1. Na sequência da notificação do artigo 50º do DL nº 433/82, os factos relevantes alegados pela defesa devem ser apreciados ainda que de modo conciso na decisão administrativa a que se refere o artigo 58º daquele diploma, sob pena de nulidade.
2. Nada obsta à invocação do disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, como direito subsidiário, para declarar nula uma decisão administrativa, ou parte dela, por omissão de pronúncia sobre factos relevantes alegados pela defesa.
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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.
, sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do Ministério Público as questões a decidir são as seguintes:
- se o despacho recorrido padece de falta de concretização no que concerne ao efeitos a extrair do que foi decidido, dado que declara uma nulidade parcial da decisão proferida pela autoridade administrativa, sem especificar qual a parte que se mantém e qual a parte que considera nula;
- se os requisitos da decisão administrativa se encontram definidos no art.58.º do RGCOC pelo que não há que chamar a esta matéria o regime dos artigos 374.º e 379.º do C.P.P.; e
- se a decisão administrativa, obedecendo aos requisitos do art.58.º do RGCOC, não padece do vício de nulidade que lhe foi apontado no despacho recorrido.
Passemos ao conhecimento da primeira questão.
A Inspecção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território instaurou os presentes autos contra a arguida R, Lda., porquanto se indiciaria que esta teria praticado uma contra-ordenação, p. e p. pelas disposições conjugadas do Anexo I e artigos 5.º, 6.º, 7.º e 11.º, n.º 1 alínea c) do DL n.º 152/2005, de 31 de Agosto, ao realizar intervenções em equipamentos de refrigeração por técnico sem as qualificações necessárias e, ainda, uma contra-ordenação, p. e p. pelo art. 81.º n.º 1 al. p) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de Maio, por rejeitar águas residuais, que depois de tratadas em ETAR são descarregadas no rio Cobral, com apresentação de valores de emissão superiores aos limites constantes das normas legais.
Realizadas várias diligências, a Inspecção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território, por decisão de 5 de Março de 2009, determinou o arquivamento dos autos no que concerne à prática pela arguida da contra-ordenação, p. e p. pelas disposições conjugadas do Anexo I e artigos 5.º, 6.º, 7.º e 11.º, n.º 1 alínea c) do DL n.º 152/2005, de 31 de Agosto, considerando para o efeito que não se apurou que a arguida agiu como dolo e a infracção não é punível a título de negligência, e condenou a arguida pela prática de uma contra-ordenação, p. e p. pelo art. 81.º n.º 1 al. p) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de Maio, na coima no valor de € 60.000,00, porquanto resulta de uma colheita de 24 horas iniciada no dia 31-10-2007, que a mesma arguida procedeu à rejeição de águas residuais no meio hídrico sem o cumprimento mínimo das normas de qualidade exigidas.
A arguida, ao apresentar o recurso de impugnação judicial deixou expressamente referido que recorre apenas da parte decisória relativa à sua condenação na coima de € 60 000,00 pela prática de uma contra-ordenação, p. e p. pelo art. 81.º n.º 1 al. p) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de Maio. Para este efeito invocou, designadamente, a nulidade da decisão “ por erro notório na apreciação da prova e omissão de pronúncia”.
No despacho judicial recorrido o Ex.mo Juiz refere que a decisão administrativa pronunciou-se acerca de duas contra-ordenações que eram imputadas à arguida, mas que relativamente a uma delas, a p. e p. pelo art. 81.º n.º 1 al. p) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de Maio, a autoridade administrativa não apreciou os factos alegados pela defesa, sendo omissa, nessa medida, aquela decisão.
Quando em seguida, se decide julgar “… verificada a nulidade arguida nos presentes autos de recurso de impugnação judicial interposto pela Recorrente R, Lda., e, em consequência, declaro parcialmente nula a decisão impugnada.” , com devolução dos autos à autoridade administrativa, temos como medianamente claro que o Ex.mo Juiz quis dizer que a parte da decisão administrativa que padece de nulidade é aquela que foi objecto do recurso de impugnação judicial e que a parte não afectada pela nulidade é a que não foi objecto de recurso de impugnação.
