I - Face à natureza inquestionavelmente processual do artigo 8º do C.R.Pred., deve entender-se que o seu novo conteúdo está sujeito ao princípio da aplicação imediata próprio do direito adjectivo.
II - Independentemente dessa circunstância, tendo a nova redacção introduzida no nº 1 do referido artigo 8º consagrado um entendimento que anteriormente já era afirmado pela jurisprudência (correspondia mesmo à orientação dominante no STJ), deve ser atribuída a essa alteração a natureza de lei interpretativa, com a consequente aplicação imediata afirmada no nº 1 do artigo 13º do Código Civil.
III – Nos termos do artigo 4º, nº 1 da Lei dos Baldios (Lei nº 68/93, de 4 de Setembro), “os actos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, tendo por objecto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito”.
IV - O que normalmente se pretende com o modelo de acção de impugnação de justificações notariais é a declaração de que o réu não tem o direito que foi objecto da escritura de justificação notarial.
V - A acção de impugnação de justificação notarial é uma acção de simples apreciação negativa, porque proposta para obtenção da declaração de inexistência dum direito (artigo 4º, nº 2, alínea a) do CPC). O que se pretende é a declaração de que o justificante não é o titular do direito justificado na escritura que vai servir de base ao registo de aquisição, nos termos do artigo 116º do CRPred.
VI - Esta natureza – de acção de simples apreciação negativa – convoca desde logo, enquanto regra específica de atribuição do ónus da prova, o artigo 343º, nº 1 do Código Civil. Assente que assim é, neste tipo de acção compete ao réu o ónus da prova do que subjaz à escritura, com a correspondente regra de decisão inerente à indemonstração da sua versão.
I – A Causa
Em função desta incidência (à qual se juntaria, sempre segundo a A., um corte de quinze pinheiros pelo 2º R no indicado Baldio) formula a A. os seguintes quatro pedidos:
“[…]
A) Condenar-se os RR. a reconhecer, assim se declarando, não terem adquirido o direito de propriedade sobre o terreno ou prédio justificado por uma das escrituras e alienado pela outra escritura, dele devendo abrir mão para continuar a ser administrado pelos compartes, através da A., como sua delegada.
Em consequência,
B) Declarar-se nulas e de nenhum efeito, ou mesmo ineficazes, quer a escritura de justificação feita pelos primeiros RR., quer a escritura de venda feita por aqueles ao 2º R., ambas juntas aos autos;
C) Condenar-se os 2ºs RR. a pagar à A., entidade delegada, a quantia de €1.500,00, respeitante ao dano dos 15 pinheiros cortados e ao lucro cessante (subsidiariamente, na quantia a apurar, até com base na equidade).
D) Ordenar-se o cancelamento imediato das inscrições registais proporcionadas pelas escrituras atrás referidas (art. 8º do Código do Registo Predial).
[…]”
[transcrição de fls. 5 e vº]
1.1. Todos os RR. (o que inclui os habilitados) contestaram, o que fizeram conjuntamente a fls. 67/80, negando a natureza de baldio do terreno em causa (para eles denominado “Cabeço da Souça”), invocando a propriedade deste (isto é, dos dois prédios que o integram), sucessivamente pelos 1ºs RR. (relativamente a estes no que diz respeito ao prédio em causa na escritura de habilitação de fls. 18/20) e pelos 2ºs RR. e o registo em favor destes últimos, sendo que estes (os 2ºs RR.) formularam o seguinte pedido reconvencional:
“[…]
Deve […] ser julgada provada e procedente a reconvenção do R. A… e esposa e, consequentemente, condenada a A. a reconhecer que eles RR. são os donos e legítimos donos, senhores e proprietários dos prédios identificados no artigo 8º[[6]] […].
