ESCOAMENTO DE ÁGUAS
SERVIDÃO DE ESCOAMENTO
Sumário

I – O nº 1 do artº 1351º C. Civ. dispõe que os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que naturalmente e sem obra do homem correm dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos que elas arrastam na sua corrente.
II – Esta situação não constitui uma servidão, a qual implica regra geral a construção de obras no prédio onerado além de conter ínsita a ideia de se querer o seu estabelecimento pelo dono do prédio dominante, antes uma restrição ao direito de propriedade dos prédios inferiores, os quais têm de se sujeitar a receber águas que por mera acção da natureza, logo sem intervenção humana, provenham de prédios situados a cota mais elevada.
III – A servidão de escoamento é uma modalidade das servidões de aproveitamento de águas e está prevista como servidão legal no artº 1563º C. Civ., tendo como seu necessário pressuposto a existência em certo prédio de águas sobrantes, sem via natural que permita a sua drenagem.
IV – Para as águas pluviais que caiam de um prédio urbano para terreno alheio, quando erigido aquele junto à estrema, ainda que situado a cota mais baixa, não impõe a lei servidão de escoamento, quando muito poderá constituir-se uma servidão de estilicídio.

Texto Integral

Acordam na Relação de Coimbra:


I – A... propôs no Tribunal Judicial de Tomar acção sumária no âmbito das restrições à propriedade decorrentes de vizinhança e para efectivação de responsabilidade inerente por violação dos seus direitos contra a Associação B... alegando ser dona e legítima proprietária de um prédio sito no nº 23 em Pai Mouro, Outeiro e que confronta a sul com um prédio da R sendo que esta edificou um muro que invade os limites da respectiva propriedade e além disso ao ter deixado uma caixa ente o mesmo e fachada sul de uma arrecadação que ali mantem, vem causando nesta constantes infiltrações, pedindo assim a condenação da R a demolir tal muro e a pagar a reparação dos estragos causados, a liquidar em execução de sentença além de uma indemnização de 800.000$00 por ofensa do direito de propriedade, abuso de direito e danos morais.
A R contestou, impugnando os factos e dizendo que o muro que ergueu está dentro da linha divisória dos prédios e fê-lo por forma na medida do possível evitar espaços vazios entre ele e a parede da arrecadação do prédio vizinho da A
Outrossim, deduziu pedido reconvencional pedindo a condenação da A e reconhecer que lhe pertence uma faixa de terreno de que esta se apossou ilegalmente e de má fé com a área de 24,4 m2 e assinalada numa planta que juntou, servindo de pátio de acesso à casa e assente num muro que ela levantou, bem como a destruir o muro e o pátio ilícitamente ocupados.
O processo seguiu termos com resposta da A a contrariar a excepção e o pedido reconvencional e organizada a base instrutória, teve lugar o julgamento.
Por fim, foi proferida douta sentença que julgou procedentes tanto a acção, como a reconvenção.
Ambas as partes recorreram de apelação da parte da sentença que lhes foi desfavorável mas apenas a R apresentou alegações a que a A respondeu, concluindo nos termos seguintes :
a) O muro levantado pela R ultrapassa em altura a arrecadação da A em cerca de meio metro;
b) A sentença, ao condenar a R a demolir esse muro em 1,5 metros ou seja na parte em que excede a parede da arrecadação da A está em contradição com a matéria provada e referida na aln a);
c) Esta contradição constitui nulidade :
d) O muro edificado pela R não ocupa qualquer espaço do prédio da A;
e) As águas pluviais caídas no espaço compreendido entre o muro que ela construiu e a parede sul da arrecadação da A correm para o prédio dela que se situa a um nível inferior, pelo facto da A ter construído um muro inclinado e não por via da natureza ;
f) A A não alegou, nem provou que o seu prédio tenha direito a uma servidão de escoamento para o prédio da R das águas caídas no espaço em cunha ;
g) A R sempre se mostrou disposta a impermeabilizar o espaço entre o seu muro a a dita parede sul da arrecadação e que pertença a esta;
h) A R construiu o muro para nele implantar um painel em azulejo onde foi implantada a sua designação e logótipo.
i) Não agiu a R com a intenção de prejudicar a A;
j) Ao erguer o muro, agiu no exercício do seu direito de tapagem;
k) Ao construir o muro. não agiu ilicitamente;
l) O espaço em “cunha “ e a acumulação de águas pluviais resultou da construção inclinada e por isso incorrecta da parede sul da arrecadação;
m) A A não provou factos que justificassem a condenação da R em danos não patrimoniais;
n) A sentença recorrida viola os artºs 668. aln c) do CPC e 1316º, 1351º e 483º do CCivil;
A A contra alegou, defendendo a validade e o acerto da sentença.
