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DESCAMINHO
OBJECTOS COLOCADOS SOB O PODER PÚBLICO
UTILIZAÇÃO DE VEÍCULO PENHORADO
Sumário
1. O tipo legal do artigo 355.º do Código Penal, com a epígrafe «descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público», tutela a autonomia intencional do Estado, concretizada através da ideia de inviolabilidade das coisas sob custódia pública. 2. A destruição, a danificação ou a inutilização, total ou parcial, abrangem todos os atentados à substância ou à integridade física da coisa (como no dano) que a tornam inútil do ponto de vista que justificava a sua custódia oficial. 3. O arguido que se limita utilizar viatura automóvel penhorada, sem que com isso a tivesse colocado em situação de não poder ser encontrada ou até apresentada logo que lhe fosse determinado por quem de direito, não frustra o fim visado com a apreensão do automóvel pelo que não comete crime de descaminho de objectos colocados sob o poder público, p. e p. pelo artigo 355.º, do Código Penal.
Texto Integral
I. Relatório:
1. No 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Tondela, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o arguido L..., divorciado, empresário, residente …, Sintra, acusado da prática, em autoria material, de um crime de descaminho de objectos colocados sob o poder público, p. e p. pelo artigo 355.º, do Código Penal.
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2. Em sentença de 19 de Julho de 2010, o tribunal condenou o arguido L…, pela prática, como autor material, do referido crime, na pena de 1 (um) ano de prisão, declarada suspensa na sua execução por igual período de tempo.
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3. Inconformado, o arguido interpôs recurso, tendo formulado na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
A) A sentença ora em crise não poderia ter dado como provado:
i. que o arguido tivesse tido perfeito conhecimento das advertências feitas ao M...;
ii. que estivesse ciente da legitimidade da apreensão e das obrigações inerentes ao cargo de fiel depositário;
iii. que o arguido tivesse subtraído ao poder público o veículo apreendido;
iv. que o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de a subtrair ao poder público, e que soubesse que a sua conduta era proibida por lei.
B) Face aos factos dados como provados, a sentença enferma do vício de erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do C.P.P..
C) Acresce que a matéria de facto na realidade provada é insuficiente para a condenação pelo crime de que acusado e para uma correcta aplicação do direito – não contém os elementos essenciais para a condenação pela prática do crime de que vem acusado.
D) O arguido é acusado e condenado pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de descaminho de objectos colocados sob o poder público, previsto e punido pelo artigo 355.º do Código Penal.
E) Os elementos do tipo de crime são: destruição; danificação; inutilização ou subtracção ao poder público.
F) Para além do cariz definitivo da frustração da finalidade da custódia acima referido é necessário ainda que o depositário, neste caso o arguido, tivesse sido devidamente notificado a fazer a entrega do bem e a não tenha feito.
G) Resulta da fundamentação da própria sentença (pág. 7, 3.º parág.) “…seja por via do seu descaminho, em que consubstancia, por exemplo, a sua venda ou qualquer outra forma de alienação a título definitivo”.
H) A pedra de toque desta fundamentação é o caris definitivo da perda da garantia patrimonial objecto da penhora.
I) Mesmo com base nos factos dados como provados, não se mostram preenchidos os elementos do tipo de crime pelo qual o arguido foi condenado.
J) O arguido actuou sem dolo.
K) O arguido actuou sem consciência da ilicitude dos factos.
L) A pena aplicada é claramente desproporcionada, devendo ter-se optado por medida não privativa de liberdade.
Termos em que deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por decisão absolutória.
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4. O Ministério Público rematou a resposta ao recurso nos termos infra transcritos:
1. No que se reporta à existência dos vícios previstos no artigo 410.°, do Código de Processo Penal, considera o Ministério Público que os mesmos não se verificam.
2. Dos depoimentos das testemunhas inquiridas em sede audiência de julgamento, resultou provado que o arguido/recorrente praticou a factualidade dada como provada na sentença.
3. Nesta conformidade, do teor dos depoimentos das testemunhas e os demais elementos de prova constantes dos autos, há, necessariamente, que concluir que a matéria factual dada como provada pelo Mmo Juiz “a quo” foi correcta, tendo sido adequadamente valorada a prova acima referenciada.
4. Comete o crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público, previsto e punido pelo artigo 355,°, do Código Penal, aquele que, tendo conhecimento que o veículo se encontra apreendido pela G.N.R., mesmo, assim, o utiliza.
5. A decretada apreensão do veículo deixaria de ter sentido se quem quer que fosse o pudesse utilizar, a seu belo prazer, para viagens curtas ou longas, sabendo que o mesmo se encontrava apreendido pelo poder público do Estado.
