GARANTIA HIPOTECÁRIA
JUROS DE MORA
Sumário

1) – Por força do disposto no art.693º, nº2, do CC, a garantia hipotecária não cobre juros superiores a três anos e abrange tanto os juros remuneratórios como os moratórios, vencidos e vincendos.
2) - O início do período de três anos é o dia do vencimento e consequente exigibilidade dos juros.
3) - Os juros devem ser contados até ao momento da liquidação do julgado pela secretaria, desde que se respeite o prazo imperativo dos três anos.
4) – Tendo um credor hipotecário reclamado, na acção executiva, o capital e juros vincendos (e não os vencidos), o prazo dos três anos da garantia hipotecária, relativamente aos juros, conta-se não da data da reclamação do crédito mas a partir do dia em que se venceram os primeiros juros.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO

1.1. - A exequente – A... – reclamou da liquidação do julgado resultante da graduação de créditos, pedindo que apenas seja considerado o crédito de capital indicado no requerimento de reclamação de crédito apresentado pelo Banco Nacional Ultramarino (actualmente Caixa Geral de Depósitos), no montante de € 124.045,00.
Alegou, em síntese, que, por Acórdão da Relação de Coimbra, transitado em julgado, foi considerado que a sentença proferida no apenso de reclamação de créditos não contém qualquer alusão a juros.
A Caixa Geral de Depósitos respondeu dizendo ter sido reconhecido e graduado o crédito reclamado na integralidade, ou seja, capital, juros vincendos e despesas.

1.2. - Por despacho de fls.55 e 56 decidiu-se indeferir a reclamação.

1.3. - Inconformada, a exequente recorreu de agravo, com as conclusões que se passam a resumir:
1º) - Da escritura pública, celebrada em 16 de Janeiro de 1997, que titula o contrato de mútuo com hipoteca entre o credor reclamante Banco Nacional Ultramarino e o executado B... e mulher, bem como do documento complementar, resulta que o empréstimo de € 124.699,47 devia ser utilizado no prazo de dois anos, a contar da data da escritura.
2º) - Utilizada a totalidade do crédito concedido ou decorrido o prazo de utilização, deveria o mesmo ser amortizado em prestações mensais, sucessivas e iguais, de capital e juros.
3º) - O prazo de utilização terminou em 16 de Janeiro de 1999, data a partir da qual passaram a ser devidos juros remuneratórios.
4º) - A lei limita a garantia hipotecária relativamente aos juros a um período de três anos ( art.693 nº2 do CC), cujo prazo se inicia com o vencimento dos primeiros juros.
5º) - O prazo legal de três anos iniciou-se em 16 de Janeiro de 1999 e terminou em 16 de Janeiro de 2002, e não consta o registo de nova hipoteca para garantia de juros em dívida após 16 de Janeiro de 2002.
6º) - Tendo o credor reclamante, Banco Nacional Ultramarino, peticionado juros vincendos, a liquidação do julgado só poderia englobar o crédito referente ao capital de € 124.045,00 e os juros vincendos desde a data da apresentação do requerimento da reclamação ( 21 de Fevereiro de 2001 ) e até 16 de Janeiro de 2002, e não a totalidade dos juros vincendos após a data da reclamação.
7º) - O despacho recorrido violou o disposto no art.693 nº2 do CC.
Não foram apresentadas contra-alegações e o M.mo Juiz manteve o despacho impugnado.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. - Para a decisão do recurso, porque documentados no processo, relevam os seguintes elementos de facto:
1) - Por escritura pública de 16 de Janeiro de 1997, foi celebrado entre o Banco Nacional Ultramarino e o executado B... e mulher C... um contrato de mútuo com hipoteca na quantia de € 124.699,47 ( 25.000.000$00 ), destinando-se o empréstimo à reconstrução da habitação própria dos mutuários.
Convencionaram que o capital mutuado venceria juros à taxa de 11,125% ao ano, alterável pelo mutuante em função das variações de mercado, acrescendo, em caso de mora, a sobretaxa de 4%.
2) - Para garantia do capital mutuado, respectivos juros e despesas, foi constituída hipoteca sobre o prédio urbano, sito na freguesia de Canas de Senhorim, inscrito na matriz sob o art.592, definitivamente registada, em 17 de Março de 1997, na Conservatória do Registo Predial de Nelas a favor do BNU.
3) - No documento complementar, convencionaram que “o crédito deverá ser utilizado até dois anos a contar da presente escritura, em seis utilizações, conforme andamento das obras (…)” e que “ utilizada a totalidade do crédito ou decorrido o prazo de utilização, deve o mesmo ser amortizado em prestações mensais, sucessivas e iguais de capital e juros (…)”.
4) - Na acção executiva que a exequente A... instaurou contra o executado B..., o credor Banco Nacional Ultramarino reclamou o seguinte crédito:
24.868.791$00, correspondente a capital;
Juros vincendos e despesas extrajudiciais que efectue e sejam da responsabilidade do devedor a liquidar oportunamente;
Imposto de selo ( fls.34 e 35 ).
5) - O crédito foi admitido, sem impugnação.
6 - Por decisão de 8/10/2001 ( fls.81 ), transitada em julgado, foi reconhecido o crédito do BNU de 24.868.791$00, acrescido de juros vincendos.
7) - Por sentença de 21/12/2004, decidiu-se graduar os créditos existentes, sendo o do BNU em 1º lugar.
8) - Nela se refere que “ o Banco Nacional Ultramarino veio a fls.34 e ss. reclamar o seu crédito, proveniente do contrato de mútuo celebrado com o executado, no montante de € 124.045,00, garantido por hipoteca voluntária registada em 25/11/1996”.
9) - Na parte dispositiva decidiu-se graduar os créditos existentes da seguinte forma:
1º - O crédito reclamado pelo Banco Nacional Ultramarino, SA.
2º - O crédito reclamado por Humberto de Campos Modesto e mulher Maia Amélia Fidalgo Modesto.
3º - O crédito reclamado pela exequente A....
4º - O crédito reclamado pelo Banco Comercial Português SA
5º - O crédito reclamado pelo Banco Totta & Açores SA.
10) - A exequente recorreu de apelação, sustentado que o seu crédito deveria ser graduado em 2º lugar, e o Tribunal da Relação, por acórdão de 27/9/2005, deu provimento ao recurso.
11) – Foi elaborada a liquidação ( fls.46 ), consignando-se o montante máximo de hipoteca pelo credor Banco Nacional Ultramarino ( apenso da reclamação de créditos ) no valor de € 186.269,84.



