O limite de € 7500 estabelecido no art.105.º, n.º1 do RGIT , na redacção que lhe foi dada pelo art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, não tem aplicação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social.
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos , face às conclusões da motivação do Ministério Público e do assistente a questão a decidir é a seguinte:
- se a alteração introduzida pelo art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, no art.105.º, n.º1 do RGIT, descriminalizando a não entrega total ou parcial, à Administração tributária, de prestação igual ou inferior a € 7500, não é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto no art.107.º, n.º1 do RGIT, pelo que o processo deve prosseguir com a realização da audiência de julgamento..
Passemos ao conhecimento da questão.
O arguido I..., enquanto sócio e gerente da co-arguida “T..., Lda.”, vem acusado pelo Ministério Público de ter pago aos empregados da sociedade as remunerações respeitantes ao período compreendido entre Agosto de 2002 a Junho de 2007 e ter pago as remunerações dos membros dos órgãos estatutários da sociedade durante o mesmo período, bem como ter deduzido às mesmas o montante correspondente às respectivas contribuições para a Segurança Social, no montante global de € 27 372,04, mas não procedeu à sua entrega na Segurança Social nos prazos legalmente estipulados.
Nenhuma das prestações em dívida é superior a € 7500,00.
Mesmo depois do arguido ter sido notificado, por si e em representação da sociedade arguida, para proceder ao pagamento dos valores em dívida e acréscimos nos termos e para os efeitos do art.105.º, n.º 4, al.b) do RGIT, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29/12, não procederam a esse pagamento, pelo que cada um dos arguidos vem acusado da prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos art.s 107.º, n.º1 e 105.º, nº 1 do RGIT e 30.º, n.º2 e 79.º do Código Penal .
A questão em apreciação versa, directamente, com o problema da interpretação da lei.
A interpretação jurídica tem por objecto descobrir, de entre os sentidos possíveis da lei, o seu sentido prevalente, sendo o art.9.º do Código Civil a norma fundamental a proporcionar uma orientação nesta matéria.
A letra da lei é o ponto de partida de toda a interpretação, cabendo-lhe, desde logo, uma função negativa: eliminar tudo quanto não tenha apoio ou correspondência no texto da norma.
A apreensão literal do texto é já interpretação, embora incompleta, pois será sempre necessária uma « tarefa de interligação e valoração, que excede o domínio literal.» Prof. José Oliveira Ascensão , O Direito, Introdução e Teoria Geral, 11.ª edição, Almedina, pág. 392..
Para reconstituir o pensamento legislativo a partir do texto, deve atender-se ainda a elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.
O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo em que se integra a norma a interpretar, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam questões semelhantes ( lugares paralelos); compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretada no ordenamento geral, assim como a sua concordância com o espírito ou a unidade intrínseca do sistema.
O elemento histórico abrange todas as matérias relacionadas com a história do preceito, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.
O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma ( ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e nas finalidades que pretende realizar Prof. Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, trad. do Prof. Manuel de Andrade, 3.ª edição, pág. 138 e seguintes. ; e Prof. José Oliveira Ascensão, ibidem, pág. 377 e seguintes..
Vejamos.
A interpretação da alteração introduzida ao art.105.º, n.º 1 do RGIT pelo art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, está a dividir a jurisprudência.
Enquanto, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 4-3-2009 ( proc. n.º 257/03.5TAVIS.C1), da Relação do Porto, de 25-3-2009 ( 1131/01.5TASTS), de 3-6-2009 ( proc. n.º 0715084, que reproduz um estudo do Ex.mo Desembargador da Relação de Guimarães Dr. Cruz Bucho) e de 25-5-2009 ( proc. n.º 1760/06.0TDPRT) e, da Relação de Guimarães, de 27-04-2009 ( proc. n.º 1304.8TABRG.G1) tomam posição no sentido de que o limite de € 7500 a que alude a nova redacção do art.105.º, n.º 1 do RGIT, introduzida pelo art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, não é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, já os acórdãos da Relação de Lisboa, de 25-2-2008 ( proc. n.º 102/04.4TACLD.L1.3) e da Relação do Porto, de 27-5-2009 ( proc. n.º 343/05.7TAVNF.P1 ) – que se podem consultar in www.dgsi.pt) – defendem que o limite de € 7500 estabelecido no art.105.º, n.º1 do RGIT , na redacção que lhe foi dada pelo art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, tem aplicação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social.