1.1.1. Importa sublinhar neste relato, propiciando desde já a total compreensão do litígio entre a A. e os RR., nos termos em que este emergiu da fase dos articulados e alcançou expressão no julgamento, sublinhamos, dizíamos, que, correspondendo a pretensão da A. à afirmação da dominialidade da população de … sobre um determinado Baldio (o “Baldio das Souças”) do qual os RR. se apropriaram. A delimitação espacial deste Baldio foi apresentada na petição inicial como correspondente ao prédio objecto da escritura de justificação notarial de fls. 22/24 (o artigo matricial nº … correspondente à descrição predial nº …). Todavia, como resultado da contestação/reconvenção dos RR., a referenciação dessa delimitação sofreu uma evolução significativa que, embora correspondesse em última análise à mesma realidade indicada na petição, implicou uma ampliação, passando a abranger o prédio colindante com o primeiro, transmitido aos 2ºs RR. pela escritura de compra e venda de fls. 85/88 (o artigo matricial nº … correspondente à descrição predial nº …). O surgimento da referência a este prédio nesta acção resultou da contestação e, em função disso, a sua inclusão no objecto processual decorreu do pedido reconvencional dos 2ºs RR., como resulta do antecedentemente relatado em 1.1. Ou seja, por via do pedido reconvencional, passou a afirmar-se como pertença dos 2ºs RR., antagónica com a existência do “Baldio das Souças”, os dois prédios indicados por estes RR. (o … e o …), passando a afirmação da dominialidade dos RR. sobre estes prédios a corresponder à negação da pretensão da A. de que seja afirmado como Baldio determinado espaço do qual esses 2ºs RR. se afirmam proprietários.
Discute-se nesta acção, pois – como desde sempre ocorreu[7] –, o conteúdo espacial do “Baldio das Souças”, por referência, como se tornou claro findos os articulados, ao espaço correspondente aos dois prédios objecto do pedido reconvencional (… e …). Mas note-se, todavia, que esta asserção de facto já estava factualmente implícita no pedido inicial da A. (como se veio a tornar claro no julgamento), sendo certo que esta juntou com a petição inicial o documento de fls. 25 (Doc. nº 8), constituído por um levantamento perimetral de GPS do espaço correspondente ao “Baldio das Souças”, no qual este corresponde à soma dos espaços aí identificados como “A” e “B” (750 m2). Isto mesmo foi explicitado pela Exma. Juíza a quo na fundamentação da matéria de facto, nos trechos de fls. 257 e de fls. 259, a propósito da configuração e extensão do Baldio (o que veio a originar os pontos I), J) e L) da matéria de facto adiante referida).
Fica assim explicitado, desde já, um aspecto central desta acção com importante reflexo neste recurso: está aqui em causa o Baldio a que se refere o documento de fls. 25 – o “Baldio das Souças” –, sendo que este abrange os prédios … e … (descrições prediais) registados em nome dos 2ºs RR.
1.2. Entretanto, retomando o relato da marcha da acção, sublinharemos que foram interpostos pela A. na fase de instrução e no decurso da audiência, em função de diversas incidências processuais aí ocorridas, dois recursos de agravo interlocutórios (o primeiro a fls. 163 e o segundo a fls. 274), aos quais foi fixado o regime de subida a final, terminando as respectivas alegações com as conclusões seguintes:
“[…]
[agravo de fls. 163, referido ao despacho de fls. 155, admitido a fls. 211]
[…]”
[agravo de fls. 274, referido ao despacho de fls. 270/272, admitido a fls. 277]
…
1.3. A culminar o julgamento foi a acção decidida através da Sentença de fls. 254/287 – esta constitui a decisão objecto da presente apelação – que, na parcial procedência do pedido da A. (e na total improcedência da reconvenção), formulou os seguintes pronunciamentos decisórios:
“[…]
- Julga-se parcialmente procedente a presente acção, e em consequência:
• Condena-se os RR. a reconhecer, assim se declarando, não terem adquirido o direito de propriedade sobre o terreno ou prédio justificado pela escritura de justificação notarial referida em E) da fundamentação de facto e alienado pela escritura referida em G) da fundamentação de facto, dele devendo abrir mão para continuar a ser administrado pelos compartes, através da A., como sua delegada.
