DOCUMENTO
CRIME DE PECULATO
CRIME DE PARTICIPAÇÃO EM NEGÓCIO
Sumário

1. Um requerimento no qual se leva ao conhecimento do tribunal uma proposta de compra, trata-se de uma declaração escrita, mas não constitui um meio idóneo para provar o facto e por isso não pode ser considerado documento para os efeitos da alínea a) do artº 255º do CPP.
2. O crime de peculato constitui um crime qualificado de abuso de confiança, em que o funcionário recebe ou tem na sua posse dinheiro ou coisa móvel que lhe foi entregue dentro do âmbito das suas funções e, a certa altura inverte o título de posse, assenhoreando-se ou assumindo-se como dono.
3. O crime de participação em negócio constitui um crime qualificado de infidelidade, lesando o funcionário, em violação dos deveres de imparcialidade e isenção do cargo, os interesses patrimoniais que lhe estão confiados.
4. Constituem pontos comuns entre ambos, o do funcionário que é infiel ao seu cargo, aproveitando-se dele para obter ou proporcionar uma vantagem patrimonial em prejuízo dos interesses por que lhe cumpre zelar.
5. Mas o recorte típico de cada um tem em vista realizadas materiais distintas: no peculato está em causa a apropriação de dinheiro ou coisa móvel que esteja na posse do agente em por efeito das funções; a participação tem em vista a obtenção de determinada posição ou vantagem por efeito, indevido, de negócio efectuado no exercício do cargo.

Texto Integral

I.
Após realização do julgamento, o tribunal colectivo decidiu:
1 – Absolver o arguido JJ..., da prática de um crime de peculato, p. e p. pelo art. 375º, n.º 1, do C. Penal, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, n.º 1, al. b), e n.º 4, do C. Penal, e de um crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369º, n.ºs 1 e 2, do C. Penal, que lhe vinham imputados;
2 – Condenar o arguido, JJ..., pela prática de um crime de participação económica em negócio, p. e p. pelo art. 377º, n.º 1, do Código Penal, na pena de um ano de prisão cuja execução se suspende pelo período de 1 (um) ano.
Em recurso interposto daquele acórdão este Tribunal da Relação de Coimbra declarou-o nulo por falta de fundamentação da matéria dada como não provada, determinando a prolação de novo acórdão que suprisse a apontada nulidade.
Remetidos os autos à 1ª instância, foi então proferido novo acórdão que, suprindo a nulidade apontada pelo tribunal da relação, decidiu condenar o arguido nos mesmos termos da primeira condenação, supra reproduzidos.
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Recorrem novamente do acórdão quer o arguido quer o MºPº.
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A motivação do recurso do MºPº tem as seguintes CONCLUSÕES:
I – A douta decisão tomada em matéria de facto e objecto deste recurso, não julgou correctamente a seguinte matéria de facto:
1. A constante do n.º32 da enumeração dos factos provados no que respeita à pessoa que procedeu à devolução da quantia aí mencionada.
2- A estabelecida na parte final do n.º37 dessa enumeração, no que tange à consideração do arguido como «pessoa séria».
3- A elencada no ponto 38º, também dessa enumeração e no que respeita à «confissão» e à «colaboração activa»
4- A reportada, no ponto 39°, ainda dessa enumeração, à atitude tomada por contrita.
5- A integradora das alíneas a) a g) da enumeração dos factos não provados.
II- Por simplicidade de escrita e de leitura e como é próprio da natureza das conclusões, damos por reproduzidas aqui as razões aduzidas na motivação. No entanto e procurando observar plenamente o exigido pelo artigo 412°, n.os 3 e 4, do Código de Processo Penal, mantendo-se a ordem pela qual foi agora especificada a factualidade tida por incorrectamente julgada, passaremos a referenciar, relativamente a cada facto ou a cada conjunto de factos, as provas (com indicação do respectivo suporte técnico) que, em nosso entender, impunham e impõem decisão diversa da recorrida:
1- Sobre o ponto 32° (devolução da quantia à L...): a prova documental (v.g. o recibo de fls. 49 e o talão de depósito bancário de fls. 266) conjugada com o depoimento da testemunha JM... (registado na cassete n.o 1, lado B, rotações 0165 a 1226), impunha decisão conforme o alegado em 1.4 da motivação.
2- Sobre o ponto 37° (««pessoa séria»): as declarações do arguido (registadas na cassete n.o 2, Lado A, 000 a 1553) impunham e impõem decisão consonante o alegado em 2.5 da motivação.
3- Sobre o ponto 38°: quanto à confissão (declarações do arguido, em suporte técnico antes especificado, confrontadas com peças processuais reveladoras de ausência de confissão ou esclarecimento, por parte do arguido, quer em inquérito, quer em instrução, quer na oportunidade prevista para o oferecimento de contestação) e quanto à colaboração (depoimento das testemunhas LA... - gravado na cassete n.o 1, Lado A, 000 a 0781 - e MA... - cassete n.o 1, Lado A, 0783 a 1011 - conjugado com os documentos de fls. 69,71, 99, 100, 283 a 287 e 310 a 327), a impor decisão conforme se alega em 3.2 e em 3.2.6 da motivação deste recurso.
4- Sobre o ponto 39º (atitude contrita): as apontadas declarações do arguido, apreciadas em cotejo com a tramitação da acção de execução e, nomeadamente, com o incidente de remoção da encarregada da venda e com a reacção de «veemente repúdio» e de «profunda indignação», registada no requerimento de fls. 46/47, para se concluir como alegado em 4.3.3 e 4.3.4.
5- Sobre a matéria das referidas alíneas a), b), c) e f) (apropriação): declarações do arguído, contrariadas pelo documentado a fls. 28 a 31 e 49, pela prova testemunhal resultante da inquirição de JG... (cassete n.o 1, Lado A, de 1013 até final, e Lado B, de 000 a 0163) e de JM... (cassete n.o 1, Lado B, de 0165 a 1226) e pelas regras da experiência, a impor se estabeleça como provada a realizada intenção de apropriação, pelo arguido (conforme alegado em 5.3.17).
6- Sobre a matéria das identificadas alíneas d), e) e g): os meios de prova, especificados para demonstração da factualidade relacionada com a apropriação, servem precisamente aqui, para impor a enumeração daquela como provada.
III- A conduta do arguído, além de consubstanciar a prática do já censurado crime de participação económica em negócio, preenche todos os elementos constitutivos do crime de falsificação de documento (por funcionário) e do crime de peculato.
IV- A pena determinada, no douto acórdão recorrido, para o crime de participação económica em negócio (um ano de prisão, declarada suspensa na sua execução), não garante, a realização, de forma adequada e suficiente, das finalidades da punição. Pelo que reclama agravação.
V- Atentando-se na moldura penal correspondente a cada um dos referidos tipos legais de crimes, aferida a culpa do arguído e ponderadas as exigências de prevenção, levando-se concretamente em linha de conta a intensidade do dolo, que é directo, o grau de ilicitude do facto, que é elevado e todas as demais circunstâncias que depõem contra e a favor do arguído, mostram-se adequadas as seguintes penas parcelares:
- um (l) ano e nove (9) meses de prisão, pela prática do crime de falsificação de documento;
- dois (2) anos e três (3) meses de prisão, pela autoria de um crime do peculato;
- um (1) ano e seis (6) meses de prisão, pela comissão do crime de participação económica em negócio.
VI- Em cúmulo jurídico, como o impõe o disposto no artigo 77°, n.os 1 e 2, do Código Penal, afigura-se adequado fixar a pena única em três (3) anos e nove (9) meses de prisão.
VII- Pena que, em qualquer caso e por insuficiência da simples censura do facto e da ameaça da prisão, para realizar as finalidades da punição, não deve ser suspensa na sua execução.
VIII- O douto acórdão recorrido não fez correcta aplicação do disposto nos artigos 40°, n.o 1,50°,71°, n.o 1, 255°, aI. a), 256°, n.o 1, aI. b), e n.o 4, 375°, n.o 1, e 377°, n.o 1, todos do Código Penal, e no artigo 127°, do Código de Processo Penal.
Nestes termos, concedendo-se provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogando-se o acórdão recorrido, a substituir por um outro que:
- decida diversamente e como aqui pugnado, em matéria de facto;
- agrave a medida da pena imposta ao arguído JJ... pela autoria do crime de participação económica em negócio e o condene, também, pela prática, em concurso efectivo, de um crime de falsificação de documento e de um crime de peculato, operando cúmulo jurídico das respectivas penas parcelares e fixando pena única, em prisão efectiva, nos termos aqui peticionados.
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No recurso interposto pelo arguido são formuladas as seguintes CONCLUSÕES:
I. Resultou provado que «o arguido, através da sua descrita conduta, pretendia adquirir os bens de cuja venda tinha sido encarregada a “Agência de Leilões” que representava, para a sua outra sociedade “E...”, vendendo-os esta, posteriormente, à “L...”, pelo preço que esta havia oferecido – 5.000.000$00 – e entregue ao arguido».
II. O recorrente obteve assim para a sociedade E..., Lda. uma vantagem patrimonial resultante de um acto (negócio jurídico) celebrado entre ele, recorrente, e um terceiro (L..., S.A.), relativo aos interesses que, por força da sua qualidade de encarregado da venda, tinha à sua disposição;
III. Para que se mostre preenchido o elemento objectivo “participação económica ilícita” do tipo legal de crime previsto no n.º1 do artigo 377º do C. Penal, exige-se que a ilicitude da participação económica “...deva reportar-se ao próprio acto praticado pelo funcionário, estando em causa, deste modo, uma invalidade do acto ao nível do direito administrativo”;
IV. A factualidade dada como provada no caso vertente não é de molde a demonstrar a existência de qualquer invalidade do acto praticado pelo recorrente, à luz do direito administrativo;
V. A conduta do recorrente não pode ser enquadrada no nº 1 do artigo 377° do Código Penal, deve antes ser subsumida ao tipo legal de crime p. e p. pelo nº 2 da mesma disposição legal;
VI. As necessidades de punição e as de prevenção geral e especial ficarão devidamente acauteladas no caso sub specie se se aplicar ao recorrente uma pena de prisão não superior a dois meses, a qual, nos termos do preceituado no artigo 43°, nº 1 do Código Penal, deverá ser substituída por uma pena de multa;
VII. O Tribunal a quo deveria ter feito operar in casu uma atenuação especial da pena a aplicar ao recorrente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 72°, nºs 1 e 2 - alíneas c) e d) e 73° do Código Penal;
VIII. Assim, e ainda que se considere que a conduta do arguido é subsumível ao tipo previsto no nº 1 do artigo 377° do Código Penal, teríamos uma moldura abstracta da pena, especialmente atenuada, de prisão de 1 mês a 3 anos e 4 meses, pelo que, atentas a medida da culpa, o grau de ilicitude e as necessidades de prevenção geral e especial no caso sub specie, afigura-se ajustado aplicar ao recorrente uma pena de prisão não superior a seis meses, devendo a mesma ser substituída por pena de multa, nos termos do preceituado no artigo 43°, nº 1 do Código Penal;
IX. O Acórdão recorrido violou, designadamente, as disposições legais dos artigos 377°, nºs 1 e 2, 72°, nºs 1 e 2 - alíneas c) e d), 73° e 43°, n° 1, todos do Código Penal.
Nestes termos, nos mais de direito aplicáveis, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, por via disso, ser o Acórdão recorrido parcialmente revogado nos termos sobreditos, com as legais consequências.

