DIFAMAÇÃO
PROVA DA VERDADE
Sumário

1. É susceptível de ofender a honra e consideração a narração inexacta de factos consignada em livro de reclamações.
2. Expressões como “arrogante e prepotente” são juízos de valor e não factos cuja prova da verdade se possa realizar.

Texto Integral

Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

Relatório

Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Gouveia, sob acusação do Ministério Público, foi submetida a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, a arguida
T…, divorciada, desempregada, natural de Angola, residente em Q…, Gouveia.
imputando-se-lhe a prática dos factos descritos na acusação pública de fls. 29 a 32, pelos quais teria cometido um crime de difamação agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 180.º, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea 1), todos do Código Penal.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 17 de Abril de 2009, decidiu:
- julgar a acusação procedente, por provada e, consequentemente, condenar a arguida T…, como autora material, na forma consumada, de um crime de difamação agravado na pessoa de P..., previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 180.º, n.º 1 e 184.º, com referência ao artigo 132.º, alínea 1), ambos do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 8 (oito euros), ou seja, na multa total de € 560 (quinhentos e sessenta euros).

Inconformada com a douta sentença dela interpôs recurso a arguida T…, concluindo a sua motivação do modo seguinte:
1) A conduta da recorrente não é subsumível ao disposto no art.180.º do C.Penal.
2) As expressões que utilizou inseriam-se num direito legítimo de expressão, crítica e indignação pela actuação da autoridade.
3) Não tinha intenção de ofender a honra e consideração pessoal de nenhum agente.
4) Mas antes a de manifestar, enquanto cidadã educada, correcta, boa filha e boa mãe e acima de tudo carente de protecção das autoridades policiais, o seu profundo desagrado com uma postura ou conduta profissional da GNR e seus agentes.
5) O Tribunal recorrido interpretou incorrectamente o n.º 1 e não observou o n.º 2 do art. 180.º, bem como o art. 37.º da Constituição Portuguesa.

O Ministério Público na Comarca de Gouveia respondeu ao recurso interposto pela arguida T…, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da decisão recorrida.

O Ex.mo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que a sentença não merece qualquer censura e que deve improceder o recurso da arguida.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

