CRIME NEGLIGENTE
ELEMENTOS DO TIPO
NEXO DE IMPUTAÇÃO
Sumário

1.Para a imputação de um evento ao agente, para além da violação do dever objectivo de cuidado, é ainda necessário esse evento seja consequência daquela violação.
2. Não viola o dever objectivo de cuidado, o agente que tendo tomado de arrendamento três fracções de um prédio urbano que compõem um espaço destinado nomeadamente a piscina onde eram leccionadas aulas de natação, confia que a referida piscina obedece a todos os requisitos legais de utilização, uma vez que a mesma havia sido construída por profissional habilitado para o efeito, tinha sido emitida licença de utilização e sujeita a inspecção por entidade competente.

Texto Integral

I – Relatório.
1.1. Sob pronúncia do M.mo Juiz de Instrução que recebeu a acusação do Ministério Público, e concordância da assistente A, a arguida D tal como aquela já mais identificada nos autos, foi submetida a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal singular, porquanto alegada e indiciariamente agente de factos consubstanciadoras da autoria consumada de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto e punível através das disposições conjugadas dos artigos 148.º, n.º 3 e 144.º, alínea d), ambos do Código Penal.
O Hospital de S. André, S.A. formulou tempestivo pedido de indemnização civil contra a dita arguida, requerendo a respectiva condenação a solver-lhe € 2.943,50 acrescida de juros moratórios até efectivo reembolso.
Findo o contraditório, foi proferida sentença eximindo a arguida/demandada de ambas as responsabilidades assim reclamadas.
1.2. Desavinda, a assistente interpôs recurso extraindo da pertinente motivação a formulação das conclusões seguintes:
1.2.1. Anterior Acórdão do Tribunal da Relação, ordenou o reenvio do processo para novo julgamento. E isto porque,
1.2.2. Entendeu também que era necessário e extremamente importante para aferir do elemento subjectivo do crime no novo julgamento, apurar da existência de “vários ramais de ligação á conduta de retorno comum”, conforme preceitua a alínea c) do n.º 2 do Decreto-Regulamentar n.º 5/97, de 31 de Março. É que,
1.2.3. Verificando-se que a arguida violou norma expressa reguladora da actividade nas piscinas, (sendo esta violação causal do acidente) existiu uma violação do dever objectivo de cuidado exigível naquelas circunstâncias, fortemente indicador da existência de negligência.
1.2.4. A existência de normas jurídicas que regulamentavam a actividade exercida pela arguida, impunha que o Sr. Juiz a quo tivesse reanalisado a questão do elemento subjectivo do crime, tendo também em consideração a resposta que viesse a ser dada à nova questão submetida a julgamento. Só que,
1.2.5. Resulta da matéria de facto provada que a arguida violou norma expressa reguladora da actividade exercida e destinada a garantir a segurança na piscina (cfr. artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Regulamentar n.º 5/97, de 31 de Março).
1.2.6. Houve assim, como se referiu em tal aresto, violação do seu dever objectivo de cuidado, razão pela qual a recorrida devia ter sido condenada.
1.2.7. Aliás, a sentença recorrida estava vinculada à decisão do Tribunal da Relação.
1.2.8. Tendo sido provada a inexistência dos ramais de ligação, sempre o Tribunal sindicado teria de decidir pela condenação da arguida pela prática do crime de que vinha acusada.
Sem conceder,
1.2.9. A arguida vinha pronunciada pela prática de factos que integram a prática de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência previsto e punível através das disposições conjugadas dos citados artigos 148.º, n.º 3 e 144.º, alínea d).
1.2.10. Para se aferir se a arguida praticara (ou não) tal crime importava em tese geral, saber:
a) Se o sistema de funcionamento da piscina, tal como se encontrava a funcionar no momento do acidente, fora causa do acidente sofrido pelo F.
b) Se a arguida, responsável e proprietária do estabelecimento onde ocorreu o acidente, estava (ou não) obrigada a assegurar que da utilização de tais instalações não adviria qualquer perigo para a vida e integridade física dos utentes.
1.2.11. E, em caso afirmativo, se a arguida cumpriu esse dever.
1.2.12. Da matéria de facto elencada na decisão recorrida como provada, resulta à exaustão que foi o sistema da piscina, tal como se encontrava a trabalhar, que deu causa ao acidente sofrido pelo F
1.2.13. Aliás, esse foi também o entendimento sufragado na mesma decisão, e daí que, no que concerne, nenhuma censura caiba apontar-se-lhe. Apesar disso,
1.2.14. Ademais sustentou absolver a arguida considerando que esta não conhecia “a fonte de perigo adequada à produção do resultado lesão física” (sic), tendo concluído que ela não praticou algo que pudesse criar esse risco, concluindo, então, não haver agido a recorrida por forma negligente.
1.2.15. O conceito de negligência consta no artigo 15.º, do Código Penal, que destrinça entre a negligência consciente e a negligência inconsciente.
1.2.16. Enquanto na primeira forma o agente previu a realização do crime e confiou em que ele não teria lugar ou mostrou-se indiferente a essa produção [alínea a) do dito normativo], na segunda delas o agente não previu – como podia e devia – aquela realização do crime [subsequente alínea b)].
1.2.17. Isto é, na negligência cumpre indagar se ocorreu violação de um dever objectivo de cuidado e, ainda, determinar se era exigível ao agente a adopção de um outro comportamento que evitaria a produção do resultado.
1.2.18. Ora, no caso sub judice houve efectivamente, por parte da arguida, a violação de um dever objectivo de cuidado, tendo sido essa sua conduta que deu causa ao acidente que lesionou o F, sendo que
1.2.19. A violação de normas de conduta assume especial relevo em domínios altamente especializados que importam riscos para a vida de outra pessoa.
1.2.20. Esta problemática tem a ver com a denominada negligência na aceitação ou na assunção.
1.2.21. Trata-se da assunção de tarefas e aceitação de responsabilidades “para as quais o agente não está preparado, nomeadamente porque lhe faltam as condições pessoais, o conhecimento, ou mesmo o treino necessário para a aceitação de uma actividade perigosa” (cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense, Tomo I, pág. 108).
1.2.22. No caso vertente, a arguida era sócia gerente da sociedade que explorava o espaço onde se integrava a piscina no qual ocorreu o acidente.
1.2.23. Era, pois, responsável pelo bom funcionamento da piscina, em termos de higiene e segurança para os utentes, como, aliás, foi dado por provado (facto 2.1.11.)
1.2.24. Competia-lhe assegurar, na qualidade de responsável da utilização daquelas instalações que não adviria perigo para a vida e integridade física dos utentes (facto provado 2.1.12.), obrigação que não cumpriu.
1.2.25. Nunca mandou fazer qualquer análise de risco ao funcionamento da piscina.
1.2.26. À data dos factos encontrava-se em vigor o Decreto-Regulamentar n.º 5/97, de 31 de Março, sendo este diploma que contém o conjunto de normas que regulamenta as condições técnicas e de segurança das diversões aquáticas.
1.2.27. No seu artigo 10.º, mostram-se elencadas aquelas a que deve obedecer o sistema de sucção das piscinas, sendo que, in casu, elas foram violadas.
1.2.28. Mas, já o Decreto-Regulamentar n.º 34/95, de 16 de Dezembro, e a Directiva CNQ de 23/93 (que estabelece normas de cuidado a observar para o sector de construção/exploração das piscinas com tanques), estatuíam as regras constantes do aludido artigo 10.º.
1.2.28. Não pode colher a pretensão da arguida quando invoca o desconhecimento do Decreto-Regulamentar n.º 5/97, quando é certo que desconhecia toda e qualquer legislação sobre o assunto.
1.2.29. E isto quando a arguida, que explorava uma piscina com fins lucrativos, tinha obrigação de saber qual a legislação aplicável. E teria bastado ler os diplomas legais aplicáveis para saber que o sistema montado na piscina provocaria risco de vida para os utentes da mesma.
1.2.30. Só que não se preocupou minimamente com este facto, preferindo lançar para terceiros uma responsabilidade que, em primeira-mão, a ela competia.
