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HIPOTECA
CANCELAMENTO
VENDA JUDICIAL
Sumário
I - A existência de uma hipoteca não impede a alienação voluntária ou coerciva do bem hipotecado nem, tratando-se de bem comum, de uma sua quota-parte indivisa. II - Tal como pode ser constituída hipoteca sobre uma quota de uma coisa ou direito comum, também pode ser objecto de penhora em processo executivo apenas uma quota da coisa ou direito comum hipotecado. III - A venda judicial de qualquer bem onerado com uma garantia real é feita livre das garantias reais que o oneram, designadamente a hipoteca. IV - A indivisibilidade da hipoteca é respeitada permitindo-se ao credor hipotecário reclamar a totalidade do seu crédito para ser pago pelo produto da venda dessa quota da coisa ou direito onerado. V - Feita a venda judicial de uma quota da coisa ou direito onerado, a hipoteca extingue-se em relação a essa quota e a garantia que ela representava transfere-se para o produto da venda.
Texto Integral
Recurso de Agravo Processo n.º 367-D/99.P1 [5.º Juízo Cível da Comarca de Matosinhos]
Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I.
Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia, sob o n.º 00711/150798–I, da freguesia …, um prédio urbano composto pela fracção I correspondente ao rés-do-chão esquerdo para habitação com lugar de garagem e arrumos na cave.
A propriedade da fracção I encontrava-se inscrita no registo desde 05.08.1998 em nome de B… e de C….
Sobre a fracção I encontravam-se inscritas no registo, desde a mesma data, duas hipotecas a favor do D…, S.A., para garantia de créditos até ao valor máximo de 15.021.300$00 e de 7.868.300$00, respectivamente.
No dia 19.05.2000, no processo executivo n.º 367/99 pendente no 5.º Juízo Cível de Matosinhos, em que é exequente “E…, Lda.” e executado B…, procedeu-se à penhora de metade indivisa da fracção I.
A penhora foi inscrita definitivamente no registo em 28.07.2000.
Por apenso ao processo executivo, o D..., S.A. reclamou o seu crédito garantido pelas hipotecas no valor de €106.803,29, acrescido de juros de mora vincendos até ao efectivo e integral pagamento, crédito que foi julgado verificado e graduado por sentença transitada para ser pago antes que o crédito exequenda.
Na sequência da sua venda judicial, por despacho de 18.01.2012 proferido no processo executivo, a metade indivisa penhorada da fracção I foi adjudicada, “livre de ónus e encargos”, à exequente “E…, Lda.”.
A adquirente requereu depois ao Tribunal que fosse proferido despacho ordenando o cancelamento dos ónus e encargos existentes sobre a metade adquirida da fracção, para efeitos de cancelamento dos mesmos junto da Conservatória do Registo Predial.
Por despacho de 05.06.2012 foi entendido que a hipoteca apenas podia ser cancelada com o acordo do credor hipotecário e ordenou-se a sua notificação para dizer se consentia no seu cancelamento.
Na sequência da oposição do credor hipotecário, por despacho de 25.06.2012, que remete para os fundamentos do despacho de 05.06.2012, aquele requerimento foi indeferido no tocante ao registo das hipotecas, com o fundamento de que estas não caducaram.
Do assim decidido, a exequente e adquirente do direito penhorado interpôs recurso de agravo, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
A. A hipoteca surge como direito real de garantia, a par de outros, destinado a assegurar a satisfação de um direito de crédito, gozando, naquela qualidade, de preferência na satisfação da quantia mutuada, e de um direito de sequela.
B. Não obstante as características específicas daquele direito real, facto é que, no âmbito de venda judicial em processo de execução, a hipoteca, tal como qualquer outro direito real de idêntica natureza, caduca ope legis por força do acto de adjudicação, nos termos do estipulado no artigo 824.º do Código Civil.