A matéria de facto apurada e respectiva motivação constante da sentença recorrida é a seguinte:
Factos provados
1) No dia 12 de Outubro de 2008, cerca das 15.00/15.10 horas, a arguida solicitou telefonicamente a comparência da GNR na Q…, Gouveia, alegando designadamente que se encontrava um rebanho de ovinos e caprinos dentro da sua propriedade.
2) Em consequência do que, seguidamente, se deslocou para esse local uma patrulha da GNR de Gouveia, composta por P..., , e pelos soldados, BF..., e BR..., todos devidamente uniformizados.
3) Chegados ao local, a arguida, do interior do prédio em que se encontrava, dirigiu-se àquela patrulha, referindo-lhe que quando chegara à sua propriedade encontravam-se algumas ovelhas no seu interior e que tinham causado prejuízos em algumas árvores, solicitando-lhe que fosse verificar os danos dentro da sua propriedade.
4) Sendo que, nessa altura, os elementos que compunham a patrulha da GNR, comandada pelo indicado soldado P..., tinham parado e encontravam-se do lado de fora do prédio em causa, que se encontrava vedado, com rede ovelheira, com cerca de um metro de altura.
5) Em face da alegação da arguida e não tendo detectado quaisquer danos ou derrube na vedação, o indicado agente da GNR, P..., enquanto comandante da patrulha, informou-a que “se estava perante um crime de dano por negligência e que teria que apresentar queixa para Tribunal”.
6) Então, a arguida, dirigindo-se-lhe, disse que “a patrulha andava ali para passear e não para resolver os problemas dos cidadãos e que sempre pensou que a patrulha a ser chamada ao local, pelo menos, poderia meter um cagaço ao pastor para que o mesmo futuramente não deixasse que as ovelhas entrassem novamente na sua propriedade”.
7) Sendo seguidamente informada que a patrulha não o poderia fazer, que o serviço da Guarda tinha que seguir pelos trâmites legais; que, a seguir, iriam proceder à identificação do pastor e do proprietário do rebanho para que posteriormente, se a mesma pretendesse, apresentasse queixa e que a ocorrência ficaria registada no Posto da GNR.
8) A arguida, não se conformando com tais informações, referiu ao mencionado soldado P... que uma vez que a patrulha não podia fazer nada, se ia deslocar ao Posto para falar com o Comandante, sendo então informada por este soldado que o Comandante do Posto não se encontrava ao serviço, mas que o podia fazer no dia seguinte a partir das 9 horas.
9) A arguida solicitou ainda ao soldado P... a sua identificação que o mesmo lhe forneceu e que a mesma não quis verificar.
10) No dia 13 de Outubro de 2008, cerca das 14 horas, nas instalações do Posto da GNR de Gouveia, onde a mesma se havia deslocado, a arguida pediu o livro de reclamações («livro amarelo»), que lhe foi fornecido.
11) Então, referindo-se aos factos do dia anterior e à intervenção da Patrulha da GNR e, designadamente, à do indicado soldado P..., escreveu naquele livro, pelo seu próprio punho, a reclamação de fls. 13 e 14, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido, a fim de, nos termos da lei, ser enviada à Administração Pública e ao Gabinete do Ministro da Administração Interna.
12) Nessa reclamação a arguida, depois de descrever as circunstâncias de tempo e de lugar em que solicitara a intervenção da GNR no local, escreveu que: “ Às 15 horas chegou o carro patrulha c/ três elementos. Sem que saíssem do carro perguntaram o que se passava. Expliquei o sucedido e pedi que fossem verificadas as árvores comidas pelos animais. Então o GNR que estava sentado ao lado do condutor saiu do carro e disse-me que não tinha que verificar as árvores porque «Eu não vi, não sei se foram as ovelhas que as comeram, ou a senhora que as cortou». Pedi-lhe, que identificasse o pastor, respondeu «Não temos nada c/ isso, o pastor não tem que ser identificado, saiba quem é o proprietário, e apresente queixa, mas primeiro arranje advogado». Perante esta atitude mal educada, arrogante e prepotente que em nada condiz com o Código de Honra da GNR, pedi-lhe que se identificasse ao qual ele respondeu «Não tenho que o fazer». Disse-lhe então que iria de imediato ao posto, falar com o Comandante tendo mais uma vez respondido mal educadamente «Ele não trabalha aos domingos». Os outros dois elementos mantiveram-se sempre silenciosos.
13) Agiu a arguida livre, deliberada e conscientemente, bem querendo e sabendo que as expressões por si escritas na dita reclamação, dirigidas a entidades públicas e referentes a P..., na qualidade de agente da GNR e por causa do exercício dessas suas funções, imputando-lhe factos e formulando sobre ele juízos de valor, eram ofensivas da honra e consideração deste e, não obstante, não se absteve de actuar.
14) Tinha ainda perfeito conhecimento de que a sua conduta era punida criminalmente.
Provou-se ainda que:
15) A arguida é divorciada, mas vive com o seu ex-marido em casa dos seus pais.
16) O seu ex-marido é proprietário de um laboratório de próteses.
17) A arguida tem a seu cargo um filho com 21 anos de idade que é estudante de Fisioterapia.
18) A arguida tem plantações de várias árvores numa propriedade com a área de cinco hectares.
19) A arguida tem como habilitações literárias o curso superior de Relações Públicas.
20) A arguida é considerada como pessoa educada, correcta, boa filha, boa mãe e boa esposa.
21) A arguida não tem antecedentes criminais.
Factos não provados
Da discussão da causa, com relevância para a sua decisão, não resultaram provados quaisquer outros factos, designadamente os seguintes:
a) Que o militar da GNR que estava sentado ao lado do condutor, ou seja, o soldado P..., tenha dito que não tinha que verificar as árvores porque não sabia se foram as ovelhas que as comeram, ou a arguida que as cortara;