1.2.31. Sublinhe-se que este acidente ocorreu depois dos acidentes do “Aquaparque” pelo que a arguida tinha obrigação de estar alertada para a perigosidade do sistema de circulação de água de uma piscina e, nomeadamente, o perigo de sucção que existe junto dos elementos de esvaziamento da piscina.
1.2.32. Quem assume a responsabilidade de explorar uma piscina tem se de assegurar que ela obedece a todas as regras de segurança. E se tal não acontecer tem de a encerrar, sejam qual forem as consequências económicas que daí resultarem.
1.2.33. Se a arguida não tinha conhecimentos técnicos sobre os equipamentos da piscina, nomeadamente sobre bombas de sucção, teria de encarregar pessoa com formação académica, nomeadamente em física, que lhe pudesse assegurar o funcionamento do sistema.
1.2.34. Por não o ter feito, o acidente ocorreu em consequência dessa omissão do dever de cuidado, existindo assim um ilícito negligente.
1.2.35. Trata-se de negligência na assunção ou na aceitação, ou seja, a aceitação de responsabilidade para as quais a arguida não estava preparada por falta de conhecimentos e treino no desempenho daquela tarefa.
1.2.36. A arguida tinha perfeito conhecimento que a piscina em causa fora inicialmente desenhada para os condóminos, que não estava preparada para uso público – aceitou tal facto.
1.2.37. Mas mais: a exploração de uma piscina tem inerente a utilização dos seus mecanismos próprios e questões relacionadas com a circulação da água, com a electricidade, implicando um conjunto de conhecimentos que a arguida não tinha, mas devia ter ou devia ter-se rodeado de pessoas que tivessem tal conhecimento.
1.2.38. A arguida só deveria manter aberto ao público tal ginásio após ter solicitado, e obtido, uma vistoria que lhe garantisse que estava a cumprir as normas de cuidado, quer legais, quer regulamentares, profissionais e de experiência.
Mas mais:
1.2.39. Resulta da carta referida no ponto 2.1.15 dos factos assentes (fls. 551 dos autos), dirigida pela arguida à Mar…, que a arguida não teve qualquer preocupação com a segurança dos utentes da piscina.
1.2.40. A delegação de Saúde sugeriu-lhe um “levantamento seguido por um relatório elaborado por um técnico especializado e conhecedor das infra-estruturas exigidas para o funcionamento da piscina”, sendo que,
1.2.41. A arguida não efectuou qualquer levantamento nem contactou qualquer técnico, desculpando-se com o facto de a Delegação de Saúde não ter técnico especializado para o efeito.
1.2.42. Só que era ela própria, à sua custa, que deveria ter contactado um técnico “com habilitações profissionais e específicas” para fazer uma avaliação do risco da piscina.
1.2.43. Aliás, se tivesse o mínimo de cuidado com a segurança dos utentes deveria ter fechado de imediato a piscina e só após essa vistoria e efectuadas todas as reparações, reabrir aquele espaço.
1.2.44. Sublinhe-se que aquele estabelecimento não era um empreendimento de uso social, não era uma associação sem fins lucrativos que visasse o bem-estar e a saúde dos cidadãos comuns: Era um ginásio cujo objectivo era o lucro!
1.2.45. A ser assim é óbvio que teria de ser a arguida, à sua custa, quem deveria ter feito uma análise de risco ao funcionamento da piscina!
1.2.46. Mas mais: nessa mesma carta a arguida reconhece ter o estabelecimento a funcionar com “um caótico e perigoso quadro de luz”!
1.2.47. Aliás, a fls. 69 dos autos, numa carta dirigida pela Direcção Regional do Centro à Físicoleiria é dito expressamente que esta empresa “deveria ter solicitado a um técnico devidamente credenciado a realização duma vistoria à instalação eléctrica, e, posteriormente solicitar uma vistoria à Cer.., o que a arguida não fez.
1.2.48. Este comportamento poderia até integrar negligência consciente, uma vez que a arguida não ignorava o perigo que representava para os utentes a utilização da piscina!
1.2.49. A sentença recorrida, apesar de reconhecer que foi a sucção existente no ralo do fundo que provocou as lesões ao F, desresponsabiliza a arguida desse facto.
1.2.50. E isto porque não tendo havido ainda qualquer acidente, a arguida não tinha obrigação de saber o perigo que constituía o ralo do fundo e o sistema a ele ligado!
1.2.51. Só que o facto de ser este o primeiro acidente não a desculpabiliza,
1.2.52. Aliás, ocorrera já o acidente do “Aquaparque”, profusamente divulgado na imprensa, e a partir do qual ninguém poderia ignorar o perigo que as bombas de sucção representam numa piscina.
1.2.53. A arguida foi totalmente irresponsável. Não teve a mínima preocupação em informar-se ou em fazer respeitar as regras impostas para a construção da piscina.
1.2.54. E isto quando existem empresas privadas que podem certificar o circuito eléctrico, nomeadamente a Cer
1.2.55. No que concerne à matéria de facto, apenas relativamente a um ponto se entende que os elementos contidos no processo deveriam ter conduzido a uma decisão diferente daquela que foi proferida sobre matéria de facto. Com efeito,
1.2.56. Foi incorrectamente julgado como não provado que “2.2.2. A arguida não curou de averiguar, como lhe competia, nomeadamente através de vistorias e pareceres técnicos, se a circulação e a renovação da água da piscina se processava sem qualquer perigo para os utentes, de forma a evitar a ocorrência do verificado.”
1.2.57. Tal materialidade deveria ter-se como provada, considerando-se os meios de prova seguintes: a) a aludida carta dirigida à Mar…; b) a carta dirigida pela Direcção Regional do Centro à Físic… (cfr. conclusão supra n.º 47); c) os pontos 2.1.1. a 2.1.8, todos inclusive; 2.1.11. a 2.1.13 também todos inclusive; 2.1.15. e 2.1.17 da matéria de facto.
1.2.58. Ao absolver a arguida fez o M.mo Juiz a quo incorrecta interpretação dos factos e da lei, tendo violado, além do mais, os apontados artigos 15.º; 148.º, n.º 3 e 144.º, alínea d).
Terminou pedindo a alteração do mencionado ponto 2.2.2. da matéria de facto e com ele a revogação da sentença recorrida, a qual deverá ser substituída por Acórdão que decrete a condenação da arguida pela prática do crime cuja autoria lhe vem assacada.
1.3. Cumprido o disposto pelo artigo 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, responderam quer o Ministério Público, quanto a arguida, pugnando ambos pela manutenção do sentenciado e, logo, pelo improvimento do recurso.
A segunda, sustentando-se no seguinte quadro de conclusões:
1.3.1. Pese embora a circunstância de o antecedente Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra poder levar a inferir que, efectivamente, já fora a arguida condenada na instância de recurso (sendo mero formalismo o reenvio do processo à 1.ª instância), certo é que tal não sucede.
1.3.2. Pois que aquele Tribunal pretendeu, diversamente, que respostas mais concretas e exaustivas fossem dadas a determinados pontos de facto.
1.3.3. Após tais respostas não se pode, ainda assim, concluir pela condenação da arguida: até face ao absurdo, ilegal, injusto e, mesmo, inconstitucional que semelhante decisão consubstanciaria.
1.3.4. Se assim fosse, constituiria semelhante decisão condenatória uma violação de lei insuportável para um Estado Democrático, já não falando na inconstitucionalidade de tal aresto, porque de facto se negava a qualquer arguido, mesmo perante evidências de responsabilidades de terceiros, uma decisão justa, legal e isenta de emoções,
1.3.5. Vindo a ser condenado em face de não cumprimento de normas, que nem sequer ao caso concreto são aplicáveis.
1.3.6. A punição das condutas, “por acção ou omissão”, em termos de negligência visa impedir o surgimento de “resultados típicos antijurídicos”, proibindo a lei “a prática das condutas idóneas para os produzirem, querendo que eles sejam representados pelo agente.”