Cremos que é de seguir a posição daqueles que defendem que o limite de € 7500 estabelecido no art.105.º, n.º1 do RGIT , na redacção que lhe foi dada pelo art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, não tem aplicação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social. Esta foi a posição que defendemos já no acórdão de 8 de Julho de 2008, proferido no proc. n.º 590/02.3TAVIS-A.C1, que aqui vamos seguir.
O art.107.º do RGIT , ao abrigo do qual os arguidos I... e “T..., Lda.” estão acusados, estatui o seguinte:
« 1. As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do art.105.º.
2. É aplicável o disposto nos n.ºs 4, 6 e 7 do artigo 105.º.».
Por sua vez o art.105.º do RGIT tinha, à data da prolação da sentença que condenou o arguido ( 2 de Fevereiro de 2008 ), a seguinte redacção:
« 1. Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2. (…)
3. (…).
4. Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5. Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a € 50 000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6. Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder € 2000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável, pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.
7. Para os efeitos do disposto nos números anteriores os valores a considerar são os que , nos termos da legislação aplicável, devam constar da cada declaração a apresentar à administração tributária.».
À data dos factos imputados aos arguidos na acusação do Ministério Público ( Agosto de 2002 a Junho de 2007 ) parece-nos ser pacífico que o crime de abuso de confiança contra a segurança social a que alude o art.107.º, n.º 1 do RGIT , limitando a remissão para as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do art.105.º, do mesmo regime legal, queria apenas aproveitar as penas aqui previstas.
Os elementos constitutivos do crime de abuso de confiança fiscal, previstos no art.105.º, n.º1 do RGIT e do crime de abuso de confiança contra a segurança social, previstos no art.107.º, n.º1 do mesmo Regime eram diversos.
Entendendo-se que eram crimes tributários de natureza diversa, o crime de abuso de confiança contra a segurança social não ia buscar qualquer elemento objectivo ou subjectivo ao art.105.º, n.º1 do RGIT, para o preenchimento do tipo.
Efectivamente, o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social tinha, à data dos factos , autonomia relativamente ao crime de abuso de confiança fiscal.
No crime de abuso de confiança contra a Segurança Social está em causa o desvalor das entidades empregadoras que tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros de órgãos sociais as contribuições legais, não as entregam às instituições de Segurança Social.
As Instituições de Segurança Social são pessoas colectivas de direito público, dotadas de autonomia administrativa, financeira e patrimonial. – cfr. Lei n.º 2/2007, de 16 de Janeiro e DL n.º 214/2007, de 29 de Maio.
Os objectivos do sistema de segurança social, que dentro do orçamento do Estado, tem um orçamento próprio ( art.105.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa), são específicos, resumindo-se , no essencial, à protecção social dos trabalhadores e suas famílias nas situações de falta ou diminuição de capacidade de trabalho , de protecção das pessoas que se encontrem em situação de falta ou diminuição de meios de subsistência, e protecção da família através da compensação de encargos familiares. – Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro.
No crime de abuso de confiança fiscal está em causa a não entrega à Administração Fiscal, pelo devedor tributário, de prestações tributárias, de impostos, que em regra não estão afectos a fins específicos.
O crime de abuso de confiança fiscal pode ser punido como crime simples ( n.º1) ou como crime agravado, em função da entrega da prestação não efectuada ser de valor superior a € 50 000 ( n.º 5).
Correspondentemente, por força da remissão do art.107.º do RGIT, também o crime de abuso de confiança contra a segurança social pode ser punido como crime simples ( n.º1) ou como crime agravado, em função da entrega da prestação não efectuada ser de valor superior a € 50 000 ( n.º 5).
Sendo diferentes os bens jurídicos protegidos, também a inserção sistemática dos crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a segurança social integravam capítulos diferentes: aquele o capitulo III e este o capitulo IV , do Título I da Parte III, do RGIT.
O art.113.º, n.º 1 da Lei n.º 64-A/2008, veio entretanto aditar ao art.105.º, n.º 1 do RGIT um novo elemento respeitante ao valor da prestação tributária, passando este tipo legal a ter seguinte redacção:
« 1. Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.».
A Lei n.º 64-A/2008 não procedeu a qualquer alteração do art.107.º do RGIT.
Uma vez que a Lei n.º 64-A/2008 não alterou o disposto no art.107.º, n.º1 do RGIT, parece-nos medianamente claro que a remissão que este faz para o art.105.º, n.º 1 do RGIT é apenas para as penas aí previstas e nada mais.
Mantendo-se a autonomia e diversa natureza dos crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a segurança social, reflectida na já aludida sistematização dos crimes , não há razão alguma para ir buscar ao n.º1 do art.105 do RGIT , além das penas, o elemento do tipo traduzido no “valor superior a € 7500”.