b) Que aquele militar tenha dito: «Não temos nada c/ isso, o pastor não tem q ser identificado, saiba quem é o proprietário, e apresente queixa, mas primeiro arranje advogado» que “não tenho que o fazer” (identificar) e que “só via ovelhas”.
Convicção do Tribunal
Provas que serviram para formara convicção do tribunal-
O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada na análise crítica do conjunto da prova produzida, ponderada segundo as regras da lógica e da experiência, da forma que seguidamente se descreve.
Para prova dos factos enunciados sob o artigo 1) a 9) tiveram-se em conta as declarações dos militares da GNR P..., BF... e BR..., que confirmaram que receberam uma comunicação para se deslocarem ao local por causa de um rebanho de ovinos e caprinos que se encontrava no interior da propriedade da arguida; que na sequência dessa comunicação deslocaram-se ao local, na viatura da GNR, devidamente uniformizados e no exercício das suas funções; depois do soldado P... ter perguntado à arguida, que se encontrava no interior da sua propriedade, se tinha sido a mesma que tinha chamado a GNR, saíram da viatura. Não viram qualquer sinal de ter sido derrubada ou danificada a “rede ovelheira” existente na propriedade da arguida, com cerca de 1m de altura, nem qualquer árvore derrubada. Nessa altura a arguida referiu-lhes que queria que pregassem um cagaço ao pastor, para evitar que o rebanho voltasse a entrar na sua propriedade, foi então que lhe foi explicado pelo soldado P... que não era essa a função da GNR, que iriam proceder à identificação do pastor e que então poderia apresentar queixa contra o mesmo pela prática do “crime de dano por negligência”, para o que dispunha do prazo de 180 dias. Então a arguida não satisfeita com tal resposta, referiu que pensava que a patrulha estaria ali para zelar pelos interesses dos cidadãos, mas que só andavam para passear, solicitando a identificação do mencionado militar P..., referindo que iria falar com o Comandante do Posto, tendo sido informado que o mesmo só estaria no posto no dia seguinte. Depois deste militar ter exibido a sua identificação, a arguida sem ter verificado a mesma, abandonou o local numa “moto-quatro”, referindo que já não era preciso e que o mesmo se identificaria perante o Comandante do Posto.
O depoimento das testemunhas revelou-se absolutamente isento, desinteressado, sério e logrou convencer.
Do seu depoimento só resultou a existência de lapso quanto ao período do dia em que aconteceram os factos. Porém, tal lapso não põe em causa a credibilidade do seu depoimento, não se tendo vislumbrado qualquer motivo para prestarem um depoimento falso.
Já a versão apresentada pela arguida ao negar que tenha dito que pretendia que pregassem um "cagaço ao pastor" e ao referir que aquele militar se negou a verificar os danos, com o argumento de que não era testemunha ou que não sabia se os mesmos tinham sido causados pela arguida; que se negou a identificar o pastor; que lhe referiu que teria que saber quem era o proprietário das ovelhas e que teria que arranjar testemunhas, ou que se tenha rido, referindo que só via ovelhas, não se mostrou credível e foi contrariada de forma clara pelos depoimentos daqueles militares da GNR que, como se referiu, se afiguraram credíveis e desinteressados, não surgindo no processo qualquer indício de que pretenderam falsamente prejudicar a arguida ou beneficiar quem quer que seja, antes as suas declarações revelaram-se insuspeitas, ficando a certeza de que estavam a falar a verdade e a relatar as expressões proferidas pela arguida e que esta, no seu exercício do direito de defesa, não quis assumir em audiência de julgamento.
Acresce que, a versão daqueles militares da GNR acaba por ser confirmada pelo relatório da ocorrência junto aos autos a fls. 69 onde se verifica que foi identificado o pastor e o proprietário do rebanho.
Finalmente, o depoimento da testemunha FO… não assumiu qualquer relevo para os factos em causa nos autos, já que não assistiu aos mesmos.
Do teor da reclamação de fls. 13 a 14 foi possível fixar os factos n.ºs 10 a 12, conjugadas com o teor das declarações da arguida que confessou ter sido a subscritora daquela reclamação, cujo conteúdo reafirmou em audiência de julgamento.
Para prova dos elementos subjectivos considerou-se o encadeamento sequencial e lógico dos restantes factos provados conjugados com as regras da experiência, sendo certo que, a nosso ver, quem escreve uma reclamação com o teor da que se encontra junta a fls. 13 a 14 tem de saber que ofende a honra e consideração alheia, actuando com esse propósito, já que a arguida não se limita a relatar os factos (que também, como se viu, não correspondem à verdade), uma vez que adjectiva e formula juízos de valor sobre o comportamento do participante, que objectivamente são ofensivos da sua honra, dignidade e consideração.
No que respeita às condições pessoais, familiares e socio-económicas da arguida, o tribunal já não vislumbrou motivos para não fazer fé nas sua declarações, conjugadas com o depoimento das testemunhas AA… e ME…, as quais, de forma convincente, abonaram o comportamento da arguida.
Finalmente, o tribunal baseou-se no certificado do registo criminal junto aos autos a fls. 57 para prova da ausência de antecedentes criminais.
Quanto aos factos não provados a convicção do tribunal resulta da falta ou insuficiência de prova, sendo certo que das fotografias juntas a fls. 58 nada de relevante se retira, designadamente quanto à hora em que foi estabelecida a chamada, desde logo porque a hora que se encontra registada no telemóvel pode não coincidir com a hora legal; bem como quanto à existência de qualquer dano.
Finalmente, como se referiu, da prova produzida ficou afastada a versão da arguida.

