1. A responsabilidade civil baseada em facto ilícito pressupõe a prática de um facto; a ilicitude; a imputação do facto ao lesante; a existência de um dano e um nexo causal entre o facto e o dano.
2. Não responde civilmente pelo dano resultante do furto de uma caravana deixada pelo seu proprietário na via pública pelo facto de outrem que, em execução de trabalhos nessa via, não deixou o passeio rampiado como estava antes das obras, permitindo a recolha da mesma.
A...., casado e residente na ..., veio instaurar contra B..., S.A., com sede social na ..., acção declarativa de condenação.
Pede que a ré seja condenada a indemnizá-lo na quantia global de €28.091,05, sendo € 25.591,05 a título de danos materiais e € 2.500,00 a título de danos morais, acrescida dos juros legais que forem devidos, contados a partir da citação até integral pagamento, bem como nas custas da acção e condigna procuradoria a favor do autor.
Alega que, desde 2000, sempre estacionou os seus veículos na garagem da sua moradia, acedendo à via pública através do passeio que ladeia esta via do lado nascente. Para permitir o acesso fácil e cómodo dos veículos à garagem e logradouro, foi construído um lancil em rampa no passeio, já que, de outro modo, os veículos não poderiam passar sem sofrer danos na parte inferior. Em 28-02-2004, o autor comprou uma caravana, pela qual pagou o preço global de € 16.010,50 e sempre a estacionou no interior do logradouro. Entre finais de 2003 e Março ou Abril de 2004, a ré levou a cabo trabalhos de execução do projecto para instalação das infra-estruturas necessárias ao abastecimento de gás natural à Urbanização do ..., ..., .... No contexto daqueles trabalhos, executados no referido passeio, este ficou, na zona contígua ao portão, alteado em cerca de 10 cm.
Em 09-06-2004, o autor mandou instalar um conjunto de motores eléctricos para a caravana com comando, que lhe permitiriam conduzi-la e colocá-la na via pública, sem necessidade de veículo / tractor, em cerca de 5 minutos. No contexto de utilização que fez da caravana nos meses de Junho e Julho de 2004 e em virtude do alteamento do passeio, os motores deixaram de funcionar correctamente, tendo o autor dificuldades em entrar e sair com a caravana do logradouro do seu prédio. Em 30-07-2004, o autor mandou reparar os motores e foi-lhe recomendado que não voltasse a passar com a caravana no acesso até ser rectificado o perfil do passeio.
Em 01-09-2004, o autor dirigiu-se à Câmara Municipal da ..., onde foi informado que a ré era responsável pela alteração do perfil do passeio. No dia seguinte, o autor remeteu um “fax” à ré, pelas 09h41m, informando-a que, devido à intervenção efectuada no passeio, teria que deixar a caravana estacionada na via pública e solicitando que procedesse à sua rectificação com a maior urgência possível, por forma a poder estacionar e guardar a caravana no interior do seu prédio. A ré respondeu ao autor, por carta datada de 15-09-2004, na qual reconheceu a existência do problema e informando-o que “… esta situação (…) foi resolvida como será do V/ conhecimento”, agradecendo inclusive o facto do autor lhe ter comunicado tal incidente. Porque o problema ainda não tinha sido resolvido, o autor remeteu-lhe uma carta com registo e AR com data de 4 de Outubro de 2004, que foi recebida em 06-10-2004, por meio da qual lhe comunicou que nada tinha sido resolvido e que a caravana se encontrava estacionada na via pública, face à impossibilidade de a fazer deslocar e estacionar no logradouro do seu prédio. No dia 20-10-2004, o autor foi informado telefonicamente pelo Engº C... Chefe de Divisão de Vias e trânsito da Câmara Municipal da ..., que a ré se comprometera com ele a fazer as correcções do perfil do passeio que fossem necessárias à viabilização do acesso da caravana ao logradouro do prédio do autor.
