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PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Sumário
I - A perda do imóvel prometido vender por parte do promitente vendedor, em execução judicial movida pelo credor hipotecário por falta de pagamento das prestações mensais do empréstimo garantido, configura uma impossibilidade de cumprimento imputável ao devedor. II - Tendo o promitente vendedor permitido que, na sequência da sua falta de pagamento das prestações do empréstimo perante o credor hipotecário, este lhe instaurasse uma execução, e que tal bem aí acabasse por ser adjudicado a tal credor, tal comportamento poderá ainda equivaler a um acto inequívoco de que não quer ou não pode cumprir. III - O não cumprimento de obrigações acessórias ou instrumentais, como por ex. a de distrate da hipoteca que onera o imóvel prometido vender, acarretando a impossibilidade de cumprimento da obrigação principal, faz incorrer o promitente vendedor no incumprimento definitivo do contrato, justificando a resolução do contrato por parte do promitente comprador.
Texto Integral
Processo nº 1134/10.9TJVNF.P1 –Apelação
Relator: Maria João Areias
1º Adjunto: Maria de Jesus Pereira
2º Adjunto: José Igreja Matos
Acordam no Tribunal da Relação do Porto (2ª Secção):
I – RELATÓRIO B… intenta a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra: C…,
pedindo que se declare resolvido o contrato promessa celebrado entre autora e réu , condenando-se o réu a restituir à autora a quantia recebida a título de sinal, em dobro, bem como a quantia de 1.080,00 €, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento.
Alegando, para tal e em síntese:
celebrou um contrato promessa de compra e venda com o réu, tendo pago, a título de sinal, a quantia de 14.964€, tendo gasto a quantia de 1080€ em registos provisórios;
em Julho de 2006, acordou com o réu que a escritura apenas se realizaria em Maio de 2007, altura em que terminaria o empréstimo bonificado que o réu tinha contraído para aquisição daquele imóvel.
não obstante todos esses pagamentos e este acordo, o réu nunca se disponibilizou a efectuar a escritura definitiva, mesmo após várias solicitações para o efeito;
acresce que em 13 de Junho de 2007, tal prédio foi penhorado pelo D…, tendo o mesmo lhe sido adjudicado, concluindo a autora pela impossibilidade do cumprimento do contrato-promessa celebrado.
O Réu apresentou contestação/reconvenção, alegando em síntese:
o contrato definitivo nunca se realizou em virtude da autora nunca ter designado data para o efeito, não tendo sido a penhora que incidia sobre o prédio que impediu a realização da escritura definitiva, mas sim o facto da autora não ter obtido crédito bancário;
após a celebração do contrato-promessa, a autora passou a ocupar a casa em questão, sendo que a partir de Julho de 2006, as partes acordaram no pagamento de uma renda de 185€, que, a partir de Maio de 2008, deixou de ser paga pela autora;
tal falta de pagamento foi causa do não pagamento das prestações bancárias ao D….
Conclui assim que foi a conduta da autora que motivou o incumprimento perante o D…, pelo que deduziu pedido reconvencional, pedindo o valor das rendas alegadamente não pagas entre Maio de 2008 e Janeiro de 2009, data m que o prédio foi adjudicado ao D…, bem como na perda do sinal e ainda no pagamento da quantia remanescente (17.409,06€), em virtude de considerar que o não pagamento das prestações e o consequente incumprimento se terem ficado a dever à conduta da autora.
Respondeu a autora, mantendo o alegado na PI e impugnando o pedido reconvencional, propugnando pela sua improcedência.
Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que:
1. Julgando a acção parcialmente procedente, em consequência:
- declara resolvido o contrato-promessa celebrado entre autora e réu, por incumprimento deste último;
- condena o réu a restituir à autora o sinal prestado em dobro, no valor de 29.928€, acrescido de juros legais desde a citação até efectivo e integral pagamento;
- absolve o réu do pedido de indemnização da quantia de 1.080€;
2. Julga parcialmente procedente o pedido reconvencional e, em consequência, condena a autora a pagar ao réu a quantia de 1665€, a título de rendas não pagas, acrescido dos juros legais desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Mais absolve a autora dos restantes pedidos.
Operando a compensação, condena o réu no pagamento à autora da quantia de 28.263€, acrescido de juros legais desde a citação até efectivo e integral pagamento.
3. Condena o Réu como litigante de má fé na multa de 10UCs.
Inconformado com tal sentença, o Réu dela interpõe recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:
I. O facto referenciado como 21 na sentença recorrida, é obscuro ao considerar que a Autora confiou as diligências de obtenção de empréstimo bancário a solicitador, que efectuou registos provisórios não obstante a existência de penhora, não esclarecendo se o financiamento foi ou não obtido e se não por que motivo, quando tal era o que relevava saber por relevante.
II. O facto referenciado como 22, é infundamentado e inverdadeiro, quando afirma que na esmagadora maioria dos casos os bancos não concedem empréstimos para a aquisição de imóvel se estes tiverem ónus ou encargos, quando das regras de experiência é facto exatamente o inverso, de que na esmagadora maioria das situações de concessão de empréstimos para a habitação, o imóvel objeto do financiamento se encontra hipotecado ao promotor imobiliário por financiamento à construção ou ao vendedor particular por outro e inicial empréstimo à habitação, sendo habitual a expurgação simultânea de uma hipoteca com a realização da segunda hipoteca.
III. Não será o facto de o banco beneficiário da hipoteca ter acionado judicialmente o mutuário e realizado penhora que mais onerou o imóvel em relação ao que já estava com a hipoteca. Pelo que se na data da celebração do contrato-promessa o imóvel já se encontrava onerado com hipoteca e tal era conhecido dos promitentes, não há agravamento dos ónus incidentes sobre o imóvel, com a inscrição de uma penhora do mesmo banco mutuante, já que esta é mera sequência da primeira e ambas seriam naturalmente expurgadas em simultâneo na altura da escritura.
IV. Do não pagamento das prestações de empréstimo à habitação de imóvel, permissão da instauração de ação de execução hipotecária e de adjudicação por parte do banco do mesmo por valor inferior à divida, não decorre necessária e inevitavelmente que o executado não tenha meios financeiros e económicos para readquirir o imóvel ao banco, por idêntico ou inferior valor, ou mesmo por valor superior, no futuro.
V. Com efeito o não pagamento de um empréstimo é uma decisão proveniente de uma racionalização de ordem económico e/ou financeira, em que entre outras possíveis alternativas, o decisor pode optar por aplicar os seus fundos num outro investimento ou no pagamento de outra qualquer despesa que lhe dê maior utilidade; optar por tentar readquirir o imóvel ao banco adjudicante por um menor valor; tentar conseguir que judicialmente lhe seja reconhecido o pagamento de toda a dívida remanescente por entrega do bem adjudicado, ou simplesmente optar por adquirir mais tarde e se necessário o imóvel se e quando tal se vier a verificar necessário.
VI. Nada nos factos provados permite ajuizar de qual o raciocínio e a opção efetivamente tomada pelo Réu.
VII. Nada permitindo nos factos provados avaliar ou ajuizar se o Réu dispõe atualmente ou no futuro, quando se tornar necessário, disporá então dos meios financeiros, próprios ou alheios, que lhe permitam readquirir o imóvel prometido vender.
VIII. É uma possibilidade legal a promessa de venda de coisa futura, de coisa que o promitente vendedor não dispõe ainda no momento da promessa de venda. Continua a ser uma possibilidade legal a promessa de vender coisa que se tinha à data da promessa mas que no entretanto se vendeu ou de outro modo o promitente vendedor se viu privado, já que de igual modo, como inicialmente, nada o impedirá de recomprar o prometido vender.
IX. No caso dos autos não só o imóvel prometido vender continua a existir, como é de presumir que o banco adjudicante o tenciona vender e a outra parte litigante não o adquiriu entretanto, pelo que a recompra continua a ser possível, o objeto da promessa continua a ser possível.
X. Se o promitente vendedor de coisa tornada agora futura mas ainda existente e no comércio jurídico, não foi notificado para a realização da escritura de compra e venda prometido, cabendo à promitente compradora notifica-lo para o efeito, não existindo prazo contratualmente fixado, este não se encontra em situação de mora no seu cumprimento.
XI. Se o promitente vendedor, não existindo prazo para cumprimento e não tendo sido notificado pela promitente compradora para realizar o contrato prometido, não declarou que não tinha intenção e se recusava a cumprir o contratado, continuando o objeto do contrato a ser possível, não se encontra em situação de incumprimento, nem se verifica o incumprimento definitivo.
