I – Provando-se que o autor adquiriu um veículo automóvel na vigência do seu casamento, este sob o regime da comunhão de adquiridos, entretanto dissolvido por divórcio, e não se demonstrando que essa aquisição o fosse por virtude de um direito próprio anterior ou com dinheiro próprio do autor, é apodíctico tratar-se de um bem comum do casal – artºs 1717º, 1721º e 1724º, al. b), do C. Civ..
II – Dissolvido o vínculo conjugal, através de divórcio, por sentença transitada em julgado, o património comum degenera em comunhão ou compropriedade do tipo romano, podendo então, qualquer dos consortes dispor da sua quota ideal ou pedir a divisão da massa patrimonial através da partilha, enquanto negócio certificativo, de carácter declarativo, com concretização em bens certos e determinados.
III – Qualquer um desses comproprietários ou contitulares, mesmo desacompanhado do outro, tem legitimidade para reclamar de um terceiro indemnização por danos de carácter patrimonial causados em bem comum, indemnização essa limitada, porém, ao valor da sua quota-parte – artº 1405º, nº 2, do C. Civ..
1.1. - O Autor – A... – instaurou na Comarca de Pombal acção declarativa, com forma de processo sumário, contra a Ré – B....
Alegou, em resumo:
É proprietário do veículo automóvel, Renault Express, de matrícula 50-47-CA.
Em 24/2/2001, a Ré, sua filha ( a residir com a mãe ), apoderou-se do veículo, sem autorização do Autor, e ao circular na via pública foi interveniente num acidente de viação, com culpa exclusiva, derivando danos patrimoniais, pois a viatura ficou danificada.
Pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 6.500,00, acrescida de juros de mora, desde a citação.
Contestou a Ré, defendendo-se, em síntese:
Excepcionou a ilegitimidade activa, por estar desacompanhado da ex-mulher, pois o veículo é um bem comum do casal, ainda por partilhar.
Por impugnação, contraditou os factos alegados, invocando o estado de necessidade, por força da actuação do autor, de quem se pretendia proteger.
Concluiu pela improcedência da acção.
Na resposta o Autor insiste que o veículo lhe pertence, não sendo bem comum do casal e requereu a intervenção principal provocada de Maria da Encarnação Vieira Fonseca.
1.2. - Por despacho de fls.97, indeferiu-se o incidente.
No saneador julgou-se improcedente a excepção de ilegitimidade activa, afirmando-se a validade e regularidade da instância.
1.3. - Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia que se apurar em liquidação de sentença, correspondente aos danos provocados no veículo CA, ou no valor que se vier a apurar ter o mesmo à data do acidente, deduzido o valor dos salvados, caso se conclua ser a reparação economicamente inviável e tendo como limite máximo o valor do pedido, importância a que acrescerão os juros legais (à taxa legal de 7% desde 05/03/2003 até 30/04/2003 e à taxa legal de 4%, desde 01 /05/2003) desde a citação até ao efectivo e integral pagamento.
1.4. – Inconformada, a Ré recorreu de apelação, com as conclusões que se passam a resumir:
2.1. – O objecto do recurso:
As questões submetidas a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões ( arts.684 nº3 e 690 nº1 do CPC) são as seguintes:
(1) Nulidade da sentença, (2) Impugnação da matéria de facto ( quesito 17º ), (3) O direito de indemnização.
2.2. – Os factos provados:
2.5. - 3ª QUESTÃO / O direito de indemnização:
A pretensão indemnizatória, reclamada pelo Autor, situa-se no âmbito do direito da responsabilidade civil extra-contratual ou delitual ( art.483 e segs. do CC ).
Pressupondo, desde logo, a “violação do direito de outrem”, está aqui em causa a violação do direito de propriedade sobre o veículo automóvel, danificado pela Ré, no acidente de viação.
Discutia-se na acção a quem pertence o veículo automóvel, se apenas ao Autor, enquanto bem próprio, ou antes a ambos os ex-cônjuges, por ser bem comum.