No dia seguinte, a mesma pessoa informou o autor que a ré já não estava disposta a realizar as obras de reposição do perfil do passeio nas condições originais. Em 25-10-2004, o autor remeteu uma carta registada à Câmara Municipal da ..., dando-lhe conta do problema, pedido a realização de uma vistoria e solicitando autorização para ser ele próprio a levar a cabo as obras necessárias no passeio público, por forma a poder conduzir a caravana para o interior do seu prédio. A caravana manteve-se estacionada na via pública em frente à moradia do autor, tendo sido furtada no dia 03-12-2004, não tendo sido identificado o autor do furto.
Em virtude dos factos referidos, o autor sofreu os seguintes danos: € 16.010,50, pelo valor da caravana furtada; € 1.900,00 pelo prejuízo decorrente do sistema de motores eléctricos com telecomando da caravana e demais acessórios; € 163,90, pelo valor dos acessórios e utensílios que adquiriu e instalou na caravana em 09-06-2004; € 123,91, pelo valor do equipamento que adquiriu e instalou na caravana em 21-08-2004; € 544,62 pela reparação do motor de tracção direito e rolos de aderência que o autor mandou fazer em 10-11-2004, no valor de € 544,62; €4.489,93, correspondente ao valor global do recheio da caravana; € 300,00, pelas deslocações do autor a Coimbra quando mandou proceder à sua reparação; €2.058,19 pelos encargos com juros, seguros de vida e plano de protecção de pagamentos que o autor terá de suportar em virtude do mútuo contraído para aquisição de uma nova caravana; € 2.500,00, a título de danos não patrimoniais, decorrentes dos transtornos, arrelias, incómodos e preocupações sofridos pelo autor.
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A ré contestou, tendo, no essencial, impugnado os factos, acrescentando que as obras foram executadas pela sociedade D..., Lda, no âmbito de um contrato de empreitada. Mais requereu a intervenção principal provocada desta sociedade e da E... Seguros, S.A., como suas associadas.
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O autor deduziu réplica, alegando, em síntese, que desconhece os factos sobreditos quanto à empresa que executou a obra.
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O incidente de intervenção principal provocada foi deferido, tendo as chamadas deduzido contestação.
A E... Seguros, S.A. alegou, em síntese, que os danos invocados mostram-se excluídos do contrato de seguro celebrado com a ré e, quanto ao mais, impugna os factos.
A sociedade D..., no essencial, impugnou os factos e requereu a intervenção principal provocada da Companhia de Seguros E..., S.A., como sua associada.
O incidente foi admitido e a chamada deduziu contestação, na qual alegou, em síntese, que os danos invocados mostram-se excluídos do contrato de seguro celebrado com a ré, alguns dos créditos já se encontram prescritos, os contratos prevêem uma franquia e, quanto ao mais, impugna os factos.
Dispensou-se a audiência preliminar, e elaborou-se despacho saneador a que seguiu a prolação de sentença, por se entender que o estado dos autos tal permitia, sem necessidade da produção de prova, a qual consta de fl.s 409 a 417 e na qual se decidiu a presente acção como improcedente e, em consequência, foram os réus absolvidos dos pedidos, tendo as custas ficado a cargo do autor.
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o autor A..., recurso, esse, admitido como de apelação e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 422), concluindo a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
I – Em 29 de Novembro de 1998, foi celebrado entre a “ B...” e o Estado Português um contrato de concessão da rede de distribuição regional de gás natural da região Centro Interior, que abrange a cidade da ..., o qual foi modificado para produzir efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2008 e pelo prazo de 40 anos, nos termos da minuta da escritura aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 98/2008, publicada no DR, 1ª Série – nº 119, de 23 de Junho de 2008.
II - Decorrem deste contrato, entre outras, as obrigações de a concessionária adoptar os procedimentos estabelecidos na legislação aplicável e proceder à reparação de todos os prejuízos que resultem dos trabalhos executados no atravessamento de terrenos do domínio público ou do domínio privado do Estado, de terrenos de outras pessoas colectivas de direito público e de terrenos de particulares (cfr. cláusula 19ª, nº 4).
