BALDIOS
LEI INTERPRETATIVA
ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I - Face à natureza inquestionavelmente processual do artigo 8º do C.R.Pred., deve entender-se que o seu novo conteúdo está sujeito ao princípio da aplicação imediata próprio do direito adjectivo.
II - Independentemente dessa circunstância, tendo a nova redacção introduzida no nº 1 do referido artigo 8º consagrado um entendimento que anteriormente já era afirmado pela jurisprudência (correspondia mesmo à orientação dominante no STJ), deve ser atribuída a essa alteração a natureza de lei interpretativa, com a consequente aplicação imediata afirmada no nº 1 do artigo 13º do Código Civil.
III – Nos termos do artigo 4º, nº 1 da Lei dos Baldios (Lei nº 68/93, de 4 de Setembro), “os actos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, tendo por objecto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito”.
IV - O que normalmente se pretende com o modelo de acção de impugnação de justificações notariais é a declaração de que o réu não tem o direito que foi objecto da escritura de justificação notarial.
V - A acção de impugnação de justificação notarial é uma acção de simples apreciação negativa, porque proposta para obtenção da declaração de inexistência dum direito (artigo 4º, nº 2, alínea a) do CPC). O que se pretende é a declaração de que o justificante não é o titular do direito justificado na escritura que vai servir de base ao registo de aquisição, nos termos do artigo 116º do CRPred.
VI - Esta natureza – de acção de simples apreciação negativa – convoca desde logo, enquanto regra específica de atribuição do ónus da prova, o artigo 343º, nº 1 do Código Civil. Assente que assim é, neste tipo de acção compete ao réu o ónus da prova do que subjaz à escritura, com a correspondente regra de decisão inerente à indemonstração da sua versão.

Texto Integral


Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Em 08/11/2007[1], a Junta de Freguesia de …, do Concelho de … (A., Reconvinda e Apelada no contexto deste recurso), actuando em defesa do chamado “Baldio das Souças”, situado no lugar de … dessa freguesia, demandou M…[2] e mulher, P… (1ºs RR.), e A e mulher, J… (2ºs RR., Reconvintes e aqui Apelantes), pretendendo obstar à apropriação por estes últimos, na sequência de trato sucessivo que remonta aos 1ºs RR. (estes através de uma escritura de justificação notarial celebrada em 23/02/2006[3] os 2ºs RR. por contrato de compra e venda celebrado com os primeiros em 13/10/2006[4]), de um terreno, que, afirma-o a A., corresponde ao espaço ocupado por um “Baldio”, como tal afecto e utilizado pelos moradores do lugar de … daquela freguesia, desde tempos imemoriais[5].

            Em função desta incidência (à qual se juntaria, sempre segundo a A., um corte de quinze pinheiros pelo 2º R no indicado Baldio) formula a A. os seguintes quatro pedidos:
“[…]
A) Condenar-se os RR. a reconhecer, assim se declarando, não terem adquirido o direito de propriedade sobre o terreno ou prédio justificado por uma das escrituras e alienado pela outra escritura, dele devendo abrir mão para continuar a ser administrado pelos compartes, através da A., como sua delegada.
Em consequência,
B) Declarar-se nulas e de nenhum efeito, ou mesmo ineficazes, quer a escritura de justificação feita pelos primeiros RR., quer a escritura de venda feita por aqueles ao 2º R., ambas juntas aos autos;
C) Condenar-se os 2ºs RR. a pagar à A., entidade delegada, a quantia de €1.500,00, respeitante ao dano dos 15 pinheiros cortados e ao lucro cessante (subsidiariamente, na quantia a apurar, até com base na equidade).
D) Ordenar-se o cancelamento imediato das inscrições registais proporcionadas pelas escrituras atrás referidas (art. 8º do Código do Registo Predial).
[…]”
            [transcrição de fls. 5 e vº]

            1.1. Todos os RR. (o que inclui os habilitados) contestaram, o que fizeram conjuntamente a fls. 67/80, negando a natureza de baldio do terreno em causa (para eles denominado “Cabeço da Souça”), invocando a propriedade deste (isto é, dos dois prédios que o integram), sucessivamente pelos 1ºs RR. (relativamente a estes no que diz respeito ao prédio em causa na escritura de habilitação de fls. 18/20) e pelos 2ºs RR. e o registo em favor destes últimos, sendo que estes (os 2ºs RR.) formularam o seguinte pedido reconvencional:
“[…]
Deve […] ser julgada provada e procedente a reconvenção do R. A… e esposa e, consequentemente, condenada a A. a reconhecer que eles RR. são os donos e legítimos donos, senhores e proprietários dos prédios identificados no artigo 8º[[6]] […].

