1- O principio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo , pessoal , entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar , e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
2- Para respeitarmos os princípios oralidade e imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum , ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.
3- O objecto da prova pode incidir sobre os factos probandos ( prova directa ), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem , com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este ( prova indirecta ou indiciária).
4- Tendo a arguida sido vista a fugir de noite do local onde se encontrava estacionado o veículo da assistente, cuja pintura logo nesse momento surge aos olhos da assistente e duma testemunha como riscada, não vai contra as regras da experiência comum e a livre apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, concluir que foi a arguida quem danificou a pintura do veículo da assistente.
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. ).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos, face às conclusões da motivação da arguida C... as questões a decidir são as seguintes :
- se a sentença recorrida padece dos vícios a que aludem as alíneas a) e c), n.º2, art.410.º do Código de Processo Penal;
- se existe erro de julgamento relativamente ao ponto n.º 2 da matéria de facto dada como provada na sentença, uma vez que ninguém viu a arguida a riscar a chapa, a pintura das portas
e o capot do veículo da assistente P... e as testemunhas A..., N... e G... não depuseram com isenção; e
- se o Tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo e o disposto no n.º2 do art.32.º da Constituição da República Portuguesa.
Passemos ao conhecimento da primeira questão.
O art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal estatui que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida , por si só ou conjugada com as regras da experiência comum :
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ; ou
c) O erro notório na apreciação da prova .
Os vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P. têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem que seja possível a consulta de outros elementos constantes do processo.
As normas da experiência são, como refere o Prof. Cavaleiro de Ferreira , «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.» - Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300.
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada verifica-se quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ( e da medida desta) ou de absolvição. - Cfr. entre outros , os Acórdãos do STJ de 6-4-2000 (BMJ n.º 496 , pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483 , pág. 49).
Admite-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal “a quo” através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração da qualificação jurídica da matéria de facto, ou da medida da pena ou de ambas – Cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques , in “Código de Processo Penal anotado” , 2ª ed., pág. 737 a 739.
No presente caso, o Tribunal recorrido apreciou os factos constantes das acusações do Ministério Público e da assistente P..., e na contestação a recorrente C... limitou-se a oferecer o merecimento dos autos e alegar em sua defesa todas as circunstâncias atenuantes e/ou dirimentes que resultem da discussão da causa.
A recorrente não indica, em concreto, que factos relevantes para a boa decisão da causa ficaram por apurar e que resultem do texto da sentença, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.
Na verdade, nas conclusões da motivação e na motivação do recurso, a recorrente C... confunde o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude a alínea a), n.º2 do art.410.º do C.P.P., com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, a qual resulta da convicção do julgador e das regras da experiência ( art.127.º do C.P.P.).
A recorrente ao defender que as provas produzidas em audiência de julgamento são insuficientes para a matéria de facto apurada, mais concretamente para se decidir que foi ela quem causou os danos no veículo da assistente, não está a invocar a existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a alínea a), n.º2 do art.410.º do C.P.P., mas a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida.
O Tribunal da Relação conclui que do texto da decisão recorrida , por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, não se colhe que ficaram factos por apurar na audiência de julgamento, sendo que os factos dados como provados pelo Tribunal recorrido preenchem todos os elementos constitutivos dos crimes pelos quais a arguida foi condenada.
O erro notório na apreciação da prova a que alude o art.410.º, n.º 2 do C.P.P. , tem lugar “... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável , quando se dá como provado algo que notoriamente está errado , que não podia ter acontecido , ou quando , usando um processo racional e lógico , se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica , arbitrária e contraditória , ou notoriamente violadora das regras da experiência comum , ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto ( positivo ou negativo ) contido no texto da decisão recorrida”. - Cfr. Cons. Simas Santos e Leal-Henriques , in “Código de Processo Penal anotado”, Rei dos Livros , 2ª ed. ,Vol. II , pág. 740. No mesmo sentido decidiram , entre outros , o acórdão do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ).
O erro notório na apreciação da prova, nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correcta face à prova produzida em audiência de julgamento.
Analisando o texto da decisão recorrida, nomeadamente a fundamentação da matéria de facto, não vemos que o Tribunal recorrido, ao dar como provada a matéria de facto que o recorrente impugna, tenha seguido um raciocínio ilógico, arbitrário ou contraditório, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, de onde se possa concluir pela existência de um erro notório na apreciação da prova.
