I – Uma assunção de dívida (artigo 595º, nº 1 do CC), sem declaração expressa do credor de exoneração do primitivo devedor (artigo 595º, nº 2 do CC), traduz uma assunção cumulativa ou imperfeita, conduzindo à constituição, paralelamente à obrigação inicial, de uma nova obrigação a cargo do assuntor, autónoma da primitiva e exigível paralelamente a qualquer dos devedores (ao primeiro devedor e ao segundo devedor, assuntor).
II – Esta característica da assunção cumulativa conduz a que uma acção executiva visando a satisfação do crédito relativamente ao assuntor não esteja dependente (no sentido do artigo 279º, nº 1 do CPC) de uma reclamação da dívida primitiva no processo de insolvência do primeiro devedor, não se justificando a suspensão da instância nessa acção executiva por prejudicialidade da referida insolvência.
III – A circunstância de uma assunção de dívida ter sido subscrita por um só gerente da sociedade assuntora, quando o pacto social desta prevê a respectiva obrigação pela assinatura de dois gerentes, não é oponível ao credor beneficiário da assunção, com base na regra da ilimitação dos poderes representativos dos gerentes, nos termos do artigo 260º, nº 1 do Código das Sociedades Comerciais.
I – A Causa
Fundou-se tal oposição na invocação da existência de uma causa prejudicial, pretendendo a Executada a suspensão da instância nessa execução, nos termos do artigo 279º, nº 1 do CPC[4], alegando, cumulativamente, inexistir qualquer dívida ao devedor originário ou à Exequente, sem prejuízo da não vinculação da Executada à assunção da dívida, por o documento respectivo estar assinado apenas por um gerente desta[5].
1.1. A Executada contestou a oposição, defendendo a regularidade da respectiva pretensão executiva, juntando ampla prova documental (inclui esta, como já se indicou, o “título executivo” consubstanciado na assunção de dívida, v. fls. 35 e diversas interpelações à Executada para cumprir a obrigação assumida).
1.2. Através do Saneador-Sentença de fls. 66/72 – constitui este a decisão objecto da presente apelação – foi a oposição julgada improcedente (o que incluiu a negação da pretensão de suspender a execução por prejudicialidade da insolvência).
1.3. Inconformada, interpôs a Executada o presente recurso, motivando-o a fls. 80/87, aí formulando as conclusões que ora se transcrevem:
“[…]
Ora, compulsadas essas conclusões, verificamos incidir a apelação sobre as duas questões centrais na economia decisória do Saneador-Sentença apelado: (a) a não suspensão da instância executiva por alegada prejudicialidade do processo de insolvência (no qual a ora Exequente também reclamou o crédito aqui em causa); (b) a vinculação da Executada/Apelante – enunciamos esta questão na asserção positiva presente no Saneador-Sentença – à assunção de dívida aqui apresentada como título executivo, com base na assinatura desta por apenas um gerente, tendo presente que o contrato de sociedade da Executada prevê a vinculação da sociedade pela assinatura de dois gerentes.
Sendo estas as questões/fundamento do recurso, deixamos aqui nota de quais os factos relevantes para a apreciação desta apelação (correspondem estes, fundamentalmente, às incidências da execução), sublinhando-se a tradução de tais factos em elementos com suporte documental nessa execução e nesta oposição:
1 - …
2 – Mostram-se juntos com este requerimento executivo os documentos nele indicados, designadamente a assunção de dívida correspondente ao título executivo aqui em causa, supra transcrita na nota 3.
3 – Do contrato de sociedade da Executada consta, como forma de a obrigar: “basta a assinatura de 2 gerentes” (atestação constante do documento de fls. 10/12).
Estas são, pois, as incidências fácticas a considerar na subsequente exposição.
2.1. (a) Coloca-se aqui – e constitui o primeiro fundamento deste recurso – a questão da suspensão da presente instância, por alegada prejudicialidade da reclamação do mesmo crédito ora em causa, de um outro devedor (como veremos de seguida – e é relevante – de um outro devedor solidário com o aqui Executado), no quadro da reclamação e verificação de créditos no processo de insolvência desse outro devedor (a G…, Lda.)[6].