1.3.7. Ou chegando a lei a permitir as condutas em questão “mas rodeadas dos necessários cuidados, para que os resultados se não produzam” (cfr. Maia Gonçalves, in Código Penal, Anotado, 9.ª edição, 1996, pág. 234).
1.3.8. Quer na negligência consciente, quer na inconsciente, sempre se exigiria que o agente tivesse a capacidade para proceder com os cuidados indicados, perante a específica circunstância que se lhe deparasse.
1.3.9. No caso presente não “seria razoavelmente de esperar” da recorrida “com as qualidades e capacidades do agente” conduta diversa, actuação diversa no que à específica matéria do ralo do fundo da piscina concerne, da velocidade de circulação da água nesse ralo (cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Pressupostos da Punição, Jornadas de Direito Criminal, pág. 71).
1.3.10. Da matéria de facto considerada provada na sentença ora recorrida há que extrair de relevante o facto de a ora recorrida não ter “conhecimentos técnicos que permitam optar por uma solução para o aquecimento da piscina” (cfr. ponto 2.1.18 dos factos provados).
1.3.11. Bem como que “os contactos a que a arguida se refere com a Mar… só significa que a mesma não tem os conhecimentos de instalação necessários à resolução do problema do aquecimento, e a obtenção da melhor solução à resolução do problema.”
1.3.12. Ou, ainda, que ao “inexistirem reclamações quanto ao ralo em concreto só nos indica que a ­arguida nem sequer podia representar o perigo de sucção que este continha, bem como o facto de haver um único ramal ser um factor de risco, e assim nem prever o resultado ocorrido nem era capaz a tal.”
1.3.13. Acrescendo que “A arguida (…) não tinha conhecimento do fundo da piscina”, e que “esta não era esvaziada e na altura de início de actividade tinha centenas de crianças inscritas na natação e que na altura só tinha cerca de 23 crianças inscritas sendo que o único problema era o do não aquecimento da piscina e daí ter cuidado pela realização das alterações pelas entidades assinaladas.”
1.3.14. Tendo sido inquirido em audiência o Professor AF este explicitou que “fez visita à piscina em causa em 2002, que a aspiração era feita pelo “ralo e skimmers”, havia tubagens, mas não era claro que pudessem estar ligados e havia obras posteriores, podendo existir o ramal mas que podia não funcionar.”
1.3.15. O Eng. C L afirmou em audiência “que o circuito de aspiração era independente, havia só um ramal ligado directamente à bomba n.º 2 (conforme fls. 164) e não era possível mais ramais porque o objectivo era o de aquecer a piscina, e para não haver qualquer risco deveria ter-se feito outro circuito procurando outro “skimmer”.
1.3.16. Perante estas declarações de dois técnicos, duas individualidades com conhecimentos na matéria, “percebe-se que nem o perito soube dizer da existência ou não de ligação de ramais em termos funcionais e à luz do DR 5/97, e por outro lado as entidades que procederam à alteração” também não “tiveram em conta tal diploma” (cfr. dita sentença).
1.3.17. Relevante é ainda que as concretas falhas apontadas pela Autoridade de Saúde concelhia (as quais determinavam deverem ser encaradas como “impeditivas do estabelecimento funcionar”) não concerniam à matéria do ralo do fundo, da velocidade de circulação da água neste (cfr. documento junto aos autos a fls. 530 a 533).
1.3.18. Foi, ainda, tido em consideração pela sentença recorrida que “se tratava de uma piscina com cerca de 80 m2 sendo que todo o espaço da fracção do prédio funcionava como ginásio e que este lhe foi entregue pronto a funcionar.”
1.3.19. A arguida “confiou em entidades que conhecem o procedimento de segurança e de exigibilidade técnica, e com certeza tais entidades deveriam ter presente o DR 5/97 que lhes impunha regras de construção” (ainda tal peça processual).
1.3.20. Sendo assim forçoso concluir que a arguida em nada contribuiu – quer por acção, quer por omissão – para o risco existente na piscina das instalações desportivas que geria.
1.3.21. Não lhe podendo ser imputada a responsabilidade dado desconhecer “de todo a valoração a ser realizada sobre factores de risco criados por outros com competência no mercado, neste caso a própria senhoria” (novamente a sentença recorrida).
1.3.22. Uma vez que esse risco “existia de forma velada, e nem sequer aquando da última alteração no quadro eléctrico (em 2000), um técnico soube ser capaz de ver as consequências da sua alteração, nem antes aquando da alteração do sistema pela Leiricanal, com a instalação da 2.ª bomba de calor” (cfr. sentença recorrida).
1.3.23. Tendo existido “alteração do sistema de bombas de calor por parte da Lei…, a pedido da Mar.. (…) a arguida só tinha de confiar na competência de quem actua no mercado” (mais uma vez, a peça em causa).
1.3.24. Bem verificou o Tribunal recorrido, quando refere que a arguida “confiou em entidades que conhecem o procedimento de segurança e de exigibilidade técnica, e com certeza tais entidades deveriam ter presente o DR 5/97 que lhes impunha regras de construção”.
1.3.25. Sendo, ainda, relevante que o “princípio da confiança domina os sistemas organizacionais e de competência técnica”, tendo a arguida confiado nessas entidades.
1.3.26. Perante os factos tidos por provados e dando-se como não provado que a arguida não tivesse curado de averiguar, como lhe competia, nomeadamente através de vistorias e pareceres técnicos, “se a circulação e a renovação da água na piscina se processava sem qualquer perigo para os utentes, por forma a evitar a ocorrência do verificado”,
1.3.27. O Tribunal a quo só poderia ter decidido pela forma em que o fez, isto é, absolvendo a recorrida do crime de que vinha pronunciada.
1.3.28. Duas das testemunhas de acusação (o professor de natação que se encontrava no local e outra profissional que o tentou ajudar na retirada da criança do fundo da piscina) afirmaram que não havia qualquer reclamação sobre o ralo do fundo, e a única coisa de que se reclamava era do aquecimento da água.
1.3.29. A preocupação da recorrida, enquanto exploradora das instalações, é evidenciada pelos contactos daquela com a senhoria Mar…
1.3.30. A Autoridade de Saúde concelhia não conseguiu vislumbrar a existência de alguma falha na circulação de água na piscina (pelo ralo de fundo e com aquele tipo de ralo) quando elaborou relatório.
1.3.31. Outros alertas dirigidos pela recorrida a terceiros – como sejam a sua senhoria, Mar…, e a Direcção Regional do Centro do Ministério da Economia (dada a ausência de resposta da EDP, conforme fls. 539 a 541) – não tiveram qualquer seguimento.
1.3.32. Bem discorre a decisão recorrida quando expõe que nem “mesmo entidades que se presumem capazes souberam aperceber-se do aumento de sucção, ou se se aperceberam, nada informaram, pois a arguida esclarece que nada sabia sobre a sucção”.
1.3.33. Jamais se pode imputar à recorrida a autoria do crime de ofensa à integridade física por negligência, atento tudo o que aí consta provado (e não provado).
1.3.34. Acaso lograsse acolher-se a tese defendida pela recorrente, apresentar-se-ia como relevante nesta matéria responder à seguinte questão: quem asseguraria à recorrida que os técnicos, vistorias e pareceres obtidos por esta correspondiam à realidade?
1.3.35. Se perante esta panóplia de entidades a recorrida nada tinha que suspeitar face ao modo de circulação da água da piscina pelo ralo de fundo, então não se extrai como se poderia vir a considerar a mesma responsável, agente actuante no facto ilícito criminal em questão.
1.3.36. A mais nenhum cuidado (além dos já supra referidos) a recorrida, segundo as circunstâncias, estava obrigada, ou era capaz.
1.3.37. Não foi “o deficiente aquecimento da água que provocou a lesão corporal”, e esta foi a única questão apontada pelas testemunhas como falha da piscina: a água encontrar-se demasiado fria.
1.3.38. Nunca fora “objecto de reclamação, ou sequer referido que o ralo do fundo constituía um perigo naquela altura, e é este o momento relevante e não ex post” (dita sentença).