6. Com a sua actuação - e ao contrário do que argumenta - impediu, frustrou, a finalidade da submissão dos bens ao poder público do Tribunal, que os tinha apreendido e entregue à guarda do fiel depositário, para que este os apresentasse logo que fosse determinado.
7. Atenta a matéria de facto dada como provada, e que em nosso entender não merecerá qualquer reparo, o arguido foi condenado pela prática do crime de descaminho, previsto e punido pelo artigo 355.°, do Código Penal, na pena de l (um) ano de prisão suspensa na execução por igual período.
8. Atenta a matéria de facto dada como provada, e tendo em conta os critérios enunciados no artigo 71.° do Código Penal, bem como as finalidades inerentes à aplicação das penas, consideramos que o tribunal “a quo” não interpretou da forma mais correcta os critérios determinativos da pena concretamente aplicável, não valorizando certas atenuantes e optando por uma pena de prisão, suspensa na execução, particularmente rigorosa, que, em nosso entender, não se mostra adequada, proporcional e justa ao caso em apreço.
9. Considerando-se que, interpretando adequadamente as circunstâncias valoradas na sentença recorrida, bem como os critérios enunciados no artigo 71.° do Código Penal, maxime o facto de o arguido não ter antecedentes criminais, à sua integração na sociedade, entendemos que a pena aplicada ao recorrente deverá ser substituída por outra que aplique ao mesmo uma pena de prisão de 6 meses, substituída por igual período de multa, à razão de € 7,50 dia, num total de 1.350,00 €; e ainda, caso não efectuasse o pagamento da multa, cumpra a pena de prisão fixada.
10. Atentos os limites mínimo e máximo abstractamente previstos, e a situação económica e financeira do recorrente, não poderá deixar de se reconhecer que a taxa fixada não é exagerada.
11. Pelo exposto, consideramos que a sentença proferida pelo tribunal “a quo” apenas violou a interpretação a dar ao preceito legal contido no artigo 71.°, do Código Penal, devendo se revogada nesta parte e substituída por outra decisão que interprete correctamente as circunstâncias ali enunciadas, e que não tendo sido violados quaisquer outros normativos legais, deverá quanto ao mais ser mantida na íntegra a sentença recorrida.
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5. Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto lavrou parecer que, na parte mais relevante, passamos a reproduzir:
«Ora, sobre o objecto do presente recurso, pese embora devamos assinalar que não nos parece que assista qualquer razão ao recorrente no que toca à matéria de facto fixada, e por isso mesmo sufraguemos em geral a resposta à motivação do recurso apresentada pelo Exm.° Procurador-Adjunto junto da 1.ª instância, quer-nos porém parecer que o recurso do arguido deverá, também por outras razões, ser merecedor de parcial provimento no que toca à subsuncão dos factos ao ilícito penal pelo qual o arguido foi condenado, e concedendo-se também por isso quanto ao invocado vício da insuficiência da matéria de facto para a condenação.
Com efeito, por referência à matéria de facto dada como provada na sentença, da execução a que se reconduzem os factos, mais do que se explanou na matéria de facto, o que resulta é que o arguido recorrente, enquanto ali fiel depositário do veículo …, o qual foi ali penhorado e subsequentemente apreendido, e a quem foi notificado de que tinha “a obrigação de não utilizar nem alienar por qualquer outra forma e de o entregar quando lhe for exigido, ficando notificado de que a utilização ou a alienação o fará incorrer na prática de um crime de desobediência, previsto e punível nos termos do disposto no n.º l alínea b) do Artigo 348.° do Código Penal” (sublinhado nosso) (cfr. motivação da matéria de facto e Auto de Apreensão de fls. 20).
Ora, o tribunal fez coincidir o conceito de subtracção com a utilização do automóvel que o agente estava obrigado a não fazer, proferindo sentença condenatória sem que para tal tivesse de facto matéria de facto bastante, designadamente também quanto ao elemento subjectivo, enfermando assim a sentença do vício do art. 410.° n.° 2 a) do C.P.P., ou seja, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, incorrendo também a sentença no vício da alínea c) do mesmo normativo penal, qual seja o erro notório na apreciação da prova.
De facto, tendo o arguido sido notificado, enquanto fiel depositário, de que em caso de utilização do veículo automóvel, incorreria no crime de desobediência do art. 348.° n.° l b) do C.P., (referido Auto de fls. 20), tendo o arguido perfeito conhecimento das consequências dessa utilização do veículo, não se percebe, não só a acusação pelo crime de descaminho do art. 355.° do C.P., como também a sua condenação por esse crime.