Ao descriminalizar o abuso de confiança fiscal relativamente à não entrega de prestação tributária de valor igual ou inferior a € 7500, legislador sancionou essa conduta como contra-ordenação ( art.114.º, n.º5 , al. a) do RGIT, na redacção dada pela Lei n.º 64-A/2008).
A entender-se que o limite de € 7500 estabelecido no art.105.º, n.º1 do RGIT , na redacção que lhe foi dada pelo art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, tem aplicação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, a não entrega de contribuições devidas à segurança social não seria punida como crime tributário, nem como contra-ordenação uma vez que nenhuma norma sanciona esta conduta como tal.
Sabendo-se que as contribuições para a Segurança Social que constam de cada declaração a apresentar a esta instituição são frequentemente de valor inferior a € 7 500 – como acontece com todas as declarações apresentadas pelos arguidos – ficaria seriamente comprometida a defesa do bem jurídico tutelado pelo crime de abuso de confiança contra a segurança social e os objectivos do sistema de segurança social.
Sabendo-se que os objectivos do sistema de segurança social são cada vez mais alargados aos cidadãos com dificuldades económicas e que as receitas não param de cair, fruto designadamente da grave crise económica e da baixa natalidade , dificilmente se concebe que o legislador quisesse deixar sem sanção a não entrega de contribuições à segurança Social de valor igual ou inferior a € 7 500.
Entre os crimes de fraude fiscal (art.103.º do RGIT) e os crimes de fraude contra a segurança social (art.106.º do RGIT), nota-se existir também um regime sancionatório mais severo nestes últimos.
Resulta do art.103.º, n.º2 do RGIT, na redacção actual, que lhe foi dada pela Lei n.º 60-A/2005, de 30-12, que os factos previstos no n.º1 não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 15 000. Já constitui crime de fraude contra a segurança social a prática dos factos previstos no art.106.º do RGIT se a vantagem patrimonial ilegítima for de valor superior a € 7 500.
Nenhum elemento histórico é mencionado pelo recorrente, nem o Tribunal da Relação o vislumbra, que permita concluir que o legislador incorreu em lapso ao não operar a modificação do teor do artigo 107.º n.º 1, do RGIT em linha directa com o que fez quanto ao n.º1 do artigo 105.º, do mesmo Regime.
A revogação do n.º6 do art.105.º do RGIT, pelo art.115.º da Lei n.º 64-A/2008, é o resultado da redacção dada ao n.º4, al. b), daquele art.105.º pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, uma vez que esta abrande as prestações não pagas sem referência a qualquer valor.
Não tendo o legislador querido modificar o crime de abuso de confiança contra a segurança social, com a revogação daquele n.º6 do art.105.º do RGIT a remissão do n.º2 do art.107.º do RGIT para aquele n.º6 , torna-se vazia, inútil.
Daí porém não resulta que o legislador tenha querido descriminalizar a não entrega total ou parcial, à Segurança Social de contribuição igual ou inferior a € 7500.
Em suma, o Tribunal da Relação entende que o valor de € 7 500 a que alude o art.105.º, n.º1 do RGIT, na actual redacção, que lhe foi introduzida pelo art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, é um elemento não aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto no art.107.º, n.º1 do RGIT.
Consequentemente, a alteração introduzida pelo art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, ao art.105.º, n.º1 do RGIT, não descriminalizou a não entrega total ou parcial, à segurança social de prestação igual ou inferior a € 7500.
Não estando o crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto no art.107.º, n.º1 do RGIT sujeito aos elementos objectivos e subjectivos do crime de abuso de confiança a que alude o art.105.º, n.º1 do mesmo diploma, impõe-se a revogação do despacho recorrido, que decidiu declarar descriminalizados os crimes pelos quais os arguidos vinham acusados e que determinou, para alem da extinção do procedimento criminal, ainda a extinção da instância civil por inutilidade superveniente da lide.
Revogado o despacho recorrido deve ser proferido pelo Tribunal a quo um outro que, dando seguimento ao processo, designe nova data para a realização da audiência de julgamento.
Assim, procedem os recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo assistente “Instituto de Segurança Social, I.P., Centro Distrital de Viseu”.
Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo assistente “Instituto de Segurança Social, I.P., Centro Distrital de Viseu”, e revogar o douto despacho recorrido, o qual deve ser substituído por um outro, que dando seguimento ao processo, designe nova data para a realização da audiência de julgamento.
Sem custas.
*
(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).
*
Coimbra,