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Respondeu o digno magistrado do MºPº ao recurso interposto pelo arguido sustentando a sua improcedência. Alegando, em síntese conclusiva, no que toca ao crime de participação económica em negócio, que o tribunal recorrido operou correcto enquadramento jurídico-penal dos factos; e que não existe qualquer fundamento para a pretendida atenuação especial da pena.
No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Ex. Mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual manifesta a sua concordância com a resposta apresentada em 1ª instância ao recurso interposto pelo arguido, bem como com a motivação do recurso interposto pelo MºPº, com o aditamento de que: - não existe relação de consumpção entre os crimes de falsificação e de peculato uma vez que naquele se visam proteger a validade legal de documentos e neste a probidade e fidelidade de um funcionário público mesmo que em exercício temporário; - apesar de se ter provado que o arguido passou a dispor do valor de 5.000.000$00 desde Dezembro de 1999 entendeu o tribunal recorrido que não se verificou o requisito da apropriação e – por isso – o crime de peculato não se demonstrou; - a circunstância de se ter provado que o arguido devolveu aquela soma poderá ter induzido o colectivo a tal conclusão; - porém o crime de peculato consuma-se cm o acto de apropriação apenas relevando a posterior devolução no quadro da atenuação da pena.
Foi cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP.
Corridos os vistos, tendo-se procedido a julgamento, mantendo-se a validade e regularidade afirmadas no processo, cumpre conhecer e decidir.

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II.

A decisão do tribunal recorrido quanto à matéria de facto, com a motivação que a suporta é a seguinte:

A) Factos Provados
1 – No âmbito dos autos de Execução Ordinária nº 38/94, do 2º Juízo deste Tribunal, em que é exequente “Fibral N.V.”, com sede em Industrielaam, nº 34, Industriepark, B-8520, Kuurne, Bélgica, e executada “T... – Indústria e Comércio de Fibras Têxteis, Lda”, na sequência de despacho judicial proferido nesses autos, foram penhorados, em 21 de Junho de 1994, os seguintes bens:
1) um contínuo de fiar F.P.K.C., com 240 fusos, da marca Gaudino, Tipo F.P.K./20 – nº 126, do ano 9/82, no valor de dez milhões de escudos;
2) um contínuo de fiar F.P.K.C., com 240 fusos, da marca “Gaudino”, Tipo F.P.K./20, nº 127, do ano 9/82, no valor de dez milhões de escudos;
3) um contínuo da marca “Marlasca”, com aro de cerca de 105 milímetros de diâmetro e com 160 fusos, no valor de cinco milhões e quinhentos mil escudos;
4) um contínuo da marca “Gaudino”, com aro de 127 milímetros de diâmetro e com 99 fusos, no valor de quatro milhões e quinhentos mil escudos, perfazendo o valor total de trinta milhões de escudos.
2 - Em 2 de Novembro de 1999, a exequente veio requerer que a venda dos bens penhorados, atrás descritos, tivesse lugar por negociação particular.
3 - Em 11 de Novembro de 1999 foi ordenada a notificação da exequente para, querendo, indicar encarregado de proceder à venda, face ao elevado valor da quantia exequenda e dos bens penhorados.
4 - Em 23 de Novembro de 1999, a exequente veio indicar para encarregado de proceder à venda daqueles bens penhorados a “Agência de Leilões da Covilhã, Lda” – Sr. João Ranito - Apartado 98, 6 200 Covilhã.
5 - Então, por despacho judicial de 30 de Novembro de 1999, foi nomeado encarregado da venda a “Agência de Leilões da Covilhã, Lda” (Sr. João Ranito), tendo sido concedido o prazo de quarenta e cinco dias.
6 - Em 7 de Dezembro de 1999 foram expedidas as cartas para o mandatário da exequente, para a encarregada da venda, para a executada e o fiel depositário daqueles bens, a fim de se proceder à notificação daquele despacho, não tendo o mesmo merecido qualquer reparo.
7 - A “Agência de Leilões da Covilhã”, encarregada da venda por negociação particular, matriculada na Conservatória do Registo Comercial da Covilhã, sob o número 2148/960122, portadora do N.I.P.C. 503564559, tem como objecto social «leilões judiciais e particulares, avaliações, administração e venda de propriedades».
8 - E, como sócios, o arguido JJ... e CJ..., aquele portador do B.I. nº 025271156, sendo o arguido o único gerente daquela sociedade comercial.
9 - A 5 de Janeiro de 2000, o arguido JJ..., enquanto gerente e legal representante da encarregada de venda “Agência de Leilões da Covilhã, Lda”, juntou aos autos de Execução Ordinária n.º 38/94 do 2.º Juízo deste Tribunal, atrás aludidos, um requerimento (cfr. certidão junta a fls. 356-397, dos presentes autos e, designadamente, fls. 377), dirigido ao Senhor Juiz titular daquele processo, através do qual informava que «a Encarregada da venda nas diligências que efectuou para venda dos bens penhorados, recebeu a proposta apresentada pela firma E... Sociedade Comercial de Bens, Lda, com sede em Tortosendo – Covilhã, com o nº XXXXXXXX , no valor de Esc. 1.150.000$00 (um milhão cento e cinquenta mil escudos), que a seguir discriminamos: verba nº 1 e 2 no valor de 300.000$00 (cada);
Verba nº 3 e 4 no valor de 275.000$00 (cada)», pelo que «requer a V. Exa. se digne autorizar a referida venda, e sejam passadas as guias a favor do comprador» e «Mais, requer a V. Exa. se digne mandar fixar a remuneração nos termos da al. e) do art. 34º., do Código das Custas Judiciais, em 5% do valor da venda, acrescido do respectivo I.V.A.».
10 - Face à discrepância de valores entre os bens penhorados e o preço oferecido, a fim de se acautelarem os interesses do executado, o Juiz ordenou a notificação da executada do teor daquele requerimento.
11 - Então, em 4 de Fevereiro de 2000, a executada “T... – Indústria e Comércio de Fibras Têxteis, S.A.”, veio informar que a sociedade “L..., S.A.”, com sede em São Romão, «contactada pela encarregada de venda e tendo em tempo visitado esta empresa para ver os bens penhorados, ofereceu 5.000.000$00 pelos bens em causa, quantia que já entregou e que a encarregada de venda já recebeu».
12 - Efectivamente, em Dezembro de 1999, o arguido, enquanto legal representante da encarregada de venda, aceitou uma proposta de aquisição daqueles bens, pelo valor de cinco milhões de escudos, proposta essa realizada pela firma “L..., Lavandaria e Penteação de Lãs, S.A.”, através do seu gerente, JM....
13 - Para o efeito, no dia 27 de Dezembro de 1999 a “L... – Lavandaria e Penteação de Lãs, S.A.”, emitiu o cheque nº 5760936632, no valor de cinco milhões de escudos, sacado sobre a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo – Agência de Seia, conta número 40068591056, titulada por aquela sociedade, à ordem da “Agência de Leilões da Covilhã, Lda”, enviando-o então para esta sociedade, acompanhado da nota de débito nº 465, de 27/12/99, para pagamento dos bens penhorados descritos em “1”.
14 – O arguido recebeu aquele cheque e, no dia 28 de Dezembro de 1999, cerca das 12,59 hrs., depositou-o na conta bancária nº 12002100224145 do Banco Nacional Ultramarino, agência da Covilhã, cujo primeiro titular era o arguido JJ..., sendo segundo titular CJ..., filho daquele, movimentada com a assinatura obrigatória do arguido JJ....
15 - Aquele cheque foi descontado no dia 29 de Dezembro de 1999, passando nesta data a quantia nele titulada a estar à disposição do arguido JJ... e do seu filho, o mencionado CJ....
16 – Ora, a sociedade comercial “E... – Sociedade Comercial de Bens, Limitada”, com o N.U.I.P.C. 504026313, tinha como sócios o arguido JJ... e o seu filho CJ..., desde o momento da sua constituição, sendo o arguido o seu único gerente até 11 de Novembro de 2002, data em que o arguido renunciou às funções de gerência.
17 - Esta sociedade tinha como objecto o comércio a retalho de artigos em segunda mão, compra e venda de quaisquer bens móveis e imóveis e prestação de serviços diversos.
18 - Partilhava com a sociedade “Agência de Leilões da Covilhã, Limitada” o mesmo espaço industrial, em Sítio do Espertim, Tortozendo e números de telefone.
19 – O arguido, através da sua descrita conduta, pretendia adquirir os bens de cuja venda tinha sido encarregada a “Agência de Leilões” que representava, para a sua outra sociedade “E...”, vendendo-os esta, posteriormente, à “L...”, pelo preço que esta havia oferecido – 5.000.000$00 – e entregue ao arguido.
20 - Sabia que aquela quantia se destinava ao pagamento dos bens penhorados descritos em “1”, de acordo com a proposta de aquisição efectuada pela proponente “L... – Lavandaria e Penteação de Lãs, S.A.”, e que tal quantia tinha que ser depositada à ordem do Tribunal, no âmbito do citado processo, para satisfação dos direitos de crédito do exequente, pagamento das custas do processo e extinção, total ou parcial, da dívida da executada tendo-lhe sido entregue apenas com estas finalidades.
21 - Como sabia também que estava obrigado a seguir as ordens e instruções do Tribunal, de forma a prestigiar a Justiça, prestando-lhe as informações que lhe pedisse, prestando-lhe contas, e entregando ao Tribunal as quantias que tivesse recebido no exercício das suas funções de encarregado da venda /legal representante da encarregada da venda: a sociedade comercial “Agência de Leilões da Covilhã, Lda”.
22 - Sabia também o arguido JJ...que, tendo sido nomeado encarregado da venda, enquanto legal representante da “Agência de Leilões da Covilhã”, no âmbito de um processo jurisdicional de natureza executiva, desempenhava actos e funções de natureza e interesse eminentemente públicos, como desempenhou, participando numa actividade compreendida na função pública administrativa e jurisdicional, estando plenamente consciente dos deveres inerentes à sua função.
23 - O arguido João José, ao elaborar, estabelecer o conteúdo e assinar o requerimento certificado a fls. 377, descrito em “9”, juntando-o ao Processo de Execução Ordinária nº 38/94, do 2º Juízo deste Tribunal, como documento por si emitido e da sua inteira responsabilidade, pretendia que a sociedade “E... – Sociedade Comercial de bens, Lda”, que igualmente representava, adquirisse os bens por valor inferior ao que lhe fora proposto, vendendo-os seguidamente à “L...”, ficando esta, e o próprio arguido, através dela, com o correspectivo lucro.
24 - Ao elaborar, juntar e assinar o requerimento acima mencionado, o arguido sabia que o fazia no âmbito do exercício das funções para as quais havia sido nomeado e que lhe cabia defender, com lealdade e probidade, no estrito cumprimento das normas processuais e com estrita obediência à verdade material, sabendo que a feitura daquele documento e a junção do mesmo decorriam do desempenho de funções e actos de natureza eminentemente pública, e que, como tal, davam especial fé probatória aos documentos por si elaborados e respectivo conteúdo.
25 - Não obstante esse conhecimento, o arguido omitiu no processo executivo o valor mais elevado obtido para venda dos bens penhorados, bem como a identidade do ofertante.
26 - Pretendia, desta forma, obter para si e para a sociedade “E...”, de que era legal representante, bem como para o outro sócio desta sociedade, um benefício económico que não lhe era devido, através da compra pela “E...” dos bens penhorados pelo valor de 1.150.000$00, que esta inscreveria na sua contabilidade, e vendendo-os logo depois à “L...” pelo preço de 5.000.000$00.
27 - Sabia que, ao juntar aquele requerimento dotado de especial fé probatória, prejudicava os interesses da exequente, da executada e do Estado português, ao qual compete garantir a especial probidade dos actos realizados por aqueles que participam na execução das suas funções, garantindo a confiança e a probidade dos actos processuais praticados, o que o arguido quis e conseguiu.
28 - A exequente chegou a aceitar aquela proposta, o que o arguido sabia poder suceder, sendo essa a sua intenção.
29 - E que, mais tarde, tendo havido lugar à destituição da encarregada da venda, por despacho de 27/03/00, a mesma firma “L... – Lavandaria e Penteação de Lãs, S.A.” já só manifestava interesse pelas verbas nºs 3 e 4, sendo que se oportunamente o arguido JJ...tivesse feito chegar a proposta que esta inicialmente efectuara, aqueles bens teriam sido vendidos pelo preço por esta oferecido, com manifesto benefício para a exequente e para a executada, tendo-se evitado a desvalorização de tais bens.
30 – O requerimento junto pelo arguido à Execução mencionada levou a que fossem praticados outros actos processuais, com prejuízo para o andamento do processo e satisfação dos direitos de crédito do exequente, bem como para os interesses da executada.
31 - Em todas as circunstâncias descritas, o arguido JJ... actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram censuráveis e punidas por lei como crime.
32 - Em 18 de Abril de 2000, logo que contactado pela “L...”, o arguido devolveu a quantia de cinco milhões de escudos a esta sociedade.