1.3.39. Relevante foi ainda o facto de a piscina em causa se encontrar em funcionamento à data do acidente e, por essa razão, “dezenas de pessoas” passarem “pelo ralo de fundo” somente notando um “formigueiro” (ainda tal sentença).
1.3.40. À arguida não pode ser assacada a responsabilidade por inexistirem ramais de ligação à conduta de retorno comum (de modo a que qualquer eventual obstrução não constituísse um factor de risco),
1.3.41. Uma vez que aquela procedeu ao chamamento de “quem comunitariamente é reconhecido como tecnicamente qualificado, e são essas entidades que licenciam, que alteram, que intervêm na piscina que compete o cumprimento tecnicamente visível” (sentença recorrida).
1.3.42. A recorrida não praticou ou deixou de praticar qualquer acto que pudesse criar o risco em causa, uma vez que essa velocidade de circulação da água no ralo do fundo da piscina (assim como a configuração do mesmo).
1.3.43. “Existia de forma velada, e nem sequer aquando a última alteração no quadro eléctrico (em 2000), um técnico soube ser capaz de ver as consequências da sua alteração, nem antes aquando da alteração do sistema pela Leiricanal, com a instalação da 2.ª bomba de calor” (sentença em questão).
1.3.44. Resultando “a mais completa imprevisibilidade por parte da arguida no acontecimento”, tendo esta feito “o que lhe era possível em face do mundo factual por si conhecido, não sendo obrigada a saber mais do que estava à sua frente, e o que sabia (o não aquecimento) mandatou terceiros para tal, não sendo previsível sequer o resultado verificado nem poderia haver cognoscibilidade face ao exigível de tal resultado” (sentença recorrida).
1.3.46. O Decreto-Regulamentar n.º 5/97 foi publicado visando definir “as condições a que devem obedecer os recintos com diversões aquáticas…” (artigo 1.º), tendo ainda em consideração que tal diploma provém do Decreto-Lei n.º 65/97, de 31 de Março, o qual regula a instalação e o funcionamento dos recintos com diversões aquáticas.
1.3.47. Este diploma apresenta no seu artigo 2.º diversos conceitos a ter em consideração na matéria que aquele rege, e noutras matérias similares, donde que no seu n.º 1 se definam como “recintos com diversões aquáticas os locais vedados, com acesso ao público, destinados ao uso de equipamentos recreativos, cuja utilização implique o contacto dos utentes com a água…”
1.3.48. Os factos constantes da sentença ora recorrida como provados não permitem concluir e até se considera inaplicável ao caso sub judice – porque, de facto, não é nem nunca foi – que a piscina, na qual ocorreu o sinistro em questão, seja um recinto de diversão aquática, ou que se destine a utilizar equipamentos recreativos.
1.3.49. Na piscina em causa eram leccionadas aulas de natação (e, como referem várias testemunhas, aulas de hidroginástica): dificilmente aquelas e estas são diversões aquáticas, ou estão dotadas de equipamentos recreativos.
1.3.50. O n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 65/97 exclui da aplicação do diploma – e, por consequência, do Decreto-Regulamentar n.º 5/97 – os recintos “que unicamente disponham de piscinas de uso comum, nomeadamente as destinadas à prática de natação, de competição, de lazer ou recreação.”
1.3.51. Nesse mesmo ano de 1997 foi publicado o Decreto-Lei n.º 317/97, de 25 de Novembro, o qual pretendeu criar instrumentos normativos e de enquadramento das condições para a realização de actividades desportivas, promovendo-se pois a qualidade dos serviços oferecidos e melhorando-se os mecanismos de fiscalização da administração pública (vide preâmbulo do diploma).
1.3.52. Desta forma, o artigo 1.º, n.º 5 deste Decreto-Lei n.º 317/97 exclui do mesmo “os recintos com diversões aquáticas, regulados pelo Decreto-lei n.º 65/97, de 31 de Março”.
1.3.53. Como é bem de ver, são realmente diversos uns e outros estabelecimentos, com características e fins diferentes, daí que as exigências legais e regulamentares também tenham que ser diferentes.
1.3.54. No artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 317/97 são organizadas as diversas “instalações desportivas” em instalações de base, especializadas e especiais para o espectáculo desportivo.
1.3.55. Constando do artigo 3.º, n.º 2, alínea f), que se consideram instalações de base recreativas, “as piscinas cobertas (…) para fins recreativos, com área total de planos de água inferior a 166 m2 – o que se apresenta aplicável à piscina em consideração nos autos, com área de 80 m2.
1.3.56. O legislador pretendeu, na verdade, prever questões diversas separando de forma real a matéria dos recintos com diversões aquáticas, da matéria respeitante a piscinas com fim desportivo, caso contrário inexistia qualquer lógica de, no mesmo ano de 1997, se publicarem dois diplomas sobre recintos com água e de uso público, se não se destinassem a recintos diferentes, com especificidades divergentes.
1.3.57. Sendo verdadeiramente ilegal, e inconstitucional, que a recorrida possa vir a ser condenada, em sede de negligência, por prática de crime o qual se alicerça em diplomas legais não aplicáveis, em concreto, ao caso sub judice e, ainda por cima, quando se trata de processo crime, no qual tem primazia o princípio nullum crimen sine lege.
1.3.58. A recorrente impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto e, pese embora a prova produzida em audiência de julgamento ter sido gravada, aquela não deu cumprimento ao disposto no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, não devendo, consequentemente, ser admitida tal irresignação.
1.4. Admitido o recurso, foram os autos remetidos a esta instância.
1.5. Aqui, com vista respectiva, nos termos do artigo 416.º, do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente a idêntica manutenção do sentenciado.
Deu-se cumprimento ao estatuído no n.º 2 do subsequente artigo 417.º
Por sua vez, no exame preliminar a que alude o n.º 6 deste mesmo inciso, consignou-se não ocorrerem os pressupostos determinantes á apreciação sumária do recurso, além de nada obstar ao seu conhecimento de meritis.
Daí que se houvesse ordenado o respectivo prosseguimento, com recolha de vistos e submissão à presente conferência.
Urge pois ponderar e decidir.

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II – Fundamentação de facto.
2.1. A decisão recorrida teve por provada a seguinte matéria de facto:
2.1.1. A arguida é sócia-gerente da sociedade comercial “Físic…, Lda.”, e em 1 de Julho de 1995 tomou de arrendamento de “Mar…” três fracções do prédio “Edifício…, sito na Av. …, em … que compõem um espaço destinado nomeadamente a piscina onde eram leccionadas aulas de natação.
2.1.2. A 19 de Fevereiro de 2002, pelas 17.30 horas, F. nascido a 17 de Maio de 1993, filho de AM e de PA praticava na piscina daquele ginásio, exercícios de natação, vulgarmente designados por “golfinhos”, que consistiam em mergulhar e emergir, em cadência.
2.1.3. A dada altura, o F precipitou-se no fundo da piscina em posição de decúbito ventral, pousando o abdómen sobre um orifício ou abertura situado no centro da cuba da piscina, denominado de “ralo de fundo”, e tem um diâmetro entre 15 e 20 centímetros e uma grelha à sua entrada, tendo a água da piscina naquele local cerca de 1,5 metros de profundidade.
2.1.4. A circulação da água fazia-se também pelo ralo de fundo.
2.1.5. Na altura, o ralo de fundo aspirava a água ou fazia circular a mesma, não sendo a grelha saliente, denotando quem por ali passava de pé um “formigueiro” nos pés.
2.1.6. Aquando da construção da piscina, o ralo de fundo foi concebido e instalado para a evacuação de água ou drenagem da mesma.
2.1.7. A velocidade máxima de aspiração da água era de 1 metro/segundo, não devendo ser superior a 0,6 metros/segundo e a boca de aspiração deveria ser saliente em relação ao plano de paramento em que se situa, por forma a evitar a sua obstrução, inexistindo outros canais de ligação à conduta de retorno comum de forma a que uma obstrução de uma das bocas não constituísse factor de risco devido ao acréscimo da pressão na aspiração.