*
II – Nesta instância, foram corridos os vistos legais.
Cumpre decidir.
*
III – Vejamos, antes de mais, os factos que foram dados por assentes e provados na 1ª instância:
1 – Pertença da A existe um prédio sito no nº23 do Lugar de Pai Mouro, Outeiro , Junceira, Tomar, constituído por casa de habitação, logradouro e arrecadação, descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº 00357/031187da freguesia de Junceira, Tomar, descrição essa efectuada nos termos do doc de fls 74/76 e cujo teor de dá aqui por reproduzido(alm a) dos factos assentes ).
2 – Tal prédio confina a sul com o imóvel pertença da R e composto por uma moradia, um logradouro e um anexo-arrecadação (aln b).
3 – Pertença da R existem os seguintes prédios:
- rústico sito no mesmo lugar e composto de terra de cultura arvensee oliveiras inscrito na matriz sob o artº 315º, Secção I e descrito na Conservatória do Reg. Predial sob o artº 01202/260994, nos termos constantes do doc. de fls 24 a 26, tendo inscrição a favor da R por doação;
- urbano sito no mesmo lugar, composto de casa de arrecadação, inscrito na matriz sob o artº 597 e descrito na Conservatória de Reg. Predial de Tomar sob o nº 01203/260994, nos termos do doc de fls 27 e 28 tendo inscrição de aquisição a favor da R , igualmente por doação ;
- urbano sito no mesmo lugar, composto por casaa de habitação inscrito na matriz sob o artº 595º e descrito na Conservatória sob o nº 01204/260994, nos termos constantes do doc de fls 29 e 30, estando inscrito a favor da R por doação(aln k )..
4 – Desde pelo menos 16/05/1974 C.... e marido atè 18/05/2 1994 utilizaram como seus os três prédios atrás descritos, amanhando a terra e nela plantando produtos hortícolas e recolhendo as suas utilidades, utilizando a arrecadação para guarda de alfaias e habitando a casa e fruindo o logradouro(aln l):
5 – O que faziam à vista de toda a gente, sem interrupções ou oposição de qualquer pessoa e na convicção de não ofenderem direitos de terceiros (aln m)
6- Por escritura pública de 16/o5/1994, os três prédios foram vendidos a D... (aln n)
7 – E este D... e a mulher venderam-nos depois por escritura de 4/09/1995 a E... ( aln o)
8 – E por escritura de 29/07/1996, o adquirente e a mulher deram de troca os mesmos três prédios a F... (aln p).
9 – Uns meses depois e por escritura de 4 de Dezembro a F.... doou os ditos prédios à R (aln k).
10 – A R demoliu a arrecadação e a casa de habitação atrás identificadas de modo a erguer uma nova construção(aln r).
11- E no terreno construiu um edifício para a sua sede, ainda não objecto de inscrição própria na matriz (aln s).
12 – Por escritura de 30/10/1989, G... e mulher venderam à ora A o prédio constituído por casa de habitação de rés-do-chão e logradouro, descrito na Conservatória sob o nº 00357/031187 da freguesia citada como resulta do doc de fls 77 a79 (aln t).
13 – Todas essas construções remontam ao sec. XX (aln c).
14 – O prédio adquirido pela A e sua pertença situa-se em termos topográficos num plano superior ao imóvel pertença da R(aln d).
15 – Ao vedar o seu prédio a R encostou o seu muro ao muro construído pela A e á arrecadação ( resp. ao qº 24º)
16 – A R construiu o muro em alvenaria junto à fachada sul da dita arrecadação, o qual tem cerca de 4 metros de altura por três metros de comprimento (akln h)
17 – Tendo-o aproximado na medida do possível da parede da arrecadação do prédio da A , sem ocupar espaço do prédio desta (resp. ao qº 25º)
18 – Os dois aludidos prédios encontram-se separados um do outro por um muro de alvenaria (aln e)
19 – Tal muro e a fachada sul da aludida arrecadação continuam-se um ou outro, pois aquela fachada encontra-se edificada a partir desse muro(aln f).