2.2. - No despacho recorrido considerou-se que:
A decisão que julgou verificado o crédito reclamado pelo BNU do montante de € 124.045,00 ( 24.868.791$00 ), acrescido de juros vincendos, transitou em julgado, aduzindo-se, além do mais, a seguinte fundamentação:
Pelo que haverá que ter em conta a decisão, transitada em julgado, que declarou reconhecido o crédito reclamado, acrescido de juros vincendos.
“ Como os juros que se venceram desde a data da reclamação até à liquidação são superiores a três anos, sem que tenha sido registada nova hipoteca, a garantia hipotecária não cobre os juros superiores a três anos, como foi considerado na liquidação efectuada”.
“O montante do capital em dívida e juros vencidos relativos a três anos é superior ao valor da Vanda do bem hipotecado.”

2.3. - A agravante, não põe agora em causa que o crédito reclamado pelo BNU engloba também os juros vincendos, mas apenas e tão só o seu período temporal.
Com efeito, sustenta que a contagem do período de três anos tem lugar a partir do momento em que os primeiros juros forem exigíveis e não desde a data em que são reclamados.
No caso concreto, os juros garantidos pela hipoteca são devidos desde a data da reclamação ( 21/2/2001 ) e até 16 de Janeiro de 2002, data em que perfizeram três anos em que os primeiros juros garantidos pela hipoteca se tornaram exigíveis ( 16/1/1999 ).
Isto porque, de acordo com a escritura pública que titulou o contrato de mútuo com hipoteca entre o BNU e o executado Luís Loureiro e mulher, bem como do documento complementar, o prazo de utilização do crédito concedido terminou em 16/1/1999.
A partir desta data, deveria o crédito concedido ser amortizado em prestações mensais, iguais e sucessivas de capital e juros, pelo que os juros (remuneratórios do capital mutuado ) venceram-se em16/1/1999.
Por isso, o objecto do recurso contende apenas com a contagem dos juros, quanto a saber se, para efeito dos três anos da garantia hipotecária, os juros se contam desde a data da reclamação do crédito ( 21/2/2001 ) ou desde a data em que se venceram os primeiros juros ( 16/1/1999 ).

