I - O tribunal da Relação, quando perante si for suscitado o incidente a que se referem os artigos 519.º n.º 3 c) e n.º 4 do Código de Processo Civil e 135.º n.º 3 do Código de Processo Penal, não pode deixar de indagar se na situação que lhe é exposta há algum segredo, não estando, por isso, vinculado ao juízo formulado na 1.ª instância de que há um sigilo e de que a recusa em informar é legitima por nele radicar.
II - Não sendo os herdeiros terceiros, no que à relação jurídica que existia entre o banco e o de cuius diz respeito, tem a entidade bancária que lhes prestar todas as informações que prestaria a este se ele ainda fosse vivo, por, neste cenário, não existir, relativamente àqueles, sigilo bancário.
A E...respondeu dizendo não poder fornecer os elementos solicitados em virtude destes estarem sujeitos a segredo bancário, nos termos do artigo 78.º Decreto-Lei 298/92 de 31 de Dezembro.
Face a essa resposta, a Meritíssima Juíza suscitou, nos termos dos artigos 519.º n.º 4 do Código de Processo Civil e 135.º n.º 3 do Código de Processo Penal, o incidente de dispensa do dever de sigilo, considerando, no respectivo despacho, que, dado o disposto no artigo 78.º do Decreto-Lei 298/92, a recusa da instituição bancária não é ilegítima.
Porém, na alínea c) do seu n.º 3 admite-se que a recusa em colaborar é legítima se a obediência importar a violação do sigilo profissional (…), sem prejuízo do disposto no nº 4. E neste n.º 4 diz-se que deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
O n.º 4 deste artigo 519.º remete-nos, assim, para o artigo 135.º do Código de Processo Penal, onde se dispõe que:
1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 - O disposto nos n.ºs 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.
Perante este quadro, quando for invocado o direito de escusa, o juiz terá que, desde logo, decidir se essa escusa é, ou não, legitima. E, se concluir que ela é legítima, poderá, nos termos do n.º 3 deste artigo 135.º, suscitar, junto do tribunal que, em termos hierárquicos, lhe é imediatamente superior, a quebra do segredo, nomeadamente quando entender que esta se mostra imprescindível para a descoberta da verdade.
No caso dos autos verifica-se que, na sequência de reclamação contra a relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal, a Meritíssima Juíza veio a proferir despacho em que determinou que a E...informasse quais os saldos à ordem, a prazo e as aplicações associadas às contas bancárias de que eram titulares ou co-titulares os inventariados B...e C..., à data das suas mortes, satisfazendo, assim, o que o interessado D... havia requerido que se fizesse.
A E...respondeu dizendo não poder fornecer os elementos solicitados em virtude destes, nos termos do artigo 78.º Decreto-Lei 298/92 de 31 de Dezembro, estarem sujeitos a segredo bancário.
Face a esta resposta, a Meritíssima Juíza proferiu despacho em que qualificou como legítima a recusa daquela instituição bancária e, por entender que a junção aos autos de tal informação se revela indispensável para a determinação dos bens que compõem o acervo hereditário, ou seja, para a correcta administração da justiça, conclui que se justifica a quebra do segredo, pelo que, tendo presente o disposto no artigo 519.º n.º 3 c) e n.º 4 do Código de Processo Civil, desencadeou o incidente previsto no artigo 135.º n.º 3 do Código de Processo Penal.
A procedência deste incidente pressupõe, para além do mais, que o acesso à informação pretendida está, de facto, protegida por sigilo, pois só nesse caso é que se coloca a questão de saber se ele deve, ou não, ser levantado, a qual constitui o núcleo do incidente. Na verdade, se não existir sigilo a recusa não só não é legítima, como também não é necessário que, para a remover, se quebre um segredo, o que conduz à conclusão de que, nessas circunstâncias, falta um dos pressupostos do incidente.
Portanto, o tribunal da Relação, quando perante si for suscitado tal incidente, para o decidir não pode deixar de indagar se na situação que lhe é exposta há algum segredo, não estando, por isso, vinculado ao juízo formulado na 1.ª instância de que há um sigilo e de que a recusa em informar é legitima por nele radicar. A não ser assim o tribunal da Relação podia ver-se obrigado a ter que levantar um sigilo que, contrariamente ao entendido na 1.ª instância, considera não existir, o que seria verdadeiramente absurdo.
A Meritíssima Juíza sustenta que as informações solicitadas à E...estão protegidas pelo invocado sigilo bancário, daí a necessidade de o levantar.
Será que assim é?
No artigo 78.º do RGICSF (Regulamento Geral das Instituições Financeiras e Sociedades Financeiras – Decreto-Lei 298/92 de 31 de Dezembro) dispõe-se que:
1. Os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
2. Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.