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos , face às conclusões da motivação da arguida T… a questão a decidir é a seguinte:
- se a sentença recorrida violou o disposto no art.180.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal e no art.37.º da C.R.P., uma vez que as expressões utilizadas pela arguida inserem-se num direito legítimo de expressão e crítica pela actuação da autoridade e a arguida não tinha intenção de ofender a honra e consideração de nenhum agente.
Passemos ao conhecimento da questão.
O crime de difamação, p. e p. pelo art.180.º do Código Penal, tem a seguinte redacção :
« 1. Quem , dirigindo-se a terceiro , imputar a outra pessoa , mesmo sob a forma de suspeita , um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo , é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
2. A conduta não é punível quando :
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
3. Sem prejuízo do disposto nas alíneas b) , c) e d) do n.º2 do art.31.º o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar de imputação de facto relativo à intimidade da vida provada ou familiar.
4. A boa fé referida na alínea b) do n.º2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação , que as circunstâncias do caso impunham , sobre a verdade da imputação.» .
A honra ou consideração, a que alude o ar.180.º do Código Penal , consiste num bem jurídico complexo que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo , radicado na sua dignidade , quer a própria reputação ou consideração exterior .
Se a norma diz claramente que difamar mais não é que imputar a outra pessoa um facto ou formular sobre ela um juízo , ofensivos da sua honra e consideração , também se vem entendendo que nem todo o facto ou juízo que envergonha e perturba ou humilha , cabem na previsão do art.180.º do Código Penal .
A conduta pode ser reprovável em termos éticos , profissionais ou outros , mas não o ser em termos penais. Existem margens de tolerância conferidas pela liberdade de expressão , que compreende não só a liberdade de pensamento, como a liberdade de exteriorização de opiniões e juízos .
É o que decorre do art.37.º , n.º1 da Constituição da República Portuguesa , quando preceitua que « todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra , pela imagem ou por qualquer outro meio...».
Nas sociedades democráticas e abertas , como aquela em que vivemos , o direito à critica é um dos mais importantes desdobramentos da liberdade de expressão .
O direito à liberdade de expressão e critica tem limites, como decorre do próprio n.º 3 do mesmo art.37.º da C.R.P , quando estabelece que « as infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal...».
Nos termos do art.31.º , n.º 2 , al. b) do Código Penal , incluído na Parte Geral , não é ilícito o facto praticado no exercício de um direito.
Há pois que conciliar o direito à honra e consideração com o direito à critica, pois um e outro , pese embora sejam direitos fundamentais , não são direitos absolutos , ilimitados .
Em matéria de direitos fundamentais deve atender-se ao princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade , segundo o qual se deve procurar obter a harmonização ou concordância prática dos bens em colisão , a sua optimização , traduzida numa mútua compressão por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível .
Até onde vai o exercício do direito e quando passa ele a ser ilegítimo ?
O art.334.º do Código Civil permite-nos perceber até aonde vai o exercício de um direito e quando ele passa a ser ilegítimo , ao estatuir que « é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé , pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.» .
Acompanhando o acórdão da Relação de Coimbra de 23 de Abril de 1998 ( C.J. ano XXIII, 2º , pág. 64 e seguintes ) diremos que « Há um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros . (...). Do elenco desses limites ou normas de conduta fazem parte ( regras ) que estabelecem a “obrigação e o dever” de cada cidadão se comportar relativamente aos demais com um mínimo de respeito moral, cívico e social , mínimo esse de respeito que não se confunde , porém , com educação ou cortesia , pelo que os comportamentos indelicados , e mesmo boçais , não fazem parte daquele mínimo de respeito , consabido que o direito penal , neste particular , não deve nem pode proteger as pessoas face a meras impertinências.» .
Tal interpretação está de acordo com o princípio do mínimo de intervenção do aparelho sancionatório do Estado , que subjazer ao direito penal .
E deste principio não podemos esquecer-nos na determinação dos elementos objectivos previsto no art.180.º do Código Penal .
Para a correcta determinação dos elementos objectivos do tipo importa atender ao contexto em que os factos ou juízos pretensamente atentatórios da “honra ou consideração” são produzidos.
Escreve Cuello Calon , que para apreciar se os factos , palavras e escritos são injuriosos será de ter em conta os antecedentes do facto , o lugar , ocasião , qualidade , cultura e relações entre ofendido e agente , de modo que factos , palavras e escritos que em determinados casos ou circunstâncias se reputam gravemente injuriosos , podem noutros não se considerar ofensivos ou tão somente constitutivos de injúria leve .- Cfr. “Derecho Penal , Parte Especial” , pág. 651.