2.1.8. Devido à velocidade da aspiração da água por esse orifício e, à circunstância de a respectiva grelha não ser saliente em relação ao chão, quando o corpo do F… pousou sobre o ralo de fundo, criou um efeito de vácuo ou “ventosa”, ficando com uma aderência tal, que impossibilitou a sua remoção por dois instrutores/monitores que na altura se encontravam no local e que acorreram em seu auxílio.
2.1.9. Só depois de terem desligado o quadro eléctrico geral e assim com a paragem da aspiração da água, lograram retirar o corpo inanimado do F.., o qual permaneceu imobilizado no fundo da piscina entre cinco a sete minutos.
2.1.10. Não obstante o F… ter sido reanimado, quer pelos monitores, quer pela intervenção de uma equipa de emergência médica que foi chamada ao local, o mesmo sofreu asfixia mecânica em consequência da sucção e submersão na água a que esteve sujeito durante aqueles minutos, o que lhe provocou paragem cardio-respiratória, lesão do nervo cubital esquerdo, sequelas de encefalopatia anóxica e hipercinésia, lesões essas que lhe provocaram perigo para a vida, bem como um período de 388 dias de doença.
2.1.11. Era a arguida quem geria na altura, o ginásio em que se integrava a piscina e era responsável em termos de higiene e de segurança dos utentes.
2.1.12. Ao tomar de arrendamento, competia-lhe assegurar que da utilização de tais instalações não adviria perigo para a vida e integridade física dos utentes.
2.1.13. A velocidade de aspiração da água pelo ralo de fundo e a localização da respectiva grelha foram determinantes do período de tempo em que o F… permaneceu imobilizado no fundo da piscina e que o impossibilitou que o mesmo fosse retirado em tempo útil pelos instrutores, por forma a evitar as lesões que acabou por sofrer.
2.1.14. A demora no salvamento foi determinante na produção das lesões corporais descritas e no perigo de vida a que o menor esteve sujeito, mesmo depois de ter sido retirado da piscina.
Mais se provou que:
2.1.15. Com data de 9 de Junho de 2000, a arguida dirigiu um escrito, recepcionado pela “Mar…. Lda.” a 21 de Junho de 2000, onde consta “vimos pela presente carta, confirmar que a Físic.. foi objecto de uma fiscalização por parte dos Serviços de saúde de Leiria” e informa que “vimo-nos forçados a solicitar reunião urgente com os responsáveis daquele Organismo o que realmente aconteceu no dia 1 do corrente mês, nas instalações da Delegação de Saúde, com a presença dos elementos que efectuaram a vistoria e a autoridade de saúde de Leiria, o Exmo. Sr. H.. Na referida reunião, fomos confrontados com algumas situações apontadas impeditivas do estabelecimento funcionar, ou melhor a Piscina. A saber: (…) que se efectue um levantamento seguido de um relatório por técnico especializado e conhecedor das infra-estruturas exigidas”. (…) mais uma vez, solicitar de V.Exas. uma resposta por escrito às questões insistentemente colocadas a V.Exas. ao longo de 5 anos de exploração”. (…) Cumpre-nos chamar a atenção de V.Exas para o facto de, como muito bem sabem, somente em Fevereiro último (…) a Mar… se dignou fazer deslocar às instalações do Físic… um técnico (…) a fim de substituir o caótico e perigoso quadro da luz, permitindo finalmente, entre outras coisas, que: as duas máquinas da piscina pudessem trabalhar separadamente quando fosse necessário; que o referido quadro da luz deixasse de ser um risco permanente e as condições da água da Piscina atingisse a temperatura adequada para que funcionassem as aulas de Natação – o grande e grave drama de sempre: a água fria!”
2.1.16. Por telecópia, a arguida a 24 de Setembro de 2001, pediu ao Sr. Director Regional do Centro do Ministério de Economia vistoria e emissão de relatório à instalação eléctrica do seu estabelecimento, pedido esse repetido por carta recebida por aquela entidade a 31 de Janeiro de 2002.
2.1.17. Em data anterior ao aludido em 2.1.2., e posterior a 1996, através da Mar.. Lda., a empresa Leiricanal procedeu à instalação de uma segunda bomba de calor em ordem a aumentar a temperatura da piscina, aumentando a circulação da água pelo ralo de fundo.
2.1.18. A arguida não tem conhecimentos técnicos que permitam optar por uma solução para o aquecimento da piscina.
2.1.19. Pelo menos, após 2000, ninguém realizou qualquer reclamação acerca do ralo de fundo.
2.1.20. A arguida é reformada, auferindo mensalmente € 700,00. Paga de renda de casa € 375,00, tendo a seu cargo filho com deficiência pelo qual recebe € 230,00.
2.1.21. A arguida não tem antecedentes criminais.
2.2. Já no que concerne a factos não provados, precisou a mesma decisão recorrida o seguinte:
2.2.1. Na altura, o F… foi acometido de uma indisposição que fez com que perdesse o controlo dos movimentos corporais.
2.2.2. A arguida não curou de averiguar, como lhe competia, nomeadamente através de vistorias e pareceres técnicos, se a circulação e a renovação da água na piscina se processava sem qualquer perigo para os utentes, de forma a evitar a ocorrência do verificado.
2.3. Por fim, a motivação probatória inserta na dita decisão consigna como segue:
A convicção do Tribunal assentou:
- No documento de fls. 260 (escrito sob o título “contrato promessa de arrendamento com penhor mercantil”) bem como nas declarações da arguida, as quais prontamente assumiu que era quem geria o ginásio, declarações essas que têm apoio na restante prova (documental, fls. 530 e de fls.540 cartas assinadas pela arguida sob tal menção), e que não foram contraditadas por quem quer que fosse.
- Nos depoimentos de A e de FR, monitores da piscina, os quais foram isentos atenta as posturas com que mostraram em audiência, e que relataram o sucedido e vertido em 2.1.2., 2.1.3, e 2.1.9., sendo que era a prática na altura leccionada pela testemunha FR; esta última testemunha, relatou ainda que reparou que o F ficou no fundo da piscina e mergulhou para o puxar, não o conseguindo, e ajudado outrossim pela testemunha A, como esta relatou, não o conseguiram arrancar, e só após uma terceira pessoa desligar o quadro eléctrico, e após cinco a sete minutos, o conseguiram arrancar e constataram que o F tinha marca no abdómen proveniente da sucção do ralo do fundo.
- No relatório de exame de fls. 162 a 164 emitido pela Inspecção Distrital de Bombeiros de Leiria, bem como no relatório pericial de fls. 246 a 252 emitido por Eng. AA, os quais não tenho qualquer fundamento objectivo para deles discordar, sob as seguintes especificações:
- No depoimento esclarecedor de Eng. N, o qual depôs com uma postura séria e isenta, esclarecendo que acompanhou no local I signatário do relatório de exame de fls. 162 a 164, e que assinalou o diâmetro do ralo a cerca de 20 cm. no máximo, assinalou o facto de a grelha não ser saliente, explicou que a sucção feita pelo ralo de fundo advém da não existência de aspiração lateral, explicou o efeito “ventosa” assinalando que o corpo terá de ser encostado ao solo, que a força de sucção pode ir até 200 kgs. para tal diâmetro, dando-se como assente o facto provado n.º 2.1.13., e que a instalação a realizar deveria fazer-se pela ligação dos próprios “skimmers”, ou pela interligação das duas bombas de calor ou pela alteração do ralo de fundo, só existindo um ramal ligado directamente à bomba n.º 2, não existindo pois alternativa, concluo (facto 2.1.7).
- No depoimento de AM, construtor civil da firma “Mar…”, o qual teve postura séria e discurso claro e lógico, assim me convencendo e relatou que construiu a piscina em causa, e que no início serviria para os condóminos do prédio, contudo não foi essa a opção tomada, antes foi a de dar à exploração à firma que a arguida geria em 1995. Explicou a função do ralo inicialmente. O equipamento da piscina adveio no que diz respeito à canalização e motores da “Leiricanal”, e a instalação das bombas de calor, revestimento, iluminação, e aquecimento de água da “Fapicentro” (entidade que fabrica piscinas). Após, relatou que houve intervenção posterior, mas antes de 2000, para instalação de uma outra bomba de calor atento o problema de aquecimento da piscina.