Na nossa perspectiva, para além de que, designadamente no ponto 3 da matéria de facto dada como provada, se deveria ter ido mais longe nos termos da notificação constante do Auto de Apreensão de fls. 20, afigura-se-nos que os factos integrarão sim o crime de desobediência do art. 348.° n.° l b), e não o de descaminho do art. 355.°, ambos do C.P., pelo que se terá de determinar a reabertura da audiência para cumprimento do disposto no art. 358.° n.°s l e 3 do C.P.P..
Com efeito, no que toca ao crime de descaminho do art. 355.° do C.P. cabe dizer que o que se pretende tutelar é a disponibilidade permanente dos bens sob o poder público, e a concomitante obrigação do depositário em os apresentar, pois que é possuidor precário e em nome alheio.
Não se trata pois de uma subtracção no sentido da apropriação (esta necessariamente ut dominus, ou seja, com inversão do animus possidendi), mas antes e tão só de uma inviabilização de exercício daquele poder de disposição dos bens por parte do poder público, decorrente da não apresentação dos bens por parte de quem tem aquela obrigação de os apresentar. E isto quer os possa apresentar e não o faz, quer mesmo que o não possa fazer por, entretanto, e intencionalmente, os tenha destruído, danificado ou inutilizado, frustrando assim a razão da apreensão dos bens e aquela faculdade de poder dispor dos bens.
É que, para as hipóteses de subtracção dos bens ao poder público, mas com inversão ut dominus da propriedade dos bens, deixaremos de estar sob a alçada deste normativo penal, antes passando a estar perante um crime de abuso de confiança ou de furto, conforme se salvaguarda na parte final do próprio normativo em causa (art. 355.° C.P.), ao estipular que, “Quem destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, documento ou outro objecto móvel, bem como coisa que tiver sido arrestada, apreendida ou objecto de providência cautelar, é punido com pena de prisão até cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. (Sublinhado nosso).
Aliás, encontra-se ainda actual e vigente o Assento n.° 2/79, de 28/06/79 (cfr. D.R. I Série de 21/07/79; e BMJ, 288, 246), (cfr. também Ac. R. C. de 24/01/90, Col. Jur. Tomo I, 106), ficando a exacta incriminação, pela não apresentação dos bens, dependente da efectiva actividade desenvolvida pelo depositário ou agente (cfr. Ac. R. C. de 26/10/83, Col. Jur. Tomo IV, 85).
Ora, no caso presente, da matéria de facto dada como provada o que resulta é que o arguido recorrente, sendo fiel depositário do veículo automóvel apreendido, agindo livre, voluntária e conscientemente, o utilizou e conduziu, sabendo que com essa conduta cometia um crime de desobediência do art. 348.° n.° l b) do C.P..
Não que resulte que tivesse com isso qualquer intenção de subtrair daquela forma o mesmo ao poder público a que estava sujeito.
Até porque, não foi notificado para apresentar tal bem, só cometendo este crime se, após tal, com essa intenção, o não apresentasse.
Não se mostra pois que, com prejuízo para os credores, e bem sabendo que estava obrigado a essa apresentação, sob pena designadamente de cometer o crime em causa (descaminho), tenha frustrado aquelas finalidades pretendidas com a apreensão.
Concordamos pois que não se mostram preenchidos os necessários elementos tipificadores daquele ilícito penal (descaminho), padecendo pois para esse efeito a sentença do vício do art. 410.° n.° 2 a) do C.P.P., designadamente de alegada insuficiência da matéria de facto para a condenação pelo mesmo.
Já diferentemente tal ocorre relativamente ao preenchimento de todos os elementos tipifícadores do crime de desobediência do art. 348.° n.° l b) do C.P., sendo pois necessário declarar nula a sentença nessa parte, procedendo-se à necessária reabertura da audiência para efeitos de cumprimento do art. 358.° n.°s l e 3 do C.P.P., seguindo-se após os ulteriores termos processuais.
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Nestes termos, em parcial procedência do recurso do arguido, somos de parecer que o recurso deverá parcialmente proceder, anulando-se a sentença e determinando-se o reenvio para reabertura da audiência de julgamento a fim de ser cumprido com o disposto o art. 358.° n.°s 1 e 3 do C.P.P.».
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6. Notificado nos termos e para os efeitos consignados no art. 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.
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7. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2, do CPP (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).
Tendo em conta as conclusões formuladas pela recorrente, circunscrevem-se ao seguinte quadro as questões de que cumpre conhecer:
A) Alterabilidade da matéria de facto;
B) Se a sentença recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova [artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP];
C) Se o arguido incorreu na prática, em autoria material, do crime de descaminho de objectos colocados sob o poder público que lhe está imputado e pelo qual foi condenado em 1.ª instância;
D) Se o arguido actuou sem consciência da ilicitude dos factos;
E) Medida da pena.