Também o Prof. José Faria Costa alerta para que « o cerne da determinação dos elementos objectivos se tem sempre de fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização . Reside , pois , aqui , um dos elementos mais importantes para , repete-se , a correcta determinação dos elementos objectivos do tipo.». "Comentário Conimbricence ao Código Penal" , Tomo I , pág. 612. No mesmo sentido , ainda , cfr. , entre outros , o Ac. Rel. de Coimbra , de 5-6-2002 , proc. n.º 1480/02 , in WWW.dgsi.pt..
A conduta não será punível quando a imputação for feita para realizar interesses legítimos e o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira, sendo que a boa fé exige o cumprimento do dever de informação.

Importa acentuar que existe um interesse real e efectivo em distinguir a imputação dum facto da formulação de um juízo sobre a honra e consideração do sujeito passivo , pois a causa de exclusão da ilicitude a que se referem os n.ºs 2 e 3 do art.180.º do Código Penal diz apenas respeito à imputação de factos.

A “exceptio veritatis” , como causa de exclusão da ilicitude prevista no art.180.º, n.ºs 2 e 3 do Código Penal , tem lugar através da prova dos factos imputados, não se aplicando à formulação de juízos ofensivos. – Cfr. Desembargador António Oliveira Mendes , “ O direito à honra e a sua tutela Penal”, Almedina , 1996, páginas 62 a 64 , e Cons. Leal-Henriques e Simas Santos, “ Código Penal” , 2º Vol., 2ª edição, Rei dos Livros, pág.319 , e acórdão da Relação de Coimbra, de 23 de Abril de 1998, CJ, ano XXIII, 2º, pág. 64.

O Prof. Costa Andrade, na sua obra “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal” ( Coimbra Editora, 1996 ), defende que a redução do universo de práticas jornalísticas puníveis a título de atentados à inviolabilidade pessoal, reclamada por razões de política criminal e exigências de justiça material pode alcançar-se através do estreitamento dos “tipos-incriminadores”, sem necessidade de alargamento dos “tipos-justificadores”.

Dando maior relevo ao estreitamento do tipo-incriminador , o Prof. Costa Andrade cita algumas expressões particularmente paradigmáticas de falta de tipicidade, intimamente associadas à liberdade de imprensa, defendendo, nomeadamente, que “os juízos de apreciação e valoração crítica vertidos sobre realizações cientificas, académicas, artísticas , profissionais, etc. ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo (…), na medida em que não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva – isto é : enquanto a valoração e censura criticas se atêm exclusivamente às obras, realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente às pessoas dos seus autores ou criadores – (…) caem fora da tipicidade de incriminações como a Difamação.”. Tais considerações valem “ para os actos da administração pública, as sentenças e despachos dos juízes, as promoções do ministério público, as decisões e o desempenho político de órgãos de soberania como o Governo ou o Parlamento.”.