• Declara-se ineficaz a escritura de justificação feita pelos primeiros RR., e referida em E) da fundamentação de facto, e declara-se nulo e de nenhum efeito o contrato de compra e venda feito pelos primeiros RR. aos segundos RR., titulado pela escritura referida em G) da fundamentação de facto;
• Ordena-se o cancelamento das inscrições registais correspondentes à inscrição a favor de … e mulher, aludida em F) da fundamentação de facto, e Ap. 1 de 2006/11/06 sobre o prédio rústico descrito sob o n.º …, na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Frades, e Ap. 2 de 2007/11/23 sobre o prédio rústico descrito sob o n.º …, na mesma Conservatória;
• absolvendo-se o R. A… e esposa (2.ºs RR.) do demais peticionado.
E
- Julga-se totalmente improcedente o pedido reconvencional deduzido pelos RR. A… e esposa contra a A., absolvendo-se a A./Reconvinda do pedido reconvencional.
[…]”
[transcrição de fls. 286]
1.4. Inconformados com este resultado, interpuseram os RR. (a fls. 302) o presente recurso de apelação, motivando-o a fls. 310/330, rematando esta peça com as seguintes conclusões:
“[…]
1.4.1. A Apelada respondeu ao recurso a fls. 336/353, pugnando pelo seu não atendimento, sendo que nos preliminares dessa resposta, invocando o disposto no artigo 684º-A do Código de Processo Civil (CPC), mencionou o seguinte:
“[…]
[N]estas suas alegações-resposta, como é de lei, a A. e ora apelada também requer subsidiariamente, nos termos das disposições combinadas dos artigos 684º-A e 698º, nº 5, ambos do CPC, que o tribunal de recurso conheça também da nulidade e, assim, das consequências quanto à indemnização pelo dano, resultante este do corte dos pinheiros que, aliás, sempre serviu de fundamento à acção (a condenação de que a declaração é pressuposto, como se disse).
[…]”
[transcrição de fls. 336/337]
É nestes termos que se fixa o âmbito temático da intervenção da instância de recurso.
2.1. Importará ter presente, no quadro de apreciação que se abre a esta Relação, a subsistência dos referidos dois agravos interlocutórios (admitidos a fls. 211 e a fls. 277, v. nota 8 a este texto), arrastados pela presente apelação e cujo conhecimento deveria ocorrer agora, “[…] pela ordem da sua interposição […]”, como indica o nº 1 do artigo 710º do CPC. Ora, sendo certo que esta mesma disposição condiciona a apreciação desses agravos – “[…] interpostos pel[a] apelad[a] […]” – à não confirmação da sentença apelada, importa, de momento, aguardar pelo desfecho da apelação, funcionando ela como recurso condicionador desses agravos interlocutórios.
2.1.1. Ainda num quadro preliminar, visando o saneamento desta instância de recurso, ocorre tomar posição quanto à pretensão da Apelada, formulada nas suas contra-alegações, de ampliação do objecto da apelação (da apelação dos RR.) nos termos do nº 1 do artigo 684º do CPC[9].
Refere-se esta questão (em que a Apelada persiste, não obstante o despacho de fls. 295) à pretensão de que o recurso incida adicionalmente sobre o pedido (alínea C) do pedido de fls. 5) atinente à indemnização pelo corte dos quinze pinheiros situados no terreno reconhecido como fazendo parte do baldio, pedido no qual a A. decaiu (pois foi julgado improcedente). Sublinhar estas duas circunstâncias – tratar-se de um pedido da A. (e não de um fundamento da acção correspondente a um elemento da causa de pedir ou a um fundamento jurídico alternativa ou cumulativamente apresentado) e ter ele (pedido) sido julgado improcedente –, afirmar estas duas circunstâncias, dizíamos, tem relevância quanto à integração da facti species do artigo 684º-A, nº 1, entendendo esta Relação estar excluída a aplicação deste normativo à situação aqui configurada com a absolvição dos RR. de um dos pedidos formulados pela A., não estando aqui em causa um fundamento alternativo (está em causa um pedido) que poderia, se tivesse sido atendido, conduzir à procedência da acção.