A decisão apelada, no trecho interlocutório no qual se pronunciou sobre esta questão (fls. 66/67), abonando-se numa citação de José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto (em anotação ao artigo 279º do CPC)[7], entendeu ser inadequada a suspensão de uma acção executiva – esta acção – com fundamento na pendência de uma causa prejudicial. Trata-se de uma afirmação que, sendo fundamentalmente correcta, carece de ser acompanhada do inciso condicionante, “em princípio”, já que algumas incidências especiais de acções correlacionadas com uma execução são susceptíveis de colocar em causa o pendor absoluto da afirmada impossibilidade de suspensão de uma instância executiva por prejudicialidade de outra lide.
Com efeito, bastaria ao trecho aqui considerado da decisão apelada continuar a citação com a qual pretendeu abonar o que decidiu, para introduzir importantes condicionantes ao argumento empregue, deixando-o bem menos expressivo no pretendido efeito de fornecer um inabalável modelo decisório ao caso concreto.
Vejamos, pois, a totalidade dessa citação de José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, anotando o artigo 279º do CPC[8]:
“[…]
A acção executiva não pode ser suspensa com fundamento na pendência de causa prejudicial, pois, não tendo por fim a decisão duma causa, não pode nela verificar-se a relação de dependência exigida pelo preceito. Isso mesmo foi decidido, na pendência do CPC de 1939, por Assento de 24/05/1960 (Agostinho Fontes), BMJ, 97, p. 173[[9]], cuja força vinculante, como decidiu o STJ em 05/03/1971 (Manuel Fernandes da Costa), BMJ, 205, p. 195, em 04/06/1980 (Costa Soares), BMJ, 298, p. 232, e em 14/01/1993 (Baltazar Coelho), CJ-STJ, 1993, I, p. 59, se manteve com o CPC de 1961 (até ao DL 329-A/95), dado que o preceito interpretado não teve alteração[[10]].
Mas a questão da suspensão pode pôr-se para a oposição à execução (maxime por via da pendência de acção em que se discute a existência da obrigação exequenda), para os embargos de terceiro (pendência de acção de reivindicação da coisa penhorada ou de mera declaração da titularidade do direito sobre ela) e para o apenso de verificação e graduação de créditos (pendência de acção respeitante a dívida reclamada). Neste último caso, a própria lei determina os termos em que pode ter lugar a suspensão da graduação de créditos (artigo 869º, nº 1). Nos dois outros, tida em conta a sua natureza declarativa, a suspensão é, em princípio, admissível (Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Lisboa, 1971, II, p. 47; Acs. do STJ de 10/01/1980, Hernâni de Lencastre, BMJ, 293, p. 227, e de 18/06/1996, Aragão Seia, CJ-STJ, 1996, II, p. 149, os dois primeiros quanto a embargos de executado e o terceiro quanto a embargos de terceiro), sem prejuízo de normas que disciplinam a influência da pendência dessa acção declarativa na própria acção executiva (artigos 818º e 356º); mas é de ponderar se a finalidade da realização do direito, que é a própria acção executiva, não deve levar, sempre que possível, a deslocar para a sua esfera a apreciação de questões que possam ser tratadas em processo declarativo apenso (que tem uma função de concentração conforme ao princípio da economia processual), só admitindo a suspensão com fundamento na pendência de causa prejudicial quando tal não seja possível (em face, designadamente, da forma de processo declarativo a observar: v., quanto a este ponto, o ac. do STJ de 18/12/1962, Alberto Toscano, BMJ, 122, p. 520, que negou que a pendência da acção de prestação de contas constituísse motivo de suspensão da execução, mas admitiu que a necessidade do apuramento das contas pudesse ser feita valer em embargos de executado). Há, nomeadamente, que evitar que pela via da suspensão duma acção declarativa apensa à execução se consiga o mesmo resultado que procuram evitar preceitos como os dos artigos 909º, nº 1, d) (a acção de reivindicação pode levar à anulação da venda executiva, mas não suspende a execução) e 777º (a pendência de recurso de revisão não impede a execução da sentença).