No entanto, não deixa de dizer que se deve excluir a atipicidade relativamente a críticas caluniosas, bem como a juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar e, bem assim, em todas as situações em que os juízos negativos sobre o visado não têm qualquer conexão com a matéria em discussão – cfr. páginas 218 a 267.

Pese embora nos pareça que face ao art.180.º do Código Penal é na ilicitude que se decide em termos privilegiados o que é permitido ou proibido nos conflitos sociais, e não propriamente no tipo, que desempenha essencialmente uma função de garantia, de realização do princípio “ nullum crimen sine lege”, apreciaremos à luz de todos os princípios e definições acima expostos a conduta da arguida T….

A arguida/recorrente defende que a sua conduta é atípica, para efeitos do disposto no art.180.º do Código Penal, porquanto actuou no exercício de um direito de liberdade de expressão, de crítica e de protesto.

Alega que como reclamante começou por expor, como intróito da reclamação, o que lhe havia sucedido, pouco interessando que nestes autos se não tenha apurado essa versão introdutória, já que as únicas expressões ou factos alegadamente ofensivas da honra que constavam da acusação foram “ perante esta atitude mal educada, arrogante e prepotente que em nada condiz com o código de honra da GNR.”.

Apenas visou criticar de forma objectiva uma actuação do ofendido P..., não lhe passando pela cabeça que criticando a sua atitude pudesse ofender a sua honorabilidade.
Em favor desta sua posição indica o acórdão do STJ de 7-3-2007, proferido no processo n.º 07P440 e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18-2-2009, proferido no processo n.º 617/06.0TAPBL.C1 (www.dgsi.pt) , que a este propósito seguem a lição do Prof. Costa Andrade.
Vejamos.
Antes do mais importa deixar claro que a recorrente T… não impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto, tendo mesmo mencionado no art.3.º da motivação do recurso que “ não se porá em causa a matéria de facto”.
Deste modo, constando do ponto n.º 13 dos factos dados como provados na sentença recorrida que a arguida T… escreveu as expressões que constam no livro de reclamações, bem sabendo que as mesmas eram ofensivas da honra e consideração de P... e mesmo assim quis proferi-las, não tem razão de ser a alegação da recorrente de que “ nunca quis ou lhe passou pela cabeça que criticando a atitude, pudesse ofender a honorabilidade do senhor agente.”.
A propósito da atitude do soldado da GNR P... , deve realçar-se aqui que a arguida T… escreveu no livro de reclamações que este soldado lhe disse que não tinha que verificar as árvores porque «Eu não vi, não sei se foram as ovelhas que as comeram, ou a senhora que as cortou» e que pedindo-lhe que identificasse o pastor, respondeu «Não temos nada c/ isso, o pastor não tem que ser identificado, saiba quem é o proprietário, e apresente queixa, mas primeiro arranje advogado». Mais escreveu a arguida , que perante esta atitude mal educada, arrogante e prepotente que em nada condiz com o Código de Honra da GNR, pedi-lhe que se identificasse ao qual ele respondeu «Não tenho que o fazer». Disse-lhe então que iria de imediato ao posto, falar com o Comandante tendo mais uma vez respondido mal educadamente «Ele não trabalha aos domingos».
Como já atrás se mencionou um dos elementos mais importantes para a correcta determinação dos elementos objectivos do tipo é a contextualização em que os factos ou juízos pretensamente atentatórios da “honra ou consideração” são produzidos; por outro lado, a veracidade dos factos não é irrelevante, como defende a arguida, seja a nível de atipicidade, seja de causa de exclusão da ilicitude.
No caso em apreciação, não se provou que o soldado P... tenha dito que não tinha que verificar as árvores porque não sabia se foram as ovelhas que as comeram, ou a arguida que as cortara e que «Não temos nada com isso, o pastor não tem que ser identificado, saiba quem é o proprietário, e apresente queixa, mas primeiro arranje advogado» que “não tenho que o fazer” (identificar) e que “só via ovelhas”.
