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HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
REPÚDIO DA HERANÇA
ACEITAÇÃO TÁCITA
Sumário
Só há aceitação tácita da herança se esta se deduzir de factos que com toda a probabilidade a revelem.
Texto Integral
Recurso nº 9638/07.4TBMAI-B.P1
Agravo
Requerentes: B… e mulher
C…
Requeridos: D… e Outros
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Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto: I- RELATÓRIO 1. Os requerentes instauraram contra os requeridos, por apenso à acção executiva, a presente habilitação de herdeiros[1] pedindo a sua procedência e que, em consequência, sejam os requeridos (viúva e filhos) julgados habilitados como sucessores do falecido executado E… para, no lugar daquele, prosseguirem os termos da acção executiva.
Após ter suscitado e obtido a declaração de nulidade da sua citação, veio a requerida, supra identificada, a contestar, pedindo a improcedência, quanto a si, da habilitação.
Alega, em resumo, que repudiou a herança aberta por óbito do seu pai, a qual também não aceitou nem expressa nem tacitamente, pelo que não adquiriu a qualidade de herdeira, devendo ser considerada não chamada, com efeitos retroactivos à data da abertura da sucessão. 2. Prosseguindo o processo os seus regulares termos veio a final a ser proferida sentença que julgou todos os requeridos habilitados como únicos e universais herdeiros de E…, a fim de prosseguirem a causa. 3. É desta decisão que, inconformada, a requerida D… vem agravar, pretendendo a revogação da sentença recorrida, julgando-se válido e eficaz o repúdio da herança efectuado pela recorrente. Alegando, conclui:
1. É pacífico que a aceitação da herança é um negócio jurídico unilateral, não receptício e singular, traduzido na vontade do sucessível adquirir, efectivamente, a herança – cfr. Ac. STJ de 25-7-1978, BMJ 279º-184; Espinosa Gomes da Silva, Direito das Sucessões, 1980, pg. 283 – podendo a aceitação ser expressa ou tácita (art. 2056º, n.º 1, do CC);
2. A aceitação é tácita quando o herdeiro pratica algum acto ou facto que necessariamente inculca a intenção de reter a herança, ou de tal natureza que não poderia praticá-lo senão na qualidade de herdeiro; o facto donde se deduz necessariamente a intenção de aceitar a herança há-se ser concludente e inequívoco, no sentido de não deixar dúvidas que, embora não expresso pelo sucessível, foi por ele querido;
3. A declaração tácita de aceitação da herança deve ser analisada à luz do disposto no art. 217º do CC – cf. Acs. STJ de 25-7-1978, BMJ 279-184 e de 18-4-2006, www.dgsi.pt;
4. O comportamento concludente há-de ser aferido por um critério de ordem prática, embora sem desprezar a lógica, isto é, a concludência baseia-se num nexo lógico-experimental, de acordo com "o metro do homem médio" ou da "vida dos negócios", segundo a lição de Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita e o Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, pg. 892;
5. Na aceitação tácita da herança, a lei é especialmente exigente na determinação dos factos donde se deduz a vontade de aceitar – cf. Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, 2ª ed., pg. 29;
6. Não resulta dos autos o menor vislumbre de a recorrente ter praticado qualquer acto donde se possa inferir que se comportou como titular de direitos e obrigações sobre a herança aberta por óbito de seu pai; isto é, os autos não revelam quaisquer actos inequívocos que apontem no sentido de a recorrente ter de algum modo definido a sua posição relativamente à herança, revelando a sua intenção de a aceitar (v. g., ter entrado na posse de algum bem da herança; ter distribuído recordações do de cuius por amigos e familiares; ter procedido à reivindicação de bens de bens ou direitos hereditários; ter-se apropriado de bens da herança para seu uso exclusivo; ter efectuado a cessão de direitos sucessórios; ter procedido à venda de bens da herança, etc.);
7. Bem pelo contrário, os autos demonstram que a recorrente praticou actos processuais anteriores à data em que outorgou a escritura pública de repúdio, e que indicam, claramente, um comportamento concludente de não aceitação da herança; é manifestamente revelador da sua intenção de não querer aceitar o chamamento à herança, o facto de, em 11-7-2011, ter arguido nulidade, por falta de citação, para contestar o incidente de habilitação de herdeiros;