III – Por força do contrato em apreço, “a concessionária é responsável, nos termos gerais de direito, por quaisquer prejuízos causados ao concedente ou a terceiros, pela culpa ou pelo risco, no exercício da actividade objecto da concessão”.
IV - No regime de empreitadas de obras públicas – DL 59/99, de 2 de Março – também ficou expressamente consignada a responsabilidade do empreiteiro por todas as deficiências e erros relativos à execução dos trabalhos (…), que apenas cessa quando os erros e vícios de execução hajam resultado de obediência a ordens ou instruções escritas transmitidas pelo fiscal da obra, ou que tenham obtido a concordância expressa deste, através de inscrição no livro de obra (cfr. artº 36º do citado normativo).
V - A Lei nº 159/99, de 14 de Setembro, determina no seu artigo 16º que é da competência dos órgãos municipais o planeamento, a gestão e a realização de investimentos, entre outros, nos domínios das ruas e arruamentos.
VI - Também assim prescreve o DL nº 380/99, de 22 de Setembro, quando postula o princípio geral de que é ao município que compete promover a execução do planeamento territorial, procedendo à realização das infra-estruturas e dos equipamentos de acordo com o interesse público, os objectivos e as prioridades estabelecidos nos planos municipais de ordenamento do território, recorrendo aos meios previstos na lei (cfr. artº 118º do citado normativo).
VII - No Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação do Município da ... (Aviso nº 6741/2003, publicado no DR, II Série, nº 196, de 26 de Agosto de 2003, também se prevê que, após a realização dos trabalhos ou obras a área ocupada deve ficar restaurada (cfr. artº 28º do Regulamento).
VIII - É da competência do Município a realização de obras nas ruas, arruamentos e passeios públicos e – no que ao caso sub judice interessa – é ilícita a intervenção da Ré “ B...” ou da “ D...” na medida em que procedeu à alteração do perfil do passeio público, desse modo dificultando ou impedindo o autor de aceder com veículos à sua propriedade, mais precisamente de conduzir e estacionar a caravana no interior do seu prédio, o que fez sem o conhecimento e contra a vontade do Município da ....
IX - A consagração do princípio dispositivo no ordenamento jurídico português determina que “às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções” (cfr. artigo 264º, nº 1 do Cód. Proc. Civil) e o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes (nº 2 do citado normativo), pelo que, independentemente da nomenclatura jurídico-legal que se quiser dar ao acesso do autor desde a via pública até à sua moradia, a verdade é que esse direito não foi posto em causa pela Ré, pelo que importará saber se é lícita a conduta da Ré, consistente na alteração do perfil do passeio público e na consequente criação de obstáculo ou impedimento no acesso do autor à sua habitação e se estão alegados na petição factos que corporizem a responsabilidade civil da Ré.
X - A “ B...” praticou um facto ilícito quando alterou o perfil do passeio público, actuando num domínio reservado por lei ao município, desse modo violando os normativos acima enunciados; agiu com culpa, pois bem sabia que não lhe era licitamente permitido agir dessa maneira e, apesar de alertada pelo autor para a necessidade de repor urgentemente o perfil do passeio, nada fez; e sempre responderia pelo risco nos termos do contrato de concessão que celebrou com o Estado Português; o autor sofreu danos, materiais e morais, que descrimina e quantifica na petição.
XI - Emerge dos factos alegados na petição inicial que o autor se desdobrou durante vários meses em contactos com a Ré “ B...”, a qual assumiu a responsabilidade pela reparação do passeio, mas nada fez, apesar de saber que o autor não podia mover e estacionar a caravana para o logradouro da sua residência.
XII - O nexo de causalidade exigido entre o dano e o facto não exclui a ideia da causalidade indirecta, que se dá quando o facto não produz ele mesmo o dano, mas desencadeia ou proporciona um outro que leva á verificação deste.
