O lexema “sem justa causa” do artº 59º, nº 2 al. b) do CP deve ser entendido em sentido amplo, apelando a uma visão fáctica do conceito, compreendendo um conjunto de circunstâncias objectivamente reveladoras de uma atitude, sem motivo, em que o comum dos cidadãos não incorre, não merecendo ser tolerada, indesculpada.
a) Por sentença proferida, em 20-06-2007, no âmbito do processo (sumário) a que respeitam os presentes autos, transitada em julgado em 10-07-2007, o arguido, ora recorrente, E... foi condenado, pela prática, em 10-06-2007, de um crime de desobediência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 158.º, n.º 3, do Código da Estrada, e 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de sete meses de prisão, substituída por duzentas e trinta horas de trabalho a favor da comunidade, e na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de seis meses;
b) Cumprido o disposto no artigo 496.º, n.º 3, do CPP, os serviços de reinserção social prestaram, em 18-10-2007, informação com este conteúdo:
«No seguimento da solicitação desse tribunal, foi o arguido convocado, via postal, para o endereço fornecido – Rua …, Coimbra, afim de comparecer nos nossos serviços no próximo dia 18 de Outubro. A carta veio a ser devolvida com a indicação “mudou-se”.
Neste contexto, foi contactada a GNR de Ançã, tendo a entidade policial informado e, segundo dados recolhidos junto da anterior arrendatária do arguido, que o mesmo se terá ausentado para o estrangeiro, desconhecendo qual o país.
Em face da não comparência do arguido fica deste modo comprometido o desencadear dos mecanismos para dar execução à prestação de trabalho a favor da comunidade (…)»;
C) Realizadas diligências tendentes à localização do arguido, a autoridade policial contactada dirigiu ao tribunal os ofícios que se passam a reproduzir:
1. Em 08-11-2007 (GNR de Ançã):
«Informo (…) que se apurou que E... não residia na morada indicada nos autos há mais de um mês, quando o resto da família, esposa e filhos, carregou toda a mobília e se ausentou, em 22/09/2007, com destino à morada Rua … - Lavra.
Foram solicitadas diligências ao Posto Territorial desta Guarda em Matosinhos, para audição no âmbito do inquérito n.º 192/07.8GDCNT, tendo sido recolhida a informação de que a esposa do visado se encontrava em França desde Setembro de 2007 (…).
Foram ainda efectuadas diligências junto do EPR de Coimbra, no sentido de saber se eventualmente o visado estava detido, tendo sido obtida informação negativa.
(…)»;
2. Em 02-01-2008 (GNR de Matosinhos):
«Em resposta ao solicitado (…), informo (…) que das diligências efectuadas apurou-se que E... deixou de residir na Rua … -Lavra-Matosinhos, tendo ido trabalhar e residir para parte incerta de França».
D) Tendo vista dos autos, o Ministério Público promoveu, em 15-01-2008, a revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, nos termos e com os fundamentos de fls. 55/56 do processo principal (fls. 17 e 18 destes autos de recurso em separado);
E) O Sr. Juiz do tribunal de 1.ª instância concedeu prazo (10 dias) á defensora do arguido para se pronunciar sobre a promoção do Ministério Público e, após, realizou novas diligências tendo em vista a localização de E…, por referência às moradas indicadas a fls. 77 do processo principal, tendo obtido novas informações de órgão de polícia criminal, do seguinte teor:
1. Ofício com data de 15-03-2008:
«O Sr. E... já não reside na morada indicada.
(…).
Foram efectuadas várias diligências a fim de o localizar, mas tornaram-se infrutíferas.
Contactada a Junta de Freguesia de S. Martinho do Bispo, o mesmo não se encontra recenseado, nem ali tratou de qualquer documento (…)»;
2. “Certidão negativa” de 27-03-2008, elaborada pela GNR de Coimbra:
«Certifico que, tendo procedido às necessárias diligências, a fim de dar cumprimento ao vosso ofício n.º 1630421, de 13-02-2008 (…) – pedido de paradeiro referente a E..., com última residência na Rua …, Coimbra –, apurou-se, junto de sua mãe, que o mesmo tinha emigrado, com a sua esposa, para Inglaterra, já há algum tempo, desconhecendo a sua actual morada».