C. Estando em causa um processo específico voltado para a satisfação de (outro) crédito, relativamente a uma mesma pessoa, que em ambos os casos tem por característica identitária, a qualidade de devedora, não pode a Exequente ficar prejudicada, em virtude de, no culminar daquele, adquirir parte de um bem hipotecado, pela existência desta garantia, quando a posição do credor hipotecário é salvaguardada.
D. E é-o pelo chamamento ao processo de execução nos termos dos artigos 864.º e 865.º do C.P.C., mas também, e à partida, pela sua satisfação, com carácter privilegiado, relativamente a outros credores, designadamente a Exequente, no âmbito do apenso de graduação de créditos (artigo 873.º daquele diploma).
E. De facto, a caducidade dos direitos reais que incidam sobre o bem – e no caso, dos direitos reais de garantia – apresenta-se como consequência necessária (artigo 824.º do C.C. e 888.º do C.P.C.), surgindo, na esfera jurídica do credor hipotecário, no lugar daquele, o direito a ver satisfeito o seu crédito pelo produto da venda (n.º3 do artigo 824.º do C.C.).
F. Apenas se exige, por parte do Tribunal, que profira despacho, ainda que em termos oficiosos, determinando o cancelamento do registo daqueles direitos reais, ou seja, não é o dito despacho condição necessária de verificação da caducidade, mas apenas e só de publicidade do registo e garantia do cumprimento do princípio da legalidade em termos registrais.
G. De outro modo, tornar-se-ia completamente impossível ao Exequente obter satisfação do seu crédito, por protecção da sua posição jurídica, quando o credor hipotecário dispõe à sua medida de um conjunto de medidas (legais) que pode inculcar o pagamento do crédito garantido, seja alargando o âmbito da execução em que a venda se insere (artigo 56.º do C.P.C. e 725.º do C.C.), seja exigindo um reforço da hipoteca (701.º do C.C.).
H. Donde, andou mal o Tribunal “a quo” quando decidiu, na prolação do despacho a que alude a norma do artigo 888.º do C.P.C., não ordenar o cancelamento de todos os ónus e encargos que incidiam sobre a ½ indivisa do bem adjudicado, contrariando o anteriormente decidido com laivos de trânsito em julgado, desrespeitando, por essa via, o disposto nos artigos 824.º do C.C., 888.º e 890.º do C.P.C.
Nestes termos… deve ser revogado o despacho proferido, substituindo-se… por outro... ordenando o cancelamento de todos os ónus e encargos existentes sobre a ½ indivisa do imóvel…, designadamente as respeitantes às hipotecas constituídas, sob as Ap. 5 e 6 de 1998/08/05….
Não foi apresentada resposta a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II.
A única questão que cumpre resolver reside em saber se estando um imóvel hipotecado no seu todo e sendo penhorada apenas uma parte indivisa do mesmo, a venda judicial do direito penhorado faz caducar a hipoteca relativamente a esse quinhão do bem hipotecado ou, por ser indivisível, a hipoteca se mantém sobre a totalidade do bem.
III.
Os factos que relevam para a decisão a proferir são os que se mencionam no relatório que antecede e que aqui se dão por reproduzidos.
IV.
Como vimos, a adquirente da metade indivisa do imóvel penhorada nos autos, pretende que no que concerne à metade indivisa do prédio que adquiriu o tribunal ordene o cancelamento das duas hipotecas que oneravam o imóvel antes da penhora, defendendo que quanto a essa parte as hipotecas caducaram com a venda judicial.
Essa pretensão foi rejeitada pelo tribunal “a quo” que sufragou o seguinte entendimento:
“a hipoteca, nos termos do art. 686°, n° 1, do CC, é uma garantia especial das obrigações que confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certa coisa imóvel – ou equiparada – pertencente ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo. Como direito real de garantia que é, tem natureza jurídica de direito real, uma vez que apresenta as notas características destes, designadamente a sequela e o direito de preferência.