É este, com efeito, o sentido do artigo 684º-A, nº 1 do CPC: recuperar um fundamento rejeitado relativamente ao pedido atendido na decisão com base noutro fundamento, para salvar (a parte que não recorreu) uma subsistente necessidade de procedência da acção (face ao triunfo do recurso interposto pela parte contrária) com base no outro fundamento, cumulativo ou alternativo, desatendido ou não considerado na decisão recorrida[10].
Ora, neste caso, do que se tratou (com a absolvição do pedido indemnizatório referido ao valor dos pinheiros cortados) foi de considerar improcedente um dos pedidos cumulados, por indemonstração dele, e não de afastar um específico fundamento, entre outros invocados pelo recorrido, que a decisão recorrida tenha desconsiderado. Estamos, enfim, perante uma situação que poderia (que para ser aqui apreciada deveria) integrar um recurso autónomo ou subordinado da A., que aqui não existiu[11].
Vale isto pelo desatendimento da pretensão da Apelada de ampliação do objecto do recurso, por referência ao nº 1 do artigo 684º-A do CPC.
2.2. Esclarecido isto, debruçar-nos-emos agora sobre as diversas questões colocadas no recurso de apelação, formando o objecto deste, por referência aos grupos temáticos que integram as conclusões dos Apelantes. Referimo-nos, pois, aos fundamentos da apelação, correspondendo estes às seguintes questões: (primeiro fundamento (a)) a alegada nulidade da sentença por excesso de pronúncia; a impugnação da matéria de facto (segundo fundamento (b)); afirmação (terceiro fundamento (c)) da prevalência do registo em favor dos RR., enquanto elemento propiciador e condicionador do resultado desta acção.
2.2.1. (a) Como primeiro fundamento da apelação – e assim encetamos o percurso delineado no item anterior – temos a imputação à Sentença apelada da nulidade por excesso de pronúncia, nos termos previstos na alínea e) do nº 1 do artigo 668º do CPC[12] (conclusões 1 a 4, cfr. o nº 3 do mesmo artigo 668º).
A decisão – dizem os Apelantes no recurso –, ao abranger na determinação do cancelamento dos registos incompatíveis com a dominialidade afirmada o prédio correspondente ao artigo matricial … (refere-se à descrição na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Frades com o nº …), por acréscimo ao artigo matricial … (descrição predial nº … da mesma Conservatória), este expressamente referido na petição inicial como correspondendo ao prédio coincidente com o “Baldio das Souças”, a Sentença, dizíamos, ao estender o seu pronunciamento a este outro prédio (descrição predial nº …)[13] teria, defendem-no os Apelantes, exorbitado do específico objecto da acção, delimitado este pelo estrito pedido da A. (confinado – e na acção veio-se a perceber o porquê desta incidência – à descrição predial nº …, abrangida pela escritura de justificação de fls. 22/24 e, posteriormente, pela escritura de compra e venda de fls. 18/20).
Esta questão prende-se com a circunstância da Sentença ter entendido – e cremos que bem (como resulta do item 1.1.1. supra) – que a pretensão veiculada pela A. (o pedido desta acção) se referia a todo o espaço do “Baldio das Souças”, sendo que este era então referenciado (apenas) pela escritura de habilitação de fls. 22/24, vindo-se a apurar, no desenvolvimento do processo, uma referenciação mais ampla (mas já implícita no pedido inicial, v. item 1.1.1. supra, cfr. doc. de fls. 25) do espaço desse Baldio, correspondente a dois prédios dos 2ºs RR., apurando-se que o acto apropriativo desse espaço por estes RR. (do espaço denominado “Cabeço da Souça”) apresentava dois elementos de referência, a saber: 1) a escritura de justificação notarial de fls. 22/24 [que justificou os 1ºs RR. como proprietários, por usucapião, do prédio rústico denominado “Cabeço da Souça”, com a área de 250 m2, inscrito na matriz sob o artigo …, prédio que, mais tarde, depois de vendido aos 2ºs RR., viria a ser inscrito no registo predial sob o nº … (v. fls. 92); 2) o contrato de compra e venda consubstanciado na escritura de fls. 85/88, junta pelos RR. com a contestação [com esta escritura foi transmitida aos 2ºs RR. a propriedade do prédio rústico também denominado “Cabeça da Souça”, com a área aí indicada de 90 m2, inscrito na matriz sob o artigo (v. fls. 86) que, já na pendência desta acção, e já depois da citação dos 2ºs RR., estes inscreveram no registo predial em seu nome (v. fls. 215), cabendo-lhe aí a descrição nº …].