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2. Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
1. O arguido à data dos factos era sócio gerente da sociedade T... – Consultores de Gestão, Unipessoal, Lda., a qual, por sua vez, é sócia da sociedade MM... – Indústria de Móveis e Utilidades de Cozinhas, Lda. desde 20 de Março de 2006.
2. Nos autos de execução comum na 430/07.7TBVIS, que corre termos no 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viseu e em que é exequente …e executada a referida MM..., foi realizada, no dia 14 de Março de 2007, a penhora do veículo automóvel ligeiro de mercadorias de marca Opel, modelo Combo-C-Van, de cor branca, matrícula …, propriedade desta última e que contava na altura com 99.208km.
3. Em execução dessa penhora, no dia 13 de Outubro de 2007, aquele veículo foi apreendido e depositado pela GNR de Tondela nas instalações da executada, sitas na zona industrial da Adiça, lote 1, em Tondela e entregue ao sócio M… a título de fiel depositário, com a cominação de que não o poderia utilizar nem alienar por qualquer outra forma e de o entregar quando tal lhe fosse exigido, sob pena da sua utilização ou alienação o fazer incorrer em responsabilidade criminal, de tudo se lavrando auto que foi por ele lido, compreendido e assinado.
4. De tudo isto tomou o arguido perfeito conhecimento, por intermédio do M... e de A..., funcionária da empresa.
5. Porém, apesar de ciente da legitimidade da apreensão e das obrigações inerentes ao cargo de fiel depositário que recaiam sobre o M..., em data não concretamente apurada mas que se situa entre 12 de Outubro de 2007 e 5 de Janeiro de 2008, o arguido retirou o veículo em referência das instalações da empresa, levou-o para Lisboa e passou a fazer uso do mesmo, assim o subtraindo ao poder público a que fora submetido aquando da apreensão.
6. Assim aconteceu, entre outras ocasiões – pelo menos duas, em data não concretamente apurada – em que o arguido circulou com a viatura de Lisboa até Tondela, no dia 29 de Setembro de 2008, cerca das 14h 45m, altura em que a conduzia na estrada dos Outeiros, na freguesia de Dardavaz, concelho de Tondela e foi interceptado pela GNR de Tondela, contando já o veículo com 130.833km.
7. Ao actuar da forma descrita, usando a viatura em causa, ciente de que não o podia fazer por a mesma se encontrar apreendida, que o M...era apenas seu fiel depositário e das obrigações que sobre este recaíam enquanto tal, o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de a subtrair ao poder público, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Além da acusação provou-se que:
8. As relações entre o arguido e M…, à data, eram de conflito.
9. O arguido à data dos factos não possuía antecedentes criminais.
10. O arguido vive em casa arrendada pagando €850,00/mês de renda.
11. Não possui trabalho nem aufere qualquer rendimento actualmente, vivendo do que angariou até ao presente, não possuindo outros encargos para além dos correntes da vida quotidiana.
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3. Relativamente aos factos não provados, ficou exarado na sentença:
Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.
Nomeadamente que o arguido não sabia da existência da penhora do veículo.
De que os documentos do veículo se encontrassem nele.
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4. Quanto à motivação da decisão de facto, ficou consignado:
A convicção do tribunal sobre a factualidade dada como provada, resultou do conjunto das provas produzidas em audiência, conjugadas com as regras da experiência comum, a saber:
No Auto de denúncia de f1s. 3, aditamento ao auto de denúncia de f1s. 18;
Certidão do auto de penhora de f1s. 52 a 59; Certidão do auto de apreensão; Auto de apreensão de fls. 22; Certidão do teor da matrícula da sociedade MM... de fls. 41 a 50; Certidão do teor da matrícula da sociedade T..., Informação de f1s. 34, de onde resultam os factos decorrente da apreensão do veículo no âmbito do processo supra referido e a apreensão do veículo pela GNR quando era condizido pelo aqui arguido.
Teve também em conta o depoimento das testemunhas M..., J..., A..., sendo que estas pessoas declararam ter relatado ao arguido a apreensão do veículo e que por tal efeito o mesmo não deveria circular, tendo as pessoas em causa visto o arguido, por diversas vezes, a circular com ele. Estas testemunhas relataram factos que presenciaram, tendo deposto de forma isenta e espontânea, logrando convencer o tribunal da veracidade das suas declarações.
Tais depoimentos foram conformados por JF…, que procedeu à apreensão do veículo no momento em que o arguido o tripulava, conforme o auto de notícia supra referido.
Quanto às condições económicas e sociais do arguido as declarações do mesmo.
Quanto aos antecedentes criminais o CRC dos autos.
