depósito ineficaz como meio de extinção da obrigação.
Julga-se improcedente o pedido de condenação da A. como litigante de má fé.
Custas da acção pela A. (art. 1028º nº 2 do C.P.Civil) e na apelação pela apelada e apelante na proporção de 4/5 para aquela e 1/5 para este.

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[1] Estamos a referirmo-nos, concretamente, à referência na quitação “ao pagamento de todos os prejuízos patrimoniais e não patrimoniais que lhe advieram em consequência do sinistro acima referenciado
[2] O art. 1028º nº 1 do C.P.Civil, em caso de impugnação da consignação com base nas als. a) e c) do art. 1027º, manda prosseguir os termos processuais correspondentes ao processo sumário, posteriores à contestação. No caso vertente, não se justifica o prosseguimento dos autos para além do despacho saneador, porque a matéria factual essencial para a decisão da causa não é controvertida.