A hipoteca é de sua natureza indivisível, estando tal regra consagrada no artigo 696° do CC …. O preceito abrange: a situação de a hipoteca ter inicialmente por objecto uma única coisa, estabelecendo que em caso de divisão da mesma, a hipoteca subsiste sobre cada coisa nova saída da divisão ….
… aplicando tal característica in casu, a hipoteca que inicialmente começou por incidir sobre a totalidade do prédio, não pode, agora, dividir-se com referência às metades indivisas do móvel em causa (veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05.04.2011, in www.dgsi.pt, que adoptou esta solução).
Quando muito, poderia operar-se a redução da hipoteca nos termos definidos nos artigos 718° e seguintes do CC, mas tal ultrapassa as competências do tribunal no âmbito do presente processo.
… salvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível, subsistindo, por inteiro, sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que a constituam, ainda que o crédito seja dividido, ou se encontre parcialmente satisfeito. Quer isto dizer que as referidas hipotecas subsistem, onerando por inteiro, sobre o imóvel como um todo.”
Como se vê, a decisão recorrida não só cita como segue de perto o entendimento do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05.04.2011 que numa situação – análoga à dos autos – de apreensão de um imóvel hipotecado em processo de insolvência e posterior venda forçada de metade indivisa do mesmo, decidiu que “A hipoteca é una e indivisível. Incide sobre a totalidade do prédio, não podendo dividir-se de acordo com as meações de cada um dos ex-cônjuges. Vendida a meação do ex-cônjuge B…, poderia, quando muito, operar-se a redução da hipoteca nos termos definidos nos artigos 718º e seguintes do CC. Mas, para tal, seria sempre necessário o consentimento do credor hipotecário – cf. artigo 719.º”
Devemos dizer que discordamos deste interpretação por nos parecer, com todo o devido respeito, que a mesma não reflecte a solução que emana da totalidade das normas legais atinentes. Expliquemos o nosso entendimento.
Todos sabemos que a hipoteca é um dos direitos reais de garantia previstos no nosso ordenamento jurídico.
Os direitos reais de garantia são aqueles que conferem o poder de, pelo valor da coisa ou pelo valor dos seus rendimentos, o respectivo beneficiário obter, com preferência sobre todos os outros, o pagamento de uma dívida de que é titular activo (cf. Mota Pinto, in Direitos Reais, coligido por Álvaro Moreira e Carlos Fraga).
Através da hipoteca, o credor garante-se quanto à obtenção da satisfação do seu crédito através do valor do bem objecto da garantia. O seu interesse é puramente instrumental, na medida em que a sua finalidade é assegurar o cumprimento de outro direito (de crédito).
Trata-se, portanto, de um direito acessório do direito de crédito a que serve de garantia. No dizer do artigo 686.º do Código Civil a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
Embora normalmente a hipoteca incida sobre a totalidade da coisa onerada, nada obsta a que hipoteca incida apenas sobre uma quota-ideal da mesma, com excepção apenas da meação dos cônjuges nos bens comuns do casal (para evitar, obviamente, à entrada de um estranho à união conjugal na comunhão de um bem do casal). É o que resulta do disposto no artigo 689, n.º 1, do Código Civil, segundo o qual também é susceptível de hipoteca a quota de coisa ou direito comum (neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição revista, pág. 703.º). O que significa, desde logo, que não é estranho ao regime legal da hipoteca a possibilidade de a hipoteca recair não sobre a totalidade de um bem comum mas apenas sobre uma quota-parte desse bem, o qual estará assim apenas parcialmente hipotecado.