[…]”[11]
[sublinhado acrescentado]
Serve isto para colocar em evidência que o argumento genericamente empregue na decisão apelada – uma execução nunca se suspende por prejudicialidade de outra causa – não é tão forte quanto pretende sugerir-se, para mais quando está em causa um processo (a insolvência) que se caracteriza por constituir uma execução de carácter universal referida ao património de determinado devedor[12].
Note-se, todavia, que a decisão de não suspender esta instância executiva por prejudicialidade referida à reclamação do crédito executado numa insolvência do primitivo devedor, foi correcta nessa asserção, embora não pela única razão fornecida no trecho da decisão apelada ora convocado, sendo relevante aqui a natureza autónoma das obrigações em causa nos dois processos pretendidos relacionar.
Deve, pois, ser ponderada esta incidência.
2.1.1. (a) Com efeito, importa reter que o título executivo aqui em causa, traduzindo-se – enquanto título executivo – num documento particular, assinado pelo devedor, que importa a constituição de uma obrigação pecuniária (no que, integrando a facti species do artigo 46º, nº 1, alínea c) do CPC, o torna apto a fundar esta execução), traduzindo-se nisto esse documento, corresponde ele, na sua substância, a uma assunção de dívida por parte da ora Executada [v. artigo 595º, nº 1, alínea b) do Código Civil (CC)][13].
Assim, tendo presente que a constituição da obrigação em causa na assunção, “[…] só exonera o antigo devedor havendo declaração expressa do credor […]”[14], sendo que, “[…] de contrário, o antigo devedor responde solidariamente com o novo obrigado” (diz o nº 2 do artigo 595º do CC)[15], tendo isto presente, dizíamos, somos transportados, com as consequências daí decorrentes, para o regime da solidariedade obrigacional passiva fundada na lei (artigo 513º do CC), em que “[…] cada um dos devedores responde pela prestação integral […]” (artigo 512º, nº 1 do CC), aqui com o sentido, algo peculiar relativamente ao regime da solidariedade, da obrigação ser autonomamente exigível aos dois devedores cumulativos[16].
Vale isto por dizer que o crédito aqui pretendido realizar executivamente pela Exequente/Apelada, que é o resultante da assunção cumulativa da dívida da G… pela Executada/Apelante (verificada a condição do não pagamento pela primeira), afirmando-se como realidade estruturalmente autónoma e perfeitamente independente do crédito sobre a G…, não está (não pode estar), pela sua própria natureza, processualmente condicionado por uma adjectivação que, em última análise, representa algo que não exclui – permite até – a adjectivação cumulativa face ao assuntor aqui Executado. Não existe qualquer relação de prioridade entre as duas obrigações que permita colocar o assuntor à “espera” do que poderá suceder no processo concursal dirigido à satisfação, através do património do primitivo devedor, das dívidas do mesmo.
É este, como vimos, o regime da assunção cumulativa, sendo que ele afasta aqui a existência do nexo de dependência, que o artigo 279º, nº 1 do CPC pressupõe, no confronto das duas adjectivações, ou seja, entre a exigência da dívida ao primitivo devedor (para sermos exactos diremos: o que muito remotamente poderá representar a exigência da dívida a este, como sucede com a reclamação do crédito na insolvência) e a exigência autónoma da dívida ao assuntor, enquanto expressão do accionar de uma obrigação distinta da referida ao primeiro devedor[17].
A decisão de não suspensão da instância foi, pois, independentemente de outras considerações, correcta, tendo presente a caracterizada autonomia das duas obrigações.
2.2. (b) Interessa-nos agora – e corresponde ao segundo fundamento do recurso – a questão da subscrição do documento consubstanciador da assunção da dívida por apenas um gerente da assuntora ora Executada, face à exigência pelo pacto social da assinatura de dois gerentes para efeito de vinculação da sociedade.