Mais se provou:

33 – O arguido foi julgado e condenado nos autos de processo comum singular nº 61/02.8TBFND, do 1º Juízo do Tribunal Judicial do Fundão, por um crime de desobediência (recusa de submissão ao teste de alcoolémia), na pena de 70 dias de multa à taxa diária de € 6,00, que pagou.
34 – É casado, a sua mulher é doméstica, e tem 3 filhos: o referido nos factos, e os restantes estudantes universitários, de 22 e 24 anos de idade, que se encontram a seu cargo.
35 – A agência de leilões, de que é ainda sócio-gerente, continua em laboração, dedicando-se à venda de bens em insolvências.
36 – Vive em casa própria, e conduz um carro do ano de 2005, que é da empresa.
37 – Tem exercido funções de encarregado de venda desde meados dos anos 80, sendo considerado pessoa séria.
38 – Desde o início da investigação que confessou os factos praticados, dados como provados, colaborando de forma activa com as autoridades.
39 – Demonstrou atitude contrita.
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B) Factos não provados
a) O arguido JJ…, ao actuar da forma descrita, depositando o mencionado cheque na referida conta nº 12002100224145, de que era titular, conjuntamente com o seu filho Cláudio José, pretendia fazer sua e do seu filho aquela quantia, o que quis e conseguiu, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e que actuava seu autorização e contra a vontade do dono da mesma.
b) Ao actuar da forma acima descrita o arguido JJ...pretendia fazer sua – como fez – e do seu mencionado filho, a referida quantia de cinco milhões de escudos, introduzindo-a na esfera patrimonial de ambos, em proveito próprio e do seu mencionado filho.
c) Aproveitou-se do exercício das funções de representante da encarregada de venda para se apoderar da quantia titulada por aquele cheque, beneficiando daquelas funções e da maior facilidade - decorrente dessas funções - para ter acesso àquele cheque e à quantia nele titulada.
d) Ao redigir o requerimento ao processo executivo, dando conta da proposta da “E...”, o arguido sabia que inscrevia e que tinha inscrito naquele documento factos falsos, com relevância jurídica.
e) A “E...” era um comprador ficcionado.
f) A partir do dia 29 de Dezembro de 1999, a quantia titulada no cheque passou a fazer parte do património do arguido JJ... e do seu filho CJ....
g) O arguido pretendia obter para a sociedade leiloeira de que era legal representante um benefício que não lhe era devido, exigindo uma remuneração que não lhe era devida.
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C) Motivação
A matéria de facto dada como provada, na forma como atrás ficou demonstrada, resultou da ponderação e conjugação crítica dos seguintes meios de prova:
Declarações do arguido, que descreveu os factos na forma que se deu por provada, exceptuando na parte em que mencionou ter sido o representante da “L...” a solicitar-lhe a intervenção de uma terceira entidade para compra dos bens em causa nos autos – por tal não ter sido confirmado pela testemunha em causa, como se verá. Admitiu a intenção de enriquecimento através da sociedade “E...”, e aceita-se que corresponda à verdade a compra dos bens, nos autos de execução, por esta sociedade (o que resulta na não prova de que tal venda fosse “ficcionada”, bem como a omissão, no requerimento junto à execução, de proposta de maior valor), que, tal como o arguido mencionou, tinha por escopo realizar lucro nas operações em que intervinha – intenção que determinou a prática dos factos.
Depoimento de LA..., Inspector da Polícia Judiciária, confirmando a postura de colaboração do arguido desde o início da investigação, a entrega pelo arguido do documento de fls. 212-213, de forma espontânea;
Depoimento de MA..., igualmente inspector da Polícia Judiciária, que participou na busca de fls. 71, confirmando que o arguido entregou a documentação que procuravam (documento bancário mencionado);
Depoimento de Joaquim Guilherme Sousa Fernandes, actualmente director comercial da “Lusolã”, e à data dos factos administrador e director comercial da “T...”, que confirmou ter-se deslocado com o seu irmão, representante da “L...”, à “T...” a fim de ver as máquinas penhoradas, que se encontravam em laboração, referindo-lhe o preço que iria oferecer. Confirmou o teor dos requerimentos apresentados pela empresa que representava nos autos de execução, e ser da sua autoria a 1ª assinatura do documento de fls. 149. Referiu que cada uma das máquinas penhoradas valeria, naquela data, 8 ou 9.000 contos, e que estas ainda se encontram em laboração, na “Lusolã”.
Depoimento de JM..., administrador da “L...”, que confirmou ter-se deslocado à “T...” (de que era sócio, embora não frequentasse as suas instalações), com outro administrador, a fim de verificar o estado das máquinas penhoradas. Confirmou ter falado com o arguido em Dezembro de 1999, tendo-lhe entregue pessoalmente, em Seia, o cheque de 5.000.000$00, preço por si oferecido pelas máquinas. Considerou, face à sua experiência, que efectuava um bom negócio para a empresa que representava, comprando as máquinas por valor inferior ao real. No mais, declarou conhecer o arguido desde meados dos anos 80, e que este sempre foi considerado pessoa honesta. Logo que foi informado pelo Tribunal dos problemas ocorridos, contactou o arguido, que de imediato lhe devolveu o dinheiro. Declarou ainda não ter posteriormente adquirido as máquinas, por saber que a “T...” atravessava já os problemas que determinaram a sua falência.
Documentação junta aos autos, designadamente certidões extraídas do processo executivo e de registo comercial, mormente a fls. 26, 28 a 31, 33 a 39, 46 a 49, 212-213, 233 a 236, 265-266, 283-284, 286, 311 a 313, e certificado de registo criminal de fls. 446-447. Foi junta a certidão da sentença condenatória imposta ao arguido.
Da forma como o arguido depôs, e da conduta mantida logo após os factos, resulta a sua contrição.
Admitiu, finalmente, o arguido o conhecimento dos deveres inerentes à função que exercia, e a sua violação.
Aceitaram-se as declarações proferidas do arguido quanto à sua situação pessoal.

Quanto aos factos não provados:
Para além do que já ficou consignado, cabe referir ser sempre devida remuneração à encarregada da venda, não se podendo extrair que a mesma seria indevida, uma vez que se concluiu ser verdadeira a proposta efectuada pela “E...”. Nem releva o facto de o cheque ter sido depositado em conta bancária particular do arguido: na verdade, e em face da versão dada como provada, a “E...” compraria primeiro os bens para si, e apenas em data posterior os 5.000.000$00 dariam entrada na sua contabilidade – bem como o dinheiro, que poderia ser entregue à empresa pelo arguido, por estar na sua posse.
Ou seja, concluiu o tribunal colectivo que o arguido, actuando enquanto representante legal quer da sociedade leiloeira, quer da “E...”, obtida e paga a proposta de 5.000 contos pelos bens penhorados, pretendeu que esta última sociedade beneficiasse directamente da diferença entre a proposta por esta apresentada e a efectivamente recebida. Nada obsta a este facto, como se referiu, ter o arguido depositado o dinheiro numa conta sua e do seu filho (com ele sócio das duas empresas), sendo certo que as normas vigentes na contabilidade lhe impunham que tal montante viesse a pertencer não às pessoas individuais, antes à sociedade E... (que venderia à sociedade L... os ditos bens por aquela quantia de 5.000 contos). Ou seja, a conta bancária do arguido JJ...serviria apenas como “intermediária”, ou “depositária” da transferência daquela quantia da L... para a E..., e a mesma só poderia ser entregue a esta última sociedade concomitantemente com a venda a efectuar entre as últimas duas sociedades referidas. O que, naturalmente, só poderia suceder após a adjudicação dos bens penhorados à E... pelo Tribunal. Daqui que não tenha sido dada como provada a intenção de apropriação do arguido directamente para si próprio e para o filho (a apropriação seria de terceiro, a E..., e o benefício que o arguido extrairia no futuro seria indirecto, conforme foi dado como provado – os lucros da actividade desta sociedade).
Perante a versão dos factos dada como provada, consonante quer com as declarações de arguido e das testemunhas envolvidas na situação, quer com a documentação constante do processo executivo, concluiu-se, como se referiu, que a proposta da E... para compra dos bens penhorados era verdadeira, para os fins mencionados pelo arguido, e, em consonância, que o arguido, enquanto encarregado da venda, e a empresa leiloeira que representava não retirariam benefício, uma vez que cumpriria sempre as funções cometidas pelo tribunal, vendendo os bens penhorados, embora por valor inferior ao devido (em prejuízo da exequente), faltando nessa parte à verdade, mas podendo inclusive ser-lhe atribuída remuneração inferior, face ao preço transmitido ao processo de execução.
Em suma, deve-se a não prova dos factos descritos no respectivo local à prova do contrário, da forma constante dos factos provados.
***

III.