Deste modo, concluímos que a sentença recorrida não padece dos vícios enunciados no art.410.º, n.º 2 , alíneas a) e c) do C.P.P..
Importa agora conhecer da impugnação da matéria de facto, por alegado erro de julgamento do Tribunal a quo.
O Tribunal da Relação conhece de facto e de direito ( art.428.º , n.º1 do C.P.P. ) .
No entanto, a modificação da decisão da 1ª instância em matéria de facto só pode ter lugar, sem prejuízo do disposto no art.410.º, do C.P.P., se se verificarem as condições a que alude o art.431.º do mesmo Código , ou seja :
« a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art.412.º; ou
c) Se tiver havido renovação de prova .”.
Em conjugação com este preceito legal importa atender ao disposto no art. 412.º, n.º3 do Código de Processo Penal, que impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto o dever de especificar:
« a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados ;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida ;
c) As provas que devam ser renovadas.»
E acrescenta o n.º 4 deste preceito legal :
« Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação.»
O tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa. ( n.º 6 do art.412.º do C.P.P.).
Sobre o dever das menções dos n.ºs 3 e 4 do art.412.º do C.P.P. constarem das conclusões da motivação, o STJ já se pronunciou no sentido de que a redacção do n.º 3 do art.412.º do C.P.P., por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem de dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que “ versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda (…) ”, já o n.º 3 se limita a prescrever que “ quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (…)”, sem impôr que tal aconteça nas conclusões. Perante esta margem de indefinição legal, tendo o recorrente procedido à mencionada especificação no texto da motivação e não nas respectivas conclusões, ou o Tribunal da Relação conhece da impugnação da matéria de facto ou, previamente, convida o recorrente a corrigir aquelas conclusões. – cfr. acórdão do STJ, de 5 de Julho de 2007, proc. n.º 07P1766, www.dgsi.pt/jstj.
Porém, se o recorrente não faz, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas pelos n.ºs 3 e 4 do art.412.º do C.P.P., não há lugar ao convite à correcção das conclusões, uma vez que o conteúdo da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite à correcção das conclusões da motivação.
Esta posição defendida pela generalidade da jurisprudência, designadamente pelo STJ ( acórdão de 9 de Março de 2006, in www.dgsi.pt), não foi julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional ( acórdão n.º 529/2003, in DR, 2.ª Série, de 17 de Dezembro de 2003).
No seguimento deste entendimento o art.417.º, n.º 3 do C.P.P., na actual redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, apenas permite o convite ao recorrente para completar ou esclarecer as conclusões formuladas.
No presente caso, a recorrente C... indica nas conclusões da motivação os concretos factos que foram dados como provados na sentença recorrida e que considera incorrectamente julgados e as provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida.
Embora nas conclusões da motivação, quanto à prova produzida oralmente na audiência, não faça o arguido menção aos respectivos suportes técnicos, por referência ao consignado na acta , essa menção é feita minimamente na motivação do recurso.
Deste modo, o Tribunal da Relação considera-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo.
Antes da abordagem directa da questão ora objecto de recurso, importa realçar que a documentação da prova em 1ª instância tem por fim primeiro garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto, mas o recurso de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse. É antes, um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto exige uma articulação entre o Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal de recurso relativamente ao principio da livre apreciação da prova , previsto no art. 127.º do Código de Processo Penal , que estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente , a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.
As normas da experiência são , como refere o Prof. Cavaleiro de Ferreira , «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico , independentes do caso concreto “sub judice” , assentes na experiência comum , e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam , mas para além dos quais têm validade.» - Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300.
Sobre a livre convicção do juiz diz o Prof. Figueiredo Dias que esta é “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - , mas em todo o caso , também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros .”- Cfr., in “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 203 a 205.
O principio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento , encontrando afloramento , nomeadamente , no art. 355.º do Código de Processo Penal . È ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova , na recepção directa de prova.
O principio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo , pessoal , entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar , e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias , ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo: « Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal . Já de há muito , na realidade , que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita , desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha , e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) .Só estes princípios , com efeito , permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido , a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem , por outro lado , avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais “. - In “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 233 a 234 .