Por outro lado, a hipoteca de uma quota de coisa ou direito comum não impede os contitulares de procederem à divisão (voluntária ou judicial) da coisa. Os efeitos dessa divisão é que são distintos consoante o credor nela consentir ou não: se consentir na divisão, a hipoteca fica limitada à parte da coisa atribuída ao devedor que constituiu a hipoteca (artigo 689.º, n.º 2); se não consentir, a hipoteca mantém-se sobre as partes que resultaram da divisão. Todavia, por efeito da divisão, o credor não pode ficar em situação pior àquela em que se encontrava, mas também não pode ficar em situação melhor, daí que, naturalmente, nesta eventualidade, a garantia da hipoteca continua a ter como limite o correspondente ao valor da quota ideal da coisa comum porque foi isso (a quota no imóvel) que foi objecto da hipoteca (artigo 696.º).
A hipoteca também não impede o devedor de alienar a coisa hipotecada. Os bens hipotecados não ficam subtraídos ao comércio jurídico, pelo que podem ser livremente transmitidos para terceiros (cf. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Garantias das Obrigações, 4.ª ed., pág. 193). O que sucede é que o adquirente da coisa a adquire onerada com a hipoteca, ou seja, apesar de a coisa passar a ter outro titular, continua a responder pela satisfação do crédito garantido como se permanecesse na titularidade do devedor. É o que resulta da sua natureza de direito real de garantia e da faculdade de sequela que lhe anda associada. A lei vai ainda mais longe e determina que é mesmo nula qualquer convenção que proíba o dono de alienar ou onerar os bens hipotecados (artigo 695.º).
Outra característica da hipoteca é a sua indivisibilidade. Segundo o artigo 696.º do Código Civil, salvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que as constituam, ainda que a coisa ou o crédito seja dividido ou este se encontre parcialmente satisfeito.
A indivisibilidade da hipoteca significa que mesmo quando abrange uma diversidade de coisas ela recai sobre cada uma delas e o seu conjunto em garantia da totalidade do crédito hipotecário, ou seja, que não é possível dividir a hipoteca pelo número de coisas hipotecadas e limitar o valor da garantia representada por cada uma delas à percentagem com que o seu valor participa no valor do conjunto das coisas (daí que o credor pode executar qualquer delas para obter o pagamento da totalidade do seu crédito).
Significa também que mesmo que se proceda à divisão da coisa[1] hipotecada a hipoteca continua a incidir sobre a totalidade das partes resultantes da divisão (a hipoteca de um imóvel estende-se à totalidade das fracções em que o mesmo venha a ser depois dividido com a sua constituição em propriedade horizontal).
E significa, finalmente, que a garantia se mantém sobre a totalidade da coisa até à satisfação integral do crédito, não se reduzindo à medida da satisfação parcial que vá tendo lugar (a garantia continua a incidir – evidentemente para assegurar a satisfação do valor em dívida no momento - sobre a totalidade do valor da coisa ainda que o devedor pague uma parte do crédito, caso em que se reduz o valor garantido, não a medida da garantia).
Foi aqui que a decisão recorrida assentou a força da sua argumentação para declinar o cancelamento da hipoteca, mas, parece-nos, não atentou noutra realidade jurídica.
O artigo 601.º do Código Civil define a chamada garantia geral das obrigações. Segundo esta norma, todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, respondem pelo cumprimento da obrigação. O que significa que fora as situações de bens impenhoráveis (ou na medida em que o são) e dos regimes especiais de separação de patrimónios (v.g. a herança), se o devedor não cumprir de forma voluntária a sua obrigação pecuniária, o credor pode requerer a execução coerciva do seu património, de todo o seu património.
Por isso, segundo o artigo 817.º do Código Civil, não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, o credor tem o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor, e, conforme o artigo 821.º do Código de Processo Civil, estão sujeitos à execução todos os bens susceptíveis de penhora que, nos termos da lei, respondam pela dívida exequenda.
Os bens hipotecados, como já vimos, tal como podem ser livremente alienados, podem ser penhorados, com vista à sua venda judicial e obtenção coerciva de valor para satisfação dos débitos do garante. E a iniciativa da sua execução coerciva não está limitada ao credor hipotecário. Desde que reúna os requisitos processuais de impulso da acção executiva (possuir um título executivo), qualquer credor, ainda que comum, ainda que sem qualquer garantia real, apesar da existência de uma hipoteca, pode instaurar a execução e obter a penhora de um bem hipotecado para garantia de um crédito de terceiro. O terceiro, apesar de ser titular da hipoteca, não pode impedir essa iniciativa.