XIII - A “ B...” praticou um facto ilícito quando alterou o perfil do passeio público sem o consentimento do Município da ..., pelo que responde não só perante o Município da ... pelos custos inerentes à execução da obra, mas também perante o autor pelos danos por este sofridos em consequência da intervenção ilegal no passeio público e da inércia na respectiva reposição, da qual resultou o furto da caravana do autor, em consequência do non facere, ou da omissão do dever de agir por parte da Ré.
XIV - Em face do concreto circunstancialismo alegado na petição inicial e atentas as responsabilidades acrescidas que lhe advêm do contrato de concessão que celebrou com o Estado Português, a “ B...” poderia e deveria ter agido de outro modo, sendo a sua conduta ilícita e a sua inércia e total indiferença perante a situação criada, merecedoras de censura ou reprovação do direito.
XV – Em suma: aplicando o direito aos factos alegados na petição inicial (na hipótese de serem os mesmos dados como provados), resultará que a Ré praticou facto ilícito, que agiu com culpa, que o autor sofreu danos e que estes são resultado, directa ou indirectamente, da conduta da Ré, a qual sempre responderia pelo risco.
XVI - Decidindo em contrário ao propugnado nas precedentes conclusões, o Tribunal “a quo” não fez a correcta aplicação do direito aos factos alegados pelas partes e violou os comandos contidos nos preceitos legais acima enunciados – nomeadamente nos artigos 264º, 483º, 486º, 487º, nº 2 e 562º do Cód. Civil; 36º do DL nº 59/99, de 2 de Março; 16º da Lei nº 159/99, de 14 de Setembro; 118º do DL nº 380/99, de 22 de Setembro e 28º do R.M.U.E. do Município da ..., constante do Aviso nº 6741/2003, publicado no DR, II Série, nº 196, de 26.08.2003 -- que aqui se dão por reproduzidos nos termos e para os efeitos previstos no nº 2 do artigo 690º do Cód. Proc. Civil (na redacção que vigorou até à entrada em vigor do DL 303/2007, de 24 de Agosto).
Termos em que, nos demais e melhores de direito aplicável e com o douto suprimento de V.V. Ex.as, que expressamente se invoca, deve ser dado provimento ao recurso e, por via disso, revogar-se a douta decisão recorrida e ordenar-se o prosseguimento dos autos em primeira instância com a prática da ulterior tramitação, seja convidando as partes a corrigir ou aperfeiçoar os seus articulados, seja designando data para realização da audiência preliminar, ou seja elaborando despacho saneador com fixação da materialidade assente e enunciação de base instrutória – pois que assim será feita a costumada e esperada
JUSTIÇA!
Contra-alegando, a B..., pugna pela manutenção da decisão recorrida, com o fundamento em que inexistem os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, designadamente a ilicitude do facto, por não ter violado qualquer direito do recorrente, nem qualquer norma legal destinada a proteger interesses alheios.
De igual modo, defende que não se verifica qualquer nexo causal entre o facto que lhe é imputado – alteamento do passeio para lá da cota inicial – e os danos invocados – furto da caravana e prejuízos do mesmo decorrentes.
Por seu turno, a E...., contra-alegou, pugnando, igualmente, pela manutenção da decisão recorrida, com idênticos fundamentos, ou seja, que a sua segurada não praticou qualquer ilícito, não tendo violado qualquer direito do recorrente, subsumível à previsão do n.º 1 do artigo 483.º do CC, nem qualquer norma protectora de interesses alheios.
Ainda que assim não fosse, sempre faleceria o requisito do nexo de causalidade entre a imputada conduta e o dano, por não se poder imputar ao alteamento do passeio o furto de uma caravana.
Colhidos os vistos legais, há que decidir.
Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se se verificam ou não, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e, por consequência, se os réus devem ou não, ser condenados a indemnizar o autor pelos invocados danos, na hipótese de os factos quanto a tal alegados, se viessem a demonstrar.
No que toca à fundamentação de facto, referiu-se o seguinte, na decisão recorrida:
“A presente decisão irá ser proferida tendo como pressupostos de facto todos os factos alegados pelo autor na petição inicial, o que inclui quer os factos assentes com base nos documentos juntos aos autos, confessados e não impugnados pela ré e chamadas, quer os factos controvertidos, ou seja, que carecem de prova.