XII. Confrontando-se o entendimento contrário ao concluído nas conclusões 10 a 12 acima com o julgamento de que foi que a promitente compradora, não obstante ocupar o imóvel, não pagar qualquer valor por tal ocupação, não ter demonstrado ter obtido o financiamento para o pagamento da parte restante do preço do imóvel, não ter notificado o promitente vendedor para a realização da escritura como lhe competia, não obstante ainda terem decorrido mais de nove anos desde a data de celebração do contrato promessa em 2003, ter sido julgado não se encontrar em situação de incumprimento mas em simples situação de mora.
XIII. Poderá concluir-se que na decisão recorrida existiram dois pesos e duas medidas para se considerar como verificado a situação de incumprimento por parte dos distintos promitentes.
XIV. Não basta um mero juízo de probabilidade de que o promitente vendedor não venha a dispor de meios financeiros para a aquisição futura do bem prometido vender, mais a mais sem que se tenha averiguado nos autos da existência de tais meios ou da possibilidade de os obter, para que se conclua pela impossibilidade definitiva de cumprimento do contrato promessa.
XV. Não se verificando situação de incumprimento definitivo do contrato promessa, não é devida a devolução do sinal em dobro, como penalidade por incumprimento.
XVI. Invocando o Réu em pedido reconvencional uma relação de causalidade entre a falta de cumprimento das obrigações por parte da promitente compradora com a sua decisão de incumprimento perante a banca no pagamento das prestações de financiamento do imóvel pretendido vender, será em função de todos os factos por este invocado que tal relação de causalidade adequada deve ser aferida.
XVII. O mero lapso de datas de cessação de pagamentos das rendas por parte da promitente compradora e de cessação de pagamentos das prestações de empréstimo por parte do promitente vendedor, por óbvia e manifesta e logo detetada e corrigida em sede de julgamento, não constitui suficiente evidência da existência de má-fé, já que é para a correção de tais lapsos que igualmente servem as instâncias de contraditório e julgamento.
Conclui pela anulação da decisão recorrida quanto à parte que condena o Réu à devolução do sinal em dobro e como litigante de má-fé, e substituída por acórdão que absolva o Réu do pedido.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpridos os vistos legais, há que decidir. II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artºs. 684º, nº3 e 685º-A, do Código de Processo Civil, as questões a decidir são as seguintes:
1. Decisão sobre a matéria de facto:
a. Deficiências e obscuridade da resposta ao ponto 21.
b. Deficiência da resposta dada ao ponto 22 da matéria de facto.
2. Incumprimento ao simples mora por parte do réu:
a. Ausência de marcação de data da escritura por parte do autor.
b. Se a venda judicial do bem ao credor hipotecário faz incorrer o réu no incumprimento definitivo do contrato.
3. Condenação do réu em litigância de má-fé. III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DOS RECURSOS 1. Decisão sobre a matéria de facto.
Os tribunais da Relação, sendo tribunais de segunda instância, têm actualmente competência para conhecer tanto de questões de direito, como de questões de facto.
Segundo o nº1 do art. 712º do CPC, na redacção do DL 303/2007, de 24 de Agosto, a decisão do tribunal da 1ª instância pode ser alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os meios de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 665º-B, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados em audiência, o que nos permite alterar a matéria da matéria de facto nos amplos termos previstos na al. a), do art. 712º do CPC[1], passamos, assim, a analisar cada um dos pontos da matéria de facto postos em causa pelos réus/recorrentes, nas suas alegações de recurso. 1.a. Ponto 21 da matéria de facto constante da sentença.
Insurge-se a Ré/Apelante contra o teor do ponto 21 da matéria de facto constante da sentença (resultante das respostas dadas aos pontos 20 e 21 da Base instrutória), pela obscuridade e incerteza do pretendido dar como provado.
É o seguinte o teor dos pontos 20 e 21 da B.I.:
Ponto 20 – O R. assinou os competentes registos provisórios, que posteriormente levariam à realização da escritura, sabendo, assim que o crédito da Autora estava aprovado e pronta a escriturar?
Ponto 21 – Registos estes que todo e qualquer banco quando financia a aquisição de um bem imóvel com recurso ao crédito exige que sejam feitos e que posteriormente sejam levados à dita instituição para a realização das minutas para a escritura definitiva?
A tais pontos respondeu o tribunal a quo, pelo seguinte modo:
“Provado que a Autora, por não ter formação na matéria, entregou o processo destinado à concessão de crédito e à consequente compra do imóvel a um solicitador, o qual diligenciou pelo financiamento junto do banco e efectuou os segundos registos provisórios, mesmo sabendo da penhora que já incidia sobre o prédio em causa.
O Apelante insurge-se contra tal resposta pelo facto de, com a mesma, sempre ficará por saber se o solicitador obteve ou não o financiamento para a autora adquirir o imóvel, e se não, porque razão ou razões, facto relevante, já que foi arguido pelo réu em seu defesa que a autora não marcou nunca a data para a realização da escritura porque não obteve financiamento bancário.
Desde logo se constata que, perguntando-se no ponto 13 da B.I. “se a autora sempre invocava que não realizava a escritura porque os bancos a quem tinha recorrido sucessivamente para obter o financiamento à habitação que lhe permitisse a aquisição do imóvel, não lhe concediam o empréstimo bancário?”, e no ponto 14, em que se perguntava se “a falta da autora em obter os meios necessários para a compra do imóvel, é que foi efectivamente penhorado e, e mais tarde e em consequência directa da inércia e recusa absoluta da autora em celebrar o contrato prometido, acabou por ir à praça e ser adjudicado ao Banco exequente?”, tais pontos obtiveram resposta negativa.
E da análise da certidão de ónus e encargos respeitante à fracção prometida vender, junta aos autos a fls. 11 e ss., no que concerne à questão de saber se a autora conseguiu ou não a concessão do empréstimo bancário, a resposta só pode ser claramente positiva:
Com efeito, de tal certidão de registo constam os seguintes averbamentos: ● Ap. 44 de 2007/07/13 Penhora ● Ap. 49 de 2008/05/12 Aquisição
Provisório por natureza – art. 92, nº1, al. g)
Causa: compra
Sujeito passivo: B…, casada com (…) ● Ap. 50 de 2008/05.12 Hipoteca voluntária
Provisório por natureza
Capital: 45.000,00 €
Montante máximo assegurado: 60.084,00 €
Sujeito activo:
E…
Fundamento: garantia de empréstimo
Ou seja, de tal registo, só pode extrair-se uma conclusão – que a autora logrou obter o empréstimo bancário, no montante de 45.000,00 €, tendo chegado inclusivamente a figurar um registo provisório de aquisição a seu favor e registada provisoriamente a hipoteca que garantia a concessão de tal empréstimo.
Conclusão esta que é, aliás confirmada pelos depoimentos das testemunhas F…, marido da Autora e do referido solicitador que tratou dos registos e do empréstimo, G….
Ora, será que a resposta ao ponto 20 reflecte tal situação, verdadeiramente relevante para a decisão quer dos pedidos formulados pelo autor, quer dos pedidos formulados pelo réu a título reconvencional?
É certo que em tal resposta consta que o solicitador “diligenciou pelo financiamento junto do banco e efectuou os segundos registos provisórios”, mas para que não fiquem dúvidas sobre o facto de à autora ter sido deferido o pedido de financiamento em causa, optar-se-á por alterar a redacção dada à resposta aos pontos 20 e 21 (eliminando-se a referência ao “por não ter formação na matéria”, por comportar uma resposta explicativa absolutamente irrelevante): Provado que a autora entregou o processo destinado à concessão de crédito e à consequente compra do imóvel a um solicitador, o qual diligenciou pelo financiamento junto do banco e efectuou os segundos registos provisórios, mesmo sabendo da penhora que já incidia sobre o prédio em causa, tendologrado obter o respectivo financiamento bancário e os respectivos registos. 1.b. Ponto 22 da matéria de facto constante da sentença.