Todavia, uma vez instaurada a execução por um credor e penhorado um imóvel onerado com uma garantia real a favor de terceiro, este terceiro não perde a sua garantia. O que sucede é que ele é obrigado a ir ao processo executivo reclamar o seu crédito dotado de garantia real a fim de o mesmo ser graduado e oportunamente pago pelo produto da venda do bem que é objecto da garantia e pela ordem que resultar da graduação dos diversos créditos.
O processo executivo não tem, com efeito, natureza universal, ao contrário, por exemplo do processo de insolvência que também conduz à execução coerciva do património do devedor e ao qual são chamados todos os credores. No processo executivo comum, apenas são chamados a reclamar créditos os credores com garantia real sobre os bens penhorados (artigo 864.º e 865.º do Código de Processo Civil), mas estes são efectivamente chamados e não podem escudar-se a apresentar a reclamação do seu crédito.
E isso é assim porque nos termos do artigo 824.º do Código Civil a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida[2]. Contudo, essa transmissão não é feita com os ónus que os oneravam antes da venda, designadamente os ónus dos credores com garantia real que eventualmente não hajam reclamado o seu crédito na execução. Pelo contrário, os bens são transmitidos livres dos direitos reais de garantia que os onerarem, os quais caducam, transferindo-se para o produto da venda dos respectivos bens. Por outras palavras, os direitos reais de garantia, que oneravam o bem penhorado e vendido no processo executivo extinguem-se, o adquirente adquire o bem sem esse ónus, e o credor garantido passa a exercer a sua garantia de pagamento através do produto da venda do bem.
Aliás, se bem vemos, não parece que pudesse ser de outro modo. A partir do momento em que possibilita a instauração por outro credor de uma execução sobre bens onerados com garantias reais a favor de outrem e que, por conseguinte, possibilita que o bem venha a ser vendido a terceiro e obtido o respectivo valor, o sistema jurídico assegura a finalidade da garantia real: obter a satisfação do crédito através do valor do bem. E assim, obtida, através da venda e do produto da venda, a “transformação” do bem no respectivo valor, faz todo o sentido transferir para esse valor o direito (à satisfação) de crédito do credor garantido.
Qualquer outra solução que exigisse a manutenção da garantia e como tal impusesse a transmissão do bem para o adquirente onerado ainda com essa garantia, não apenas prejudicaria seriamente os interesses do devedor, que veria o bem profundamente desvalorizado ao ser vendido nessa circunstância, como pouco ou nenhum proveito teria para o credor – com excepção de manter o benefício do prazo, caso ele tivesse sido fixado em seu proveito – que teria sempre mais tarde de promover a execução para obter pagamento através do bem.
Com efeito, a lei proíbe expressamente[3] o chamado pacto comissório, ou seja, a convenção entre credor e devedor de que no caso de o devedor não cumprir aquele fará sua a coisa onerada. Por força dessa proibição, em caso de não cumprimento voluntário do devedor, o credor necessita sempre de promover a venda do bem onerado para obter pagamento através do produto da venda.
Por conseguinte, a questão que resta decidir, e a que não responde a decisão recorrida, é a de compatibilidade entre o regime jurídico da hipoteca e o artigo 824.º do Código Civil ou, mais especificamente, se a extinção da hipoteca ao abrigo deste normativo é impedida por alguma das normas específicas da hipoteca ou por alguma das suas características, nomeadamente a da indivisibilidade.