- No depoimento de A a qual trabalhou para a firma gerida pela arguida desde 1995, e que veio dizer, de forma séria e espontânea, convencendo-me, que quando passava junto ao ralo de fundo simplesmente notava um “formigueiro”; e no depoimento de FR, monitor da piscina acima assinalado, e que relatou que na zona do ralo sentia “comichão”.
As testemunhas assinaladas também foram categóricas em afirmar que não havia qualquer reclamação sobre o ralo de fundo, e a única coisa de que se reclamava era do aquecimento da água. Atenta a proximidade que estas testemunhas demonstram do local e da orgânica do estabelecimento, dei inteira credibilidade às mesmas, uma vez que tiveram postura isenta e séria em audiência.
- Quanto ao facto 2.1.10., atentei quanto às lesões, juízo de perigo e tempo de doença no relatório médico-legal de fls. 354 emitido pelo Gabinete Médico-Legal de Leiria a 28-4-2003, bem como nas informações médicas de fls. 48 a 158.
- No depoimento de AM, médica, e que se deslocou ao local na data da ocorrência e que com postura séria e isenta relatou o estado do F na altura.
- Quanto aos factos provados 2.1.11., 2.1.12., 2.1.18, 2.1.19, e não provado 2.2.2, atentei às declarações da arguida, uma vez que demonstrou postura séria, e discurso lógico. Declarou que geria o estabelecimento e que, uma vez que havia reclamações a propósito do aquecimento da piscina, cuidou de contactar a empresa “Mar..” (entidade locadora) em ordem à resolução do problema, não tendo conhecimento algum da pressão existente no ralo, nem houve alguma reclamação acerca do ralo de fundo. Estas declarações têm apoio na prova produzida: de facto, é o próprio construtor, AM, testemunha já assinalada, que confirma tais contactos, e por outro lado, as testemunhas FR e A vieram outrossim assinalar que a pressão do ralo não era objecto de reclamação nem nunca ouviram da arguida que o problema estivesse na pressão do ralo, o que se conclui pelo seu desconhecimento. Ora, os contactos a que a arguida se refere com a “Mar..” só significa que a mesma não tem os conhecimentos de instalação necessários à resolução do problema do aquecimento, e a obtenção da melhor solução à resolução do problema. Por outro lado, ao inexistirem reclamações quanto ao ralo em concreto só nos indica que a arguida nem sequer podia representar o perigo de sucção que este continha, bem como o facto de haver um único ramal ser um factor de risco, e assim nem prever o resultado ocorrido nem era capaz a tal, sendo que apresentava a reclamação à entidade com quem tinha contratado na cedência da piscina. De outro modo, e atendendo-se a prova documental constante nos autos, a 15-10-1999, a arguida solicita ao Director do Centro de Estudos e Formação Desportiva o necessário à sua inscrição (doc. de fls. 534); a 8-2-2002 a Direcção Regional do Centro do Ministério da Economia responde, no seguimento de reclamação apresentada pela arguida, que irá contactar a EDP. (doc. de fls. 542).
Por fim, assinale-se que a arguida veio declarar que não tinha conhecimento do fundo da piscina, a piscina não era esvaziada e na altura de início de actividade tinha centenas de crianças inscritas na natação e que na altura só tinha cerca de 23 crianças inscritas sendo que o único problema era o do não aquecimento da piscina e daí ter cuidado pela realização das alterações pelas entidades assinaladas. Acrescentou que não conhecia o diploma DR 5/97 e que se tratava de uma piscina com cerca de 80 m2 sendo que todo o espaço da fracção do prédio funcionava como ginásio e que este lhe foi entregue pronto a funcionar, tendo ainda esclarecido que quem sabia ligar os circuitos era o seu marido e era este (já falecido) que manuseava o quadro eléctrico, não percebendo nada de sucção nem do que foi alterado. Inquirido o Sr. Prof. AA explicitou que fez visita à piscina em causa em 2002, que a aspiração era feita pelo “ralo e skimmers”, havia tubagens, mas não era claro que pudessem estar ligados e havia obras posteriores, podendo existir o ramal mas que podia não funcionar. Por fim, o Eng. C foi claro em dizer que o circuito de aspiração era independente, havia só um ramal ligado directamente à bomba n.º 2 (conforme fls. 164) e não eram possíveis mais ramais porque o objectivo era o de aquecer a piscina, e para não haver qualquer risco deveria ter-se feito outro circuito procurando outro “skimmer”. Destas declarações percebe-se que nem o perito soube dizer da existência ou não de ligação de ramais em termos funcionais e à luz do DReg. 5/97 (cfr. DL 65/97 de 31-3), e por outro lado as entidades que procederam à alteração tiveram em conta tal diploma. Acrescente-se ainda que a credibilidade das declarações da arguida relativamente ao diploma sai reforçada quando o diploma em causa, no seu preâmbulo, é claro em referir “recintos com diversões aquáticas”, o que impõe a existência de equipamentos recreativos no seio da piscina, o que não era o caso, antes funcionando como ginásio (natação). Assim, como poderia a arguida ter alguma noção do que se tratava? A arguida diligencia, bem como as intervenções realizadas, vão no sentido de um maior aquecimento da piscina; obviamente, quem fez ou procedeu às alterações da piscina teria de cumprir as normas técnicas do seu rol social em quem a arguida confiou; atentas as declarações prestadas pelo perito, os contactos por parte da arguida a entidades credenciadas e as declarações espontâneas e assim credíveis da arguida sobre os seus conhecimentos, dei como não provado o facto constante sob 2.2.2.
- Quanto ao facto 2.1.13, e facto 2.1.14. atentei desde logo e em primeira linha aos depoimentos dos monitores presentes no local, testemunhas A e FR, e que denotaram que era a força da sucção que mantinha o F preso ao ralo do fundo, ao declararem com isenção que não conseguiam tirá-lo e só com a actividade de um terceiro em desligar o quadro tal foi possível. E atentei outrossim às regras de experiência comum que se concretizam no facto de todos sabermos que o facto de estar submerso por 5 a 7 minutos debaixo de água é perigoso, e olhando outrossim ao relatório médico-legal assinalado.
- Quanto aos factos 2.1.15. e 2.1.16., atentei aos docs. de fls. 530 a 533, 539, 540 e 541.
- Quanto ao facto 2.1.17., atentei ao depoimento de J empresário da “Leiricanal”, o qual com postura séria e isenta veio assumir que procedeu à montagem da 2.ª bomba de calor, e rectificação da existente, em data que não se recorda, a pedido da “Mar..”, sendo a escolha pelo sistema rectificado “uma das possíveis”. A delimitação temporal adveio do facto de a arguida ter afirmado que só houve alteração do quadro eléctrico em Fevereiro de 2000, inexistindo qualquer outra que fosse após, só tendo havido anteriormente e após a exploração.
- O facto 2.1.20 adveio das declarações da arguida, as quais prestadas com seriedade me convenceram.
- O facto 2.2.1. resultou do facto de as testemunhas presentes, A e FR, não terem qualquer explicação para o sucedido, nem o próprio F deu qualquer explicação relevante para o sucedido.
- O facto 2.1.21. adveio do certificado do registo criminal emitido a 22-1-2007, e a fls. 800.
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III – Fundamentação de Direito.
3.1. Como é consabido, o âmbito dos recursos define-se através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação Cfr. artigos 412.º, n.º 1 e 403.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal., mas isto sem prejuízo do conhecimento, inclusive oficioso, dos vícios e nulidades previstos (as) nos n.ºs 2 e 3, do mesmo diploma adjectivo Cfr. Acórdão do STJ n.º 7/95, em interpretação obrigatória.
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In casu, não emerge dos autos qualquer fundamento acarretando esta intervenção oficiosa.