8. O repúdio da herança foi efectuado pela escritura pública de fls. …, uma vez que essa devia ser a forma a observar, considerando a natureza de alguns bens do património hereditário de de cuius (ut art. 2063º, do CC);
9. Nos negócios formais, é necessário que os factos concludentes da declaração tácita estejam revestidos de forma legal – cf. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pgs. 425 e ss.; Ac. STJ de 25-3-1996, CJ (STJ), 1996, t.1-155;
10. O facto a partir do qual o tribunal a quo inferiu a verificação da aceitação tácita foi o mero decurso do tempo; não foi, por conseguinte, uma declaração formalmente emitida pela recorrente, circunstância decisiva e impeditiva daquela conclusão;
11. Nos termos do disposto no art. 2059º, n.º 1, do CC, o decurso do tempo só releva juridicamente para efeitos de caducidade do direito de aceitar a herança pelo sucessível a ela chamado, e conta-se, não a partir do momento da morte do autor da sucessão, mas da data em que aquele teve efectivo conhecimento do decesso;
12. O decurso do prazo de 10 anos foi entendido pelo legislador como suficiente, justo e razoável para o exercício do direito de aceitar, ou repudiar, a herança, pelo que o decurso de um prazo menor entre a data do óbito e aquela em que foi repudiada a herança – cerca de 5 anos no caso sub iuditio – não tem nenhuma relevância, muito menos com a virtualidade de, desacompanhado de qualquer outro facto ou circunstância concludente, fazer presumir a aceitação tácita da herança pela recorrente;
13. Ao contrário da estrutura do fenómeno sucessório aceite pelo direito alemão, o direito português assenta sobre a necessidade e a liberdade do acto de aceitação do chamado, pelo que a herança não se presume aceite no caso de não ter sido repudiada dentro de prazos curtos – vd., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. VI, 1998, pg. 94;
14. Consoante se decidiu lapidarmente num caso análogo pelo Ac. STJ de25-7-1978, “[…] da outorga já tardia da escritura de repúdio, em seguida à citação do recorrente para o incidente de habilitação, carecem de qualquer significado positivo porque o n.º 1 do artigo 2059.º do Código Civil só faz caducar o direito de aceitação da herança volvidos dez anos sobre o conhecimento, por parte do sucessível, da sua chamada à sucessão.” – in, BMJ 279-188, sendo nosso o sublinhado;
15. Mesmo depois da habilitação, o habilitado que a não contestou pode repudiar a herança (vd. Acs. RC de 11-5-2010 e de 2-2-2010, ambos em www.dgsi.pt; Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. 2, pg. 127; Santos Silveira, Questões Subsequentes em Processo Civil, 1964, pg. 344), sendo certo que “só depois de o recorrente ter sido citado para a habilitação é que terá tomado conhecimento dos encargos hereditários e da conveniência de repudiar a herança.” (Ac. STJ de 25-7-1978, BMJ 279-188; cf., em sentido idêntico, Ac. STJ de 8-7-1975, BMJ 249-502);
16. Se havia necessidade de evitar que o decurso do tempo fosse impeditivo da definição da posição dos sucessíveis e da correspondente titularidade da herança jacente, podia o Ministério Público ou qualquer interessado (leia-se, no caso que nos ocupa, os exequentes credores do de cuius) lançar mão do processo cominatório da aceitação ou repúdio da herança, previsto pelos arts. 2049º, n.º 1, do CC e 1467º e 1468º, do CPC – cf., neste sentido, Pereira Coelho, Sucessões, 2ª ed., pg. 224;
17. E, então, notificados os sucessíveis para, no prazo fixado, declarar se aceitam ou repudiam a herança (actio interrogatoria), é que a falta de declaração fazia presumir a aceitação tácita (vd. Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, 2ª ed., pgs. 13 e 14);
18. A sentença recorrida violou as disposições legais supra citadas. 4. Não foram apresentadas contra-alegações. 5. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II- FUNDAMENTAÇÃO 1. De facto
Embora sem formalmente a enunciar como matéria factual provada, a decisão recorrida tomou em consideração diversa factualidade, documentalmente comprovada que, no relevante para o presente recurso, pode assim enunciar-se:
a) E… faleceu em 17.07.2006, no estado de casado com F…;
b) D… nasceu em 15.06.80 e é filha de E… e F…;
c) Em 11.07.2011 a requerida D… veio aos autos arguir a sua falta de citação, nulidade que foi declarada pelo despacho de fls. 117/8;
d) Em 30.09.2011 a requerida D… celebrou escritura em Cartório Notarial na qual “repudia a herança que não aceitou, nem expressa nem tacitamente, a que foi chamada por óbito de seu pai, E… …”.