Ora, a Sentença, sendo certo que na acção se apurou corresponder todo o “Baldio das Souças” aos dois prédios (… e …) registados em nome dos 2ºs RR.[14], abrangeu no pronunciamento decisório atinente ao cancelamento dos registos prediais contraditórios com a afirmada dominialidade desse Baldio enquanto tal[15], o registo referente ao prédio em causa na descrição … (além do correspondente à descrição …). Não deixaremos de aqui sublinhar, num aparte argumentativo, que, em rigor, o pronunciamento decisório da Sentença, desde logo para corresponder exactamente à situação existente no momento do encerramento da discussão em primeira instância (v. o artigo 663º, nº 1 do CPC), até deveria ter abrangido expressamente uma declaração de ineficácia relativamente ao contrato de compra e venda de fls. 85/88, quanto ao outro prédio (artigo … da matriz e descrição predial …) também correspondente ao “Baldio das Souças”, sendo que toda a discussão travada ao longo do processo assentou, como já se disse neste Acórdão, no pressuposto de que a A., ao “reivindicar” a dominialidade da correspondente comunidade local (a população de …) sobre o “Baldio das Souças”, pretendia a afirmação dessa dominialidade sobre um determinado espaço que se veio a perceber como correspondente a dois prédios indicados pelos RR. na contestação[16].
2.2.1.1. (a) Aplicou a decisão apelada, a respeito do cancelamento do registo correspondente à descrição … – e é desse aspecto que trata o presente recurso no fundamento sobre o qual ora nos pronunciamos –, assumidamente (v. fls. 282/283), a redacção introduzida no nº 1 do artigo 8º do Código do Registo Predial (CRPred.) pelo Decreto-Lei nº 116/2008, de 4 de Julho: “[a] impugnação judicial de factos registados faz presumir o pedido de cancelamento do respectivo registo”[17].
Ora, tratando-se esta de alteração legislativa introduzida posteriormente à propositura desta acção (que ocorreu em 08/11/2007), pretendem os Apelantes ser aqui aplicável a anterior versão do CRPred. (v. a motivação do recurso a fls. 319). Esquece este argumento, desde logo, face à natureza inquestionavelmente processual do artigo 8º do CRPred., a sujeição deste, no seu novo conteúdo, ao princípio da aplicação imediata próprio do direito adjectivo[18]. Seja como for, independentemente dessa circunstância, tendo a nova redacção introduzida no nº 1 do referido artigo 8º consagrado um entendimento que, anteriormente, já era afirmado pela jurisprudência (correspondia mesmo à orientação dominante no STJ[19]), deve ser atribuída a essa alteração a natureza de lei interpretativa[20], com a consequente aplicação imediata afirmada no nº 1 do artigo 13º do Código Civil.
Vale isto pelo afastamento da pertinência do argumento dos Apelantes quanto à não aplicação ao caso, no momento da prolação da Sentença apelada, da redacção do nº 1 do artigo 8º do CRPred. introduzida pelo Decreto-Lei nº 116/2008, sendo que isto conduz, para além do que se disse supra, nos itens 1.1.1. e 2.2.1. (a) deste Acórdão, à não verificação da nulidade apontada a essa decisão.
2.2.2. (b) Interessa-nos agora a dimensão do recurso respeitante à impugnação dos factos (conclusões 5 a 7 transcritas no item 1.4., supra), sendo que os Apelantes a estruturam, genericamente, em torno da contestação às asserções de facto correspondentes à afirmação da coincidência dos dois prédios que os 2ºs RR. reconvencionalmente reivindicaram ao Baldio cuja existência como tal foi reconhecida pela Sentença apelada.