A versão dos factos dada como provada, sobre o que realmente se passou no dia 12 de Outubro de 2008, cerca das 15.00/15.10 horas, é muito diferente daquela que foi descrita pela arguida no livro de reclamações.
O que resultou provado é que o soldado P... não detectou quaisquer danos ou derrube na vedação e informou a arguida T… que estaria perante um crime de dano por negligência, pelo que tinha de apresentar “queixa para Tribunal”.
Perante a afirmação da arguida, de que “ a patrulha andava ali para passear e não para resolver os problemas dos cidadãos e que sempre pensou que a patrulha a ser chamada ao local, pelo menos, poderia meter um cagaço ao pastor para que o mesmo futuramente não deixasse que as ovelhas entrassem novamente na sua propriedade”, o soldado P... informou-a que a patrulha não o poderia fazer, que o serviço da Guarda tinha que seguir pelos trâmites legais; que, a seguir, iriam proceder à identificação do pastor e do proprietário do rebanho para que posteriormente, se a mesma pretendesse, apresentasse queixa e que a ocorrência ficaria registada no Posto da GNR.
A arguida, não se conformando com tais informações, referiu ao mencionado soldado P... que uma vez que a patrulha não podia fazer nada, se ia deslocar ao Posto para falar com o Comandante, sendo então informada por este soldado que o Comandante do Posto não se encontrava ao serviço, mas que o podia fazer no dia seguinte a partir das 9 horas. A arguida solicitou ainda ao soldado P... a sua identificação que o mesmo lhe forneceu e que a mesma não quis verificar.»
O Tribunal da Relação não detecta nesta conduta do soldado da GNR P... dada como provada na sentença, como tendo ocorrido junto à Q…, Gouveia, uma atitude mal educada, arrogante e prepotente que em nada condiz com o pretenso “Código de Honra da GNR”.
Já a conduta da arguida T… não pode deixar de se considerar censurável, uma vez que, não tendo conseguido instrumentalizar a patrulha da GNR, comandada pelo soldado P..., para dar, pelo menos, um “cagaço” ao pastor que terá deixado entrar as ovelhas na propriedade da arguida, consignou conscientemente no livro de reclamações uma falsa realidade dos factos para apelidar o soldado P... de mal educado, arrogante e prepotente.
A arguida sabia que com a narração inexacta dos factos em causa consignada no livro de reclamações e respectivos juízos de valor que aplica à conduta do soldado P..., ofendia a honra e consideração deste.
Apesar de saber que a valoração crítica à conduta do soldado P... efectuada no livro de reclamações estava assente em factos diferentes dos que correram junto à Q… - e que preencheriam a violação de deveres do Estatuto da GNR, como o dever de urbanidade e de zelo - , e que assim ofendia objectivamente a honra e consideração do militar da GNR, não deixou de agir, com consciência de que a sua conduta era punida criminalmente ( pontos n.ºs 13 e 14 dos factos dados como provados),
A conduta da arguida T…. não integra assim um legítimo direito de expressão e crítica pela actuação da autoridade, pois a mesma conduta para além de não ser atípica, é ilícita, uma vez que não está a coberto de qualquer causa de justificação da ilicitude, designadamente das aludidas no n.º 2 do art.180.º do Código Penal e na al.b), n.º 2 do art.31.º , do mesmo Código.
Expressões como “arrogante e prepotente” são mesmo juízos de valor e não factos cuja prova da verdade a arguida pudesse realizar.
Em suma , a conduta da arguida T... preenche todos os elementos constitutivos do crime de difamação agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 180.º, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea 1), todos do Código Penal, pelo que ao Tribunal da Relação mais não resta que confirmar a decisão recorrida, que condenou aquela pela prática deste crime.
Improcede, deste modo, o recurso interposto pela arguida.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pela arguida T... e manter a douta sentença recorrida.
Custas pela recorrente, fixando em 6 Ucs a taxa de justiça.

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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).

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Coimbra,

























Proc. n.º 218/08.8GBGVA.C1