3. O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços.
E no n.º 1 do artigo 79.º do mesmo diploma estipulou-se que os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição.
Como é sabido, o beneficiário do sigilo bancário é o cliente e não a instituição financeira.
Por outro lado, tendo presente o disposto no artigo 2024.º do Código Civil, com a morte do titular da conta abre-se a sucessão do falecido, sendo os respectivos herdeiros chamados à titularidade das suas relações jurídicas patrimoniais, com a consequente devolução dos bens que lhe pertenciam. Com efeito, por força do fenómeno sucessório, a pessoa falecida é substituída por uma ou mais pessoas vivas na titularidade das suas relações jurídicas patrimoniais (…). O sucessor é chamado a ocupar o lugar – trono, a posição de titular, a antiga persona – do finado. As relações jurídicas continuam a ser as mesmas (…) o que muda é o sujeito – e apenas o sujeito – delas.[1]
Por isso mesmo, falecido um dos titulares de uma conta bancária conjunta, os seus herdeiros passam a ser os beneficiários do segredo bancário, podendo, para conhecer o património hereditário, pedir informações e conhecer a evolução das contas bancárias antes e depois do óbito[2]. Os herdeiros, ao ocuparem o lugar da pessoa falecida na titularidade das suas relações jurídicas patrimoniais, passam a ser os beneficiários do segredo bancário, não lhe podendo ser recusadas, com base nesse segredo, as informações sobre os movimentos da conta, antes e depois do óbito[3].
Com efeito, o segredo bancário (entendido em termos actuais), consagrado no nosso ordenamento jurídico como segredo profissional é uma questão que não se põe, isto é, não pode pôr-se, entre as partes de um contrato de depósito bancário, ou seja, entre o Banco depositário e o cliente depositante. Na verdade, entre estes não pode haver segredo e, nomeadamente, à morte do respectivo cliente, (…) também não pode haver segredo bancário entre o Banco Réu/apelante e os sucessores, seus herdeiros, daquele[4].
Deve, assim, ter-se por pacífico que os herdeiros de um depositante não podem ser tidos como terceiros, relativamente às contas do mesmo, razão porque não lhe pode ser oposto o segredo bancário, pois, o direito à informação e, designadamente, o direito à obtenção de informações documentadas sobre os movimentos bancários resulta directamente da lei e do contrato bancário celebrado com vista à abertura da conta. Tal direito deverá considerar-se transmitido aos herdeiros, uma vez que os depósitos, enquanto bens, passam a fazer parte do acervo da herança aberta por morte do depositante[5].
Não sendo os herdeiros terceiros, no que à relação jurídica que existia entre o banco e o de cuius diz respeito, tem a entidade bancária que lhes prestar todas as informações que prestaria a este se ele ainda fosse vivo, por, neste cenário, não existir sigilo bancário[6].
Aqui chegados, conclui-se, que a E...tem que dar aos herdeiros dos inventariados, aqui interessados, todas as informações que estes solicitarem, relativamente às contas ou aplicações que os falecidos detinham nesse banco, quer como únicos titulares quer em co-titularidade com outros, o mesmo é dizer que não existe o segredo bancário que foi invocado, pelo que a recusa em prestar as informações solicitadas, fundada no pretenso sigilo, é ilegítima.
Não havendo sigilo, obviamente que se não coloca a questão de o levantar, o que significa que falta um dos pressupostos deste incidente e, por isso, e só por isso, está o mesmo votado ao insucesso.
Sem custas.
António Beça Pereira (Relator)
Nunes Ribeiro
Hélder Almeida
[1] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. VI, pág. 2, 3 e 5.
[2] Ac. STJ de 21-3-2000, Proc. 113/2000, www.colectaneadejurisprudencia.com.
[3] Ac. Rel. Lisboa de 28-2-2002, Proc. 12273/01, www.colectaneadejurisprudencia. com.
[4] Ac. Rel. Lisboa de 14-11-2000, Proc. 6753/00, www.colectaneadejurisprudencia. com.
[5] Ac. STJ de 7-10-2010, Proc. 26/08.6TBVCD.P1.S1, www.gde.mj.pt/jstj.
[6] Neste sentido pode ainda ver-se os Ac. STJ de 28-6-1994, Proc. 85.812, Ac. Rel. Porto de 7-3-1996, Proc. 16/96, Ac. Rel. Coimbra de 21-11-1995, Proc. 1201 e Ac. Rel. Lisboa de 9-11-1999, Proc. 4505/99, todos em www.colectaneadejurisprudencia.com.