Quanto aos factos não provados, por a versão do arguido não ter sustentabilidade em documentos ou outras testemunhas; aliás estranha-se que se circule com um veículo sem saber se o mesmo possui seguro, inspecção e em que condições o mesmo se encontra depois da situação de conflito com os restantes sócios da MM… .
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4. Do mérito do recurso: 4.1. Alterabilidade da matéria de facto:
O recorrente insurge-se contra a decisão proferida sobre matéria de facto, por terem sido dados como provados os pontos individualizados com os n.ºs 4., 5 ( tão só nos segmentos anotados a itálico: «Porém, apesar de ciente da legitimidade da apreensão e das obrigações inerentes ao cargo de fiel depositário que recaiam sobre o M..., em data não concretamente apurada mas que se situa entre 12 de Outubro de 2007 e 5 de Janeiro de 2008, o arguido retirou o veículo em referência das instalações da empresa, levou-o para Lisboa e passou a fazer uso do mesmo, assim o subtraindo ao poder público a que fora submetido aquando da apreensão»), e 7 (apenas na parte individualizada do mesmo modo: «Ao actuar da forma descrita, usando a viatura em causa, ciente de que não o podia fazer por a mesma se encontrar apreendida, que o M...era apenas seu fiel depositário e das obrigações que sobre este recaiam enquanto tal, o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de a subtrair ao poder público, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei»), pretendendo que a matéria de facto em causa seja erigida à condição de não provada.
As objecções contrapostas pelo recorrente à base impugnatória que se deixou concretizada reconduzem-se, na versão vertida no recurso, aos depoimentos, contraditórios, inconsistentes e fantasiosos, das testemunhas M… e A....
Auscultados os depoimentos das referidas testemunhas, não se vislumbram quaisquer razões que anulem ou diminuam a credibilidade dos mesmos.
Pelo contrário, as testemunhas em causa, concordantes na narração dos factos ocorridos, primaram pela espontaneidade, clareza e isenção.
A testemunha M…, ex-sócio gerente da sociedade MM… – Indústria de Móveis e Utilidades de Cozinhas, Lda., deu a saber, nos aspectos agora relevantes, os motivos que determinaram a sua condição de fiel depositário da viatura automóvel apreendida, traduzidos na ausência do arguido, então gestor de facto daquela sociedade, e os contactos que com este estabeleceu: numa primeira vez, solicitou a presença daquele em Tondela, com a finalidade de proceder à assinatura do auto de apreensão da viatura, tendo-lhe o mesmo respondido, por SMS., «que já tinha falado com os elementos da GNR e que na segunda feira seguinte compareceria com o propósito de assinar o auto de apreensão»; noutra ocasião, em momento posterior, via telefone, o arguido confirmou que havia retirado a viatura, tendo-lhe a testemunha então dito que, ao agir dessa forma, afectava negativamente a posição de fiel depositário daquela.
Por sua vez, a testemunha A…, a qual desempenhou, na qualidade de engenheira de madeiras, o cargo de coordenadora de produção na MM…, foi peremptória na afirmação de que, quando surgiram os dois agentes da GNR para procederem à apreensão do veículo automóvel, entrou imediatamente em contacto com quem na altura era realmente “seu patrão”, o arguido L…, dando-lhe conhecimento desse facto. O arguido, autorizou, então, a entrega dos documentos do veículo e tudo o que fosse pedido pelos elementos de autoridade.
Perante estes elementos de prova, caracterizados pela idoneidade, isenção e verosimilhança, nenhuma censura merece o juízo de apreciação e valoração do julgador do tribunal de 1.ª instância, ao dar como provados o pontos 4. e primeiro segmento do ponto n.º 5 («Porém, apesar de ciente da legitimidade da apreensão e das obrigações inerentes ao cargo de fiel depositário»).
Quanto ao último segmento do ponto 5., a expressão «subtracção ao poder público» está incluída na definição típica do crime do artigo 355.º do Código Penal. Daí que, porque conclusiva e envolvendo sentido especificamente jurídico, deva ser arredada do acervo factológico provado.
Passando, por fim, ao segmento impugnado do ponto 7., embora nos situemos no âmbito da reapreciação da matéria de facto provada, não podemos deixar de tecer desde já, na medida do estritamente necessário, breves considerações sobre o tipo objectivo do crime de descaminho de objectos colocados sob o poder público (mais adiante nos alongaremos sobre a qualificação jurídica dos factos) para chegarmos à consideração, dizemo-lo já, da sua não verificação e, consequentemente, da indevida consagração, como provado, dos elementos atinentes ao tipo subjectivo de ilícito e à falta de consciência da ilicitude da conduta por parte do arguido.