20 – A dita fachada sul da arrecadação do prédio da A encontra-se inclinada, inclinação esta que se torna mais evidente à medida que ganha em altura (aln g)
21 – Essa fachada encontra-se fora da esquadria, sendo a inclinação referida para o interior do prédio e no sentido norte (resp. aos qºs 2ºe3º)
22 – Entre essa fachada e aquele novo muro constituiu-se uma “cunha” em alvenaria, cuja largura aumenta à medida que a fachada da arrecadação vai ganhando altura(resp. ao qº 5º)
23 – “Cunha“ essa situada sobretudo a nascente do muro do muro da R, tendo o seu início a largura de 5 cms e no topo cerca de 15 cms (resp. ao qº 8º).
24 – Existe uma abertura com pelo menos 10 cms entre o topo do muro da R e a arrecadação da A e um espaço lateral também de pelo menos10cms ( resp aos qºs 9ºe 10º)
25 – Edificado tal muro pela R passou a existir uma” caixa” entre a empena sul da arrecadação e esse muro, sendo que as extremidades nascente e poente do muro vedaram o espaço existente entre as edificações (aln j).
26 – A dita “caixa “ funciona como depósito de águas pluviais ficando a água aí retida, por total falta de escoamento, quando chove ( resp ao qº11º).
27- A R não impermeabilizou o vazio entre a parede da arrecadação e o muro que levantou (resp ao qº26º);
28 – Por isso ocorreram infiltrações de água na empena da A ao ponto de aparecerem vestígios de água (resp. ao qº 12º)
29 –E diversas manchas de bolor e cheiro a mofo nessa arrecadação(resp. ao qº 13º)
30 – O que obrigou a A a remover bens que ali se encontravam tal como vestuário, mobiliário, uma estante com livros , para que se não deteriorassem ( resp. ao qº 14º)
31 – Não podendo a A utilizar aquele espaço por forma como o que fazia antes de constar o estado de insalubridade da sua arrecadação (resp aos qºs 15º e 16º)
32 – Tal muro ultrapassa em altura a arrecadação aludida em cerca de meio metro e corresponde ao comprimento dessa arrecadação(aln i d).
33 – A estrema entre os prédios pertença da A e R sempre foi feita pelas linhas indicada a verde no doc. junto a fls 22 ( resp. ao qº 17º)
34 – Esta linha divisória apresentava na sua parte nascente, três marcos , assinalados pelas letras “A” “B” e “C” naquele doc. (resp. aoqº 18º)
35 – E sempre foi respeitada pelos antecessores de A e R ( resp ao qº19 ).
36 – Os antecessores da R tinham em tempos uma casa onde estava instalada um tear , junto aos marcos “A” e “B” (resp. aoqº 20º).
37 – No tempo dos antecessores da A já o seu prédio se encontrava separado dos restantes por um muro de alvenaria (resp. aoqº 20º)
38 –Muro esse que já ali se encontrava há mais de 30 anos (resp. ao qº 33º)
39 - Sendo por esse local que sempre foi feita a separação dosa prédios (resp. ao qº 34).
40 –Há cerca de 5 anos ( c/ref. à data da contestação )a A , contra a vontade dos antecessores da R fez um muro sobre a faixa de terreno situada a sul dos marcos “A” e “B” e a nascente e sul do restante marco que se encontra assinalado a amarelo no doc de fls 22 (resp. ao qº 21).
41 – Faixa essa que tem a área de 24,4m2 (resp. aoqº22º).
42 –E que relativamente ao prédio aludido em a) se situa do lado oposto da linha divisória referida nos qºs 17º a 19º (resp. ao 23º)
43 – O terreno para construção referido em R) e S) estende-se até à linha de cor vermelha que consta dos doc.s juntos de fls 51 e 52 (resp. ao qº 27º).
44 – Na faixa de terreno com a área de 24,4m2 aludida no qº 22º construiu a A parte do pátio que dá acesso à sua casa de habitação e um muro de apoio ao pátio (resp. ao qº 28º)
45 – Construção essa que se mantem contra a vontade da R (resp. ao qº 29º)
46 – E englobando a faixa com a área de 24, 4m2 aludida (resp. ao qwº 21º).