Efectivamente e conforme se irá explanar de seguida, mesmo que estes factos controvertidos se viessem a provar, em audiência de discussão e julgamento, os pedidos formulados pela autora ainda assim seriam manifestamente improcedentes.
Assim sendo, entende-se que não é necessário estar a elencar os factos assentes, justamente porque a presente decisão conta também com os factos controvertidos, pelo que passamos de seguida à análise do direito, que, no essencial, reproduz os argumentos já explanados no convite efectuado às partes.”.
Efectivamente, a decisão do presente pleito, passa pela análise de toda a factualidade alegada, no seu conjunto, a qual, mesmo que totalmente procedente, levaria, como levou, à improcedência da acção.
Para melhor compreensão da questão sub judice (dada a inexistência da descrição dos factos alegados), passamos a transcrever, no que a tal se refere, a decisão recorrida:
“A obrigação de indemnizar, genericamente prevista no art. 562º e seguintes do Código Civil (CC), pode ter origem na responsabilidade civil obrigacional/contratual ou na responsabilidade civil extracontratual.
A primeira tem como pressuposto necessário a existência de uma obrigação e o seu incumprimento pelo devedor, obrigação essa que pode emergir de um negócio jurídico unilateral ou bilateral/contrato, bem como de qualquer outra fonte das obrigações, nomeadamente a gestão de negócios (cfr. art. 466º do CC) e o enriquecimento sem causa (cfr. art. 473º/1, do CC).
A segunda pode ter por fundamento um facto ilícito e culposo (cfr. art. 483º/1, do CC), um risco legalmente previsto (cfr. art. 499º e seguintes do CC) ou, inclusive, um facto lícito (art. 1348º/2, do CC).
Entrando na tarefa tipicamente judicativa da subsunção dos factos ao direito, exclui-se, em primeiro lugar, a responsabilidade obrigacional/contratual.
Efectivamente, nada na causa de pedir permite equacionar a gestão de negócios ou o enriquecimento sem causa. Também a comunicação escrita enviada pela ré ao autor, alegada no artigo 27º da petição inicial e junta a fls. 16 dos autos, bem como a comunicação alegada no artigo 30º deste articulado, não corporizam um negócio jurídico unilateral, designadamente a assunção pela ré, perante o autor, da obrigação de reparar o passeio. Com efeito, pese embora se extraia da dita missiva, de teor cordial, e da comunicação uma assunção de responsabilidade pela reparação do passeio, já não se retira das mesmas a vontade da ré em vincular-se a essa obrigação em relação ao autor.
Incidindo, agora, sobre a responsabilidade civil extracontratual, a relação entre o autor e a ré não se situa no plano dos conflitos de vizinhança que estão subjacentes ao disposto no art. 1348º/2, do CC, hipótese que não tem aplicação ao caso vertente.
Também o art. 509º/1 do CC não é fundamento para a responsabilidade da ré, porque os danos alegados pelo autor não derivam da própria instalação, mas das obras executadas pela ré para a referida instalação.
Por último, no que respeita à responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, não há facto ilícito. Efectivamente, para efeitos de responsabilidade civil por esta via, é necessário que se verifique uma das seguintes hipóteses: a) violação ilícita de um direito absoluto (cfr. art. 483º/1, do CC); b) violação de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios (cfr. art. 483º/1, do CC); ofensa do crédito ou do bom nome (cfr. art. 484º do CC); conselhos, recomendações ou informações quando se tenha assumido a responsabilidade pelos danos, quando havia o dever jurídico de os dar ou quando o procedimento do agente constitua facto punível (cfr. art. 485º do CC); e omissão de um dever que deriva da lei ou de negócio jurídico (cfr. art. 486º do CC).