A esse propósito a primeira observação a fazer é a de que o artigo 824.º do Código Civil, que também é uma norma de direito substantivo ou material, refere-se a todos os direitos reais de garantia e, portanto, não exclui da sua previsão nenhum desses direitos, designadamente a hipoteca. Se não exclui, teríamos de encontrar no regime legal da hipoteca algo que justificasse a sua exclusão, que impedisse a aplicação do regime do artigo 824.º do Código Civil. Ora, no regime legal da hipoteca não existe qualquer norma que afaste expressamente aquela consequência, tal como, aliás, não existe no regime jurídico de qualquer dos demais direitos reais de garantia.
E isso é assim pela razão de que os direitos reais de garantia visam apenas assegurar que determinados bens que constituem a garantia respondam pela satisfação do direito de crédito garantido[4]. Essa satisfação, no caso de não satisfação voluntária pelo devedor, pressupõe, como se viu, a venda do bem para a obtenção do respectivo produto da venda, o qual é afecto depois à satisfação coerciva do direito de crédito garantido[5]. Numa venda judicial é precisamente isso que se passa: obtém-se um produto com a venda do bem onerado e afecta-se esse produto ao pagamento aos credores pela ordem de preferência que lhes cabe. Não existe aqui, portanto, qualquer incompatibilidade entre a garantia real e o mecanismo da venda judicial.
Por outro lado, não é correcto afirmar que a hipoteca apenas se extingue nas situações do elenco do artigo 730.º do Código Civil. Não existe nada nessa norma que imponha a conclusão de que as causas de extinção ali previstas são taxativas, as únicas admitidas, pelo que se deve admitir a validade de outras causas de extinção desde que as mesmas resultem da ordem jurídica – neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, anotação ao artigo 730.º –.
Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, loc. cit., pág. 199, por exemplo, acrescenta ao elenco das causas de extinção da hipoteca do artigo 730.º, a expurgação da hipoteca no caso de transmissão de bens hipotecados (artigo 721.º), por impossibilidade de sub-rogação do terceiro que constituiu a hipoteca nos direitos do credor (artigo 717.º, n.º 1), por verificação da condição resolutiva ou não verificação da condição suspensiva aposta ao negócio da sua constituição, por extinção do direito sobre que incide a hipoteca nos casos em que se trata de um direito de usufruto ou superfície (artigo 699.º e 1539.º).
Afigura-se-nos que a esse elenco pode acrescentar-se perfeitamente o mecanismo do artigo 824.º do Código Civil, por constituir nem mais nem menos que outra causa de extinção da hipoteca – como dos demais direitos reais de garantia anteriores ao registo da penhora - prevista de modo expresso na ordem jurídica.
Também não constitui obstáculo à extinção da hipoteca a forma como se encontram regulamentadas as situações de redução e expurgação da hipoteca. Tratam-se claramente de situações distintas, que obedecem a requisitos autónomos e que têm regimes e consequências específicas. Se a extinção da hipoteca ocorrer por qualquer fundamento, deixa de fazer sentido colocar a possibilidade de a hipoteca ser reduzida ou expurgada. E o inverso também é verdadeiro: só faz sentido falar em redução ou expurgação de uma hipoteca que não se mostre extinta. Portanto, não se pode argumentar com o regime da expurgação ou redução para retirar ilações quanto à extinção da hipoteca.
Finalmente, entendemos que, desde que devidamente interpretada, a característica da indivisibilidade não é sequer posta em causa pela extinção da hipoteca em relação à quota-parte do bem onerado no caso de venda judicial. Conforme já se salientou, a indivisibilidade apenas significa que pela totalidade do crédito responde sempre todo o bem e qualquer das suas partes. Indivisibilidade não é, pois, intocabilidade do bem. É somente a faculdade de vincular todo o bem e qualquer das suas partes à satisfação de todo o crédito. O que significa que o titular de uma quota-parte indivisa do bem não pode exigir que essa quota-parte apenas responda pela satisfação da parte do crédito correspondente à quota na coisa. Mesmo uma quota-parte de metade do bem pode ter de servir para pagar a totalidade do crédito.