47 – O logradouro do prédio aludido em A) situava-se a poente e a nascente da respectiva casa de habitação, confrontando pelo lado nascente com a via estradal (resp. ao qº 30º).
*
IV – Sendo estes os factos vejamos agora as questões que importa dilucidar neste recurso, delimitadas de harmonia com o disposto, inter alia nos artºs 684ºnº3 e 690º,nº1do CPC pelas conclusões da alegação ( fora as que sejam de conhecimento oficioso) e que se circunscrevem às seguintes :
A ) Nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão.
B) Inexistência de violação pela R de servidão de escoamento.a favor do prédio da A
C) Inexistência de abuso de direito
D) Condenação indevida em indemnização a favor da A.

Apreciemos, pois, cada uma dessas questões

A – Nulidade da sentença
A R começa por arguir a nulidade da sentença por existir uma contradição entre os fundamentos e a decisão.
A tal nulidade reporta-se a aln c) do nº1 do artº 668º do CPCivil e ela verifica-se sempre que o julgador na fundamentação da sentença seguir determinada linha de raciocínio apontando para uma determinada conclusão e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente( v entre outros Lebre de Freitas in CPC Anotado , Vol II, 2001, 670)
Ora, será que ela ocorre no caso vertente, por a R ter sido condenada a demolir o muro que edificou junto da arrecadação da A na parte em que o mesmo excede a altura da dita arrecadação em 1,5 metros e afinal ter sido demonstrado que ela excede essa arrecadação em apenas meio metro?
Cremos que não.
O que estamos sim é perante uma inexactidão devida a lapso manifesto, nos termos do artº 667º do CPC e que podia, por isso, ser objecto de um pedido de correcção na 1ª instância.
Com efeito constava da matéria assente que o dito muro excedia em altura a arrecadação em cerca de meio metro.
E esquadrinhando-se a fundamentação jurídica atinente à apreciação do pedido de demolição que abrangia o muro todo e de que apenas se considerou procedente na parte em que ele excedia a altura da parede sul daquela construção, por com isso ter dado causa a uma cunha entre ambos dificultando o anterior escoamento de águas que se vêm infiltrando no interior da referida arrecadação verifica-se que pelo menos por duas vezes a Mma Juíza alude a tal excesso ser de 1,5 metros, quando efectivamente ficara assente ser de meio metro.
Assim não existe qualquer contradição lógica entre os fundamentos e a decisão, pois determinou-se a demolição da parte do muro de vedação do prédio da R só na parte em excedia a altura da arrecadação do prédio da A a cuja parede sul foi encostado, por constituir estorvo na óptica da Senhor Juíza ao escoamento de águas, só que a altura concretamente considerada diverge da apurada por claro erro material.
E enquanto mero erro material poderá o mesmo ser corrigido a todo o tempo, não sendo causa de nulidade da sentença.

B – Inexistência de servidão de escoamento
Alega também a R que para além de não ter a A logrado provar que o muro por ela edificado ocupara espaço algum do prédio contíguo da A, consistindo essa suposta ocupação a primeira das causas de pedir da exigência da sua imediata e total demolição, igualmente não provara existir uma situação de estorvo a uma servidão de escoamento.
Digamos que a R tem alguma razão neste reparo.
Na verdade, à luz dos factos provados, cremos nós não se verificar nenhuma servidão de escoamento, nem tão pouco estamos perante a previsão do artº 1351º do CC devido ao prédio da R estar situado a cota inferior ao da A
Dispõe, de facto, o nº1 do artº 1351º do CCivil que os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que naturalmente e sem obra do homem decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos que elas arrastam na sua corrente, acrescentando o nº2 que nem o dono do prédio inferior pode fazer obras que estorvem o escoamento, nem o dono do prédio superior obras que capazes de a agravar, sem prejuízo da constituição de uma servidão legal de escoamento nos casos em que é admitido.
Mas esta situação não constitui uma servidão, a qual implica regra geral a construção de obras no prédio onerado além de conter ínsita a ideia de se querer o seu estabelecimento pelo dono do prédio dominante antes uma restrição ao direito de propriedade dos prédios inferiores, os quais têm de sujeitar-se a receber águas que por mera acção da natureza, logo sem intervenção humana – “ opus manu factum”- provenham de prédios situados a cota mais elevada ( v., neste sentido , além de José Cândido de Pinho, As Águas no Código Civil, 269 a 271 e Ac do Supremo de 23/01/2001, inCJ/S,Tº1º,77)
A servidão de escoamento por seu turno é uma modalidade das servidões de aproveitamento de águas e está prevista como servidão legal no artº 1563º tendo como seu necessário pressuposto a existência em certo prédio de águas sobrantes, sem via natural que permita a sua drenagem.