No caso vertente, o facto imputado à ré e que terá de ser reconduzido a uma das hipóteses referidas reconduz-se à circunstância de ter alteado o passeio fronteiro à moradia do autor, dificultando a passagem de uma caravana.
Por via deste acto, a ré não invadiu os limites do direito de propriedade do autor, pelo que o facto imputado não violou este direito absoluto.
Efectivamente, o único direito do autor que poderá ter sido violado com a actuação da ré é a eventual serventia de que o mesmo era titular à data e que lhe permitia o acesso à via pública.
As serventias que permitem o acesso de propriedades privadas à via pública não consubstanciam qualquer direito real de servidão sujeito ao regime do direito privado porque incidem sobre um bem do domínio público (o passeio) – cfr. art.
202º/2, do CC.
Trata-se antes de um uso privativo de um bem do domínio público, que encontra algum acolhimento legal nos artigos 108º do Estatuto das Estradas Nacionais (Lei nº 2037 de 1947.08.19) e 62º do Regulamento Geral das Estradas e Caminhos Municipais (Lei nº 2110 de 1961.08.19).
No regime legal traçado pelos preceitos referidos «são patentes, de imediato, duas notas reveladoras da natureza jurídico – pública do direito de acesso. A primeira é a necessidade de autorização administrativa. A segunda é a precariedade, salvaguardando a possibilidade de modificação da situação sempre que o interesse público o reclame» (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13-01-2004, proc. nº 040581, in www.dgsi.pt).
Razão pela qual, em termos conceituais, a doutrina e a jurisprudência têm sido unânimes em entenderem que este direito de acesso «é um direito subjectivo público, um direito sui generis de natureza administrativa – não um direito real de servidão” (Afonso Queiró - in “Dicionário Jurídico da Administração Pública,” vol. I, pp 74/75, apud acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13-01-2004, proc. nº 040581, in www.dgsi.pt).
Tratando-se de um direito público que confere ao particular o direito de uso privativo do domínio público não é um direito absoluto, oponível a qualquer pessoa e susceptível de defesa directa contra todos pelo seu titular. Trata-se antes de um direito relativo, só oponível à Administração e, por isso, passível de ser defendido perante terceiros mediante a intervenção da Administração (para mais desenvolvimentos, veja-se Marcello Caetano, in Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, Almedina, Reimpressão da edição Brasileira de 1977, 2003, pág. 347 e 348).
Trata-se, no fundo, de um direito pessoal de gozo, à semelhança do direito do locatário, mas que não beneficia da extensão dos meios de defesa da posse por falta de previsão expressa. Note-se que a deliberação tomada pela Câmara Municipal da ... no dia 22-12-2004 foi justamente no sentido de proceder a um levantamento das reclamações e “promover a execução imediata das obras, debitando custos acrescidos dos inerentes encargos administrativos à Empresa B....” (cfr. fls. 32).
Acresce que o autor também não alega a existência de autorização administrativa para o exercício da referida serventia e factos relativos à culpa (cfr. art. 487º do CC), o que, podendo ser colmatado através de um convite ao aperfeiçoamento, não se justifica, no caso vertente, uma vez que falece o pressuposto do facto ilícito.
Por último, a simples alegação de que a ré alteou o passeio fronteiro à sua moradia em 10 cm também não permite concluir pela violação de qualquer dever de natureza técnica, legalmente previsto e que inclua o interesse do autor no espectro de interesses a cuja tutela se destina a norma legal respectiva.
Destarte, a pretensão do autor em relação à ré falece nesse pressuposto essencial que é o facto ilícito.
***
Dispositivo
Em face de todo o exposto, julgo a presente totalmente improcedente e, em consequência, absolvo a ré dos pedidos.
Custas pelo autor, nos termos do art. 446º/1 e 2, do CPC.”.
Se se verificam ou não, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e, por consequência, se os réus devem ou não, ser condenados a indemnizar o autor pelos invocados danos, na hipótese de os factos quanto a tal alegados, se viessem a demonstrar.