A sentença, perante os elementos factuais disponíveis, qualificou-o como bem comum do casal, sendo o crédito decorrente do direito à indemnização um crédito também comum, embora sob a administração exclusiva do Autor.
Provando-se que o Autor adquiriu o veículo automóvel de marca Renault, modelo Express, de matricula 50-47-CA, na vigência do casamento com Maria da Encarnação Vieira Fonseca, sob o regime da comunhão de adquiridos, entretanto dissolvido por divórcio, e não se demonstrando que a aquisição o fosse por virtude de um direito próprio anterior ou com dinheiro próprio do Autor, é apodíctico tratar-se de um bem comum ( arts. 1717, 1721 e 1724 b) do CC ).
Sendo assim, o veículo automóvel faz parte do património comum do casal, ou seja, é bem comum, e não próprio do Autor.
Ora, o património comum do casal, sendo um património colectivo ( comunhão de mão comum ), não confere a nenhum dos titulares, nem direitos sobre coisas certas e determinadas, nem direito a uma quota sobre qualquer dessas coisas.
Ou seja, os bens comuns constituem uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede um certo grau de autonomia, e pertence aos dois cônjuges, podendo dizer-se que os dois são titulares de um único direito, o que significa que marido e mulher não têm qualquer fracção de direito que lhes corresponda individualmente e de que, como tal, possam dispor e também individualmente, não podem dispor da sua posição em face do património comum por acto “inter vivos” ( cf., por ex., ( cf. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol.1º, pág.224, ANTUNES VARELA Direito da Família, 1982, pág. 374, PEREIRA COELHO/GUILHERME OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Vol. I, 2ª edição, pág. 506 ).
Sendo o veículo bem comum, quanto aos actos de administração ordinária vigora a regra geral de que ela pertence a ambos os cônjuges ( art.1678 nº3 do CC ), de modo disjuntivo, mas não custa aceitar, pelas razões expostas na sentença e face ao provado no ponto 10 que a administração incumbia ao Autor, nos termos do art.1678 nº1 e) do CC, já que era ele quem o utilizava exclusivamente. De resto, se os membros da família apenas o utilizavam com o seu consentimento, significa que o reconheciam como o único administrador do bem.
Dissolvido o vínculo conjugal, através do divórcio, por sentença transitada em julgado em 8/2/2002, diverge-se quanto à configuração jurídica do património comum até à partilha ( cujo inventário se encontra pendente/fls.249), com duas posições doutrinárias e jurisprudenciais:
a) - Uma, no sentido de que continua a manter-se a estrutura inicial de comunhão de mão comum, por força da imutabilidade do regime de bens, passando à situação de indivisão que não se confunde com a figura da compropriedade ( cf. P.LIMA/A VARELA, Código Civil Anotado, vol.IV, 2ª ed., pág.436, Ac STJ de 11/10/05, Ac RL de 4/3/04, disponíveis em www dgsi.pt );
b) – Outra a considerar que o património comum degenera em comunhão ou compropriedade do tipo romano, podendo então, qualquer dos consortes dispor da sua quota ideal ou pedir a divisão da massa patrimonial através da partilha, enquanto negócio certificativo, de carácter declarativo, destinado a tornar certa uma situação anterior, com a concretização em bens certos e determinados, aplicando-se as regras da compropriedade ( cf., por ex., VAZ SERRA, RLJ ano 105, pág.160, Ac do STJ de 14/5/96, em www dgsi.pt, Ac RE de 2/2/84, C.J. ano IX, tomo I, pág.289, Ac RC de 27/9/94, C.J. ano XIX, tomo V, pág.31 ).
Muito embora a questão não seja líquida, adopta-se aqui a segunda orientação, pois extinto o casamento deixa de subsistir a razão de ser da comunhão e tanto assim que o art.1789 do CC determina que os efeitos patrimoniais do divórcio se produzem a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, retrotraindo-se à data da proposição da acção, nas relações entre os cônjuges.
A lei não regula genericamente o instituto da comunhão, estabelecendo como paradigma o regime da compropriedade, cujas regras “ são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles “ ( art.1404 do CC ).