Esta questão foi correctamente equacionada e decidida pelo Tribunal a quo, através da aplicação do chamado “regime da ilimitação dos poderes representativos da gerência perante disposições constantes do contrato ou resultantes de deliberações dos sócios”[18], decorrente do nº 1 do artigo 260º do Código das Sociedades Comerciais – “[o]s actos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberações dos sócios”:
“[…]
[P]ara protecção dos terceiros que entrem em relação com a sociedade, por força da actuação dos gerentes, consagra-se, no artigo 260º/1 e 2, a regra da ilimitação nos poderes representativos dos gerentes, quando actuem «dentro dos poderes que a lei lhes confere». Ou seja: as limitações que resultassem para a actuação do gerente, quer do contrato de sociedade, quer de deliberação dos sócios, não impedem a vinculação da sociedade pelo acto praticado pelo gerente, até porque a capacidade da sociedade não é coarctada por essas circunstâncias.
[…]”[19]
Note-se, tendo em vista a “limitação da ilimitação”, expressemo-nos assim, constante do nº 2 do mesmo artigo 260º – “[a] sociedade pode, no entanto, opor a terceiros as limitações resultantes do seu objecto social […]” –, que o assumir da dívida de um subempreiteiro (a Executada foi empreiteira geral da obra, garantindo a dívida de um subempreiteiro) não extravasa de um objecto social referido a “empreitadas gerais” (v. fls. 10), no sentido em que este objecto não deixa de englobar os aspectos atinentes ao relacionamento comercial em cadeia com subempreiteiros ocorrido no quadro dessas “empreitadas gerais”.
Estando esta questão da vinculação da Apelante pela assunção de dívida correctamente decidida, como se sublinhou e demonstrou, nenhum reparo merece a decisão apelada a tal respeito.
2.3. Improcede, pois, o recurso, em todos os seus fundamentos, restando formular a competente decisão de confirmação da Sentença apelada, depois de sumariarmos o Acórdão acabado de relatar:
I – Uma assunção de dívida (artigo 595º, nº 1 do CC), sem declaração expressa do credor de exoneração do primitivo devedor (artigo 595º, nº 2 do CC), traduz uma assunção cumulativa ou imperfeita, conduzindo à constituição, paralelamente à obrigação inicial, de uma nova obrigação a cargo do assuntor, autónoma da primitiva e exigível paralelamente a qualquer dos devedores (ao primeiro devedor e ao segundo devedor, assuntor);
II – Esta característica da assunção cumulativa conduz a que uma acção executiva visando a satisfação do crédito relativamente ao assuntor não esteja dependente (no sentido do artigo 279º, nº 1 do CPC) de uma reclamação da dívida primitiva no processo de insolvência do primeiro devedor, não se justificando a suspensão da instância nessa acção executiva por prejudicialidade da referida insolvência;
III – A circunstância de uma assunção de dívida ter sido subscrita por um só gerente da sociedade assuntora, quando o pacto social desta prevê a respectiva obrigação pela assinatura de dois gerentes, não é oponível ao credor beneficiário da assunção, com base na regra da ilimitação dos poderes representativos dos gerentes, nos termos do artigo 260º, nº 1 do Código das Sociedades Comerciais.
Custas pela Apelante.
J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca
[1] Circunstância que conduz à aplicação da reforma do regime dos recursos corporizada no Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Assim, sempre que seja necessário convocar na subsequente exposição alguma norma do Código de Processo Civil cujo texto tenha sido alterado pelo referido DL 303/2007, sê-lo-á na redacção introduzida por este último Diploma.
Teve esta Relação acesso ao requerimento executivo e documentação a ele anexa, através do histórico do sistema citius.
[2] Assumimos desde já este qualificativo relativamente à situação que corresponde ao título executivo, sendo que, adiante (no item 2.1.1. (a), infra) justificaremos esta asserção.
[3] É o seguinte o teor deste documento de assunção de dívida:
“[…]
(Suspensão por determinação do juiz)
2. Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.
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