Alega o recorrente que as rés praticaram um acto ilícito ao alterarem o perfil e a altura do passeio, defronte da sua casa, o que só a Câmara Municipal da ... poderia fazer, bem como que o furto da caravana só ocorreu porque, em consequência do altear o lancil, o recorrente não a pode aparcar no seu logradouro.
Desde já se adianta que a sentença recorrida não merece a censura que lhe faz o recorrente, sendo de manter e sufragar, até por aplicação do disposto no artigo 713.º, n.º 5 do CPC.
No entanto, não deixaremos de consignar mais o seguinte.
Como decorre do disposto no artigo 483.º, n.º 1, do CC:
“Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”.
Daqui resulta, pois, que a responsabilidade civil baseada na prática de um facto ilícito, pressupõe a prática de um facto; a ilicitude; a imputação do facto ao lesante; a existência de um dano e um nexo causal entre o facto e o dano – cf., por todos, Antunes Varela, in Das Obrigações Em Geral, Vol. I, 10.ª edição, Almedina, Julho de 2008, a pág. 526.
No caso em apreço, a questão coloca-se relativamente à questão da ilicitude e do nexo causal entre o facto e o dano, pelo que será acerca de tais requisitos atinentes à ora discutida responsabilidade civil que nos iremos debruçar.
Seguindo o autor e obra ora citada (pág.s 533 a 541), a ilicitude poderá revestir duas formas: a violação de um direito de outrem ou violação de lei que protege interesses alheios.
Na primeira das variantes assinaladas, visa-se a protecção de alguns direitos subjectivos (que de outra forma não gozem de protecção legal) e os direitos absolutos, nomeadamente os direitos reais e de personalidade.
Entre os direitos reais adquire especial importância, o direito de propriedade, em qualquer das violações que ao mesmo possam ser feitas.
Já na segunda de tais variantes, se prevê a infracção de uma norma que se destine à protecção de interesses alheios, referindo-se que se trata da infracção de leis que embora não conferindo aos respectivos titulares um direito subjectivo ou que, visando a protecção de interesses colectivos, não deixam de atender aos interesses particulares subjacentes das pessoas ou grupo de pessoas visados.
Em alguns casos, é suficiente a violação de normas que visam prevenir não a produção do dano em concreto, mas o simples perigo de dano em abstracto, designadamente regulamentos que visam a especial protecção e segurança de pessoas e bens, v. g. regulamento de segurança de elevadores (hipótese visada no Acórdão da Relação de Lisboa, de 16/10/2008, Processo n.º 6449/2008-8, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrl) ou no domínio da gestão urbanística e ordenamento do território (questão versada no Acórdão do STJ, de 11/03/2010, Processo 449/03.3, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj).
Quanto a esta segunda variante da ilicitude, necessário se torna, em primeiro lugar que à lesão dos interesses do particular corresponda a violação de uma norma legal, isto é tem de existir a violação de um direito protegido na norma violada.
Em segundo lugar, que a tutela do direito violado figure, de facto, entre os fins da norma violada e não um mero reflexo da protecção dos interesses colectivos que, como tais a lei visa salvaguardar.
Por último, que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar.
Traçado o quadro teórico do tipo de responsabilidade em discussão, vejamos, então, por cotejo com a situação em apreço, se a mesma se tem de ter por verificada.
Como acima já dissemos, somos de opinião que assim não é.
Efectivamente, no âmbito da violação de direitos, não cabe o direito do recorrente (o de ter livre e fácil acesso à sua residência) no quadro dos direitos a que se refere o n.º 1 do artigo 483.º, do CC, tal como já dissecado na sentença recorrida e para cujos termos se remete.
Também, por referência à segunda variante da ilicitude, desde logo, falece o primeiro dos pressupostos ora enunciado: a violação de uma norma legal.
E tanto assim é que o autor, na petição inicial, não indica a violação de qualquer norma legal e só nas suas alegações e conclusões de recurso veio referir a violação de inúmeras normas de índole administrativa, a fim de fundamentar a sua pretensão.