Donde que o thema decidendum, a fixar-se únicamente em função das conclusões da recorrente, consista em verificarmos se a decisão recorrida ponderou indevidamente da não verificação do elemento subjectivo essencial ao decretar da responsabilização penal da recorrida.
Isto na dupla vertente fáctica (consideração como não provado da factualidade assim inserta em 2.2.2. da decisão recorrida, ou seja, A arguida não curou de averiguar, como lhe competia, nomeadamente através de vistorias e pareceres técnicos, se a circulação e a renovação da água na piscina se processava sem qualquer perigo para os utentes, de forma a evitar a ocorrência do verificado) e de direito, uma vez que pressuposta tal alteração, igualmente distinto seria o juízo jurídico-penal imposto.
Ponderação que, intui-se, haverá de fazer-se imbricadamente, pois que o desvalor subjectivo apenas poderá configurar-se acaso a arguida haja omitido o dever considerado em 2.2.2.
Na verdade:
2.2. Mostra-se a mesma pronunciada pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto e punido através do artigo 148.º, n.º 3 por referência aos artigos 144.º, alínea d) e 15.º, todos do Código Penal.
Realiza o tipo de crime assinalado quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representando como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, actuar sem se conformar com essa realização, ou não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa e provocar-lhe perigo para a vida.
Bem assim tutelado com tal norma, a integridade física e psíquica assente num sentido corporal-objectivo.
Como crime de dano que é, à sua tipicidade interessa a realização do evento.
E por se tratar de um ilícito de execução livre, não interessa à realização típica os meios por que o crime é levado a cabo, se por acção, se por omissão.
Mister é, para que o agente pratique o tipo de ilícito em presença, que com a sua conduta crie, assuma e potencie um perigo típico para a integridade corporal, concretizado no resultado ofensa no corpo ou na saúde e se possa desenvolver um nexo de imputação objectiva do resultado (=dita ofensa) à conduta da arguida (in casu, como vem descrito na pronúncia, por não ter obstado a que a velocidade de aspiração da água da piscina pelo ralo de fundo se fizesse á velocidade de 1m/s, e que a grelha nele aplicada não fosse saliente relativamente ao plano de paramento em que se situava de forma a evitar o efeito de vácuo ou de ventosa que vitimou o menor), em termos de causalidade adequada, violando um dever objectivo de cuidado que estava obrigada a observar e que era capaz de observar, considerando um homem médio colocado na sua concreta posição [cfr. art.º 15º, do Código Penal; e Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, C.ª Ed., I, págs. 107/8].
Como em todos os crimes negligentes, estamos perante um tipo legal de resultado, posto que não é de afirmar, atenta a formulação legal (cfr. artigo 22.º, n.º 1, do Código Penal), a possibilidade de comissão de um crime negligente a título de tentativa. E como tipo de resultado, necessário se torna a verificação em concreto da ofensa no corpo ou na saúde alheia, o que sucedeu, inequivocamente, no caso vertente.
Caso em que o acervo factual essencial acolhido se resume ao seguinte:
No dia 19 de Fevereiro de 2002, pelas 17.30 horas, o menor F, praticava na piscina do ginásio tomado de arrendamento pela arguida, exercícios de natação, vulgarmente designados por “golfinhos”, que consistiam em mergulhar e emergir, em cadência.
A dada altura, o F precipitou-se no fundo da piscina em posição de decúbito ventral, pousando o abdómen sobre um orifício ou abertura situado no centro da cuba da piscina, denominado de “ralo de fundo”, com um diâmetro entre 15 e 20 centímetros e uma grelha à sua entrada.
A circulação da água fazia-se também por tal ralo de fundo que a aspirava ou fazia circular. Ralo esse com uma grelha não saliente, denotando quem por ali passava de pé um “formigueiro” nos pés e que, aquando da construção da piscina, foi concebido e instalado para a evacuação de água ou drenagem da mesma.
A velocidade máxima de aspiração da água processava-se 1 metro/segundo, e a boca de aspiração não era saliente em relação ao plano de paramento em que se situa, por forma a evitar a sua obstrução, inexistindo outros canais de ligação à conduta de retorno comum de forma a que uma obstrução de uma das bocas não constituísse factor de risco devido ao acréscimo da pressão na aspiração.
Devido à velocidade da aspiração da água por esse orifício e, à circunstância de a respectiva grelha não ser saliente em relação ao chão, quando o corpo do F.. pousou sobre o ralo de fundo, criou um efeito de vácuo ou “ventosa”, ficando com uma aderência tal, que impossibilitou a sua remoção por dois instrutores/monitores que na altura se encontravam no local e que acorreram em seu auxílio.
Só após ter sido desligado o quadro eléctrico geral e assim com a paragem da aspiração da água, lograram estes retirar o corpo entretanto inanimado do F, que em consequência da sucção e submersão na água a que esteve sujeito durante aqueles minutos, sofreu asfixia mecânica determinante de paragem cardio-respiratória, lesão do nervo cubital esquerdo, sequelas de encefalopatia anóxica e hipercinésia, lesões essas que lhe provocaram perigo para a vida, bem como um período de 388 dias de doença.
Tarefa imposta então a de averiguarmos se, em face dos factos apurados, e sendo a arguida quem geria na altura o ginásio no qual se integrava a piscina e era responsável em termos de higiene e de segurança dos utentes, competindo-lhe nessa qualidade assegurar que da utilização de tais instalações não adviria perigo para a vida e integridade física dos utentes, não curou a mesma de averiguar, culposamente, e nomeadamente através de vistorias e pareceres técnicos, se a circulação e a renovação da água na piscina se processava sem qualquer perigo para os utentes, de forma a evitar a ocorrência do verificado.
Sabe-se que negligência se reconduz a um exame de dois graus: ao nível da ilicitude, (o que a arguida devia fazer) e ao nível da culpa (o que a arguida podia fazer).
Esta análise pode desenvolver-se a partir do disposto no encimado artigo 15.º: o arguido não procede com o cuidado (objectivo) a que está obrigado (objectivamente, isto é, o que outra pessoa faria naquela situação) e é capaz (subjectivamente, tendo em conta a situação concreta do arguido).
No âmbito da culpa, deve apurar-se se a arguida, de acordo com a sua capacidade individual, estava em condições de satisfazer as exigências objectivas de cuidado a que estava obrigada. Para tanto, deve ter-se em conta a sua inteligência, a sua formação, a sua experiência de vida e as especialidades da situação concreta em que actuou.
Há que analisar a questão prévia da existência de um tal dever objectivo de cuidado e da sua relação causal com o resultado produzido e juridicamente desaprovado em virtude da criação de um perigo relevante para o bem jurídico.
Quanto à imputação objectiva do resultado à conduta do agente, há que analisar, primeiro, se é de imputar esse resultado ao dever objectivo de cuidado, ainda no plano da ilicitude, perguntando se a pessoa média, objectivamente colocada na posição da arguida, previu ou devia ter previsto o resultado.
No plano subjectivo, de imputação de culpa jurídico-penal, está arredada do nosso sistema jurídico-penal qualquer ideia de responsabilidade objectiva (de que o artigo 18.º do Código Penal é matriz).
A negligência assume, no nosso sistema jurídico-penal natureza excepcional, uma vez que só são puníveis os factos praticado com dolo (cfr. artigo 13.º do Código Penal).
A noção de negligência encontra-se no citado artigo 15.º, alíneas a) e b): “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz” (...). E assume duas formas: consciente, se o agente “representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização”; ou inconsciente se o agente “não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.”
O tipo-de-culpa negligente é expressão, documentada no facto ilícito típico, de uma atitude pessoal descuidada ou leviana em face do dever-ser jurídico-penal (cfr. Faria Costa, in Dolo Eventual e Negligência Consciente, CJ STJ, Ano V, 1997, t. I, pág. 15).
Embora o legislador penal nada diga acerca da medida do cuidado exigível do agente, pode dizer-se que esta coincide com o necessário para evitar a ocorrência do resultado típico (cfr. Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 261).