F) Em seguida, o Sr. Juiz proferiu o despacho recorrido, que ora se transcreve:
«E..., com os sinais dos autos, foi condenado, por sentença de 20-06-2007, transitada em julgado, por factos ocorridos em 22-06-2007, pela prática de um crime de desobediência, na pena de sete meses de prisão substituída por 230 horas de trabalho a favor da comunidade [fls. 25 a 30].
O IRS desenvolveu esforços tendentes a conseguir o cumprimento do aludido trabalho a favor da comunidade.
Porém, o arguido nunca foi encontrado e consta que se ausentou para o estrangeiro.
Nos termos do disposto no art. 59.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o tribunal revoga a pena de prestação a favor da comunidade e ordena o cumprimento da pena de prisão determinada na sentença se o agente, após a condenação:
a) Se colocar intencionalmente em condições de não poder trabalhar;
b) Se recusar, sem justa causa, a prestar trabalho, ou infringir grosseiramente os deveres decorrentes da pena a que foi condenado; ou
c) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
O comportamento do arguido revela a sua completa indisponibilidade para cumprir a pena de trabalho a favor da comunidade.
Nesta conformidade, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do art. 59.º do Código Penal, revogo a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e ordeno o cumprimento da correspondente pena de prisão de sete meses que foi determinada na sentença.
(…)».
3.1. Estatui o artigo 59.º do Código Penal Nos segmentos citados, o texto do artigo, resultante da revisão do Código levada a efeito pelo DL n.º 48/95, de 15 de Março, não foi alterado pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro. , na parte relevante à apreciação do caso concreto evidenciado no recurso:
«2 – O tribunal revoga a prestação de trabalho a favor da comunidade e ordena o cumprimento da pena de prisão determinada na sentença se o agente, após a condenação:
a) Se colocar intencionalmente em condições de não poder trabalhar;
b) Se recusar, sem justa causa, a prestar trabalho, ou infringir grosseiramente os deveres decorrentes da pena a que foi condenado; ou
C) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade não puderam, por meio dela, ser alcançadas».
No plano do direito adjectivo, consagram-se normas direccionadas à execução da prestação de trabalho a favor da comunidade, avultando, no específico domínio correlacionado com o caso dos autos, o n.º 3 do artigo 498.º do Código de Processo Penal, que dispõe: «À suspensão provisória, revogação, extinção e substituição» da pena de trabalho a favor da comunidade «é correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2 e3 do artigo 495.º».
Na redacção imediatamente anterior à actual, o n.º 2 do artigo 495.º impunha que, no contexto da eventual revogação da pena de prestação a favor da comunidade, o tribunal decidisse por despacho, depois de recolhida a prova e antecedendo parecer do Ministério Público e audição do condenado.
A versão hoje em vigor, criada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, substituiu a expressão “audição do condenado” por “ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão”. Perante a nova redacção da referida norma, a jurisprudência dos Tribunais da Relação vem acentuando, no domínio da revogação da suspensão da pena de prisão, embora com divergências quanto à amplitude do campo de aplicação do preceito legal alterado na referida forma, a imprescindibilidade de audição presencial do condenado.
Expliquemo-nos.
Para uns, a hipotética revogação da suspensão da pena de prisão impõe, por força da referenciada norma, sem destrinça quanto à modalidade da suspensão, a audição do condenado perante o Juiz Neste sentido, v.g., Acs. da Relação de Coimbra de 05-11-2008 e 01-07-2009, ambos publicados na CJ, tomo V, pág. 38 e ss. e tomo III, pág. 47 e ss., respectivamente; Acórdão da Relação de Guimarães de 21-09-2009, CJ, tomo IV, pág. 290 e ss..