Insurge-se o Apelante igualmente contra o teor do ponto 22, resultante da resposta afirmativa dada ao ponto 22 da B.I., ao qual o tribunal a quo deu a resposta de “provado”, e que apresenta o seguinte teor:
“Na esmagadora maioria dos casos, as instituições bancárias não realizam qualquer acto de concessão de empréstimo para concessão de imóvel, sem que o imóvel em questão esteja livre de ónus e encargos”
É a seguinte a motivação dada pelo juiz a quo a tal resposta: “Por seu turno, a testemunha H…, funcionário do D…, veio a tribunal relatar um facto que é público e notório e que se refere às condições que os bancos costumam exigir para a concessão de empréstimo e consequente celebração da escritura, nomeadamente as relacionadas com as garantias de cumprimento, não celebrando qualquer escritura, sem o correspondente distrate de hipotecas anteriores ou levantamento de penhoras que incidam sobre o imóvel”
O apelante fundamenta a sua discordância com base em duas ordens de razões:
Por um lado, tal resposta seria infundada com o argumento de que, “em nenhum momento do julgamento (invocando-se toda a prova produzida), resultou que a não obtenção financiamento por parte da autora aconteceu pelo facto de existir um qualquer ónus sobre o imóvel”.
E, por outro lado é contrária às regras da experiência porque esta é a de que a esmagadora maioria dos financiamentos bancários à habitação são obtidos não obstante a existência de ónus sobre os imóveis pretendidos ou prometidos vender.
Quanto ao primeiro argumento, o mesmo não faz qualquer sentido porquanto em tal ponto da matéria de facto não se afirma que, no caso concreto, a não obtenção do financiamento tenha ocorrido pelo facto de existir um qualquer ónus sobre o imóvel, mas tão só que as instituições de crédito não realizam em regra “qualquer acto de concessão de empréstimo para a aquisição de imóvel, sem que o imóvel em questão esteja livre de ónus e encargos”.
Quanto ao segundo argumento, o Apelante está a confundir duas situações distintas – o deferimento do pedido de concessão de crédito, deferimento este que não se encontra condicionado à inexistência de ónus e encargos, e a celebração da escritura de mútuo, à data da qual as instituições bancárias costumam exigir o distrate de qualquer ónus existente sobre o imóvel dado em garantia. E da fundamentação dada pelo juiz a quo, é óbvio que é este o sentido dado a tal ponto da matéria de facto, e que nem sequer podia ser outro, uma vez que, no caso em apreço, apesar da pré-existência do registo da penhora a autora logrou a obtenção do financiamento em causa – constando da certidão junta aos autos os Averbamentos respeitantes aos segundos registos provisórios de aquisição a favor da ora autora e de hipoteca a favor da instituição financiadora.
A impugnação a tal ponto será de improceder.
No número 10 do corpo das suas alegações de recurso, defende ainda o apelante que “ainda em sede de impugnação da matéria de facto” não deve ser tido em consideração, o seguinte “facto”, que apesar de não dado como provado, foi tomado em consideração na fundamentação da sentença recorrida (fls. 11 e 12):
“Se atentarmos a todo o circunstancialismo que rodeou essa adjudicação do prédio, então, facilmente podemos concluir que o Réu não tem possibilidades económicas de adquirir o imóvel em causa, pagar a dívida ao D… e posteriormente honrar o acordo firmado com a Autora e vender o prédio objeto do contrato-promessa, pois que se assim não fosse certamente não teria entrado em incumprimento perante o banco”.
Ora, a conclusão ou ilação retirada pelo juiz a quo dos factos como provados não poderá ser considerada, ela própria, como um facto, não passando de um argumento no raciocínio do juiz para concluir pelo incumprimento de uma das partes. Como tal, a sua relevância assumirá interesse, tão só, em sede de impugnação da decisão de direito. A. Matéria de facto São os seguintes os facto dados como provados pelo tribunal a quo deu, com as alterações aqui introduzidas ao ponto 21:
1 – Autora e réu celebraram em 23 de Janeiro de 2003, um contrato a que deram a designação de “contrato-promessa de compra e venda”.
2 – Por esse contrato, a autora prometeu comprar ao Réu e este prometeu vender uma fracção autónoma do tipo T1, destinada a habitação, no segundo piso – rés-do-chão direito, designada pela letra “I”, sita na (…), tendo sido estipulado o preço de € 59.856,00 (cinquenta e nove mil oitocentos e cinquenta e seis euros).
3 – A autora entregou nessa data ao Réu, a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de € 14.964,00 (catorze mil novecentos e sessenta e quatro euros).
4 – Ficando de entregar a restante parte do preço, no montante de € 44.892,00 (quarenta e quatro mil oitocentos e noventa e dois euros) no dia da escritura definitiva de compra e venda.
5 – O Réu possuía um empréstimo bonificado, pelo que se liquidasse o mesmo antes de decorrido o prazo de 5 anos, teria que devolver todas as bonificações.
6 – Em 17 de Julho de 2006, Autora e Réu assinam um acordo em que comprometem a realizar a escritura de compra e venda entre os dias 1 e 11 de Maio de 2007.
7 – Neste momento o imóvel prometido vender já se encontra registado em nome do D….
8 – Dou aqui por reproduzido o teor do documento junto aos autos intitulado pelas partes de “contrato promessa de compra e venda”.
9 – Dou aqui por reproduzido o teor do documento junto aos autos intitulado pelas partes de “Acordo” e que consta de fls. 19 a 23.
10 – Para a liquidação do restante preço na data da realização da escritura, a Autora recorreu a financiamento bancário, tendo obtido o mesmo e procedido aos registos provisórios de aquisição e hipoteca em data mas anterior às realização de tal acordo, despendendo para tal € 540,00 (resp. ao ponto 1).
11 – Autora e réu acordaram que a escritura apenas fosse realizada após terem decorrido os 5 anos a que se refere o ponto 5, sendo que após essa data a autora voltou a submeter o processo de financiamento ao banco, tendo efectuado novos registos provisórios (resp. ao ponto 2).
12 - Apesar de variadas insistências para a realização da escritura de compra e venda o Réu nunca se disponibilizou a efectuar a mesma (resp. ao ponto 3).
13 – O réu tinha conhecimento da penhora efectuada pelo D…, entidade onde possuía o crédito bancário, em 13 de Junho de 2007, data anterior à realização dos segundos registos provisórios, e nem por isso alertou a Autora para tal facto, permitindo a entrada dos mesmos (resp. ao ponto 4).
14 – A promitente compradora de imediato após a celebração do contrato promessa ocupou o imóvel passando a usá-lo como habitação permanente e exclusiva de qualquer outra utilização por qualquer outro, inclusive o proprietário (resp. ao ponto 5).
15 – A autora nunca procedeu à marcação de qualquer escritura de compra e venda (resp. ao ponto 6).
16 – Desde a data da celebração do contrato-promessa até à presente data, a autora sempre ocupou o imóvel aqui em causa, tendo, em determinada altura, pago uma renda (resp. aos pontos 8 a 10).
17 – O réu foi proprietário do imóvel até 21 de Janeiro de 2009 (resp. ao ponto 11).
18 – O réu deixou de pagar as prestações do empréstimo que tinha contraído para adquirir o imóvel aqui em causa em 07/11/2005 (data do último pagamento) (resp. aos pontos 12 a 15).
19 – O prédio foi vendido por um valor inferior ao montante em dívida (resp. ao ponto 16).
20 – O Banco exequente continua a exigir do Réu a quantia de 17.409,06€ (resp. ao ponto 18).
21 – A autora, entregou o processo destinado à concessão de crédito e à consequente compra do imóvel a um solicitador, o qual diligenciou pelo financiamento junto do banco e efectuou os segundos registos provisórios, mesmo sabendo da penhora que já incidia sobre o prédio em causa, tendo logrado obter o respectivo financiamento bancário e os respectivos registos (resp. aos pontos 20 e 21).
22 – Na esmagadora maioria dos casos, as instituições bancárias não realizam qualquer acto de concessão de empréstimo para aquisição de imóvel, sem que o imóvel em questão esteja livre de ónus e encargos (resp. ao ponto 22).
23 – As quantias que a autora entregasse ao R. pela ocupação do imóvel seriam deduzidas ao valor do apartamento (resp. ao ponto 23).
24 – A autora adiou a realização da escritura a pedido do R. para evitar o pagamento das bonificações caso a mesma se realizasse antes de decorrido o dito prazo de 5 anos, sendo que isso apenas se sucedeu aquando dos primeiros registos (resp. ao ponto 24). B. O Direito 1. Resolução do contrato com fundamento no incumprimento definitivo por parte do réu.