2.2.2.1. (b) Para integral compreensão desta dimensão do recurso, aqui transcrevemos o elenco dos factos fixados na primeira instância:
“[…]
[transcrição de fls. 271/274]
2.2.2.2. (b) Estão em causa na crítica dos Apelantes a estes factos os trechos em que é afirmado um uso do espaço integrado pelos dois prédios (… e …), desde tempos imemoriais, pelos moradores do Lugar de …, para apascentar os seus gados, retirar estrumes, matos e lenhas, à vista de toda a gente, na convicção de que tal terreno pertence como bem comunitário aos habitantes da dita povoação, enquanto instrumento proporcionador dessas vantagens ao referido grupo de pessoas (parafraseamos os pontos J) e M) do elenco fáctico).
Note-se que a prova destes factos foi exaustivamente explicitada pela Exma. Juíza a quo na fundamentação que consta de fls. 259/265. Não obstante o carácter verdadeiramente modelar desta peça, e a confirmação por esta Relação (depois de ouvir o registo sonoro integral da prova pessoal produzida em audiência) de todas essas asserções e, consequentemente, da falta de razão da contestação destas pelos Apelantes, não deixaremos aqui de formular um juízo próprio sobre o significado da prova[21].
A este respeito, tomamos como ponto de partida o registo, num passado que alcança, como data mais próxima do presente, os anos quarenta do século anterior, na localidade de …, como único terreno ao qual é conferida a designação de baldio, o espaço que no “livro da Matriz Predial Rústica da Freguesia de … nº …” (documento de fls. 278/284, certificado pelo Arquivo Distrital de Viseu) é descrito como “um bocado de monte baldio, confronta a norte antecedente[[22]], nascente caminho”, indicando-se como proprietária deste terreno baldio a “Junta de Paróquia” (cfr. fls. 280)[23].
É este, seguramente, o Baldio aqui em causa, não obstante essa designação matricial se ter perdido ou caído em desuso, aparentemente, nos anos quarenta/cinquenta do século passado. Todavia – e aqui valoramos a prova testemunhal correlacionada com o elemento documental acima referido (o documento de fls. 278/284) –, existem relevantes depoimentos testemunhais que nos permitem alicerçar a projecção temporal desse “bocado de monte baldio” reconhecido de antanho no “Baldio” aqui em causa (o único Baldio do lugar de …), como espaço afecto a um uso comunitário da população daquele lugar[24]. Referimo-nos aos depoimentos do antigo Presidente da Junta de Freguesia de … entre 1994 e 2001 (…), que vive na Freguesia desde 1964 e afirmou um uso comunitário incontestado[25] do espaço aqui em causa (incluindo o espaço do prédio a que corresponde a descrição …), asserção cuja continuidade no tempo foi reafirmada pelo posterior Presidente da Junta de Pinheiro (…)[26] e foi inteiramente corroborada por outras testemunhas (…).
Este entendimento não foi posto em causa por outras testemunhas dos RR. cuja referência ao uso daquele terreno (as parcelas A e B do levantamento de fls. 25) pela mãe da R. P… para depositar lenhas nos pareceu referida ao uso comunitário do Baldio[27] (este é o sentido claro dos depoimentos das testemunhas …). Especial menção merece aqui o depoimento da testemunha … (o vendedor do prédio …), para confirmar a asserção indicada na fundamentação da matéria de facto a fls. 260/262, quanto à circunstância de o conhecimento desta testemunha (além do interesse pessoal que protagoniza) funcionar numa espécie de “circuito fechado” lógico autojustificativo: as estremas do “seu” terreno eram as constantes da relação de bens anexa à escritura de partilhas do seu pai, logo era esse (com essas estremas) o prédio do seu pai. Note-se que esta justificação representa um enviesamento lógico na medida em que prescinde, enquanto justificação, da questão de fundo a justificar, que é a da existência, independentemente da expressão formal de quaisquer actos apropriativos mais recentes, de um uso comunitário dos terrenos, inequivocamente afirmado por outras testemunhas, designadamente pela testemunha ... Esta testemunha, porque utiliza como fonte de conhecimento a observação directa da realidade, e não os elementos formais constantes de uma relação de bens feita pelo próprio doador seu pai, alcançou objectivamente uma conclusão antagónica da do seu irmão, quanto à dominialidade daquele terreno.