O crime em causa é cometido por quem «destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, documento ou outro objecto móvel, bem como coisa que tiver sido arrestada, apreendida ou objecto de providência cautelar».
Na situação dos autos, tal como nos revelam os factos objectivos constantes da factualidade provada, o arguido não praticou qualquer uma dessas condutas típicas. Por um lado, não destruiu, não danificou e não inutilizou, total ou parcialmente, o veículo apreendido. Por outro lado, não subtraiu, por qualquer forma, a viatura automóvel. Efectivamente, para haver a dita subtracção seria indispensável que o arguido desencaminhasse a viatura, a desviasse do destino que lhe foi traçado, nomeadamente escondendo-a ou alienando-a.
Ora, o arguido limitou-se a usá-la, sem que com isso a tivesse colocado em situação de não poder ser encontrada ou até apresentada logo que lhe fosse ordenado.
No que concerne aos factos atinentes à intenção e motivação dos arguidos, convém recordar a lição de Cavaleiro Ferreira[1], quando refere que existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica, aos quais apenas se poderá aceder através de prova indirecta (presunções naturais não jurídicas), a extrair de factos materiais comuns e objectivos dados como provados.
Se os factos provados não preenchem o tipo objectivo do crime em referência, necessariamente não poderão ser dados como provados os factos alusivos ao tipo subjectivo de ilícito, à culpa e à consciência da ilicitude da conduta.
Assim, haverá que expurgar da factualidade provada o segmento de facto a que nos vimos reportando.
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Alerta o recorrente, embora tão só na motivação propriamente dita, para o incorrecto julgamento parcial dos pontos de facto 1. e 2.
Como se retira da certidão da Conservatória do Registo Comercial de Lisboa (doc. a fls. 116/119 dos autos), à data dos factos, o arguido era apenas gerente da sociedade “T... – Consultores de Gestão, Unipessoal, Lda.”.
Por outro lado, como se vê da certidão da Conservatória do Registo Predial/Comercial de Tondela (doc. a fls. 41/50), e é referido no ponto 2., a referida sociedade passou a deter a qualidade de sócia da Mucofrom 2 em 20 de Março de 2006.
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4.2. Do vício de erro notório na apreciação da prova:
Dispõe o n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal: «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; «c) Erro notório na apreciação da prova».
Como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece”[2].
O erro notório na apreciação da prova é prefigurável quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum.
No caso concreto, o que se verifica é tão só uma insuficiência da prova produzida na audiência de discussão e julgamento para a correcta decisão da matéria de facto.
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4.3. Procedendo à assinalada modificação da matéria de facto [cfr. art. 431.º, al. b), do CPP], nos pontos em destaque, os factos provados e não provados são os seguintes: Factos provados:
1. O arguido à data dos factos era gerente da sociedade T... – Consultores de Gestão, Unipessoal, Lda., a qual, por sua vez, é sócia da sociedade MM... – Indústria de Móveis e Utilidades de Cozinhas, Lda. desde 20 de Março de 2006.
2. Nos autos de execução comum na 430/07.7TBVIS, que corre termos no 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viseu e em que é exequente …. e executada a referida MM..., foi realizada, no dia 14 de Março de 2007, a penhora do veículo automóvel ligeiro de mercadorias de marca Opel, modelo Combo-C-Van, de cor branca, matrícula …, propriedade desta última e que contava na altura com 99.208km.
3. Em execução dessa penhora, no dia 13 de Outubro de 2007, aquele veículo foi apreendido e depositado pela GNR de Tondela nas instalações da executada, sitas na zona industrial da Adiça, lote 1, em Tondela e entregue ao sócio M... a título de fiel depositário, com a cominação de que não o poderia utilizar nem alienar por qualquer outra forma e de o entregar quando tal lhe fosse exigido, sob pena da sua utilização ou alienação o fazer incorrer em responsabilidade criminal, de tudo se lavrando auto que foi por ele lido, compreendido e assinado.
4. De tudo isto tomou o arguido perfeito conhecimento, por intermédio do M... e de A..., funcionária da empresa.
5. Porém, apesar de ciente da legitimidade da apreensão e das obrigações inerentes ao cargo de fiel depositário que recaiam sobre o M..., em data não concretamente apurada mas que se situa entre 12 de Outubro de 2007 e 5 de Janeiro de 2008, o arguido retirou o veículo em referência das instalações da empresa, levou-o para Lisboa e passou a fazer uso do mesmo.