Na decisão recorrida, o juiz a quo considerou resolvido o contratado pelo incumprimento definitivo por parte do réu, com base no seguinte raciocínio, que aqui se sintetiza:
- apesar de a autora não ter marcado a data da escritura dentro do prazo acordado – entre os dias 1 a 17 de Maio de 2007 –, não se tratando de um prazo absoluto, a autora incorreu, tão só em mora, uma vez que a realização da escritura era ainda possível, tendo a A. continuado a diligenciar pela obtenção do empréstimo, tendo inclusivamente efectuado os registos provisórios, já após o terminus de tal prazo;
- não incumbindo ao réu a marcação da escritura, não tendo sido interpelado para tal, não se pode falar em mora por parte do réu;
- contudo, tendo o imóvel prometido vender sido, em Janeiro de 2009, adjudicado ao D…, deixando de ser propriedade do réu, embora do ponto de vista jurídico não seja impeditivo da celebração da escritura definitiva, para que esta se realize necessário se torna que o promitente vendedor adquira o imóvel em causa;
- não sendo o réu actualmente proprietário do imóvel, o que aconteceu, não por um facto voluntário do réu, mas sim por causa de uma cobrança coerciva de créditos, “se atentarmos em todo o circunstancialismo que rodeou esta adjudicação, então, facilmente podemos concluir que o réu não tem possibilidades económicas de adquirir o imóvel em causa, pagar a dívida remanescente ao D… e posteriormente honrar o acordo firmado com a autora e vender o prédio objecto do contrato promessa, pois se assim não fosse certamente teria entrado em incumprimento perante o banco;
- “tal hipotética impossibilidade de cumprimento, não é o principal motivo para considerarmos a existência de um incumprimento definitivo, mas sim o facto de entendermos que toda a postura do réu, não só perante a mora mas também neste processo com o D…, demonstrar inequivocamente que o mesmo não pretende cumprir o contrato-promessa que outorgou com a autora.
Na verdade, ao não ter pago as prestações do empréstimo que tinha contraído para a aquisição de tal imóvel ao exequente no processo executivo que se seguiu ao incumprimento, o réu demonstrou inequivocamente que não pretende cumprir o contrato promessa que celebrou.
- o comportamento do réu, na sua globalidade, equivaleria a uma declaração de não cumprimento: “todos os actos do réu são elucidativos da sua intenção, pois que foi ele que voluntariamente deixou de pagar a prestação ao banco e foi ele que nada fez para evitar a venda coerciva do prédio em questão, não tendo comunicado o incumprimento à autora, nem as fases subsequentes até à venda coerciva, não cuidando assim que o prédio ficasse na sua propriedade, para poder cumprir o acordado. Logo e perante estes factos, qualquer destinatário normal conclui pela falta de vontade do réu em cumprir o contrato, sendo-lhe indiferente o destino do imóvel.
Insurge-se o Apelante contra o decidido, argumentando que, por um lado, a decisão decorrida enferma de uma dualidade de critérios para situações que, na pior das hipóteses para o réu, deveriam considerar-se idênticas, e, por outro lado, concluir que o facto de o réu não ser o actual proprietário do imóvel o impede, em definitivo, de cumprir o prometido, é negar a possibilidade de prometer transaccionar coisa futura, possibilidade que se encontra consagrada no art. 880º do CC – não bastará um mero juiz do de probabilidade, insustentado, ainda por cima, de incapacidade financeira do promitente vendedor, para que se possa considerar o contrato promessa como incumprido e incumprível no futuro.
Começaremos, desde já, por afirmar não assistir qualquer razão ao apelante, sendo que, face ao circunstancialismo fáctico descritos nos autos, só aos seus olhos os comportamentos da promitente compradora e do promitente vendedor poderiam, na melhor das hipóteses para o réu, considerar-se “idênticas”.
Com efeito, e para melhor compreensão do circunstancialismo em apreço, retrocederemos à data da celebração do acordo datado de 17 de Julho de 2006, reproduzindo-se aqui algumas das suas clausulas, pela relevância que as mesmas assumem na compreensão dos motivos que levaram ao retardar da realização da escritura de compra e venda, quando o contrato promessa havia já sido celebrado a 23 de Janeiro de 2003:
“Declararam todos os outorgantes:
2. Que, em 23 de Janeiro de 2003, os outorgantes celebraram entre si um contrato promessa de compra e venda, dando-se aqui por reproduzidos os termo – o qual se anexa sob o nº1 – pelo qual o 1º outorgante prometeu vender aos 2s. e estes prometeram comprar o imóvel supra referido.
3. Que, por vicissitudes várias, ocorridas entretanto, não foi ainda possível formalizar a prometida escritura pública de compra e venda.
4. Não obstante, desde essa data, os aqui segundos outorgantes têm vindo a habitar o dito imóvel, a título oneroso, por contrato de arrendamento, pelo qual pagam a retribuição de 275,00 €, tendo no entanto suspendido, por decisão unilateral, o pagamento das rendas devidas, as quais ascendem neste momento ao montante de 5.225,00 €.
5. Que se verifica uma condição impeditiva de, neste momento, formalizar a mencionada escritura pública, uma vez que o 1º outorgante e promitente vendedor havia adquirido o dito imóvel em 30.04.2002, recorrendo ao empréstimo bancário, ao abrigo do Dec. Lei 349/98, de 11.11., vulgo, “regime de crédito bonificado”; ora, se a alienação ocorresse neste momento e como ainda não decorreram os cinco anos iniciais, o 1º outorgante teria que proceder ao reembolso do montante das bonificações entretanto usufruídas, acrescido de 10%, o que neste momento ascende aproximadamente a 5.200,00 €.
6. No entanto, os 2ºs. outorgantes, desconhecendo antecipadamente de tal circunstancia encetaram negociações com uma instituição financeira, com vista à aprovação de um financiamento bancário para a aquisição do mencionado imóvel; esse empréstimo foi entretanto aprovado e procedeu-se inclusive à feitura dos registos provisórios de aquisição e hipoteca na competente Conservatória, tendo desse processo de registos resultado o encargo de 540,00 €.
7. Assim, e por expressa solicitação do primeiro outorgante, acordam em adiar a outorga da escritura pública de compra e venda, possibilitando dessa forma a não sujeição deste àquela penalização.
Atentos os considerandos (…), é (…) celebrado o presente acordo, que se regerá pelos termos e condições constantes das cláusulas seguintes:
CLÁUSULA PRIMEIRA
A escritura pública de compra e venda, prometida pelo contrato celebrado em 23 de Janeiro de 2003, será outorgada, num dos Cartórios (…), entre o dia um e onze de Maio de dois mil e sete. Parágrafo primeiro: A sua marcação será efectuada pelos segundos outorgantes, os quais por qualquer meio idóneo e com a antecedência mínima de oito dias, comunicarão ao 1º outorgante, indicando a data, hora e cartório onde será realizada.
CLÁUSULA SEGUNDA
O montante das rendas vencidas, que neste momento ascende a 5.225,00 € é, no acto de assinatura do presente acordo, integralmente pago pelos 2s. outorgantes ao 1º, mediante o cheque (…).
CLAUSULA TERCEIRA
O valor da renda mensal devida doravante pela ocupação do imóvel, (…)
Parágrafo 1º
Parágrafo 2º
CLÁUSULA QUARTA
As despesas com a feitura dos novos registos provisórios de aquisição e hipoteca na competente conservatória, atendendo à sua caducidade por culpa do 1º outorgante, serão suportadas por este, bem como os honorários por esse serviço.
Parágrafo único: Estes serão efectuados no decurso do mês de Março de 2007, devendo para o feito os 2s. outorgantes requerer a reapreciação do financiamento bancário aprovado e o 1º outorgante desde já se obriga em assinar a requisição de registo provisório tendente à aquisição pelos segundos.
(…).
Para que não fiquem dúvidas, há que salientar que, de tal documento, resulta claro que o acordo no sentido de a escritura publica não se realizar antes de decorridos cinco anos, a contar da data da celebração do empréstimo contraído pelo réu, foi celebrado exclusivamente no interesse do réu – a fim de que este não perdesse o valor correspondente à diferença dos juros bonificados (o que apontaria para que a escritura nunca se poderia realizar antes de Maio de 2007).
Ou seja, tal como ficou a constar expressamente do ponto 7 de tal Acordo, o adiamento da escritura, para Maio de 2007, foi acordado com vista a possibilitar a não sujeição deste à referida penalização.
E, assim sendo, igualmente se concorda com a afirmação contida na sentença recorrida de que o prazo para realização da escritura – de 1 a 11 de Maio de 2007 – não importaria um termo essencial (nem relativo, nem absoluto)[2], pelo que a não marcação da escritura por parte da autora para aquela data não a faria incorrer em incumprimento definitivo, mas, tão só, em mora.
Como tal, e tendo a Autora, depois daquela data, diligenciado pela obtenção de financiamento bancário – tendo procedido aos 2ºs registos provisórios de aquisição da fracção prometida vender a favor da autora e de hipoteca a favor da instituição bancária financiadora, por averbamento datado de 12.05.2008 –, a autora encontrar-se-ia, quando muito, em mora, quanto à obrigação que sobre si impendia de proceder à marcação da data da escritura.