Não seria por obscuridade que a autoridade administrativa deixaria de suprir a decretada nulidade parcial da decisão administrativa.
De todo o modo, se alguma obscuridade existisse na decisão judicial recorrida – e não há – ela estava sanada com a clarificação incluída no despacho de sustentação da decisão judicial recorrida.
Improcede assim esta primeira questão.
A segunda questão a decidir é se os requisitos da decisão administrativa se encontram definidos no art.58.º do RGCOC pelo que não há que chamar a esta matéria o regime dos artigos 374.º e 379.º do C.P.P..
Vejamos.
A introdução do Direito de Mera Ordenação Social no sistema jurídico português, através do DL n.º 239/79, de 24 de Julho - posteriormente substituído pelo DL n.º 433/82, de 27 de Setembro -, tem subjacentes preocupações de natureza politico-criminal que se centralizam na afirmação de que aquele novo ramo do sistema sancionatório público « estaria vocacionado para dar atenção a certas áreas de intervenção de que, nomeadamente pela sua componente social », o Estado « se não podia alhear, como a tutela do ambiente, aspectos diversos da economia nacional ou uma intervenção preventiva na área dos direitos dos consumidores.».
Tratar-se-iam de áreas « carentes de tutela jurídica de carácter sancionatório e finalidades preventivas nas quais, de acordo com as valorações então dominantes, não se justificava uma resposta penal, já então orientada para uma intervenção de ultima ratio, conforme apontava o disposto no artigo 18.º, n.º2, da Constituição de 1976.» – cfr. Dr. Costa Pinto, “ O Ilícito de Mera Ordenação Social e a Erosão do Princípio da Subsidariedade da Intervenção Penal”, Direito Penal Económico e Europeu – Textos Doutrinários, Vol. I, Coimbra Editora, 1998, pág.19 e ss.
A autonomia do Direito de Mera Ordenação Social face ao Direito Penal vai-se materializar em soluções de natureza substantiva e processual diversas das vigentes para este direito. Contudo, o Direito de Mera Ordenação Social manteve desde sempre profundas ligações ao direito penal e ao direito processual penal, demonstradas em múltiplas soluções normativas comuns.
Pese embora o reforço de aproximação do Direito de Mera Ordenação Social ao Direito Penal e Direito Processual Penal que se faz sentir com as sucessivas alterações ao RGCOC aprovados pelo DL n.º 433/82, e a que não serão alheias as elevadas coimas e sanções acessórias previstas no direito contra-ordenacional, as linhas de estrutura do processo de contra-ordenação subsistem.
Neste quadro, não admira que o direito penal seja definido no art.32.º do RGCOC como direito subsidiário e que o art.41.º, do mesmo regime, com a epígrafe “ Direito subsidiário” estabeleça que «Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.».
Do art.41.º do RGCOC resulta que a importação das soluções do processo criminal está dependente, num primeiro momento, do reconhecimento da necessidade de encontrar uma solução para o caso dentro do regime específico das contra-ordenações e da inexistência de solução própria neste quadro legal.
Feito este reconhecimento entra-se num segundo momento, de aplicação das normas do processo penal. Esta passará, sempre que necessário, por um processo de adaptação, tendo em conta as soluções do processo penal e as especificidades do processo de contra-ordenação, de forma a respeitar as linhas de estrutura deste processo.
O art.58.º do RGCOC, a que alude o recorrente, estabelece os requisitos a que deve obedecer a decisão administrativa condenatória.
Nos termos do art.58.º do RGCOC, a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias, deve conter: a identificação dos arguidos; a identificação dos factos imputados com indicação das provas obtidas; a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; a coima e as sanções acessórias; a informação de que a condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artigo 59.º e que em caso de impugnação judicial o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham mediante simples despacho; e, ainda, a ordem de pagamento da coima no prazo máximo de dez dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão e a indicação de que em caso de impossibilidade de pagamento tempestivo deve comunicar o facto por escrito à autoridade que aplicou a coima.