Na verdade, a convicção do Tribunal “a quo” é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
Do exposto resulta que, para respeitarmos os princípios oralidade e imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum , ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.
Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra , de 6 de Março de 2002 ( C.J. , ano XXVII , 2º , página 44 ) , “ quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade , o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
Em suma, diremos que o preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.
Nesta parte importa realçar que o objecto da prova pode incidir sobre os factos probandos ( prova directa ), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem , com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este ( prova indirecta ou indiciária).
A prova indirecta “ … reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova” – cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “ Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág. 289.
Como salienta o acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 1996 , “ a inferência na decisão não é mais do que ilação, conclusão ou dedução, assimilando-se todo o raciocínio que subjaz à prova indirecta e que não pode ser interdito à inteligência do juiz.” – cfr. Revista Portuguesa de Ciência Criminal , ano 6.º , tomo 4.º, pág. 555. No mesmo sentido, o acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Fevereiro de 2000, ano XXV, 1.º, pág. 51.
A recorrente C... defende que o Tribunal a quo errou no julgamento relativamente ao ponto n.º 2 , mais exactamente 2.1 e 2.3 da matéria de facto dada como provada na sentença, uma vez que ninguém viu a arguida a riscar a chapa, a pintura das portas e o capot do veículo da assistente P..., o depoimento da testemunha A... foi um pouco contraditório em si e com as declarações da assistente e as testemunhas A..., N... e G... não depuseram com isenção.
Para o efeito reproduz alguns segmentos das declarações da assistente e dos depoimentos das as testemunhas A..., N... e G....
Os segmentos das declarações da assistente e das testemunhas A..., N... e G..., reproduzidos na motivação pela recorrente C..., correspondem no essencial ao que elas disseram em audiência de julgamento.
Das declarações da assistente P... resulta, designadamente e em síntese, que esta, em 19 de Junho de 2006 estava a residir com o namorado A..., irmão da arguida, numa casa pertencente aos pais destes. A arguida riscou-lhe o carro nessa casa. Não sabe como a arguida lhe riscou o carro. Uma noite estava em casa a ver televisão mais o namorado e como o cão ladrava o A... veio ver o que se passava fora. Ouviu-o então aos gritos, a discutir com a arguida. A assistente saiu também a ver o que se passava e o A... disse que viu a arguida a saltar o pequenino muro que separa a casa dos pais deles da casa da arguida. Logo se apercebeu que o seu carro, que ai estava estacionado se encontrava riscado do lado do condutor. De manhã, quando ia para o trabalho, verificou que estava todo riscado, do lado do pendura e no capot e tinha escrito um “V”. A arguida devia estar a começar a escrever vaca, mas não teve tempo. A arguida chamava-lhe constantemente “vaca” e “minha puta”.
A testemunha A... declarou, designadamente, que na noite em causa ouviu o cão a ladrar, o que habitualmente não fazia. Quando ia ver o que era e abriu a porta da rua, esta fez barulho. Foi então que viu a arguida a fugir, a saltar o muro, que separa a casa onde ele vivia com a assistente, da casa da arguida. A arguida não lhe disse nada na hora, fugindo para dentro da casa dela, tendo ouvido a porta a bater. Foi logo ver o carro da namorada, pois suspeitou que a arguida “ia para maltratar o carro e estranhei foi não ter maltratado o meu.”. O carro da sua namorada ficou todo riscado. O carro da testemunha estava à frente do carro da assistente.
A testemunha N... declarou, quanto ao veículo da assistente, que no “outro dia” a assistente lhe foi mostrar o carro e que viu este riscado. Disseram-lhe que tinham visto a arguida ir lá à noite riscar o carro.
Por sua vez a testemunha G..., mãe da assistente, declarou, no que ao veículo da assistente diz respeito, que não viu riscar o carro, mas que o viu riscado.
Vejamos.
O Tribunal da Relação começa por referir que não vislumbra razão para considerar que o depoimento da testemunha A... é “um pouco contraditório”. A testemunha em lado algum fez uma afirmação e declarou o seu oposto; pelo contrário, o seu depoimento é coerente e racional.