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2. De direito
Sabe-se que é pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação, como decorre do estatuído nos artºs 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil[2].
Pese embora a extensão daquelas conclusões, face às mesmas e à decisão recorrida, a questão que importa dilucidar e resolver é apenas uma e pode equacionar-se da seguinte forma:
Não resulta dos autos qualquer acto ou comportamento da requerida donde se possa inferir que se comportou como titular de direitos e obrigações sobre a herança aberta por óbito de seu pai, pelo que não pode configurar-se ter ocorrido uma aceitação tácita da herança, tendo antes ocorrido o repúdio desta?
Vejamos.
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A decisão recorrida, partindo da data do óbito do pai da requerida, 17.07.2006, e do facto de a escritura publica de repúdio da herança “apenas” ter sido celebrada em 30.09.2011, ou seja, “mais de cinco anos após”, conclui que “tal actuação traduz um comportamento que, interpretado segundo a boa fé e a referência aos usos sociais, deixa entender a vontade de reter a herança, configurando uma aceitação tácita da mesma, conforme ao disposto no art. 2056º, nº 1, do Código Civil[3]”. Face a essa aceitação tácita da herança considera a decisão recorrida ineficaz o repúdio da herança, atento o estatuído no art.º 2061º, concluindo depois pela improcedência da oposição da requerida.
Ora, analisada esta argumentação e os pertinentes dispositivos legais, não cremos que a decisão recorrida tenha procedido à melhor aplicação do direito, como a seguir se irá procurar evidenciar.
Começamos por salientar que a lei não estabelece prazo nem para a declaração de repúdio da herança, nem para a declaração da sua aceitação. Apenas estabelece, no art.º 2059º, um prazo de caducidade do direito de aceitar a herança, fixando-o em dez anos, a contar do momento em que o sucessível teve conhecimento de ter sido chamado à sucessão.
Não pode ver-se neste sistema legal qualquer dificuldade no regime sucessório e na definição dos sucessíveis, nem sequer para os credores, pois “qualquer interessado” pode usar do processo especial de aceitação ou repúdio de herança jacente, nos termos do art.º 2049º, conjugado com os artºs 1467º e 1468º, estes do CPC e, assim, ver definitivamente esclarecido se determinado sucessível aceita ou não a condição de herdeiro.
Consequentemente, no âmbito daquele prazo de dez anos, o sucessível pode exercer o seu direito de aceitar a herança, expressamente ou tacitamente, assim como pode repudiar a mesma. A menos que já tenha aceite a herança, ainda que tacitamente, pois nesse caso, face à irrevogabilidade da aceitação (art.º 2061º), o repudio seria ineficaz, como se argumentou na decisão recorrida.