Para outros, a lei impõe sempre que o condenado seja ouvido antes da revogação da dita pena de substituição. Mas apenas exige a audição presencial daquele quando a suspensão da execução tenha ficado subordinada a condições sujeitas a apoio e/ou fiscalização de autoridades e serviços, nomeadamente dos serviços de reinserção social, e não nos casos de suspensão tout court, não subordinada ao cumprimento de deveres, e ainda, naqueloutros em que, embora tendo sido fixados deveres, o tribunal não recorreu a serviços de apoio/fiscalização Cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 25-03-2010 e 26-05-2010, processos n.ºs 70/00.LIDSTR-D.C1 e 190/05.6GBTNV-C.C1, ambos publicados, em texto integral, no sítio www.dgsi.pt..
Quer na redacção anterior quer na versão actual do n.º 2 do artigo 495.º do CPP, a exigida audição do arguido pelo tribunal, seja presencial ou não, decorre inequivocamente dos princípios gerais do processo penal, designadamente os que têm consagração constitucional, com destaque para os consignados no artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, segundo o qual o processo criminal assegura todas as garantidas de defesa e o contraditório.
Efectivamente, o direito de audiência constitui emanação do próprio Estado de direito democrático e implica que a declaração do direito do caso penal concreto não seja apenas tarefa do juiz ou do tribunal (concepção “carismática” do processo), mas tenha de ser tarefa de todos os que participam no processo (concepção democrática do processo) e se encontram em situação de influir naquela declaração de direito, de acordo com a posição e funções processuais que cada um assuma Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 30-04-2003, CJ, tomo II, pág. 51..
Como se tem enfatizado na doutrina e na jurisprudência, o direito a ser ouvido, enquanto direito a dispor de oportunidade processual efectiva de discutir e tomar posição sobre quaisquer decisões, traduz um dos aspectos fundamentais do direito de defesa do arguido.
Esse direito está plenamente consagrado na lei infra constitucional, rectius, na alínea b) do n.º 1 do artigo 61.º do CPP, de acordo com a qual o arguido goza, «em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, do direito de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte».
A propósito do princípio do contraditório, escrevem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira que o mesmo implica: (a) o dever de “o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão”, (b) o “direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo”; (c) o “direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo”.
Com as variantes acima apresentadas, é hoje entendimento unânime que a não audição presencial do arguido, em violação do disposto no n.º 2 do artigo 495.º do CPP, constitui a nulidade insanável cominada na alínea c) do artigo 119.º do mesmo diploma legal.
Aliás, igual posição era já de sufragar no quadro da antiga redacção daquele dispositivo legal, independentemente da questão de saber se então se impunha a audição do condenado na presença do juiz ou se o exercício efectivo do direito de audição poderia ser assegurado de outra forma, mediante notificação e apresentação de defesa escrita Neste sentido, veja-se, a título meramente exemplificativo, o Ac. da Relação de Évora de 22-02-2005, In CJ, tomo I, pág. 267/268..
Volvendo ao específico caso dos autos, é indiscutível a aplicação da novel redacção do n.º 2 do artigo 495.º, porquanto todos os actos processuais, com excepção da sentença condenatória, incluindo a decisão de revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, foram praticados em data posterior à entrada em vigor da Lei n.º 48/2007 (cfr. artigo 5.º do CPP).
Tendo em conta as considerações acima expostas, também não subsistem dúvidas sobre a (genérica) imperatividade de a revogação daquela pena de substituição ser precedida da audição presencial do condenado, salientando-se que uma e outra das supra referidas posições jurisprudenciais não permite, no domínio da revogação da pena de trabalho a favor da comunidade, diversa interpretação do n.º 2 do artigo 495.º do CPP, uma vez que, mesmo considerada a concepção mais restritiva, a execução da pena de substituição em causa não prescinde da participação dos serviços de reinserção social (cfr. artigos 496.º e 498.º do CPP).
Todavia, a previsão normativa determinante do direito de audição (presencial) do condenado não pode ser vista em termos absolutos, sem quaisquer restrições.
Basta pensar na hipótese, verificada nos autos, de o condenado não permitir, por ausência e impossibilidade da sua localização, a sua notificação para o exercício do referido direito.