Ao prever “ quaisquer outro direitos”, a norma não visa apenas os direitos reais, pelo que a contitularidade de um direito de crédito está subordinada, sempre que não exista regulamentação própria, às regras da compropriedade ( cf., por ex., HENRIQUE MESQUITA, Direitos Reais, 1967, pág.234 ).
A regra é a de que os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular ( nº1 do art.1405 do CC ).
Estabelece, no entanto, o nº2 do artigo citado que cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum.
Não obstante a natureza excepcional, a norma comporta interpretação extensiva (art.11 do CC) quanto ao direito de indemnização pelos danos causados na coisa comum e daí se entender que um comproprietário, mesmo desacompanhado dos restantes, tem legitimidade para reclamar indemnização por danos de carácter patrimonial causados por outrem no prédio comum, limitada ao valor da quota-parte.
É que a sentença, pronunciando-se sobre a responsabilidade por danos, uma vez transitada, fixa em definitivo a situação concreta das partes e não será necessariamente alterada na hipótese de outra decisão vir a ser oportunamente proferida relativamente aos demais comproprietários, ficando, assim, salvaguardado o efeito útil normal da decisão ( cf., por ex., Ac do STJ de 12/6/95, C.J. ano III, tomo II, pág.125, Ac RP de 11/9/2007, em www dgsi.pt ).
Assim, por interpretação extensiva do art.1405 nº2 do CC, aplicável, por força do art.1404 do CC, à comunhão de direito de créditos, um dos contitulares pode reclamar a indemnização pelos danos na coisa comum, conferindo-se o direito na respectiva proporção, sendo certo que relativamente à participação dos cônjuges no património comum, o art.1730 do CC prescreve imperativamente a regra da metade.
Daqui resulta que, apurando-se a responsabilidade da Ré, o Autor terá direito à indemnização, na proporção de metade.
Vejamos a responsabilidade da Ré:
São pressupostos da responsabilidade civil aquiliana, o facto ilícito, ligando por nexo de imputação subjectiva ( a culpa ) ao agente e a existência de danos causados adequadamente por esse mesmo facto.
A sentença, depois de uma análise exaustiva sobre cada um dos pressupostos, concluiu, face à factualidade apurada, pela sua comprovação.
A apelante apenas questiona no recurso a ilicitude, pois entende estar verificada uma causa de justificação, através do estado de necessidade ( art.399 do CC ), mas sem consistência.
Em primeiro lugar, fê-lo no pressuposto da alteração da resposta ao quesito 17, e, porque inviabilizada, não demonstrou ( art.342 nº2 do CC ) que o único meio para sair do local e proteger-se do propósito do autor fosse a utilização do veículo.
Depois, e como pertinentemente se observou na sentença, é por demais evidente que os danos resultantes do acidente de viação, em que interveio, ocorrido a quilómetros de distância do local, jamais poderia ser apto a remover o perigo, fosse ele de dissipação de bens comuns ou para a sua integridade física, tanto assim que, na altura do acidente, já se encontrava afastada fisicamente do Autor, seu pai, e logicamente nem sequer se poderá falar de remoção do perigo, e muito menos da sua actualidade, o que posterga a legitimidade da intromissão na esfera alheia.
Por conseguinte, deverá a Ré pagar ao Autor metade da quantia que se apurar em liquidação de sentença, correspondente aos danos provocados no veículo CA, ou no valor que se vier a apurar ter o mesmo à data do acidente, deduzido o valor dos salvados, caso se conclua ser a reparação economicamente inviável e tendo como limite máximo o valor do pedido, importância a que acrescerão os juros legais (à taxa legal de 7% desde 05/03/2003 até 30/04/2003 e à taxa legal de 4%, desde 01 /05/2003) desde a citação até ao efectivo e integral pagamento, o que implica a parcial procedência da apelação.
Pelo exposto, decidem:
As custas da 1ª instância serão suportadas pelo Autor e Ré, na proporção de metade para cada.