1. Recurso da matéria de facto – recurso interposto pelo MºPº
Em matéria de apreciação da prova, salvos os casos de apreciação vinculada, vigora o princípio geral de a prova é apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador - art. 127º do C. Processo Penal.
Liberdade que não pode nem deve significar o arbítrio impressionista/emocional ou o subjectivismo alheio à fundamentação e a comunicação.
Pelo contrário, a livre apreciação da prova exige uma apreciação critica e racional, fundada, é certo, nas regras da experiência comum mas também nas da lógica e da ciência, para que dela resulte uma convicção do julgador objectivada e motivada de forma socialmente aceitável, características que lhe permitem impor-se a terceiros.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias (Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss), no processo de formação da convicção há que ter em conta os seguintes aspectos:
- a recolha dos dados objectivos sobre a existência ou não dos factos com interesse para a decisão, ocorre com a produção de prova em audiência,
- é sobre estes dados objectivos que recai a livre apreciação do tribunal, como se referiu, motivada e controlável, balizada pelo princípio da busca da verdade material,
- a liberdade da convicção anda próxima da intimidade pois que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos conhecimentos não é absoluto, tendo como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, portanto, as regras da experiência humana.
Assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque para a sua formação concorrem a actividade cognitiva e ainda elementos racionalmente não explicáveis como a própria intuição.
Esta operação intelectual, não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis) e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente — aqui relevando, de forma especialíssima os princípios da oralidade e da imediação — e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cfr. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss..
Por outro lado os julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, perante duas versões dos factos, só podem afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da 1ª instância, naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art. 347º, n.º2 do CPP – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, p. 126 e 127, que por sua vez cita o Prof. Figueiredo Dias – jurisprudência uniforme desta Relação, designadamente acórdãos 19.06.2002 e de 04.02.2004, nos recursos penais 1770/02 e 3960/03; 18.09.2002, recurso penal 1580/02; 13.02.2008, recurso 76/05.4PATNV.C1 2º Juízo Torres Novas; Ac. de 06.03.2002, publicado na CJ, ano 2002, II, 44.

Isto posto, vejamos os concretos pontos da matéria de facto questionados.

Ponto 32° dos factos dados como provados: - Em 18 de Abril de 2000, logo que contactado pela “L...”, o arguido devolveu a quantia de cinco milhões de escudos a esta sociedade.
Pretende-se ver como não provado, com base no talão de depósito, do recibo e testemunho do gerente da L..., que a devolução não foi efectuada pelo arguido ou que foi “na qualidade de único gerente da Agência de Leilões”.
A testemunha em causa, gerente da L..., refere que o dinheiro foi entregue em mão pelo arguido e que procedeu logo de seguida ao depósito no Banco da quantia recebida.
Por outro lado as sociedades são instrumentos jurídicos que actuam através dos gerentes ou administradores.
A versão que se pretende ver provada é contrariada pelo depósito da quantia que depois foi devolvida, em conta pessoal do arguido e do filho. E não da Agência de Leilões. Pelo que na sociedade não podia haver suporte contabilístico de saída daquilo que não entrou.
Quando muito apenas existia fundamento para a entrada na Agência de Leilões (e subsequente saída para a devolução) do valor da proposta indicada pelo arguido ao tribunal. E não da totalidade da quantia recebida (e depositada em conta particular) pelo arguido que depois devolveu.
Assim, sabendo-se que foi o arguido efectivamente quem, como pessoa física, procedeu à devolução da quantia em causa à L... e que o mesmo se servira dos mecanismos das duas empresas como instrumento para arrecadar a diferença entre a proposta recebida com adiantamento de preço e a proposta “transmitida” ao tribunal, não existe fundamento para dar como provado que foi a Agência que devolveu quantia que não recebeu e lhe passou ao lado.

Ponto 37° da matéria dada como provada: “Tem exercido funções de encarregado de venda desde meados dos anos 80, sendo considerado pessoa séria”.
Sustenta-se que tal matéria é contrariada pelo meio de prova “declarações do arguido”.
Ora o arguido não reconheceu (o que seria de estranhar ao próprio) que não fosse considerado pessoa séria.
Por outro lado uma coisa é ser “considerado” ou a reputação que alguém tem no meio social onde se movimenta, outra, diferente, o efectivo merecimento dessa consideração. Além do mais porque os factos da acusação podem não ter sido conhecidos no meio, sendo certo que a Lei Fundamental presume a inocência do arguido até ao trânsito em julgado da sentença condenatória.
Acresce que o tribunal recorrido respalda a consideração (“tem exercido … sendo”) nas funções de encarregado da venda que o arguido “tem exercido”.
Assim, porque o meio de prova convocado nada adianta sobre a reputação e porque em termos de experiência comum não se vê que o tribunal pudesse confiar as funções de encarregado da venda a alguém que não tivesse efectivamente a reputação de seriedade, também não merece censura a decisão neste ponto.

Ponto 38° da matéria dada como provada: – Desde o início da investigação que confessou os factos praticados, dados como provados, colaborando de forma activa com as autoridades.
Ora, se é certo que o arguido pretendeu dar uma visão de normalidade de lucro á sua actuação, não é menos certo que - podendo negá-lo - o arguido logo assumiu o recebimento dos 5.000 contos e o depósito na conta pessoal, bem como a transmissão ao tribunal de uma proposta diferente, mais baixa. Além de que logo que descoberta a actuação devolveu aquela quantia a quem de direito. No que toca aos factos reconheceu o núcleo dos mesmos, sendo certo que não lhe cabe deles tirar ilações ou qualificá-los. E deu uma “explicação” que acabou por ser em parte aceite pelo tribunal recorrido - tanto que deu como não provada a matéria de facto descrita no acórdão recorrido que o digno recorrente também impugna.
Assim, se bem que o facto seja porventura abrangente, também não se vê motivo para que seja modificado.

Ponto 39º - “atitude contrita”
Também aqui, se é certo que em audiência o arguido tentou dar uma explicação que numa determinada leitura parece interpretar o facto como “normal”, essa aparente “normalidade” é contrariada pela efectiva assunção do depósito em conta particular do preço recebido e da transmissão ao tribunal de uma proposta inferior à efectivamente recebida. Bem como pela restituição do dinheiro logo que descoberta a actuação – de onde resulta o reconhecimento de que do mesmo se apropriara indevidamente, não se restituindo o que se entende ter sido “bem” recebido. Não havendo melhor indício da contrição do que a efectiva reparação, imediata, do mal causado.
Pelo que também neste ponto não será alterada a decisão.

Pontos da matéria de facto dada como não provada pelo tribunal recorrido - alíneas a), b), c) d), e), g) e f) da respectiva descrição:
a) O arguido JJ…, ao actuar da forma descrita, depositando o mencionado cheque na referida conta nº 12002100224145, de que era titular, conjuntamente com o seu filho CJ…, pretendia fazer sua e do seu filho aquela quantia, o que quis e conseguiu, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e que actuava seu autorização e contra a vontade do dono da mesma.
b) Ao actuar da forma acima descrita o arguido JJ...pretendia fazer sua – como fez – e do seu mencionado filho, a referida quantia de cinco milhões de escudos, introduzindo-a na esfera patrimonial de ambos, em proveito próprio e do seu mencionado filho.
c) Aproveitou-se do exercício das funções de representante da encarregada de venda para se apoderar da quantia titulada por aquele cheque, beneficiando daquelas funções e da maior facilidade - decorrente dessas funções - para ter acesso àquele cheque e à quantia nele titulada.
d) Ao redigir o requerimento ao processo executivo, dando conta da proposta da “E...”, o arguido sabia que inscrevia e que tinha inscrito naquele documento factos falsos, com relevância jurídica.
e) A “E...” era um comprador ficcionado.
f) A partir do dia 29 de Dezembro de 1999, a quantia titulada no cheque passou a fazer parte do património do arguido JJ... e do seu filho CJ....
g) O arguido pretendia obter para a sociedade leiloeira de que era legal representante um benefício que não lhe era devido, exigindo uma remuneração que não lhe era devida.