6. Assim aconteceu, entre outras ocasiões – pelo menos duas, em data não concretamente apurada – em que o arguido circulou com a viatura de Lisboa até Tondela, no dia 29 de Setembro de 2008, cerca das 14h 45m, altura em que a conduzia na estrada dos Outeiros, na freguesia de Dardavaz, concelho de Tondela e foi interceptado pela GNR de Tondela, contando já o veículo com 130.833km.
7. O arguido usou a viatura em causa, ciente de que não o podia fazer por a mesma se encontrar apreendida, que o M...era apenas seu fiel depositário e das obrigações que sobre este recaíam enquanto tal.
- Factos 8. a 11. – mantêm-se inalterados.
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Factos não provados:
Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa, nomeadamente que:
- O arguido não sabia da existência da penhora do veículo;
- Os documentos do veículo se encontrassem neste;
- O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de subtrair a viatura em causa ao poder público, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
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À alteração da matéria de facto, nos pontos assinalados, foram determinantes os fundamentos que, casuisticamente, em sede própria, ficaram expostos.
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4.4. Qualificação jurídica dos factos:
Na exegese vertida na sentença sob recurso, cingida ao caso concreto, estaria preenchido o tipo objectivo do crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público, com base na seguinte ordem de argumentos: «No caso dos bens apreendidos, visa-se punir todas as condutas que, dolosamente, impeçam ou frustrem as finalidades da apreensão, seja por via da sua inutilização ou destruição, seja por via do seu descaminho. (…). Assim, no caso concreto de veículos ou outros bens móveis apreendidos à ordem de uma autoridade pública, visa-se punir todas as condutas que, dolosamente, impeçam ou frustrem a finalidade que a lei pretende acautelar com a sua apreensão, seja por via da sua inutilização ou destruição, seja por via do seu descaminho, em que se consubstancia, por exemplo, a sua venda ou qualquer outra forma de alienação a título definitivo. O que quer dizer que o crime tanto pode ser praticado pela pessoa que tem os bens à sua guarda (o depositário) como por terceiro que, tendo conhecimento de que o bem se encontra sujeito ao poder público, pratique qualquer dos actos descritos na previsão típica do artigo 355.º do Código Penal (o destrua, danifique, inutilize ou subtraia ao poder público). De regresso ao caso concreto, encontrando-se provado que o arguido sabia da existência da penhora, e que como é consabido pela generalidade das pessoas, após a penhora não podem ser praticados actos que desvalorizem o bem, e sendo a quilometragem um dos factos de valor de um automóvel, circular com ele mais de 30.000 Km, provocando desgaste no mesmo, diminuiu significativamente o valor do veículo. (…)».
Se o julgador de 1.ª instância andou bem na concepção normativa do crime em análise, o mesmo não sucede com a subsunção dos factos ao tipo do artigo 355.º do Código Penal.
É chegado o momento de explanarmos com maior rigor as razões do entendimento já acima resumidamente exposto.
O tipo legal do artigo 355.º do Código Penal, com a epígrafe «descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público», tutela a autonomia intencional do Estado, concretizada através da ideia de inviolabilidade das coisas sob custódia pública.
Não se trata de defender bens do Estado; não se exige sequer que os objectos de que fala a lei tenham valor pecuniário. Interessa apenas a afectação de uns objectos a uma finalidade concreta, por parte da autoridade pública, finalidade essa que justifica a sua sujeição à guarda oficial.[3]
Por isso, o crime pode ser cometido por quem não seja depositários dos bens, consumando-se quando o agente, exercendo acção directa sobre a coisa, inutilizando-a ou desencaminhando-a, obtém, movido por qualquer modalidade de dolo, a frustração definitiva da custódia da coisa.[4]
A acção típica consiste em destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou por qualquer forma, subtrair.
As três primeiras modalidades de acção configuram-se em termos semelhantes à descrição típica do crime de dano.
A destruição determina a perda total da utilidade da coisa e implica, normalmente, o sacrifício da sua substância. Neste sentido “destruir” consiste em deitar abaixo, demolir devastar, derrubar, arrasar, fazer desaparecer, arruinar, ou seja, traduz o acto que acarreta a completa imprestabilidade da coisa.
Quanto à danificação, abrange os atentados à substância ou à integridade física da coisa que não atinjam o limiar da destruição, podendo concretizar-se pela produção de uma lesão nova ou pelo agravamento de uma lesão preexistente. Configura, deste modo, um acto que causa uma “destruição parcial” da coisa[5].
Por seu lado, “inutilizar” abarca as acções que reduzem a utilidade da coisa segundo a sua função. O que se exige sempre é a referência à corporeidade da coisa. Esta conduta típica pode consubstanciar uma lesão da substância ou da integridade física (neste caso, confunde-se com a acção “danificar”), ou em retirar uma parte ou peça da coisa ou acrescentar uma coisa ou substância perturbadora. Quanto ao critério definidor da função da coisa a posição actual assenta numa solução eclética, ou seja, no “primado do critério do proprietário, temperado pela exigência da generalização”[6].