Valem estas considerações, enfim, enquanto confirmação, através da valoração autónoma da prova realizada por esta Relação, dos factos fixados na primeira instância, no que respeita à afirmação do espaço indicado no documento de fls. 25 como integrando o “Baldio das Souças”, sendo esta a asserção que está presente nos pontos da matéria de facto criticados pelos Apelantes. Não se justifica, pois, é o que aqui concluímos, a sua alteração.
2.2.3. (c) Fixado que está o elenco dos factos a considerar, interessa-nos agora o derradeiro fundamento da apelação (expresso nas conclusões 8 a 10, transcritas no item 1.4., supra) e que se traduz na afirmação de uma prevalência do registo em favor dos ora Apelantes dos prédios que aqui considerámos integrarem o espaço do “Baldio das Souças”.
Interessa-nos, a respeito desses registos – que nesta acção são suprimidos, o que confere a este argumento dos Apelantes uma espécie de natureza tautológica –, quanto a esses registos interessa-nos, como dizíamos, a constatação de corresponderem eles a actos de apropriação de um Baldio – de terrenos integrados num Baldio –, sendo que, nos termos do artigo 4º, nº 1 da Lei dos Baldios (Lei nº 68/93, de 4 de Setembro), “[o]s actos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, tendo por objecto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito […]”[28]. Note-se que esta ineficácia dos negócios de apossamento de Baldios suprime a base de sustentação dos registos aqui pretendidos fazer valer, retirando a esses registos qualquer valor.
De qualquer forma, centrando-nos aqui no prédio objecto da escritura de justificação notarial de fls. 22/24, não deixaremos de sublinhar que o objecto desta acção visa, precisamente, a declaração de inexistência dos factos objecto da justificação, já que foram estes, por terem sido afirmados nessa escritura, que conduziram – eles e apenas eles – à inscrição no registo predial aqui pretendida fazer valer pelos Reconvintes ora Apelantes.
Ora, conforme se observou no Acórdão de 23/04/2002 desta Relação, a propósito de acções visando contraditar factos levados ao registo predial com base em escrituras de justificação:
“[…]
O que normalmente se pretende com este modelo de acção é a declaração de que o réu não tem o direito que foi objecto da escritura de justificação notarial. A acção de impugnação de justificação notarial é uma acção de simples apreciação negativa, porque proposta para obtenção da declaração de inexistência dum direito (artigo 4º, nº 2, alínea a) do CPC). O que se pretende é a declaração de que o justificante não é o titular do direito justificado na escritura que vai servir [que aqui serviu] de base ao registo de aquisição, nos termos do artigo 116º do [CRPred].
[…]”[29]
Esta natureza – de acção de simples apreciação negativa – convoca desde logo, enquanto regra específica de atribuição do ónus da prova, o artigo 343º, nº 1 do Código Civil[30]. Assente que assim é – ou seja, que neste tipo de acção compete ao réu o ónus da prova do que subjaz à escritura, com a correspondente regra de decisão inerente à indemonstração da sua versão[31] –, resta ponderar se a existência de registo a favor do justificante da escritura, registo este resultante do próprio documento[32], não conduz à presunção, decorrente do artigo 7º do CRPred, “[…] de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.
Trata-se de uma questão à qual a nossa jurisprudência não tem fornecido uma resposta unânime. Esta Relação e Secção no Acórdão de 10/10/2006 (Jorge Arcanjo)[33], sumariou, por referência à jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, o estado da questão, nos seguintes termos:
“[…]
Quando o registo é feito com base na escritura de justificação, têm-se adoptado duas teses:
a) Uma no sentido de que o regime especial prescrito no artigo 343º nº1 do Código Civil cede perante a força da presunção derivada do registo (art.7º do Código de Registo Predial), fazendo operar uma inversão do ónus da prova (artigo 344º nº1 do Código Civil).