Isto porque, embora se encontre provado que “a autora nunca procedeu à marcação de qualquer escritura de compra e venda” (ponto 14 da matéria de facto constante da sentença), igualmente se encontra provado que “apesar de variadas insistências para a realização da escritura de compra e venda, o réu nunca se disponibilizou a efectuar a mesma” (ponto 12 da matéria de facto).
Ora, se o réu nunca se disponibilizou para a realização da escritura, compreende-se que a autora não tenha procedido à marcação de qualquer data para a mesma, uma vez se, pela sua parte, o financiamento bancário havia sido disponibilizado, para que a escritura viesse a ser celebrada o réu teria de garantir que se encontraria em condições de obter o levantamento da penhora e da hipoteca registadas em nome do D…, o que implicaria o pagamento da respectiva dívida; e note-se que, como esclareceremos mais adiante, o valor ainda em falta por parte da autora, para pagamento do preço acordado, a entregar ao réu na data da escritura, seria insuficiente para este proceder ao pagamento da totalidade da dívida que este mantinha para com o respectivo credor hipotecário, pelo que a marcação de uma data para a escritura por parte da autora pressupunha que o réu lhe garantisse a obtenção de meios económicos por parte do réu para cobrir a diferença, e assim extinguir os ónus que incidiam sobre o imóvel prometido vender.
Como tal, atrevemo-nos mesmo a afirmar que o circunstancialismo descrito nem sequer nos permite concluir que a autora se encontrasse em mora quanto à sua obrigação de marcação da data da escritura. Vejamos agora o comportamento do réu:
- este deixou de pagar as prestações do empréstimo que tinha contraído para adquirir o imóvel em causa em 07.011.2005 (data do último pagamento) (ponto 18);
- na sequência do incumprimento de tal contrato por parte do réu, a 13 de Junho de 2007, foi registada uma penhora sobre o prédio prometido vender, pelo D…, entidade onde possuía o crédito bancário;
- o réu tinha conhecimento de tal penhora em data anterior à realização dos 2ºs. registos provisórios efectuados pela autora com vista à celebração da prometida escritura (12.05.2008) e nem por isso alertou a autora para o facto;
- o referido imóvel acabou por ser adjudicado ao D… a 21 de Janeiro de 2009, por um valor inferior ao montante em dívida (50.000,00 €), continuando o Banco exequente a exigir do réu a quantia de 17.409,06 €.
Defende o Réu/Apelante, nas suas alegações de recurso, a inexistência de qualquer incumprimento da sua parte – não está em mora (nunca faltou a qualquer escritura) e nunca recusou o cumprimento –, nada permitindo inferir que, quando for instado para tal, não se disponha e seja capaz de cumprir. Por outro lado, o facto de o prédio prometido vender não lhe pertencer actualmente não obstaria ao respectivo cumprimento – “nada impede o réu de, se entender por bem não mobilizar os seus recursos para readquirir o imóvel, de contrair novo empréstimo, seja a entidade bancária, seja a amigos, à família, ou de optar por vender outro qualquer bem e com o seu fruto readquirir o imóvel ao banco e cumprir o contrato”.
Segundo o Réu, o facto de ter permitido a venda do imóvel em processo executivo não configura uma impossibilidade absoluta, uma vez que a própria lei admite a promessa de compra e venda de bens futuros.
Contudo, o seu raciocínio empanca, desde logo, na circunstância de não nos encontramos perante uma promessa de bens de futuros (prevista no art. 880º do Código Civil) – mas da promessa de venda de um bem de que o promitente vendedor era proprietário à data da celebração do contrato promessa, propriedade que veio a perder por força de uma venda executiva.
Como refere Pires de Lima e Antunes Varela, não deve confundir-se coisa futura com coisa alheia, embora esta possa ser considerada naquela qualidade pelos contraentes (art. 893º): as coisas futuras são aquelas que não estão no poder do disponente ou que ou a que este não tem direito ao tempo da declaração negocial; podem ser coisas inexistentes (venda de coisa a construir ou a fabricar), assim como podem tratar-se de coisas existentes mas pertencentes a terceiros. Como salientam tais autores, “neste último caso, para que a coisa seja havida como futura, é necessário que o contrato se realize na perspectiva (suposição) de que ela vem a entrar no património do alienante. (…) Se falta este pressuposto negocial, e se a coisa alienada pertence a terceiro, a venda é de coisa alheia e não de coisa futura”.
No caso em apreço, tendo sido prometido vender um bem que ao tempo se encontrava na titularidade do promitente-comprador, a celebração do contrato prometido – escritura de compra e venda – pressupõe que réu seja proprietário do imóvel prometido vender, ou seja, a obrigação do réu de vir a celebrar o contrato prometido só seria possível se o réu viesse a readquirir o bem.
Consistindo o cumprimento na realização do conteúdo da obrigação, a prestação deixa de ser possível quando o conteúdo da obrigação já não possa ser realizado[3].
E, a impossibilidade da prestação considera-se definitiva não só quando, de antemão se exclui com segurança toda a previsão de que desapareça o obstáculo que se opõe à prestação, mas também quando o seu desaparecimento só pode ter lugar em virtude de uma facto cuja probabilidade é tão remota que, racionalmente, não é de esperar que se realize[4].
No caso em apreço, a perda da propriedade do bem prometido vender configura uma impossibilidade prática ou fáctica de cumprir com a obrigação de celebrar com o réu o contrato prometido, uma vez que sendo a prestação ainda teoricamente possível, surge como uma hipótese altamente improvável, acabando, na prática por tornar-se inviável, quer face ao esforço exigido para a sua realização, quer por pressupor uma prestação de facto de terceiro (que o D… lhe vendesse o imóvel).
E, sendo imputável ao devedor a causa de tal impossibilidade superveniente da obrigação – a venda em processo executivo ocorreu, não só porque deixou de pagar as prestações do empréstimo, como ainda pelo facto de não ter evitado a respectiva venda, liquidando a quantia exequenda –, será aplicável a regra prevista no art. 801º, segundo o qual o devedor será responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação[5].
Como refere Menezes Leitão, “a situação assemelha-se ao incumprimento da obrigação, uma vez que o devedor continua a não realizar a prestação por facto que lhe é imputável, com a diferença que o nexo de imputação se coloca, não em relação à conduta de não realização da prestação, mas antes em relação à conduta de impossibilitar a prestação. Efectivamente, em termos de responsabilidade, é idêntico o devedor não realizar culposamente uma prestação possível ou não realizar uma prestação que culposamente tornou impossível[6]”.
E no sentido de que nos encontraremos perante uma impossibilidade da prestação apontará a circunstancia de o facto do bem se encontrar actualmente na esfera de terceiro inviabilizar, além do mais, a possibilidade da autora de exercer judicialmente qualquer pretensão tendente ao cumprimento do contrato, encontrando-se-lhe vedado o recurso à execução específica – ou seja, adquirido o bem por um terceiro no âmbito de um processo executivo, a única via que resta à autora é a da resolução do contrato.
Pronunciando-se sobre a questão de saber se, tendo o promitente vendedor alienado a terceiro o bem prometido vender, deveria entender-se estar verificada uma situação de impossibilidade de cumprimento ou se, dada a possibilidade, teoricamente admissível de o bem vir a ser readquirido pelo promitente em ordem ao cumprimento, haveria de se esperar pelo momento do vencimento da obrigação para então se verificar se havia ou não incumprimento, afirma Vaz Serra:
“O não cumprimento de um contrato pode ser definitivo ou temporário: é definitivo quando o contrato já não pode ser cumprido; é temporário, quando, não tendo sido cumprido em tempo, pode ainda ser cumprido. Mas o não cumprimento definitivo, que é o resultante de uma impossibilidade definitiva de cumprir, não tem de derivar de uma impossibilidade absoluta, no sentido de não poder em caso algum desaparecer. Isso seria excessivo e contrário à razoabilidade. A impossibilidade da prestação considera-se definitiva não apenas quando toda a probabilidade da sua remoção está excluída, mas também quando ela só pode ser removida mediante circunstâncias especiais que não são de esperar de antemão. (…) Isto é o mesmo que dizer que também é definitiva a impossibilidade que só possa cessar por um facto extraordinário com que não seja legítimo contar[7]”.