Trata-se aqui, no essencial, de factos do foro subjectivo – intenção de apropriação e consciência de que a proposta apresentada pelo arguido em nome da E... era ficcionada.
No apuramento de factos do foro psicológico - conhecimento, representação intelectual, vontade - é fundamental o apelo às regras da experiência comum (art. 127º do CPP) onde se situam as chamadas presunções judiciais, à inferência a partir da acção objectiva e daquilo que representa em termos de normalidade do agir humano: quem conhecendo as consequências de determinado facto o pratica, livre de movimentos, não sofrendo de doença ou outra causa que lhe tolde o entendimento, se decide praticar esse facto é porque quer e aceita as consequências do mesmo.
Trata-se de meio de prova expressamente previsto no artigo 349º do C. Civil: Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido. Estabelecendo ainda o artigo 351º do C. Civil que: As presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal.
Sendo certo que em processo penal são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei – cfr. art. 125º do CPP.
Não se confundindo as presunções judiciais, indiciárias, probatórias, com a presunção geral e abstracta de culpa.
É certo que como destaca Climent Duran (La Prueba Penal, ed. Tirant Blanch, p. 575, tradução do relator) “Os tribunais são avessos a reconhecer expressamente que nas suas valorações e nas suas motivações probatórias utilizam constantemente presunções, como se estivessem impedidos de o fazer, por crer erroneamente que tal maneira de proceder não é propriamente jurídica e que supõe a introdução de alguma dose de arbitrariedade no conteúdo das suas decisões. As razões que podem ter contribuído para tal crença encontram-se antes de tudo, na lamentável confusão – muito generalizada – entre o conceito vulgar e o conceito jurídico de presunção”.
No entanto a associação que a prova indiciária estabelece entre elementos de prova objectivos e regras objectivas da experiência leva alguns autores a afirmarem a sua superioridade perante outros tipos de provas, nomeadamente a prova directa testemunhal, onde também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será mais perigoso de determinar, qual seja a credibilidade do testemunho – cfr. Mittermaier Tratado de Prueba em Processo Penal, p. 389.
Sendo a prova por concurso de circunstâncias absolutamente indispensável em processo Penal, posto que, se a mesma fosse excluída, ficariam na mais completa impunidade um sem fim de actividades criminais – cfr. FRANCISCO ALCOY, Prueba de Indicios, Credibilidad del Acusado y Presuncion de Inocencia, Editora Tirant Blanch, Valencia 2003, p. 25, citando Mittermaier e a jurisprudência constitucional e do Supremo Tribunal do país vizinho, cujo ordenamento é, tal como o nosso, amplamente credor do alemão.
Daí que “O direito constitucional da presunção de inocência não se opõe a que a convicção judicial em processo penal se possa formar na base de uma prova indiciária.” Cfr. Climent Durán, La Prueba Penal, p. 597, citando a doutrina do Tribunal Constitucional Espanhol que “considerou admissível a prova indiciária, equivalente da prova circunstancial no âmbito penal, sempre que com base num facto plenamente acreditado e demonstrado, também possa inferir-se a existência de um outro, por haver entre ambos um enlace preciso e directo segundo as regras do critério humano mediante um processo mental racional. Em definitivo trata-se de uma operação lógica, consistente num raciocínio indutivo cujo discurso há-de reflectir-se na sentença”.
Tratando-se, aliás, de prova especialmente apta para dilucidar os elementos do tipo subjectivo do crime que de outra forma seriam impossíveis de demonstrar a não ser pela confissão.
Exigindo-se como requisitos: - que os indícios estejam acreditados por prova de carácter directo; que sejam periféricos do facto a provar ou interrelacionados com esse facto; a racionalidade da inferência; e a expressão, na motivação do tribunal de instância, de como se chegou à inferência – cfr. FRANCISCO ALCOY, ob. cit., p. 39, fazendo a síntese da doutrina e jurisprudência sobre o tema. No mesmo sentido, desenvolvidamente, cfr. CARLOS CLIMENT DURÁN, La prueba Penal, ed. Tirant Blanch p. 626 e segs., em especial p. 633.

No caso, em relação à matéria questionada, dada como não provada, o tribunal recorrido ponderou, em suma, “que a proposta da E... para compra dos bens penhorados era verdadeira, para os fins mencionados pelo arguido, e, em consonância, que o arguido, enquanto encarregado da venda, e a empresa leiloeira que representava não retirariam benefício, uma vez que cumpriria sempre as funções cometidas pelo tribunal, vendendo os bens penhorados, embora por valor inferior ao devido (em prejuízo da exequente), faltando nessa parte à verdade, mas podendo inclusive ser-lhe atribuída remuneração inferior, face ao preço transmitido ao processo de execução”.
Ora esta versão aceite pelo tribunal colectivo (de que a proposta da E... era verdadeira) contraria aquilo que decorre da objectividade dos factos. Desde logo porque o arguido actuou simultaneamente em nome do encarregado da venda e em nome do suposto comprador. Negociando consigo mesmo, em dois planos incompatíveis. Por outro lado nenhuma proposta foi efectivamente apresentada pela E... – mesmo quando pretendeu actuar em seu nome o arguido nada desembolsou nem quis desembolsar. Muito menos pagou ou sinalizou fosse o que fosse – e como é sabido na compra e venda constitui elemento fundamental corresponde à transferência do bem o pagamento do preço.
O arguido recebeu uma proposta de aquisição por 5.000 contos da parte da L... que foi a única proposta recebida, com efectivo adiantamento do pagamento do preço proposto. E apresentou ao Tribunal, que o mandatara para o efeito, uma proposta supostamente apresentada por si próprio, em nome de uma outra empresa de que era único gerente. Não para adquirir efectivamente os bens, mas apenas para interpor a sociedade que representava como “testa de ferro” para formalizar, depois, a venda à única proponente da aquisição, mas por um preço inferior ao já recebido e assim dar cobertura à arrecadação da diferença já embolsada e depositada em conta não titulada pela encarregada da venda.
Por outro lado, tendo o preço da única proposta existente (5.000 contos) sido pago de imediato, depositando-o o arguido em conta particular (estranha à sociedade encarregada da venda), ao transmitir ao tribunal a proposta de apenas 1.150 contos – única verba declarada à execução, contra a verdade, assumiu a efectiva apropriação da diferença, omitida ao tribunal e que já se encontrava na sua posse. Estando os 5.000 contos já efectivamente arrecadados em conta particular, a comunicação ao tribunal de “apenas” 1150 contos equivale a assumir a vontade de “silenciar” em definitivo o remanescente já efectivamente “guardado” e fora do alcance fiscalizador do tribunal por desconhecer o depósito.
A própria decisão recorrida, assumindo que o arguido “participou” em negócio mas dando como provado que a proposta apresentada pela E... era genuína, parece contraditória uma vez que sendo a proposta – apresentada ao tribunal - considerada “boa”, pagando o preço, como assumiu fazê-lo ao comunicar ao Tribunal não haveria qualquer participação ilegítima, mas apenas o cumprimento, ponto por ponto, da proposta apresentada, pelo preço “oferecido”.
Tendo recebido a proposta da L..., com pagamento efectivo, de 5000 e transmitindo uma proposta de apenas 1150, apresentada por si próprio na qualidade de gerente da E... com o objectivo de transmitir depois os bens pelo preço de 1150 contos à única proponente da aquisição – que já desembolsara os 5000 contos - o arguido não pode ter deixado de querer apropriar-se (como apropriou efectivamente, invertendo o título de posse sobre a quantia já recebida) da diferença que já se encontrava na sua esfera jurídica.
Não assumiu a apropriação dos 1150 contos – que com IVA incluído perfaz 1.345.500$00 - que transmitiu ao Tribunal, pois “manifestando-a”, assumiu a obrigação de prestar contas dela. Mas assumiu-se como dono da diferença, guardada e silenciada ao tribunal – 3.654.500$00 - por já recebida e omitida a quem de direito que assim ficava sem possibilidade de controlo daquilo que desconhecia.
É o que legitimamente se infere, dentro do critério supra referido, da objectividade da actuação do arguido em conformidade com as regras da experiência

Assim dá-se como provado:
a) O arguido ao depositar mencionado cheque na conta nº 12002100224145, de que era titular, conjuntamente com o seu filho Cláudio José, pretendia fazer sua e do seu filho a diferença entre a quantia recebida e a proposta indicada ao tribunal, o que quis e conseguiu (ainda que tenha procedido mais tarde, quando descoberto à devolução à L... dos 5000 contos nos termos referidos infra), bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e que actuava seu autorização e contra a vontade do dono da mesma, introduzindo-a na esfera patrimonial de ambos, em proveito próprio e do seu mencionado filho.
c) Aproveitou-se do exercício das funções de representante da encarregada de venda para se apoderar daquela diferença entre a quantia titulada pelo cheque e o valor da proposta que transmitiu ao tribunal, beneficiando da facilidade decorrente dessas funções para ter acesso ao cheque e à quantia nele titulada.
d) Ao redigir o requerimento ao processo executivo, dando conta da proposta da “E...”, o arguido sabia que existia apenas a proposta de 5.000 contos da Lenapente, não correspondendo à verdade a transmitida proposta da E...
e) A “E...” era um comprador ficcionado - como meio para vender os bens à L... por 1150 contos e de arrecadar a diferença .
f) A partir do dia 29 de Dezembro de 1999 e até á devolução à L..., a quantia titulada no cheque passou a fazer parte do património do arguido JJ... e do seu filho CJ... com a ressalva de que era intenção de o arguido colocar á disposição do tribunal a quantia declarada acrescida de IVA, no total de 1.345.500$00, apenas se apropriando da diferença – 3.654.500$00