Quer isto dizer, por exemplo, que um automobilista deve conduzir com cuidado e com precaução, desde logo, prestando atenção aos veículos que circulam na via, no mesmo sentido e em sentido contrário, bem como a qualquer obstáculo que surja na via, e aos acontecimentos que ocorrem ou podem ocorrer na berma da estrada, devendo reforçar os deveres de cuidado e de atenção por forma a aferir se pode aumentar a velocidade, ultrapassar, estacionar, mudar de direcção, etc.
Há, neste particular, que lançar mão de um critério normativo que pressuponha uma determinada conexão da ilicitude, isto é, não basta para a imputação de um evento a alguém que o resultado tenha surgido em consequência da conduta descuidada do agente, sendo ainda necessário que tenha sido precisamente em virtude do carácter ilícito dessa conduta que o resultado se verificou.
Ora, no caso dos autos, importa perguntar se é possível afirmar a violação desse dever, concretamente se mantendo a piscina em funcionamento nos moldes indicados, a arguida violou um dever de previdência e de cuidado em evitar um resultado danoso.
E um critério fundamental de delimitação do tipo de ilícito negligente é o que pode advir da chamada negligência na assunção ou na aceitação. Como anota o Prof. F. Dias (in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pág. 363), “O substrato que aqui se tem em consideração reside essencialmente na assunção de tarefas ou na aceitação de responsabilidades para as quais o agente não está preparado, porque lhe faltam as condições pessoais objectivadas, os conhecimentos ou mesmo o treino necessário ao correcto desempenho de actividades perigosas. (…) Nestes casos, se bem que uma negligência referida ao momento da acção não possa ser comprovada por falta de culpa, todavia aquela deve em definitivo ser afirmada reportando-a ao momento anterior em que o agente assumiu ou aceitou o desempenho, sabendo todavia, ou sendo-lhe pelo menos cognoscível, que para tanto lhe faltavam os pressupostos anímicos (espirituais) e corporais objectivamente necessários.
À primeira vista dir-se-á dar-se nestes casos uma inextricável confusão de elementos constitutivos do tipo de ilícito e do tipo de culpa negligentes; ou, pelo menos, uma necessária codeterminação do dever objectivo de cuidado por elementos inevitavelmente subjectivos. A primeira asserção não seria exacta, se bem que a segunda, essencialmente, o seja. O que se passa é que a assunção ou aceitação da actividade como tal constitui já uma contradição com o dever objectivo de cuidado referido ao tipo que virá a ser preenchido, ou, nas palavras de Burgstaller, “a aceitação da actividade respectiva pelo agente concreto deve ser proibida em função dos riscos de realização do delito que com ela se ligam”. Por outra parte, a negligência na assunção ou aceitação caracteriza-se, (…), por uma antecipação, relativamente ao comportamento concreto, do ponto essencial para a conexão do juízo de culpa negligente, mas em nada antecipa ou ainda menos consome a questão (e a comprovação) da culpa como tal. O que tudo traduz a ideia de que a negligência só poderá definitivamente afirmar-se relativamente àquele que aceitou o desempenho de uma actividade para a qual não se encontrava física e psiquicamente apto quando o risco daí resultante era dele conhecido ou era pelo menos cognoscível.”
Ora, em linha com a decisão recorrida, propendemos a não descortinar a confluência dos pressupostos exigíveis ao emergir do apontado desvalor na conduta da recorrida.
Mostra-se factualmente incontroverso e adquirido por todos os sujeitos processuais intervenientes, que causa do acidente que vitimou o menor foi o acréscimo da velocidade ou força de sucção da água no ralo de fundo – que, não podendo ser superior a 0,60m/s se verificava ser de 1m/s –, isto conexionado com a circunstância de a respectiva grelha não ser saliente em relação ao chão, tudo permitindo que quando o seu corpo pousou sobre tal ralo, se haja criado um efeito de vácuo ou “ventosa”, o qual somente terminou após ter sido desligado o quadro eléctrico geral e, consequentemente, ter igualmente parado a aspiração da água.
O sucedido mostrou-se todavia uma surpresa para a arguida (ao menos em termos processualmente adquiridos) pois do que esta reclamava era do deficiente aquecimento da água. Circunstância, contudo, alheia á lesão corporal sobrevinda ao F..
O juízo imposto para aferir do desvalor da conduta (in casu omissiva) da arguida é ex ante ao emergir do facto.
E, antecedendo-o o que se nos depara era o normal funcionamento da piscina, utilizada por dezenas de pessoas que ao passarem pelo aludido ralo de fundo, apenas notavam um “formigueiro”, alheio a algo de anormal.
Concedendo-se a obrigação incidente sobre a recorrida de zelar pela segurança dos utentes, como corolário das regras normativas de criação do risco, não menos verdade é que mister também se mostrava que a mesma pudesse conhecer a fonte de perigo adequada à produção do resultado lesão física. Ora, esta foi prova não lograda, perante o inesperado do sucedido [cfr. artigo 15.º, alínea b)].
Na sequência de aresto anterior deste Tribunal, apurou a 1.ª instância que a piscina em questão não possuía ramais de ligação à conduta de retorno comum, de forma que uma eventual obstrução de uma das bocas não constituísse um factor de risco devido ao acréscimo da pressão na aspiração. Mas, tal facto faz recair sobre ela qualquer juízo de censura?
Na circunstância, a resposta será negativa. Na verdade, ciente da actividade de risco que desenvolvia, e cujos exactos termos técnicos não era obrigada a conhecer em concreto, recorreu a terceiros, estes sim tecnicamente qualificados para que resolvessem um problema que se lhe deparava.
Se a circulação e a renovação da água na piscina se processava sem qualquer perigo para os utentes, de forma a evitar a ocorrência do verificado, era questão nunca colocada pela arguida.
Aceitou a construção erigida por quem, confiou (e, sabemos, o princípio da confiança é relevante nos sistemas organizacionais e de competência técnica) teria dado acatamento às normas regulamentares devidas (mormente implementando as regras indispensáveis a uma regular aspiração da água da piscina). É que, relembra-se, um tal sistema implica conhecimentos muito específicos e que, por via de regra, quem está à frente de um estabelecimento não detém, donde que confiando na competência de terceiro acreditado, dele se socorra para os instalar.
Se reparo deve fazer-se é, como se extrai do relatório de fls. 252, sobre a inadequação das práticas construtivas, mas relativamente às quais não foi feita qualquer prova do envolvimento da arguida.
Depois apenas se procedeu a uma alteração do sistema de bombas de calor por parte da “Leiricanal”, a pedido da “Mar..” mas, mais uma vez, confiou a arguida na competência de quem actuava no mercado arvorando-se capacidade de a realizar sem potenciar qualquer perigo.
Aliás, também sequer aquando da alteração no quadro eléctrico (em 2000), um técnico soube ser capaz de ver as consequências da sua alteração.
Problemas advenientes do sistema de sucção da água da piscina eram tema alheio à arguida até ao sucedido.
Como resulta do assente em 2.1.15. e 2.1.16., a arguida limitou-se a contactar com entidades que a informam sobre a instalação eléctrica, sobre a resolução do problema do aquecimento de água e quanto à inscrição do responsável técnico.
Concretamente, contactou com o senhorio (a “Marfiliz”), e com entidades estatais, entre as quais, o Ministério da Economia. Mas, sem que alguém a tenha alertado para aquele tipo de problemas aos quais era alheia, reafirma-se.
Nesta perspectiva, e tudo conjugado, não era conhecido ou ao menos cognoscível para a arguida a concreta previsibilidade de realização do resultado típico uma vez que aceitou a obra feita pela senhoria; não descortinou que a mesma padecesse de qualquer defeito, mormente o que determinou o acidente ajuizado, e quando necessárias intervenções, se socorreu de terceiros com alegada competência ao efeito.
Seja, e em conclusão, não poder imputar-se-lhe o resultado lesivo sobrevindo ao menor e, como assim, não emergir a prática do crime que lhe era assacado.
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IV – Decisão.
São termos em que se nega provimento ao recurso interposto.
Custas pela assistente, fixando-se em 4 UCs a taxa de justiça devida.
Notifique.
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Coimbra, 9 de Dezembro de 2010