Ainda segundo tal autor, “se o vendedor de um prédio, antes de o transmitir ao comprador, o aliena culposamente a um terceiro e não demonstra ter à sua livre disposição a faculdade de o readquirir (por exemplo, em consequência de um direito de resolução ou de rectrato), será condenado imediatamente à indemnização em dinheiro[8]”.
Assim sendo, pretender, agora, como defende o Apelante nas suas alegações de recurso, que ainda podia cumprir o contrato, mediante a obtenção de um financiamento para adquirir o imóvel a fim de cumprir a obrigação de celebrar com a autora o contrato prometido, depois de ter omitido os actos necessários a evitar a sua venda judicial, surge como contraditório com o todo o seu comportamento anterior, configurando uma hipótese de concretização altamente improvável, o que nos remete para o segundo fundamento com base no qual o juiz a quo considerou verificar-se um incumprimento definitivo por parte do réu.
Com efeito, da leitura da sentença recorrida resulta que esta não fez assentar a resolução do contrato unicamente na impossibilidade de comprimento:
“Porém, esta hipotética impossibilidade de incumprimento, não é o principal motivo para considerarmos a existência de um cumprimento definitivo, mas sim no facto de entendermos que toda a postura do réu, não só perante a autora mas também neste processo com o D…, demonstrar inequivocamente que o mesmo não pretende cumprir o contrato promessa que outorgou com a autora”, enquadramento que nos parece igualmente válido.
Sendo ainda possível o cumprimento do contrato, com a celebração da escritura definitiva, à data em que a autora logrou a obtenção da renovação do financiamento e efectivou os 2ºs. registos provisórios de aquisição de hipoteca a favor do banco que financiaria o respectivo empréstimo – 12-05-2008 –, o facto de, pendendo uma execução sobre o imóvel, o executado, ora Réu, não ter obstado à respectiva venda judicial, terá de ser valorado como equivalendo a uma manifestação de que não pretende cumprir o contrato, o que se traduz num incumprimento definitivo do mesmo.
Tendo sido necessariamente notificado de que a venda judicial se encontrava em curso, bem como da data designada para as propostas em carta fechada[9], se o réu tivesse intenção de cumprir o prometido, poderia ter contactado com a autora para que esta procedesse à marcação da escritura, comprometendo-se a, com o valor do preço ainda em falta proceder à liquidação da dívida ao D… a fim de por termo à penhora e à hipoteca que onerava o imóvel. Ao invés, deixou que o imóvel fosse adjudicado ao D… por um valor inferior à dívida que mantinha com esta instituição bancária (por 50.000,00 €).
Tal atitude, só pode ter duas explicações: ou o réu não tinha possibilidades financeiras para, mesmo com o recebimento da parte do preço em falta[10], liquidar o valor em dívida ou D…, ou, mais grave ainda, uma total indiferença pela obrigação que havia contraído de celebrar com a autora a escritura definitiva de compra e venda do imóvel prometido vender.
E, embora a autora nunca tenha marcado data para a celebração da escritura, ficou provado que por várias vezes foi interpelado para cumprir. E que a autora tinha o firme propósito de celebrar o contrato resulta à evidência do circunstancialismo dado como provado e das duas certidões de registo juntas aos autos, das quais resulta que, não apenas em duas, mas em três ocasiões distintas procedeu aos registos provisórios de aquisição a seu favor e de hipoteca a favor do banco que iria financiar tal aquisição, com vista à celebração da escritura de compra e venda:
- a 27.10.2005;
- a 29.05.2006 (cfr., certidão do processo executivo, a qual contém certidão de ónus e encargos então em vigor, e que se encontra junta a fls. 175);
- e, finalmente, a 12-05-2008 (cfr., certidão de ónus e encargos junta com a p.i.).
Como tal, subscrevemos por inteiro o entendimento exposto na sentença recorrida pelo juiz a quo, no sentido de que o comportamento do réu equivale a uma declaração de que não irá cumprir:
“No caso em apreço, todos os actos do réu são elucidativos da sua intenção, pois que foi ele que voluntariamente deixou de pagar a prestação ao banco e foi ele que nada fez para evitar a venda coerciva do prédio em questão, não tendo comunicado o incumprimento à autora, nem as fases subsequentes até à venda coerciva, não cuidando assim que o prédio ficasse na sua propriedade, para poder cumprir o acordado. Logo e perante estes factos, qualquer destinatário normal conclui pela falta de vontade do réu em incumprir o contrato, sendo-lhe indiferente o destino do imóvel”.
Como vem sendo entendimento comum na doutrina e na jurisprudência, a recusa ilegítima de cumprimento equivale ao incumprimento definitivo.
E, segundo Brandão Proença se, em regra, a decisão do devedor é revelada de forma expressa mediante uma declaração dirigida ao devedor de que não pode ou não quer cumprir, “a vontade negativa do devedor também pode ser retirada de factos significantesactivos ou omissivos, de natureza material ou jurídica, como será nos casos em que o empreiteiro abandone a obra, o trabalhador fuja do local de trabalho, o obrigado à preferência celebre uma promessa de venda sem reserva de desvinculação ou o devedor negligencie os preparativos de cumprimento (atraso comprometedor no adimplemento de um contrato promessa ou de outro contrato com termo essencial), não afaste dificuldades colocadas por terceiros, destrua o bem devido ou viole, mesmo, o contrato através da alienação do bem prometido vender”.
Também Ana Prata aceita que “os mesmos efeitos da declaração expressa de não cumprir são produzidos pelo comportamento do devedor que seja inequivocamente incompatível com a vontade de cumprir[11]”.
Calvão da Silva faz igualmente equivaler ao incumprimento definitivo a declaração antecipada de não querer ou não poder cumprir, ou o seu comportamento seja próprio de pessoa que não ou não pode cumprir: “ponto é que seja séria, certa e segura a declaração (ou o comportamento) do promitente vendedor de não querer ou não poder cumprir, hipótese em que o promitente comprador fundamente a toma por boa, a aceita como uma decisão unívoca e resolve o contrato, não fazendo sentido uma oferta ulterior de cumprimento que, a existir surgirá em total incoerência com o comportamento anterior, qual venire contra factum proprium a legitimar – et pour cause – a sua recusa pelo credor[12]”.
De qualquer modo, para o caso de se considerar que a hipótese em apreço não configura uma recusa categórica ao cumprimento, há ainda uma terceira via através da qual se pode configurar o incumprimento definitivo por parte do réu.
Pretende o Apelante que, não tendo chegado a ser interpelado, em termos admonitórios para cumprir com a sua obrigação principal que do contrato promessa para si decorre – não se poderia falar sequer de mora da sua parte e, muito menos, de incumprimento definitivo do contrato promessa.
Contudo, no contrato promessa, para além da obrigação principal de celebrar o contrato final poderão emergir várias outras obrigações secundárias, levantando-se a questão de qual o regime a aplicar no caso de incumprimento de alguma delas.
De entre as obrigações secundárias, a doutrina e a jurisprudência costumam distinguir entre:
a) os deveres acessórios da prestação, que se destinam a preparar o cumprimento ou a assegurar a perfeita execução da prestação principal;
b) deveres secundários com obrigação autónoma.
Os deveres secundários, quando acessórios da obrigação principal não têm autonomia em relação ao dever principal de prestação nem actuam sobre ele, encontrando-se exclusivamente dirigidos à realização do interesse no crédito (interesse no cumprimento), constituindo-se como meros acessórios do dever primário de prestação[13].
Assim, segundo Ana Prata, se o dever incumprido for acessório ou instrumental do cumprimento da obrigação principal, os seus feitos são tipicamente absorvidos e consumidos pelo não cumprimento que ele provoca na obrigação principal[14].
Ou seja, a violação de um dever acessório da prestação principal, por se reflectir directamente no incumprimento da obrigação de contratar, podendo gerar a mora ou o incumprimento definitivo da obrigação principal, poderá acarretar a resolução do negócio.
No caso em apreço, impendendo sobre o promitente vendedor, a obrigação acessória de distratar a hipoteca, sem a qual não poderia cumprir a obrigação principal de proceder à venda do prédio livre de ónus e encargos, o réu em vez de ter procedido às diligências necessárias a tal distrate (de entre as quais se incluía, necessariamente, o pagamento das quantias em dívida ao banco hipotecário), deixou de pagar as prestações mensais respeitantes a tal empréstimo, deixou que o mesmo fosse objecto de penhora por parte do banco hipotecário e que na execução, o bem viesse a ser adjudicado a tal banco (por valor inferior à dívida exequenda).