Já quanto a facto descrito sob a alínea g) - O arguido pretendia obter para a sociedade leiloeira de que era legal representante um benefício que não lhe era devido, exigindo uma remuneração que não lhe era devida o mesmo é contrariado pela apropriação individual através do subterfúgio da “proposta” da E....
Acresce que se o dinheiro entrou para conta individual e foi dado efectivo conhecimento ao tribunal do preço de 1.150 contos (mais IVA), a Leiloeira não iria enriquecer com a venda porque com o expediente da “proposta” da E... a Leiloeira intervinha “apenas” como concretizadora do negócio inventado, “declarado” ao tribunal com o único objectivo de arrecadar a diferença de preço a que já se fez referência.
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2. Qualificação jurídica
Não é questionada a absolvição do crime de denegação de justiça e prevaricação

Quanto ao crime de falsificação, entendeu o tribunal recorrido que não se verifica este crime porquanto “a E... iria, na verdade, adquirir os bens no âmbito daquela execução”.
Se bem que tal pressuposto tenha sido alterado na decisão de recurso da matéria de facto, importa, ainda assim, apurar se o requerimento em questão, apresentado pelo arguido no processo executivo, integra o conceito de documento definido para fins penais.
O conceito de documento consta do art. 255º al. a) do C. Penal, na versão saída da revisão de 95. Postula tal disposição que “Para efeito do disposto no presente capítulo, considera-se: a) Documento: a declaração corporizada num escrito (...) que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer á generalidade das pessoas ou a um cero círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta”.
O legislador consagrou um conceito de documento que não coincide com o do art. 362º do C. Civil, porque demasiadamente vago para o direito penal, sujeito ao princípio da tipicidade e ainda porque no momento em que o Projecto do Código Penal foi elaborado não se encontrava ainda em vigor o C. Civil – cfr. MAIA GONÇALVES, cit. no Comentário Conimbricence, anotação ao art. 255º.
Como refere HELENA MONIZ (Comentário Coninmbricence, p. 667) “Documento, para efeito do direito penal, não é o material que corporiza a declaração mas a própria declaração, independentemente do material em que está corporizada; e declaração enquanto representação de um pensamento humano (função de perpetuação) (…) Documento é pois a declaração de um pensamento humano que possa constituir meio de prova; só assim e compreendendo que o crime de falsificação de documento proteja o específico bem jurídico que é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório.
Como resulta do enunciado do art. 255º, a declaração, além de corporizada em documento, deve ser idónea para provar facto jurídico relevante.
No caso, não há dúvida que estamos perante uma declaração escrita. Faltando saber se tal declaração constitui, meio idóneo para provar o facto ali descrito, melhor dizendo transmitido.
Trata-se de um requerimento cujo valor intrínseco se esgota na “transmissão” ao tribunal ou comunicação da proposta prévia e autónoma. Em si e por si o requerimento/declaração nada provam nem pretendem provar. Apenas leva ao conhecimento do tribunal uma alegada proposta de compra
Trata-se de um “requerimento” cujo significado se esgota em “requerer” e não a substanciar o acto requerido ou, no caso, a proposta comunicada que se pretende ver “deferida”. Não é a proposta em si ou qualquer acto que a pretenda formalizar. Apenas transmite ao tribunal uma proposta (prévia e autónoma) diferente e não incorporada no requerimento que se pretende que o tribunal aprecie e defira.
Não se trata de “documento” para valer como meio de prova em si e por si, mas um mero requerimento para ser apreciado por quem de direito – como foi com base na relação mandante/mandatário da venda.
Já constituiria documento, destinado a provar, por si, o facto relevante, se tratasse da declaração de venda em si ou da proposta de aquisição “assinada” pelo arguido em nome da própria E... ou da L... que fossem remetidas ao tribunal, para valer como tal, juntamente com o requerimento em questão.
Assim o recurso neste ponto improcede não porque não provada a divergência entre o que foi declarado no requerimento e a verdade, mas antes porque não estamos perante um documento, uma vez que constitui um mero requerimento que de si e por si não contém qualquer valor intrínseco como “prova” do facto relatado.
*
Crimes de peculato e participação em negócio.

Não é questionada, em qualquer dos recursos, não constituindo por isso objecto do recurso, a extensão do conceito de funcionário ao arguido, nos termos do art. 386º, n.º1, al. c) do C. Penal, enquanto encarregado da venda, mandatado pelo tribunal para o efeito.