Como é óbvio, trata-se de questões novas e de que não curamos de analisar, pois que, como consabido, os recursos não visam o conhecimento e decisão de questões novas, não tratadas na decisão recorrida, por até aí não suscitadas.
Ao invés, os recursos visam apenas a reapreciação e decisão de questões já versadas nos autos, constituindo como que um “remédio jurídico” para concretas situações de facto ou de direito já anteriormente alegadas e decididas no Tribunal a quo.
Assim, reitera-se, não podemos, agora, analisar a pretensão do recorrente à luz da violação de normas e de fundamentos não referidos nos articulados.
Daqui decorre, como consequência natural, que, inexistindo norma violada, também não podem verificar-se os demais requisitos acima enumerados, para que se possa ter por verificada a supra aludida segunda variante da ilicitude, ou seja, que a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada e que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar.
Ainda assim, não deixaremos de sublinhar que o direito eventualmente violado pela alegada conduta das rés é o que o autor tem a ter livre e fácil acesso, para si e seus bens, à sua residência e não a defesa do direito de propriedade, em toda a sua extensão e plenitude, sobre a mesma.
Ou seja, nem estamos perante um interesse particular protegido pela espécie de direito invocável (e invocado), nem o dano (furto da caravana) se insere no círculo de direitos potencialmente tutelados.
Como ora se referiu, o direito de livre acesso à casa de cada um, não visa a defesa do direito de propriedade sobre esta, mas visa tão só conferir a cada cidadão o direito de ter acesso a sua casa, em moldes razoáveis e facilitados, com vista a permitir as boas regras de convivência em sociedade e a paz social, nada tendo que ver com a protecção do direito de propriedade privada sobre a residência e solo onde foi edificada ou que dela é parte componente.
Assim, face ao exposto, tem de se concluir que, desde logo, falece o pressuposto da ilicitude para que, in casu, se possa falar de responsabilidade civil pela prática de facto ilícito, sendo de manter a sentença recorrida.
Mas ainda que assim não fosse, que não é, sempre a presente acção teria de naufragar dada a inexistência de nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Nos termos do n.º 1 do artigo 483.º do CC, apenas são indemnizáveis os danos resultantes do facto ilícito, os causados por ele.
Havendo que conjugar este com o artigo 563.º do mesmo Código, de acordo com o qual “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.”.
Existem algumas dúvidas acerca do âmbito de tal preceito, no sentido de saber se se consagrou a formulação negativa ou positiva da teoria da causalidade adequada (cf., por todos, Antunes Varela, ob. cit., pág.s 898 e seg.s e Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3.ª edição refundida, Almedina, 1979, pág.s 518 e seg.s.).
De acordo com o primeiro dos autores ora citados “… para que um dano seja reparável pelo autor do facto, é necessário que o facto tenha actuado como condição do dano. Mas não basta a relação de condicionalidade concreta entre o facto e o dano. É preciso ainda que, em abstracto, o facto seja uma causa adequada (hoc sensu) desse dano.” – ob cit., a pág. 900.
E, para Almeida Costa, a “indemnização confina-se aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão do seu direito ou interesse protegido.” – ob cit., a pág. 521.
Ora, no caso dos autos, o facto ilícito gerador dos prejuízos sofridos pelo autor – furto da caravana – foi praticado por um terceiro, pelo autor do furto da caravana, pelo que à luz da teoria da causalidade adequada não poderão ser as rés responsabilizadas pelos prejuízos que de tal furto derivaram, ainda que se viesse a demonstrar ter sido uma delas que alteou o lancil do passeio em frente da casa do recorrente.
O furto da dita caravana não pode ser considerado como resultado normal, expectável e em abstracto adequado, do facto de se ter alteado o dito lancil.
Pelo que, também pela não demonstração deste requisito, tem a presente acção de naufragar, o que acarreta a improcedência do recurso em análise.
Nestes termos se decide:
Julgar improcedente a apelação deduzida, em função do que se mantém a decisão recorrida nos precisos termos em que foi proferida.
Custas pelo apelante.