Não existe também propriamente uma contradição entre as declarações da assistente e da testemunha A..., pelo facto daquela declarar que ouviu a testemunha A... aos gritos, a discutir com a arguida, na noite de 19 de Junho de 2006, após abrir a porta da casa, e o facto da mesma testemunha declarar que a arguida não lhe disse nada na hora, fugindo para dentro da casa dela. A testemunha A... não disse que não gritou para a arguida quando a viu a fugir, nem que não lhe tenha dirigido palavras em jeito de discussão.
Os riscos no veículo automóvel que se vêm nas fotografias de folhas 102 e 103, por várias partes do mesmo e com sulcos profundos, denotam um dolo intenso por parte do seu agente. Não é razoável concluir que uma qualquer pessoa causasse os danos nos veículo, que se encontrava na casa dos falecidos pais da arguida e da testemunha – depreende-se que num recinto exterior – mas sim uma pessoa que com ela tivesse forte inimizade.
A arguida tinha manifestas más relações com a assistente, como resulta claro das expressões que lhe dirigia em Maio de 2006 e que constam do ponto n.º 2.1.2 dos factos provados – matéria que a recorrente não impugnou especificadamente.
Os riscos na pintura do veículo da assistente são detectados durante a noite, logo a seguir ao momento em que a testemunha A... abre a porta de casa para saber a razão do seu cão estar a ladrar e ver a arguida a fugir, saltando o muro da casa onde a testemunha vive, para a casa onde a arguida vive.
A arguida não apresenta qualquer justificação para ser vista durante a noite a fugir da parte exterior da casa dos falecidos pais, onde viviam a testemunha A... e a assistente, limitando-se a negar a prática de todos os factos de que é acusada.
O Tribunal a quo, no âmbito da imediação e da oralidade, considerou as declarações da assistente como convincentes e os depoimentos das testemunhas A..., N... e G..., como objectivos e claros; e o Tribunal da Relação não tem elementos que permitam concluir noutro sentido.
Neste circunstancialismo, pese embora não haja prova directa da prática pela arguida dos factos constantes do ponto n.º 2.1.3, tendo a arguida sido vista a fugir de noite do local onde se encontrava estacionado o veículo da assistente, cuja pintura logo nesse momento surge aos olhos da assistente e da testemunha A... como riscada, não vai contra as regras da experiência comum e a livre apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, concluir que foi a arguida quem danificou a pintura do veículo da assistente.
Não se detectando qualquer erro de julgamento por parte do Tribunal a quo, mais não resta que manter os factos em causa entre os factos provados e, consequentemente, julgar improcedente esta questão.
Importa, por fim, decidir se em face da prova produzida em audiência de julgamento o Tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo.
O principio “in dubio pro reo” estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido.
O mesmo identifica-se com a presunção de inocência do arguido a que alude o art.32.º, n.º 2 , da Constituição da República Portuguesa e o art.11.º, n.º1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem , e impõe que o julgador valore sempre em favor daquele um non liquet.
O Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse principio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que , face a ele , escolheu a tese desfavorável ao arguido .- Cfr. entre outros , o acórdão do S.T.J. de 2 e Maio de 1996 ( C.J. , ASTJ , ano IV , 1º, pág. 177 ).
Da fundamentação da matéria de facto da douta sentença não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha chegado a qualquer estado de dúvida sobre a prática pela arguida C... dos factos dados como provados, quer a nível das afirmações dirigidas por esta à assistente P... - cuja convicção o Tribunal a quo fez assentar nas declarações da assistente , convergentes com os depoimentos das testemunhas N... e G...- , quer quanto aos danos no veículo da assistente - em que teve em consideração as declarações da assistente, o depoimento da testemunha A... e documento de folhas 104.
Os depoimentos destas testemunhas foram tidas pelo Tribunal a quo como objectivos, isentos e convincentes, como convincente considerou a versão dos factos apresentada pela assistente.
O que resulta da fundamentação de facto e de direito, bem como do dispositivo da sentença, é um estado de certeza do Tribunal recorrido relativamente à prática pela arguida/recorrente dos factos dados como provados.
Está deste modo afastada a violação pelo Tribunal recorrido do principio “in dubio pro reo”.
Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pela arguida C... e manter a douta sentença recorrida.
Custas pela recorrente, fixando em 6 Ucs a taxa de justiça.
*
(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).
*
Coimbra,
Proc. n.º 2912/06.9TALRA.C1