Neste quadro, entendo-se de outro modo, ficaria, quiçá definitivamente, inviabilizada a adequada resposta do sistema punitivo, perante o impedimento tanto da execução da pena de substituição (prestação de trabalho a favor da comunidade), como da pena principal (prisão), solução, de todo em todo, irrazoável, para não dizer absurda, e que o direito manifestamente não postula.
Na vertente situação, foram criadas todas as condições para o efectivo exercício do direito de defesa, sucedendo tão só que o arguido, ao ter-se desvinculado dos seus deveres processuais [cfr. disposto no artigo 196.º, n.º 3, alínea b), do CPP)] não quis exercê-lo.
Em conformidade, não houve violação quer do artigo 495.º, n.º 2, ex vi artigo 498.º, n.º 3, do CPP, quer da norma constitucional do n.º 1 do artigo 32.º da CRP, e não se verifica, consequentemente, a nulidade (insanável), prevista na alínea c) do artigo 119.º do CPP, arguida pelo recorrente.
A reposta só pode ser negativa.
A base normativa determinante da revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade é o segmento inicial da alínea b) do n.º 2 do artigo 59.º do Código Penal («se o agente se recusar, sem justa causa, a prestar trabalho»).
Os fundamentos subjacentes à revogação evocam singelamente a completa indisponibilidade do condenado para cumprir a pena de substituição, por nunca ter sido encontrado e constar dos autos que o mesmo se ausentou para o estrangeiro.
A lei não define o que deve entender-se por “recusa, sem justa causa”, deixando ao critério ponderado do Juiz a fixação dos seus contornos.
O lexema “sem justa causa” deve ser entendido em sentido amplo, apelando a uma visão fáctica do conceito, compreendendo um conjunto de circunstâncias objectivamente reveladoras de uma atitude, sem motivo, em que o comum dos cidadãos não incorre, não merecendo ser tolerada, indesculpada.
Os elementos disponíveis no processo revelam, é certo, que o arguido, em momento indeterminado, mas após a prolação da sentença condenatória, se ausentou da morada onde residia, porventura para o estrangeiro, e ainda que, apesar das exaustivas diligências efectuadas pelo tribunal, não foi possível localizá-lo.
Contudo, não esboçou o tribunal a mínima tentativa de determinar, através de prova tida por relevante, nomeadamente ouvindo familiares (a mãe do arguido, pelo menos, estava perfeitamente contactável), as (prováveis) razões do abandono da residência conhecida pelo condenado Elso Pinto e da (hipotética) ida para o estrangeiro.
Com os escassos factos conhecidos, não é possível formular um juízo de prognose seguro sobre se a partida do arguido para parte incerta obedeceu a uma atitude firme e incontroversa de incumprimento da pena que lhe foi imposta ou se, pelo contrário, se deveu a factores, incertos mas conjecturáveis, alheios a esse propósito.
Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações, o tribunal a quo não podia ter revogado, no contexto em que se verificou, a pena de trabalho a favor da comunidade.
Impõe-se, assim, a procedência do recurso, nesta parte, e a revogação do despacho recorrido, devendo o tribunal a quo realizar as diligências indispensáveis tendentes ao cumprimento pelo condenado E… da pena de substituição que lhe foi aplicada.
Face à improcedência parcial do recurso, incumbe ao arguido/recorrente o pagamento de custas, ao abrigo do disposto nos arts. 513.º, n.º 1 e 514.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal e arts. 82.º, n.º 1 e 87.º, n.ºs 1, al. b), e 3, do Código das Custas Judiciais.
Tendo em conta a complexidade, não acentuada, do processo e a condição económica do arguido, fixa-se em 2 UC a taxa de justiça.
Posto o que precede, os Juízes da 5.ª Secção Criminal desta Relação de Coimbra, concedendo parcial provimento ao recurso, revogam a decisão recorrida e determinam que o tribunal da 1.ª instância realize as diligências necessárias para que o condenado E... cumpra agora a pena de substituição (prestação de trabalho a favor da comunidade) que lhe foi imposta.
Custas pelo recorrente, com 2 UC de taxa de justiça.
Coimbra, 13 de Outubro de 2010
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(Alberto Mira)
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(Elisa Sales)