Afigura-se-nos, no entanto, que o pressuposto dessa argumentação não tem fundamento pois, como se disse, o mero decurso do tempo após o falecimento do pai da requerida não pode, por si só, desacompanhado de qualquer outro facto, permitir a ilação de que houve aceitação tácita da herança. Com efeito, não definindo o art.º 2056º o que é aceitação tácita da herança, pois só o faz para a aceitação expressa, e sendo a aceitação da herança um negócio jurídico, temos que socorrer-nos das regras gerais sobre a declaração negocial para averiguar do valor do silêncio e dos termos ou circunstâncias que permitam concluir que estarmos perante uma declaração tácita.
Ora o silêncio não vale como declaração negocial, nesta matéria da aceitação da herança, já que esse valor não lhe está “atribuído por lei, uso ou convenção” (art.º 218º). Assim, só poderemos estar perante uma declaração tácita da herança se esta “se deduz[ir] de factos que, com toda a probabilidade, a revelam” (art.º 217º nº 1)[4].
Debruçando-nos sobre o caso em análise constatamos porém que a decisão recorrida não aponta um único facto concreto (qualquer um dos enunciados na conclusão 6ª das alegações ou outros, v.g., ter apresentado relação de bens perante as finanças ou pago imposto sucessório) que, revele, com toda a probabilidade, essa declaração tácita de aceitação da herança e o mero silêncio ou decurso do tempo, entre o óbito e a escritura de repúdio, é por si só insuficiente, à luz dos preceitos citados, para ter aquele efeito, como se disse.
Por outro lado, não tem fundamento a invocação de usos sociais ou o princípio da boa fé, para daí retirar a conclusão, como se faz na decisão recorrida, de isso deixar antever a vontade de “reter a herança”. Na verdade, a decisão recorrida não concretiza quais seriam esses usos sociais que teriam sido observados pela recorrente, para dai se extrair que a observância concreta desse uso social faz pressupor uma aceitação tácita da herança. Não constitui tal o silêncio durante cerca de cinco anos. Acresce que também não se concretiza qualquer comportamento anterior que a recorrente teria adoptado, relativamente à herança, que se possa qualificar como contrário à sua posterior declaração de repúdio da mesma e, consequentemente, seja contrário aos princípios da boa fé.
Nesta medida não há qualquer obstáculo - nomeadamente o invocado e previsto no art.º 2061º, pois não havendo aceitação não se coloca a questão da irrevogabilidade dessa aceitação – a considerar válida a declaração de repúdio da herança efectuada pela recorrente, que foi feita antes de caducar esse direito e pela forma legal, com a consequência de retroacção dos efeitos desse repúdio ao momento de abertura da sucessão, considerando-se assim como não chamada à herança a requerida, ora recorrente (artºs 2062º e 2063º)).
Nestes termos, não sendo a requerida e ora recorrente sucessível do executado falecido, a consequência necessária é a improcedência da habilitação de herdeiros, no que a si respeita, pois não estão preenchidos os pressupostos legais para a julgar habilitada como sucessor do falecido – cfr. artºs 371º e 374º, ambos do CPC.
À luz deste enquadramento normativo e respectiva teleologia, não pode pois subsistir o entendimento sustentado pelo tribunal "a quo", procedendo as razões que enformam a reacção da recorrente.
Assim e em conclusão, é de responder positivamente à questão supra equacionada e, na procedência das aliás doutas conclusões do recurso, impõe-se revogar a decisão recorrida, no segmento respeitante à recorrente.
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III- DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que integram a 1ª Secção Cível deste Tribunal em julgar procedente o agravo e, consequentemente, revogam parcialmente a decisão recorrida, julgando a habilitação improcedente quanto à requerida D….
Custas do recurso a cargo dos recorridos.
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Porto, 29-01-2013
António Francisco Martins
Anabela Dias da Silva
Maria do Carmo Domingues
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[1] Proc. nº 9638/07.4TBMAI-B do Juízo de Execução do Tribunal Judicial da Maia
[2] Adiante designado abreviadamente de CPC.
[3] Diploma legal a que pertencerão os preceitos a seguir citados sem qualquer outra indicação.
[4] Neste sentido cfr. o acórdão do STJ de 25.07.78, in BMJ 279, pág. 184, citado pela recorrente