A estrutura da decisão administrativa, ora descrita, aproxima-se, claramente, da estrutura da sentença penal, que o art.374.º do Código de Processo Penal divide em três partes: relatório, fundamentação e dispositivo.
Emergindo o dever de fundamentação directamente do art.205.º da CRP, como parte integrante do próprio conceito de Estado de Direito democrático, o direito a conhecer as razões do sancionamento é comum quer ao processo criminal quer ao processo de contra-ordenação.
Nada obsta assim que, se for necessário recorrer ao processo criminal para resolução do caso, se tenha em consideração o art.374.º, n.º 2 do C.P.P., quando estatui que a fundamentação da sentença “ consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa , ainda que concisa , dos motivos de facto e de direito , que fundamentam a decisão , com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal .».
Os factos provados e não provados que devem constar da fundamentação da sentença penal são « …os factos alegados pela acusação e pela defesa , e bem assim os que resultarem da discussão da causa » relevantes para as questões de saber se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime, se o arguido praticou o crime ou nele participou, se o arguido actuou com culpa, se se verificou alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa, se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança e se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil - art.368.º, n.º2 do Código de Processo Penal.
O que temos como pacífico é que na decisão administrativa não são necessárias as mesmas exigências de fundamentação que o art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal estabelece para a sentença penal condenatória – cfr. neste sentido, entre outros, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 50/2003, 62/2003, 469/2003 e 492/2003, in www.tribunalconstitucional.pt.
Como mencionam os hoje Conselheiros António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, a fase administrativa do processo de contra-ordenação tem como características a celeridade e simplicidade processual e daí que o dever de fundamentação tenha uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à sentença penal. « O que de qualquer forma deverá ser patente para o arguido são as razões de facto e direito que levaram à sua condenação, possibilitando ao arguido um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, e já em sede de impugnação judicial permitir ao tribunal conhecer o processo lógico de formação da decisão administrativa. Tal percepção poderá resultar do teor da própria decisão ou da remissão por esta elaborada.» - cfr. Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, 2.ª edição , pág. 159 e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 4 de Junho de 2003, CJ, n.º 167, pág.40.
No caso em apreciação o recorrente defende que estando definidos no art.58.º do RGCOC os requisitos que devem ser observados na decisão administrativa condenatória, desde que os mesmos estejam verificados, o acto é legal, não havendo necessidade de recorrer, por aplicação subsidiária, aos artigos 374.º e 379.º do Código de Processo Penal.
Constando da decisão administrativa os factos imputados à arguida e desvalorizando completamente a omissão na decisão administrativa de qualquer facto que a defesa possa ter apresentado na fase administrativa, conclui o recorrente que a decisão recorrida não padece de qualquer ilegalidade
Já o despacho judicial recorrido, sem fazer qualquer menção aos requisitos da decisão administrativa contidos no art.58.º do RGCOC, realçou a omissão na decisão administrativa dos factos que terão sido alegados na defesa pela arguida, e consequente nulidade desta decisão, por força do disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º1, al. c) do Código de Processo Penal.
Vejamos.
O art.58.º do RGCOC ao estabelecer que da decisão administrativa condenatória deve constar a identificação dos factos imputados, está a dizer que daquela decisão devem constar os factos que constam da imputação da autoridade administrativa, geralmente materializados no auto de notícia.
Acontece que o arguido ao ser notificado nos termos do art.50.º do RGCOC para se pronunciar sobre a contra-ordenação imputada e sobre a sanção em que incorre, pode alegar factos que justificam, designadamente, a ilicitude da sua conduta, bem como oferecer provas e requerer diligências probatórias.