No caso, porem, nem foi alegada a existência de qualquer servidão, como reconhecido na sentença nem ocorre um escoamento natural de águas do prédio da A para o da R visto as águas pluviais que com a construção do muro de vedação do prédio dos RR encostado à parede sul da arrecadação erigida no prédio da A deixaram de escorrer e cair no mesmo provirem de uma construção neste existente.
E para as águas pluviais que caiam de um prédio urbano para terreno alheio, quando erigido aquele junto à estrema ainda que situado a cota mais baixa não impõe a lei servidão de escoamento, como vem detalhadamente explicado no Ac. da R Porto de 25/10/1993, CJ 1993, Tº 4º, 244 e ss
O que podia sim ter-se constituído por qualquer das formas de aquisição previstas na lei era quando muito, uma servidão de estilicídio, visto a parede ou empena sul da dita arrecadação se situar na estrema do prédio da A com o da R logo sem o afastamento do seu beirado determinado pelo nº1 do artº 1365º ( 5 decímetros) para impedir que a sua cobertura ou telhado gotejasse sobre terreno alheio.
E suposta a sua existência, como previsto no nº2 da citada disposição legal, o que não foi alegado, sem dúvida que a R estaria impedida de levantar construção que impedisse esse escoamento ou gotejamento não podendo encostar o seu muro de vedação à parede indicada da arrecadação da A e em termos de estorvar esse escoamento.
Mas tal nada tem a ver com o desnivelamento dos prédios entre si, antes com o impedimento dos proprietários donos de qualquer construção junto à estrema poderem lançar águas que delas escorram pelos telhados ou outras coberturas, como terraços para o prédio vizinho.
Deste modo, não faz sentido dizer-se, como se disse na douta sentença que o muro erguido pela R no exercício dos seu direito de vedar o prédio que lhe pertence “veio estorvar o escoamento natural de águas “ do prédio contíguo da A por forma a fazer cair tal como alegado na petição essa obra no campo de aplicação do artº 1351º.
Procedem, assim, as conclusões das alns e) e f).

C- Abuso de direito
Alegou, também, a A como fundamento do seu pedido de demolição do muro em causa que o mesmo era passível de configurar um abuso de direito nos termos do artº 334º do CCivil, pelo menos na parte do muro que ultrapassa a altura da arrecadação visto ele não radicar em obra tendente a evitar o escoamento de águas pluviais mas sim “numa vil tentativa” de projectar a chuva para a propriedade dela e por forma a infiltrar-se no espaço existente entre as edificações.
Esta questão não chegou a ser apreciada na sentença por se considerar que o muro em causa desacatava a proibição contida no artº 1351º, nº2, sendo pois violadora dos direitos da A, o que já se viu não ser exacto.
Sustenta por isso a R que a circunstância de ter levantado o muro em causa em altura superior à arrecadação da R se deveu a razões de embelezamento da entrada do seu prédio, para o que invocou as fotografias juntas com a contestação de que resulta estar implantando nesse muro ou paredão que faz esquina com a frontaria do edifício principal com dois pisos, um azulejo com a designação da Associação e logótipo que usa.
No entanto, o que foi alegado na petição não foi rigorosamente isso, mas antes o de ela recorrente querer evitar que entre a parede e o seu prédio se criassem espaços vazios e acumulação de águas mostrando-se até disposta a impermeabilizar mas só com o consentimento da R ( e a que esta não respondeu no articulado subsequente) o paredão levantado e que acompanha em toda a sua extensão, a fachada sul da referida arrecadação
Para o efeito foi levada à base instrutória o quesito 26 º em que se perguntava se a R não impermeabilizou o vazio criado entre a parede da arrecadação da A e o muro que levantou por aquela desde há anos por tudo e por nada levantar processos contra ela, ficando apenas provado que ela R não impermeabilizara o mesmo.