2.4. - O art.693 do CC estabelece o regime da garantia hipotecária dos acessórios do crédito, entre os quais os juros, tanto os remuneratórios, como os moratórios.
Perante o disposto no nº2 do art.693 do CC, é ponto assente que a garantia hipotecária não cobre juros superiores a três anos - (“ Tratando-se de juros, a hipoteca nunca abrange, não obstante convenção em contrário, mais do que os relativos a três anos “).
Como norma imperativa, de interesse e ordem pública, pode ser invocada por qualquer legítimo interessado, e deve ser oficiosamente aplicada pelo tribunal.
A lei adoptou um sistema intermédio, com as vantagens realçadas por P.LIMA/A.VARELA ( Código Civil Anotado, vol.I, 3ª ed., pág.685 e 686 ) – “ A indicação rígida dos juros de três anos, sem concretização dos períodos a que respeitam, tem a vantagem de afastar muitas dúvidas que se suscitam noutros países, como por ex., a de saber se estão garantidos por hipoteca os juros vencidos durante a execução (…) e terá ainda a vantagem de estimular, para além de certo limite, a diligência do credor exequente”.
Acrescentam ainda - “ Ao mesmo tempo, incluindo na execução hipotecária os juros referidos na lei, evita-se ( com real vantagem para todos ) a necessidade de instaurar várias execuções: uma relativa ao capital inicialmente garantido; outra ou outras, quanto a todos os juros posteriormente vencidos e acumulados. E dá-se ainda ao credor um lapso de tempo razoável para ele esperar pelo pagamento dos juros sem esperar pela execução “.
Limitada a garantia pela obrigação de juros a um período de três anos, o credor pode registar nova hipoteca relativamente aos juros em dívida que excedam a três anuidades ( art.693 nº3 do CC ).
Com a limitação legal e a proibição de convenção em contrário, visou-se evitar a acumulação dos juros, com prejuízos para outros credores e quaisquer terceiros proprietários actuais da coisa hipotecada ( cf., Ac do STJ de 5/11/1980, BMJ 301, pág.395, MARIA ISABEL CAMPOS, Da Hipoteca, pág.80).
O texto da norma não refere o início da contagem do período de três anos dos juros abrangidos pela hipoteca, e, numa interpretação meramente literal, poder-se-ia concluir ser apenas relevante o período temporal, independente do início do seu vencimento.
Porém, o elemento sistemático e teleológico, apontam para a interpretação no sentido de que a contagem do período dos três anos de juros abrangidos pela hipoteca deve fazer-se a partir do momento em que os primeiros juros forem exigíveis, ou seja, o início do período dos três anos é o dia do vencimento e consequente exigibilidade dos juros ( cf., neste sentido, Ac do STJ de 27/6/2006, C.J. ano XIV, tomo II, pág.135, Ac RP de 20/9/2001, disponível em www dgsi.pt ).
Este entendimento é corroborado pelo nº3 do art.693 do CC ao conceder ao credor hipotecário a possibilidade de requerer o registo de nova hipoteca em relação aos juros em dívida que excedam os três anos, e assim, “ não obstante a lei estabelecer a limitação dos juros garantidos por hipoteca a um período de três anos, o certo é que permite uma actualização progressiva da extensão da garantia, o que só se justifica considerando que o período inicial e legalmente garantido se reporta aos três primeiros anos do respectivo vencimento”.
Conforme resulta dos documentos juntos ( escritura pública que titula o contrato de mútuo e documento complementar ), o prazo de utilização do crédito concedido terminou em 16 de Janeiro de 1999, e a partir desta data o crédito deveria ser amortizado em prestações mensais, iguais e sucessivas de capital e juros.
Por conseguinte, os juros do capital mutuado venceram-se nessa data, logo os juros abrangidos pela hipoteca reportam-se ao período temporal de 16 de Janeiro de 1999 a 16 de Janeiro de 2002.
O disposto no art.693 nº2 do CC não obsta a que nos juros se incluam os vencidos e os vincendos, desde que não sejam superiores a três anos e não ultrapassem o montante máximo garantido.
Dado que apenas foi reclamado e reconhecido os juros vincendos ( e não os vencidos ), então a liquidação do julgado teria que englobar a quantia de € 124.045,00, acrescida de dos juros vincendos desde a data da apresentação do requerimento do crédito ( 21/2/2001 ) e até 16 de Janeiro de 2002, pois só estes estão cobertos pela garantia hipotecária, e não a totalidade dos vincendos após a reclamação, ou seja, desde 21/2/2001 a 21/2/2004.
Procede o agravo e revoga-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro a determinar que a liquidação do julgado englobe, para além do capital de € 124.045,00, os juros referentes ao período temporal de 21 de Fevereiro de 2001 a 16 de Janeiro de 2002, conforme pretensão da agravante, em alegações excelentemente elaboradas.


2.5. - Síntese conclusiva:
1) – Por força do disposto no art.693 nº2 do CC, a garantia hipotecária não cobre juros superiores a três anos, e abrange tanto os juros remuneratórios, como os moratórios, vencidos e vincendos
2) - O início do período de três anos é o dia do vencimento e consequente exigibilidade dos juros.
3) - Os juros devem ser contados até ao momento da liquidação do julgado pela secretaria, desde que se respeite o prazo imperativo dos três anos.
4) – Tendo um credor hipotecário reclamado, na acção executiva, o capital e juros vincendos ( e não os vencidos ), o prazo dos três anos da garantia hipotecária, relativamente aos juros, conta-se, não da data da reclamação do crédito, mas a partir do dia em que se venceram os primeiros juros.
III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar provido o agravo e revogar o despacho recorrido, devendo ser substituído por outro a determinar que a liquidação do julgado englobe, para além do capital de € 124.045,00, os juros referentes ao período temporal de 21 de Fevereiro de 2001 a 16 de Janeiro de 2002.
2)
Sem custas.
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Coimbra, 13 de Novembro de 2007.