Sendo assim, então a característica da indivisibilidade cumpriu-se perfeitamente na venda judicial. Com efeito, apesar de apenas estar penhorada metade indivisa do bem onerado e de o executado ser apenas um dos devedores, o credor hipotecário não veio aos autos reclamar somente metade do seu crédito. Ele reclamou atotalidade do seu crédito e na sentença proferida na sequência da reclamação foi verificada e graduada a totalidade do crédito. Em resultado disso, a metade indivisa penhorada e vendida vai ser afecta à satisfação da totalidade do crédito. É nisso que consiste a indivisibilidade e que corresponde ao respeito por esta característica da hipoteca. Por conseguinte, nada obsta a que a hipoteca se extinga quanto a esta quota-parte do bem onerado porque em relação a ela, a garantia está já accionada e concretizada na medida do possível.
Podemos então concluir dizendo que i) a hipoteca não impede a alienação voluntária ou coerciva do bem hipotecado, que ii) tal como pode ser constituída hipoteca sobre uma quota de uma coisa ou direito comum também pode ser objecto de penhora em processo executivo apenas uma quota da coisa ou direito comum hipotecado, que iii) a venda judicial de qualquer bem onerado com uma garantia real é feita livre das garantias reais que o oneram, designadamente a hipoteca, que iv) a indivisibilidade da hipoteca se respeita e cumpre permitindo ao credor hipotecário reclamar a totalidade do seu crédito para ser pago pelo produto da venda dessa quota da coisa ou direito onerado, que v) feita a venda judicial de uma quota da coisa ou direito onerado a hipoteca extingue-se em relação a essa quota e a garantia que ela representava transfere-se para o produto da venda.
Em resultado destas conclusões, impõe-se revogar a decisão recorrida que recusou o cancelamento do registo da hipoteca sobre a quota-parte do bem hipotecado penhorada e vendida no processo executivo.
V.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso de agravo procedente e,consequentemente, dando-lhe provimento, revogam a decisão recorrida substituindo-a por outra ordenando, relativamente à metade indivisa da fracção I penhorada e vendida nos autos, o cancelamento da inscrição no registo das hipotecas constituídas a favor D…, S.A. e que constituem as apresentações 5 e 6, ambas com data de 1998.08.05, sobre a descrição predial n.º 00711/150798–I da Conservatória do Registo Predial da Maia, freguesia ….
Custas pelo credor reclamante que se opôs ao cancelamento da hipoteca.
*
Porto, 31 de Janeiro de 2013.
Aristides Manuel da silva Rodrigues de Almeida
José Fernando Cardoso Amaral
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
________________
[1] Falamos aqui da coisa pertencente a um único titular ou única, porque o regime da divisão da coisa comum já foi abordado.
[2] Solução que também vale, nos termos do artigo 826.º do Código Civil, para as situações em que a transmissão do bem em execução ocorre por adjudicação ou remição e não propriamente venda judicial.
[3] Proibição que é comum aos vários direitos reais de garantia: hipoteca (artigo 694.º), consignação de rendimentos (artigo 665.º), penhor (artigo 678.º), privilégios creditórios (artigo 753.º) e, com as necessárias adaptações, direito de retenção (artigo 759.º).
[4] “…a hipoteca garante o crédito pelo valor de certo bem. O credor hipotecário paga-se pelo valor desse bem com preferência em relação aos demais credores…” – Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, in Garantias de Cumprimento, Almedina, pág. 75.
[5] Como se reconhece no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto citado na decisão recorrida “O efeito principal da hipoteca é a satisfação do direito de crédito garantido através do bem hipotecado. Enquanto subsistir, ela habilita o seu titular a atingir a coisa, onde esta se encontrar. Este atributo de sequela é consequência necessária do direito real de hipoteca e traduz o poder do titular desse direito de actuar sobre a coisa que lhe foi afecta, sem ter de se deter perante a atitude da pessoa que estiver actualmente na posse da coisa”.