Em síntese conclusiva, a destruição, a danificação ou a inutilização, total ou parcial, abrangem todos os atentados à substância ou à integridade física da coisa (como no dano) que a tornam inútil do ponto de vista que justificava a sua custódia oficial. Por isso, como salienta Cristina Líbano Monteiro[7], deve considerar-se a inutilização como o conceito chave dos outros tipos de acção sobre a coisa.
No caso dos autos, o arguido se limitou à utilização do veículo automóvel penhorado e apreendido, estando afastada, por conseguinte, qualquer uma das modalidades agora normativamente definidas.
Subjaz para apreciação o conceito “subtracção ao poder público”, cabendo aqui tão só as condutas que sonegam a coisa ao poder público, sem que, no entanto, seja exigida uma intenção de apropriação. É um dos casos excepcionais em que a subtracção da coisa sem intenção de apropriação é punida, no âmbito do conceito «por qualquer forma subtrair ao poder público a que está sujeito»[8].
Efectivamente, como salienta Cristina Líbano Monteiro[9], deve entender-se por subtrair o mesmo que no crime de dano, com a seguinte precisão: caso a “subtracção” seja levada a cabo pela pessoa oficialmente encarregada da guarda da coisa, o verbo mais apropriado não será esse (subtrair), na medida em que não se verifica a quebra do domínio do facto de outrem para constituir um domínio próprio. Melhor se falaria nestes casos de descaminho.
De todo o modo, a acção terá de traduzir-se numa conduta de apropriação da coisa, com o reverso do poder público dela ficar desapossado, nomeadamente, através de actos em que o agente, por exemplo, extravia a coisa, a esconde ou a entrega a terceiro[10]
No caso, o arguido não praticou nenhuma das analisadas condutas típicas. Não destruiu, não danificou, não inutilizou, total ou parcialmente, nem, por qualquer forma, subtraiu ao poder público a que estava sujeito o veículo apreendido.O arguido mais não fez do que utilizar a viatura automóvel penhorada, sem que com isso a tivesse colocado em situação de não poder ser encontrada ou até apresentada logo que lhe fosse determinado por quem de direito. Não obstante ter sido usado, o veículo continuou à disposição das autoridades, do poder público. O fim visado com a apreensão do automóvel não se frustrou com o seu uso pelo arguido.
Em face do exposto, é apodíctico que a matéria de facto provada não preenche sequer o tipo objectivo do crime, p. e p. pelo artigo 355.º, do CP, imputado ao arguido.
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Uma nota final:
No seu douto parecer, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto sustenta que os factos provados são subsumíveis ao crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal. Contudo, porque se verificou condenação por crime diverso, ou seja, pelo crime do artigo 355.º do referido diploma, deveria ser anulada a sentença e determinado o envio do processo ao tribunal da 1.ª instância, para que, uma vez reaberta a audiência, fosse cumprido o disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal.
Todavia, esta posição parte de pressupostos de facto não contidos na sentença nem, aliás, na própria acusação, a qual, como sabemos, define o objecto do processo.
Com certeza por lapso, não atentou o Ilustre Magistrado do Ministério Público que, de acordo com os factos relevantes, fiel depositário do veículo automóvel penhorado e apreendido é M… (a quem foi feita a cominação descrita tanto na acusação como no ponto 3. do acervo factológico provado) e não o arguido/recorrente.
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Impõe-se, por conseguinte, a absolvição do arguido, ficando prejudicadas, em consequência, as demais questões suscitadas no recurso.
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5. Dispositivo:
Posto o que precede, os juízes da 5.ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra concedem provimento ao recurso, revogam a sentença recorrida e absolvem o arguido L... da prática do crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público, p. e p. pelo artigo 355.º do Código Penal.
Sem tributação.
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Alberto Mira (Relator) Elisa Sales
[1]Curso de Processo Penal, vol. L 1981, pág. 292. [2] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Editorial Verbo 2000, Vol. III, pág. 338/339. [3] Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo III, pág. 419. [4] Ac. da Relação do Porto de 07-02-2007, Proc. n.º 0615753. [5] Manual da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, pág. 222. [6] Manuel da Costa Andrade, idem, pág. 223/225. [7]Obra cit., pág. 423. [8] Ac. da Relação do Porto de 09-11-2005, inCJ, tomo V, pág. 219. [9] Ainda a mesma obra, pág. 422/423. [10] Ac. da Relação de Lisboa de 28-11-2007, CJ, tomo V, pág. 131.