Constituirá assim esse muro ou paredão na medida em que com ele se criou uma cunha com parede sul da arrecadação e devido a ficar com altura superior a meio metro à respectiva cobertura um exercício abusivo do direito, nos termos previstos no artº 334º do CPCivil?
Como é bem sabido o exercício de um direito deve situar-se sempre dentro dos limites impostos pela boa fé, dos bons costumes e da conformidade ao fim social e económico para que a lei o conferiu.
Logo, ele pressupõe logicamente a existência de um direito subjectivo ou de um poder legal, cujo titular se excede no seu exercício, ou seja utilizando o poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do mesmo ou do contexto em que deve ser exercido.
E para se determinarem os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim a que se destina o direito há que fazer apelo às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade e para os juízos de valor positivamente consagrados na própria lei, não sendo um qualquer excesso que caracteriza o abuso, antes um excesso que se apresente como chocante e inadmissível.
O artº 1356º do CCivil dá ao proprietário o direito de tapagem do seu prédio por qualquer modo, referindo expressamente a faculdade de construir muros, meio por excelência de vedação.
E este direito só não foi reconhecido à recorrente por se entender que ele violava a obrigação do seu prédio suportar as águas que escorriam da dita arrecadação da A quando é certo que como atrás se disse não existia nenhuma servidão constituída de escoamento ou de estilicídio nem tão pouco se verificava a hipótese contemplada no artº 1351º do CCivil.
Certo que com a dita erecção do muro, justificada pela necessidade de evitar questões com a A, e evitar espaços vazios ficou a existir um intervalo entre o mesmo e a parede ou empena do anexo em causa mas esse intervalo resulta de um deficiente construção deste o qual encolhe para dentro além da linha divisória.
Trata-se este de um problema que só à recorrida caberá resolver ou eliminando a inclinação de tal parede ou tapando a “caixa” existente entre a cobertura da arrecadação e o muro, por todo esse espaço se situar dentro dos limites do que lhe pertence ou dotando a cobertura em toda a extensão ao longo do muro de uma caleira que conduza as águas para terreno seu.
Pretender a A que a R proceda à demolição ainda que parcial do muro para que as águas caídas daquela arrecadação continuem a escorrer para o seu prédio seria no fundo impor-lhe um encargo a que não está sujeita, não cabendo à mesma logicamente ajudar a resolver um problema de acumulação da águas no dito intervalo entre a parede e o muro e que unicamente decorre do desalinhamento daquela.
Dito de outra forma, semelhante exigência corresponderia à impossibilidade da R poder murar o seu prédio naturalmente em esquadria, com pleno aproveitamento do que lhe pertence e conforme o arranjo arquitectónico escolhido a partir da altura em que começasse a encostar à parede “entortada” da dita arrecadação.
Logo não estamos a ver onde exista excesso clamoroso no procedimento da R ou o intuito exclusivo de prejudicar o proprietário vizinho e como é evidente a construção de tal muro não lesa um interesse da A juridicamente protegido, por não ter esta o direito de escoar as águas para o prédio da recorrente, sequer podendo contra ela fazer valer uma servidão de estilicídio.
Outrossim o facto do topo do muro se situar acima da cobertura da referida arrecadação não contribui ou se contribui é em termos assaz limitados para a situação criada de acumulação de águas no dito intervalo, essa acumulação decorre simplesmente de existir esse intervalo por via da deficiência construtiva da parede do anexo e logo sempre aí se depositarem águas, mesmo que se demolisse até o colocar à altura da própria parede.
Procedem, assim, em termos genéricos, as conclusões das aln g) a l)

D- Indevida condenação da R em indemnização a favor da A
Do que se vem de explanar resulta, pois que sendo licitamente exercido o direito da R murar o seu prédio, falta um dos pressupostos essenciais no âmbito da responsabilidade civil para a condenação da mesma na indemnização por via das infiltrações que a A sofreu na dita arrecadação e nos termos gerais dos artºs 483º e ss do CCivil
Logo e necessariamente deverá a R dela ser absolvida, tanto na parte dos danos patrimoniais a liquidar em execução de sentença como dos danos não patrimoniais, sendo ocioso por isso discutir da relevância dos factos que suportam estes últimos.
O recurso reúne, em consequência, condições de procedência.

V – Nos termos expostos, decide-se, com procedência do recurso revogar a aliás douta sentença e como tal julgar improcedente a acção.
Custas a cargo da recorrida.