Nesta perspectiva, competiria aos Autores a prova de que não se verificou a causa de aquisição constante da escritura de justificação notarial, ou seja, de que não se verificou a usucapião a favor dos Réus (cf., por ex., Ac STJ de 19/3/2002, www.dgsi.pt/jstj[34], Ac RC de 25/11/97, C.J. ano XXII, tomo V, pág.23).
b) Outra defende que o registo efectuado com base na escritura de justificação não constitui, na acção de impugnação daquela escritura, presunção da propriedade (cf, por ex., Ac. do STJ de 3/3/98, C.J. ano VI, tomo I, pág.114, Ac RC de 26/6/2000, C.J. ano XXV, tomo III, pág.35, de 23/4/2002, C.J. ano XXVII, tomo III, pág.33, de 16/11/04, em www.dgsi.pt/jtrc[35])
[…]”
Ora, um registo assente numa escritura de justificação notarial, como o aqui pretendido fazer valer pelos Apelantes, limita-se a transformar em descrição registral – ou seja, a registar – o que consta dessa escritura, sem qualquer outra base de indagação sobre a realidade do facto registado. Assim, a realidade que o registo descreve decorre, nestes casos, exclusivamente da circunstância de o interessado o ter declarado no momento da realização da escritura e de isso ter sido corroborado por testemunhas ad hoc. Daí que, visando a acção, como esta na prática visa, discutir a correspondência à realidade das declarações prestadas aquando desse acto notarial, com a consequente obrigação de ser concomitantemente pedido, como aqui o foi, o cancelamento do registo (artigo 8º do CRPred.), nos pareça adequado colocar essa discussão num plano exterior ao do registo. Ora, neste plano, expressando o pedido a relevância de um facto negativo – não se verifica a realidade relatada na escritura, por que o terreno sempre integrou um Baldio –, não vemos motivo para conferir à situação um tratamento distinto daquele que, através do nº 1 do artigo 343º do Código Civil, é dado a todas as situações de declaração de factos negativos: valem aqui, por identidade de razão, os elementos teleológicos presentes nesta norma.
O argumento contrário a este entendimento, tende a valorizar, enquanto consolidação dos factos registados, a circunstância de ter decorrido o prazo de trinta dias previsto no nº 2 do artigo 101º do Código do Notariado[36], quando este prazo – a norma que o contém – se limita a regulamentar o processo respeitante ao acto notarial e não ao acto de registo predial[37].
Daí que se entenda aqui – e entende-se independentemente de todas as outras considerações até agora efectuadas no percurso argumentativo deste Acórdão – que o ónus da prova da situação declarada na escritura, negada que o foi nesta acção pela A., incumbia aos RR., nos termos do artigo 343º, nº 1 do Código Civil, sendo que seriam estes (os RR. ora Apelantes) que suportariam a contingência, tivesse ela ocorrido, de verem indemonstrada a sua tese. Todavia, não deixaremos de sublinhar que a decisão aqui alcançada até se suporta na efectiva demonstração, face à valoração da prova, da tese da A. quanto à correspondência do espaço assinalado no documento de fls. 23 a um Baldio afecto à população de …, contra o sentido dos registos invocados, em ambos os casos (prédios 2593 e 2705), pelos RR. e, concretamente, pelos Reconvintes.
Vale isto, enfim, como afirmação da improcedência da invocação pelos Apelantes do registo em seu favor dos prédios aqui afirmados, por demonstração de ser essa a realidade, como Baldio, como o “Baldio das Souças”, afecto ao uso, desde sempre, dos moradores do lugar de ...
2.3. Aqui chegados, esgotados que estão os fundamentos da apelação e constatada a improcedência desta – e assim retomamos a questão dos dois agravos interlocutórios da aqui Apelada, equacionada no item 2.1. deste Acórdão –, resta-nos verificar a integração da situação prevista no trecho final do nº 1 do artigo 710º do CPC, daí decorrendo a não apreciação aqui desses recursos de agravo (a Sentença vai ser confirmada). Estes agravos, aliás, visando supostos desvalores decisórios praticados pelo Tribunal a quo em desfavor da A., nenhum efeito apresentaram no resultado alcançado em primeira instância e aqui.
Resta-nos, pois, expressar decisoriamente essa improcedência do recurso de apelação dos RR.
Custas do recurso a cargo dos Apelantes.