O MºPº sustenta que a matéria já dada como provada pelo tribunal recorrido - por maioria de razão com o aditamento da nova matéria agora dada como provada - integra, além do crime de participação em negócio por que o arguido vem condenado, ainda o crime de peculato.
Por sua vez o arguido sustenta que a matéria provada não integra sequer os elementos do crime de participação em negócio, ou, quando muito, integra apenas o crime previsto no n.º2 do art. 377º - obtenção de vantagem patrimonial “ainda que sem lesar os interesses” confiados.
Suscitando-se assim a questão de saber até que ponto a “apropriação” não engloba a mera “participação”, com eventual relação de concurso aparente, por consumpção, entre os dois crimes.
Assim, dada a relação, surgindo os dois recursos como face e verso da mesma questão, serão apreciados em conjunto.
Pratica o crime de peculato (art. 375º, n.º1 do CP) “O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções”.
Por outro lado pratica o crime de participação económica em negócio (art. 377º, n.º 1, do C. P.) “O funcionário que, com intenção de obter, para si ou para terceiro, participação económica ilícita, lesar em negócio jurídico os interesses patrimoniais que, no todo ou em parte, lhe cumpre, em razão da sua função, administrar, fiscalizar, defender ou realizar”.
O primeiro (peculato) constitui um crime qualificado de abuso de confiança, em que o funcionário recebe ou tem na sua posse dinheiro ou coisa móvel que lhe foi entregue dentro do âmbito das suas funções e, a certa altura inverte o título de posse, assenhoreando-se ou assumindo-se como dono.
Inversão do título de posse que constitui o cerne do crime de abuso de confiança, consistindo na assunção dos poderes de proprietário por parte daquele a quem o bem foi entregue como mero detentor a quem foi entregue como mero depositário: a coisa foi entregue com determinada finalidade que não por acto translativo do direito de propriedade e o agente passa a comportar-se como seu verdadeiro dono, praticando actos apenas consentidos ao titular do direito de propriedade – cfr. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricence ao C. Penal, p. 103.
Já o crime de participação em negócio constitui um crime qualificado de infidelidade, lesando o funcionário, em violação dos deveres de imparcialidade e isenção do cargo, os interesses patrimoniais que lhe estão confiados.
Trata-se, em ambos os casos, de crimes (previstos no Capítulo IV do C. Penal) relativos aos crimes cometidos no exercício de funções públicas ou equiparadas. E em ambos os casos existe um enriquecimento ilegítimo / lesão dos interesses de outrem, através do desvio dos poderes/deveres inerentes ao exercício do munus do funcionário.
Constituem pontos comuns entre ambos, o do funcionário que é infiel ao seu cargo, aproveitando-se dele para obter ou proporcionar uma vantagem patrimonial em prejuízo dos interesses por que lhe cumpre zelar.
Mas o recorte típico de cada um tem em vista realizadas materiais distintas: no peculato está em causa a apropriação de dinheiro ou coisa móvel que esteja na posse do agente em por efeito das funções; a participação tem em vista a obtenção de determinada posição ou vantagem por efeito, indevido, de negócio efectuado no exercício do cargo.
Supondo a “participação económica em negócio” a existência de um negócio jurídico (como tal vantajoso para os interessados no mesmo) em cuja realização o agente obtém (ao lado e para além dos titulares/interessados no negócio) uma vantagem indevida, para si próprio ou para terceiro, contrária aos deveres de isenção e probidade do cargo.
No caso em apreço a decisão recorrida entendeu que não se verificam os pressupostos do tipo objectivo do crime de peculato porquanto o arguido «não chegou a apropriar-se da quantia mencionada, reteve-a para futuramente lhe dar outro destino, a saber, “pagar” à sociedade E... os bens que esta adquiriria no âmbito da execução».
Nessa perspectiva haveria um negócio formalmente válido e “limpo” realizado pelo preço de 1150 contos, a favor da empresa E... – representada pelo próprio encarregado da venda. E um outro (igualmente genuíno ?) desta para a L..., pelo preço de 5000 contos.
A colocação entre parêntesis do “pagar” aponta no sentido de que o tribunal recorrido não considerou tratar-se de um verdadeiro e/ou devido pagamento por parte da E.... E tal não sucede efectivamente, como se adiantou supra na apreciação da questão de facto, não só porque a E... nenhuma proposta fez efectivamente, como ainda porque nada desembolsou com base nela - a única proposta (com efectivo pagamento do preço) foi a apresentada pela L...). Pelo contrário, a proposta da E... foi inventada pelo arguido, jogando simultaneamente no tabuleiro de encarregado da venda e comprador, como instrumento para subverter e tornear a (única) proposta real, como instrumento da apropriação do remanescente (já arrecadado em conta pessoal) entre o preço comunicado ao tribunal e o efectivamente recebido - da única entidade, repete-se, que apareceu interessada na compra e adiantou o pagamento do preço – a L.... O arguido, actuando como representante da ficcionada proponente (que nada desembolsou nem viria a pagar, do seu bolso, insiste-se) utilizou a sua representada (de quem era o único gerente) ficcionando um novo negócio, por um preço diferente, mais baixo que o recebido, para esconder o recebimento, previamente consumado, da diferença.
Do expendido, na linha da apreciação do recurso da matéria de facto, resulta, brevitatis causa, que o arguido inverteu o título de posse sobre a diferença entre o montante pago pela L... e o valor da inventada proposta transmitida ao tribunal. Apropriou-se do dinheiro já recebido na parte em que o “silenciou” ao tribunal.
Não se trata de um negócio de o arguido se limitasse a tirar vantagem indevida ou “participasse”. Trata-se antes de uma proposta de negócio forjado (a E..., representada pelo próprio arguido, nada queria comprar para si e não desembolsou ou pretendia desembolsar qualquer preço. Além de que o arguido não podia intervir ao mesmo tempo na qualidade de vendedor e de comprador negociando consigo mesmo) como meio/instrumento de “lavar” o prévio arrecadamento da parte do preço não declarada. Escondendo do mandatário a verdadeira (única) adquirente (L...) e o preço proposto/pago para assim ficar com a diferença.
Assim o arguido não “participou” propriamente em negócio. Torneou, subverteu, o negócio (a L... nem concordou nem foi havida ou achada na realização do plano executado pelo arguido emitindo mesmo o cheque á ordem da encarregada da venda). Inventando um outro, de permeio, gizado e executado apenas por si próprio, como instrumento para dar cobertura à apropriação da parte do preço que já lhe havia sido entregue em vista do negócio. Não “participou” em negócio, ainda porque não teve a conivência da L..., proponente do negócio não realizado.
Obteve antes um benefício com a efectiva “apropriação” para si de parte do preço entregue com outro fim. Mais profunda/gravosa/densa que a simples “participação”. O que o confronto das penas aplicáveis, muito mais severa no primeiro caso, confirma.
Não se trata propriamente concurso aparente, por consumpção, entre peculato e participação. Mas antes de uma precedência lógica em que o crime de peculato esgota todo o sentido e significado da acção. Dando-lhe uma cobertura perfeita, “redonda”, que dispensa e é diferente da mera participação.
Com efeito, como refere superiormente o Prof. Figueiredo Dias “Da circunstância de a um concreto comportamento ser em abstracto aplicável uma pluralidade de normas incriminadoras não pode concluir-se se mais estarmos perante um concurso de factos puníveis. Importa, antes de tudo, determinar se as normas abstratcamente aplicáveis se não encontram numa relação lógico-jurídica tal (que poderia chamar-se de “lógica hierarquia) que, em verdade, apenas uma delas ou algumas delas são aplicáveis, excluindo a aplicação desta ou destas normas (prevalecentes) a aplicação da ou das restantes (preteridas); pela razão de que à luz da norma prevalecente se pode já avaliar de forma esgotante o conteúdo de ilícito (e de culpa) do comportamento global. Assim se falará neste contexto – antes que, como era tradicional, de concurso legal ou concurso aparente (de designação infeliz fala Roxin, II, 4 33, n.º 173, na base de que neste4s casos não existe sequer “concurso de leis” porque em verdade apenas uma delas é aplicável) - mais exacta e claramente de unidade de norma ou de lei” - cfr. F. Dias, Direito Penal, Parte Geral, ed. de 2007, p. 992.
Na consideração global do sentido social do comportamento – considerado por F. Dias no desenvolvimento do pensamento de Eduardo Correia - o factor decisivo para a determinação da unidade ou pluralidade de crimes - cfr. ob. cit., p. 987.
De onde que, nessa consideração global, se conclua que a matéria de fato provada integra - apenas - o crime de peculato e não o de participação em negócio.
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Da apreciação acabada de efectuar da perspectiva do MºPº decorre a improcedência do “reverso” que representa o recurso do arguido.
Em face do expendido acerca do concurso entre peculato e participação, a afirmação do recorrente de que “a factualidade dada como provada no caso vertente não é de molde a demonstrar a existência de qualquer invalidade do acto praticado pelo recorrente, à luz do direito administrativo, que a conduta do recorrente não pode ser enquadrada no nº 1 do artigo 377° do Código Penal, deve antes ser subsumida ao tipo legal de crime p. e p. pelo nº 2 da mesma disposição legal” assenta em petição de princípio.
Com efeito, não existe qualquer acto válido. Muito menos “à luz do direito administrativo”. A única venda “contratualizada” foi a proposta pela L... e supunha a realização, pelo tribunal, de acordo com os dados – únicos e verdadeiros - relativos a essa proposta e preço adiantado que o arguido devia ter sido transmitido ao mandante da venda. Que alterou por sua única iniciativa e como instrumento para silenciar o efectivo recebimento da diferença.
A condenação pelo crime de peculato não viola o direito de defesa do arguido, porque constituiu objecto do processo – definido pela acusação – e julgamento realizado em 1ª instância, bem como de discussão nos dois recursos (quer o interposto pelo MºPº quer o interposto pelo arguido) sobre que o recorrente teve oportunidade de se pronunciar. Sem que, portanto, a decisão do tribunal ad quem tenha acrescentado seja o que for que possa constituir “decisão surpresa” ou sobre que o arguido não tenha tido oportunidade de se pronunciar, como efectivamente pronunciou.
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3. Pena
Enquanto o crime de participação pelo qual o arguido vinha condenado é punido com prisão até 5 anos, a alteração da qualificação jurídica operada dá-nos uma moldura abstracta da pena que passa a ser de prisão de 1 a 8 anos.
O acórdão recorrido enuncia o critério da definição da medida concreta da pena dentro da moldura abstracta – definido pelo artigo 71º do C.P. perspectivado nos fins das penas enunciados pelo artigo 40º do mesmo diploma.
Mantendo o critério ali seguido, apenas com a rectificação decorrente da diversa qualificação jurídica (assim deixando incólume o direito de defesa do arguido) fixa-se a pena em 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão.
No que toca ao cumprimento da pena, o art. 50º, n.º1 do C. Penal (O tribunal suspende a execução da pena de prisão não superior a 5 anos de prisão -redacção introduzida pela Lei 59/2007 de 04.09 - se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição) obriga à formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no futuro, e sobre se a suspensão realiza, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, tendo em vista a personalidade do agente, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime, as circunstâncias do crime, tudo em função da matéria de facto provada no caso concreto.
Sendo certo que o juízo de prognose não deve assentar necessariamente numa «certeza», bastando uma «expectativa» fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição e, consequentemente, a ressocialização em liberdade do arguido – cfr. Ac. STJ de 08.07.1998, CJ/STJ, tomo II/98, p. 237.
Atento o valor da apropriação, a restituição e atitude perante o bem jurídico violado que revela, a ausência de antecedentes criminais, o tempo decorrido desde a prática dos factos, entende-se que não merece censura, neste ponto, a decisão da suspensão do tribunal recorrido.
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IV. Nestes termos decide-se:
- Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo MºPº alterando a matéria de facto nos termos que ficaram supra definidos e qualificando essa matéria de facto provada como integrando (apenas) um crime de peculato p. e p. pelo art. 375º, n.º 1, do C. Penal, pelo qual o arguido vinha acusado, condenando-o, como autor desse crime, na pena de suspensão de prisão de 1 (um) ano e 10 (dez) meses; -----
- Julgar improcedente o recurso interposto pelo MºPº em tudo o mais não previsto no item anterior; -----
- Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido. ----
- Condenar o arguido nas custas do recurso por si interposto, fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) UC.