Neste caso, se os factos alegados pela defesa são relevantes para a decisão administrativa, o art.58.º, do RGCOC não dá resposta sobre o que fazer aos mesmos nessa decisão, pois limita-se a estabelecer que da decisão administrativa condenatória deve constar a identificação dos “factos imputados”.
A solução é recorrer ao disposto no art.374.º, n.º2 do C.P.P., como direito subsidiário, e exigir que, numa adaptação aos princípios da celeridade e simplicidade do direito de contra-ordenação, os factos relevantes alegados pela defesa tenham tratamento ainda que breve na decisão administrativa, sob pena de nulidade, por força do disposto no art.379.º, n.º1, alínea a) ou c) do C.P.P..
Deste modo, concluímos que nada obsta à invocação do disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, do Código de Processo Penal para declarar nula uma decisão administrativa, ou parte dela, por omissão de pronúncia sobre factos relevantes alegados pela defesa.
A última questão a decidir é se a decisão administrativa, obedecendo aos requisitos do art.58.º do RGCOC, não padece do vício de nulidade que lhe foi apontado no despacho recorrido.
Vejamos.
Na defesa apresentada pela arguida, de folhas 38 a 40 dos autos, e no que concerne à contra-ordenação p. e p. pelo art. 81.º n.º 1 al. p) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de Maio, aquela menciona que aconteceu que “ No dia que antecedeu a colheita de amostra composta 24 h, o equipamento de tratamento das águas residuais da arguida sofreu uma avaria” e que logo que se apercebeu desse facto procedeu à sua pronta e imediata reparação. O incumprimento das normas de qualidade em causa deveu-se a um caso de força maior, fora do conceito de negligência.
Do auto de notícia resulta que a amostra foi colhida passadas as 24 horas.
Parece assim de entender que o dia que antecedeu a colheita de amostra composta de 24 h, referido pela arguida no seu requerimento de defesa, corresponde ao dia da fiscalização, em que foi colocado um colector para realizar a colheita, ou seja, o dia 30 de Outubro de 2007.
No recurso de impugnação judicial a recorrente R, Lda, arguiu a nulidade da decisão administrativa alegando que a autoridade administrativa « não apreciou a ocorrência e consequência da avaria dos equipamentos da ETAR da recorrente verificada momentos antes da colheita da amostra de águas residuais».
Lendo a decisão administrativa resulta do seu texto que a autoridade administrativa teve em consideração o requerimento de defesa apresentada pela arguida, pois que ali dá por reproduzidas as declarações prestadas pela testemunha C.
Pese embora dê como reproduzidas as declarações prestadas pela testemunha C e esta tenha corroborando todos os factos alegados pela arguida no seu requerimento relativamente à avaria do equipamento da ETAR e sua reparação, essa factualidade não consta dos factos provados ou não provados da decisão administrativa, nem é feita qualquer análise crítica daquele depoimento.
Uma vez que a testemunha C é mencionada ainda a propósito da “prova dos factos” constante da decisão recorrida seria importante essa análise crítica, mesmo que breve, para perceber o processo lógico da autoridade administrativa sobre aquela factualidade e questão.
Os factos alegados pela arguida não podem considerar-se liminarmente irrelevantes, pois para além de eventualmente poderem servir de causa de justificação, podem ser úteis para a determinação da medida da coima. Se forem dados como provados, a sua relevância dependerá das concretas circunstâncias em que surjam situados, designadamente, se a avaria ocorreu quando estavam presentes os elementos da fiscalização e o momento em que foi efectuada a reparação e se iniciou a colheita da amostra na saída da ETAR.
Pelo exposto, entendemos que a decisão administrativa padece de omissão de pronuncia sobre factos e questão alegados pela arguida , sendo efectivamente nula nos termos dos artigos 374.º, n.º 3 e 379.º, n.ºs 1, alíneas a) e c) e 2 , do Código de Processo Penal, na parte que foi objecto do recurso de impugnação judicial.
Assim, o recurso não merece provimento.
Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e manter o douto despacho recorrido.
Sem custas.
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Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).
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Coimbra,