E, embora não houvesse um prazo fixado para o distrate da hipoteca, a marcação da venda no processo executivo impunha-lhe que procedesse à liquidação do crédito hipotecário até à data designada para a venda, sob pena de não mais o poder fazer.
Este comportamento omissivo, é demonstrativo de que não irá cumprir[15], porque não quer, ou porque não pode, e do qual acaba por resultar uma impossibilidade de cumprimento – o imóvel deixou de estar na sua esfera jurídica, não podendo dele dispor livremente, emitindo a declaração de venda a que se obrigara e que constitui a obrigação primária do contrato.
O não cumprimento destas obrigações acessórias (ou instrumentais), acarretando uma impossibilidade de cumprimento da obrigação principal, fez incorrer o promitente vendedor, no incumprimento definitivo do contrato.
Justificada está a resolução do contrato por parte da autora, com fundamento em incumprimento definitivo, com a consequente devolução do sinal em dobro. 2. Condenação do réu como litigante de má-fé.
Na sentença recorrida, foi o réu condenado como litigante de má-fé, por verificação do pressuposto previsto na al. a) do art. 456º do CPC – dedução de pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, com base nas seguintes considerações:
“No caso em apreço, o réu deduziu pedido cuja falta de fundamento não ignorava, pois que sabia perfeitamente que a autora lhe pagou as rendas até Maio de 2008 e que deixou de cumprir as suas obrigações com o D… em Novembro de 2005, numa altura em que autora lhe pagava uma renda e lhe continuou a pagar até Maio de 2008, conforme o réu admite no seu articulado de contestação (art.º 30.º).
Ora, perante tais factos, não restam dúvidas que este pedido formulado pelo réu, além de ocultar um facto relevante para a descoberta da verdade material e que consistia na data do incumprimento perante o D…, não tinha qualquer fundamento, algo que o réu sabia perfeitamente.”
Segundo o apelante, “invocando o Réu em pedido reconvencional uma relação de causalidade entre a falta de cumprimento das obrigações por parte da promitente compradora com a sua decisão de incumprimento perante a banca no pagamento das prestações de financiamento do imóvel pretendido vender, será em função de todos os factos por este invocado que tal relação de causalidade adequada deve ser aferida”. Assim, sendo, e em seu entender, o mero “lapso” de datas de cessação de pagamentos das rendas por parte da promitente compradora e de cessação de pagamentos das prestações de empréstimo por parte do promitente vendedor, por óbvia e manifesta e logo detectada e corrigida em sede de julgamento, não constituiria suficiente evidência da existência de má-fé.
Contudo, ao contrário do que pretende a apelante, a censurabilidade da sua conduta não reside no facto de se ter enganado nas “datas” de cessação de pagamentos das rendas por parte da promitente compradora e de cessação de pagamentos das prestações de empréstimo por parte do promitente vendedor, mas em toda uma versão dos factos que apresenta para sustentar, não só a sua defesa, como os pedidos por si formulados sob as alíneas b) e c), em sede de reconvenção (respeitante à condenação da autora no pagamento do montante ainda por si em dívida ao D…, e o direito à retenção da quantia por si recebida a título de sinal).
Com efeito, alegou o réu na sua contestação:
em Maio de 2008 a autora deixou de pagar a renda, renda que deveria ser paga até à data da escritura, e que a falta de tal pagamento foi a causa directa e inevitável para que o Réu deixasse de ter possibilidade de pagar as prestações de que era devedor ao Banco D… por força do empréstimo à habitação que tinha contraído;
a Autora foi sempre invocando que não realizava a escritura porque os bancos a quem tinha recorrido sucessivamente para obter o financiamento à habitação que lhe permitisse a aquisição do imóvel, não lhe concediam o necessário empréstimo.
em consequência de tais factos, falta de pagamento das rendas devidas e falta ainda da Autora em obter os meios necessários para a compra do imóvel, é que este foi efectivamente penhorado, e mais tarde e em consequência directa da inércia e recusa absoluta da Autora em celebrar o contrato prometido, repete-se, acabou por ir à praça e ser adjudicado ao Banco exequente.
E, ao contrário do que parece querer dar a entender nas suas alegações de recurso, em nenhum momento do processo o Réu/Apelante procedeu a qualquer rectificação do momento temporal em ocorreram os alegados incumprimentos, mantendo, sempre, a sua tese de que foi a falta de pagamento das rendas por parte da autora que impossibilitou o incumprimento das obrigações do réu perante o credor hipotecário.
Ora, não só o réu não logrou demonstrar a sua tese, como ficou provada factualidade contrária e incompatível com tal versão: que o réu deixou de pagar as prestações do empréstimo em 07.11.2005 (data do último pagamento), ou seja, em data anterior ao “Acordo” que veio a ser celebrado entre ambos a 17 de Julho de 2006, e, por maioria de razão, muito antes do momento em que a autora deixou de pagar as rendas – Maio de 2008. Como tal, não há engano de datas que permita uma tal distorção da realidade[16] – nunca o não pagamento das rendas por parte da autora poderia ter sido causa da falta de pagamento das prestações mensais do empréstimo por parte do réu, uma vez que a autora só deixou de pagar as rendas em Maio de 2008, falta de pagamento que não será com certeza alheia ao facto de, nessa data, a autora, ter mais uma vez, pela sua parte, praticado os actos necessários para a celebração da escritura – os denominados segundos registos provisórios de aquisição a seu favor e de hipoteca a favor do banco que iria financiar tal aquisição foram levados ao registo pelas Ap. 49 e 50 de 12.05.2008.
Por outro lado, note-se, ainda, que o réu defende igualmente, na sua contestação, que a escritura nunca foi celebrada porque a autora não tinha meios económicos para o efeito, o que se encontraria reflectido, quer na falta de pagamento das rendas devidas quer nas dificuldades da Autora em obter os meios necessários para a compra do imóvel, é que, na sequência de tais factos, é que o imóvel foi efectivamente penhorado, e mais tarde, e em consequência directa da inércia e recusa absoluta da Autora em celebrar o contrato prometido, repete-se, acabou por ir à praça e ser adjudicado ao Banco exequente.
Tal alegação, ao arrepio de tudo o que ficou demonstrado em audiência de julgamento – ficou inclusivamente provado, que, tendo sido o prédio objecto de penhora, o réu omitiu tal facto à autora, deixando-a proceder aos 2ºs registos provisórios sobre o imóvel –, constitui, mais do que uma mera posição temerária ou atrevida (postura que, de certo modo mantém, nas suas alegações de recurso, ao defender que ainda agora pode cumprir o contrato...), uma intencional distorção dos factos incompatível com o dever de litigar com verdade e com lisura.
Na qualificação do comportamento do réu, atentar-se-á em que, com as alterações introduzidas ao nº2 do art. 456º do CPC, passou a sancionar-se, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária: quer o dolo, quer a negligência grave, caracterizam hoje a litigância de má-fé, com o intuito de atingir uma maior responsabilização das partes[17].
Aceitamos a tese defendida no Acórdão do STJ de 11.12.2003, de que “a garantia de um amplo acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias de um Estado de Direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do art. 465º do CPC, nomeadamente no que respeita às regras das alíneas a) e b) do nº2, pelo que não por se não ter provado a versão dos factos alegados pela parte se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira como litigante de má-fé”, pois a verdade revelada no processo não é mais do que a verdade do convencimento do juiz, uma verdade judicial e relativa, “não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constituiu um conhecido dado psicológico”.
Para se concluir pela verificação de uma tal conduta dolosa ou gravemente negligente, deverá o processo revelar, de forma inequívoca e segura, que a parte negou factos cuja veracidade conhecia ou não podia deixar de conhecer (de acordo com o padrão de conduta exigível a uma pessoa normalmente prudente, diligente, sagaz e sensata) ou que afirmou a existência de uma realidade que sabia falsa ou que não podia deixar de saber ser falsa (de acordo com aquele padrão de conduta exigível).
No caso em apreço, o processo fornece-nos elementos suficientes para concluir que o réu, conscientemente, alterou a verdade dos factos, com a vista a deduzir oposição e pretensão cuja falta de fundamento não podia razoavelmente desconhecer, atentando aos documentos juntos aos autos: o réu sustenta que o contrato definitivo se não celebrou pelas dificuldades da autora em obter financiamento quando, do acordo celebrado entre as partes em 17 de Julho de 2006, consta expressamente (ponto 6) que, “tendo a autora encetado negociações com uma instituição financeira, com vista à aprovação de um financiamento bancário para a aquisição do mencionado imóvel, esse empréstimo foi entretanto aprovado e procedeu-se inclusive à feitura dos registos provisórios de aquisição e hipoteca na competente conservatória, tendo desse processo de registos provisórios resultado o encargo de 540,00 €”. Mais consta da clausula 4ª de tal contrato que, as despesas e a feitura dos novos registos provisórios de aquisição e hipoteca, atendendo à sua caducidade por culpa do ora réu, seriam suportadas por este, bem como os honorários devidos por esse serviço.
E, resultando das certidões de ónus e encargos juntas aos autos que a autora procedeu, por três vezes, à feitura dos registos necessários à obtenção de financiamento bancário com vista à celebração da escritura, para os quais o réu teve necessariamente de assinar os documentos necessários à realização de tal registo, o réu atreve-se a defender que a autora nunca obteve o financiamento bancário necessário à celebração da escritura – quando obteve tal financiamento por três vezes, facto que era necessariamente do conhecimento do réu.
Assim como, ficou claro o motivo pelo qual a escritura não foi realizada e o réu deixou o bem ser objecto de venda judicial – porque o valor que a autora teria de pagar na data da escritura seria insuficiente para liquidar a dívida que o réu tinha perante o seu credor hipotecário, não se encontrando assim, em condições de cumprir o que havia prometido – proceder à venda do bem à autora sem ónus ou encargos.
A posição assumida pelo réu, de que foi por culpa da autora que deixou de pagar as prestações bancárias e que o imóvel prometido vender foi adjudicado ao banco hipotecário, e com base na qual, pasme-se, vem pedir, inclusivamente, a condenação da autora no pagamento da quantia ainda em falta ao banco exequente – é demasiado grave, revelando pretender de forma dolosa, a obtenção de um resultado absolutamente injusto.
Nenhuma censura nos merece, como tal a sua condenação em litigância de má-fé determinada na primeira instância. IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a suportar pelo apelante.
Porto, 15 de Janeiro de 2013
Maria João Fontinha Areias Cardoso
Maria de Jesus Pereira
José Manuel Igreja Martins Matos
______________
[1] Quanto à questão altamente debatida na jurisprudência sobre se a impugnação da matéria de facto deve ser reservada para a correcção de erros manifestos de apreciação de prova, ou se a relação pode proceder a uma reapreciação autónoma dos meios de prova com base na sua convicção nos termos do art. 655º do CPC, seguiremos a posição actualmente dominante na doutrina e jurisprudência de que, embora a impugnação se destine à detecção e correcção de erros pontuais de julgamento, na reapreciação das provas gravadas, a relação dispõe dos mesmos poderes atribuídos ao tribunal de 1ª instância, nomeadamente o da livre apreciação da prova consagrado no nº1 do art. 655º do CPC – cfr., entre outros, Acórdãos do STJ de 06-07-2001, relatado por Granja da Fonseca, de 16-03-2001, relatado por Moreira Camilo, 15-09-2010, relatado por Pinto Hespanhol, de 12-03-2009, relatado por Santos Bernardino, e de 28-05-2009, relatado por Serra Baptista, todos disponíveis in http://www.dgsi.pt/jstj.
Isto sem esquecer que, como refere Abrantes Geraldes, as limitações decorrentes da falta de imediação não devem esvaziar o regime da reapreciação da matéria de facto, mas tão só aconselhar especiais cuidados aquando da reapreciação dos meios de prova produzidos na 1ª instância, “evitando a introdução de alterações na decisão da matéria de facto, quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro na apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados – cfr., “Recursos Em Processo Civil, Novo Regime”, 3ª ed., Almedina 2010, pág. 318.
[2] A própria apelante aceitará que se tratava de um termo não essencial, uma vez que ainda agora, em sede de alegações, continua a defender que o cumprimento do contrato se afigura como possível.
[3] Cfr., neste sentido, João Baptista Machado, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, in “Obra Dispersa, Vol. I, SCIENCIA IVRIDICA Braga, pág. 152.
[4] Cfr., neste sentido, Adriano Vaz Serra, Impossibilidade Superveniente e cumprimento imperfeito imputáveis ao Devedor”, in BMJ nº 47, pag. 19.
[5] Cfr., neste sentido, Gabriela Mesquita Sousa, “Impossibilidade de Cumprimento da Obrigação: As alterações ao regime alemão e as normas do Código Civil Português”, Estudos Sobre Incumprimento do Contrato”, coordenação de Maria Olinda Garcia, Coimbra Editora 2011, pág. 119.
[6] “Direito das Obrigações”, Vol. II, 7ª ed., Almedina 2010, págs. 277 e 278.
[7] RLJ Ano 100, pág. 254, em anotação ao Ac. do STJ de 27.01.1967.
[8] “Impossibilidade Superveniente e Cumprimento Imperfeito Imputáveis ao Devedor”, BMJ nº 47, pág. 19.
[9] Cfr., título de transmissão emitido no âmbito do processo executivo e que se mostra junto a fls. 161.
[10] Embora se desconheça qual o exacto valor que se encontraria em falta – tendo acordado a autora de imediato passado a ocupar o imóvel contra o pagamento de uma renda mensal, as partes acordaram em que o valor que fosse sendo pago pela autora seria para abater a final do preço acordado para a venda da fracção – é seguro que o mesmo seria necessariamente insuficiente para cobrir a dívida que o réu mantinha para com o D…; com efeito, tendo a autora entregue ao réu, pelo menos as quantias de 14.964,06, a título de sinal, e 5.225,00 € aquando da assinatura do “Acordo”, mais cerca de 3.885,00 € de rendas pagas pela autora entre a data de tal acordo e Maio de 2008 (data a partir da qual deixou de proceder ao pagamento da renda), o valor em falta para cobrir o valor total do preço acordado (37.222,00 €) e a entregar na data escritura, seria necessariamente insuficiente para proceder ao pagamento do montante ainda em dívida ao D… (apesar de lhe ter sido adjudicado o imóvel prometido vender pelo valor de 50.000,00 €, o banco exequente continuou a exigir-lhe a quantia de 17 409,06 €).
[11] “O Contrato Promessa e o seu Regime Civil”, Almedina 2006, pág. 711.
[12] “Sinal e Contrato Promessa”, Coimbra 1988, págs. 93 e 94.
[13] Neste sentido, Mota Pinto, “Cessão da Posição Contratual”, pág. 337.
[14] Cfr., “O Contrato Promessa e o seu Regime Civil”, Almedina, Agosto 2001, pág. 657.
[15] A tal propósito, Nuno Pinto de Oliveira faz apelo à ideia de um “não cumprimento sintomático”, relacionado com o não cumprimento de deveres de prestação ou com o não cumprimento de deveres acessórios de conduta, exigindo-se tão só que o credor tenha justificado receio de que o credor não cumpra – “Princípios de Direito dos Contratos”, Coimbra Editora 2011, pág. 873. Baptista Bastos fala ainda de um comportamento do devedor que revele a “impotência organizativa e financeira da empresa do devedor para cumprir as suas obrigações”, caso em que, o incumprimento do devedor, não assumindo, embora a configuração de um incumprimento definitivo, fundamenta o direito de resolução – “A Resolução por incumprimento e a Indemnização”, Obra Dispersa, Vol. I, pág. 201, nota 6.
[16] Note-se que dificilmente se poderia falar num engano de datas, uma vez que, nos seus articulados, o réu não refere nunca em que data deixou de proceder ao pagamento das prestações do empréstimo, sendo que, a única data por si referida, e que se reporta ao momento em que a ré deixou de pagar a renda (Maio de 2007) encontra-se correcta.
[17] Cfr., neste sentido, Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 219 e 220, nota 2 ao art. 456º.
______________________ IV – Sumário elaborado nos termos do art. 713º, nº7, do CPC. 1. A perda do imóvel prometido vender por parte do promitente vendedor, em execução judicial movida pelo credor hipotecário por falta de pagamento das prestações mensais do empréstimo garantido, configura uma impossibilidade de cumprimento imputável ao devedor.
2. Tendo o promitente vendedor permitido que, na sequência da sua falta de pagamento das prestações do empréstimo perante o credor hipotecário, este lhe instaurasse uma execução, e que tal bem aí acabasse por ser adjudicado a tal devedor, tal comportamento poderá ainda equivaler a um acto inequívoco de que não quer ou não pode cumprir.
3. O não cumprimento de obrigações acessórias ou instrumentais, como por ex. a de distrate da hipoteca que onera o imóvel prometido vender, acarretando a impossibilidade de cumprimento da obrigação principal, faz incorrer o promitente vendedor no incumprimento definitivo do contrato, justificando a resolução do contrato por parte do promitente comprador.