            1.1.1. Importa sublinhar neste relato, propiciando desde já a total compreensão do litígio entre a A. e os RR., nos termos em que este emergiu da fase dos articulados e alcançou expressão no julgamento, sublinhamos, dizíamos, que, correspondendo a pretensão da A. à afirmação da dominialidade da população de … sobre um determinado Baldio (o “Baldio das Souças”) do qual os RR. se apropriaram. A delimitação espacial deste Baldio foi apresentada na petição inicial como correspondente ao prédio objecto da escritura de justificação notarial de fls. 22/24 (o artigo matricial nº correspondente à descrição predial nº …). Todavia, como resultado da contestação/reconvenção dos RR., a referenciação dessa delimitação sofreu uma evolução significativa que, embora correspondesse em última análise à mesma realidade indicada na petição, implicou uma ampliação, passando a abranger o prédio colindante com o primeiro, transmitido aos 2ºs RR. pela escritura de compra e venda de fls. 85/88 (o artigo matricial nº correspondente à descrição predial nº …). O surgimento da referência a este prédio nesta acção resultou da contestação e, em função disso, a sua inclusão no objecto processual decorreu do pedido reconvencional dos 2ºs RR., como resulta do antecedentemente relatado em 1.1. Ou seja, por via do pedido reconvencional, passou a afirmar-se como pertença dos 2ºs RR., antagónica com a existência do “Baldio das Souças”, os dois prédios indicados por estes RR. (o … e o …), passando a afirmação da dominialidade dos RR. sobre estes prédios a corresponder à negação da pretensão da A. de que seja afirmado como Baldio determinado espaço do qual esses 2ºs RR. se afirmam proprietários.

            Discute-se nesta acção, pois – como desde sempre ocorreu[7] –, o conteúdo espacial do “Baldio das Souças”, por referência, como se tornou claro findos os articulados, ao espaço correspondente aos dois prédios objecto do pedido reconvencional (… e …). Mas note-se, todavia, que esta asserção de facto já estava factualmente implícita no pedido inicial da A. (como se veio a tornar claro no julgamento), sendo certo que esta juntou com a petição inicial o documento de fls. 25 (Doc. nº 8), constituído por um levantamento perimetral de GPS do espaço correspondente ao “Baldio das Souças”, no qual este corresponde à soma dos espaços aí identificados como “A” e “B” (750 m2). Isto mesmo foi explicitado pela Exma. Juíza a quo na fundamentação da matéria de facto, nos trechos de fls. 257 e de fls. 259, a propósito da configuração e extensão do Baldio (o que veio a originar os pontos I), J) e L) da matéria de facto adiante referida).

            Fica assim explicitado, desde já, um aspecto central desta acção com importante reflexo neste recurso: está aqui em causa o Baldio a que se refere o documento de fls. 25 – o “Baldio das Souças” –, sendo que este abrange os prédios … e … (descrições prediais) registados em nome dos 2ºs RR.

            1.2. Entretanto, retomando o relato da marcha da acção, sublinharemos que foram interpostos pela A. na fase de instrução e no decurso da audiência, em função de diversas incidências processuais aí ocorridas, dois recursos de agravo interlocutórios (o primeiro a fls. 163 e o segundo a fls. 274), aos quais foi fixado o regime de subida a final, terminando as respectivas alegações com as conclusões seguintes:
“[…]
[agravo de fls. 163, referido ao despacho de fls. 155, admitido a fls. 211]

[…]”

[agravo de fls. 274, referido ao despacho de fls. 270/272, admitido a fls. 277]


            1.3. A culminar o julgamento foi a acção decidida através da Sentença de fls. 254/287esta constitui a decisão objecto da presente apelação – que, na parcial procedência do pedido da A. (e na total improcedência da reconvenção), formulou os seguintes pronunciamentos decisórios:
“[…]
- Julga-se parcialmente procedente a presente acção, e em consequência:
• Condena-se os RR. a reconhecer, assim se declarando, não terem adquirido o direito de propriedade sobre o terreno ou prédio justificado pela escritura de justificação notarial referida em E) da fundamentação de facto e alienado pela escritura referida em G) da fundamentação de facto, dele devendo abrir mão para continuar a ser administrado pelos compartes, através da A., como sua delegada.
• Declara-se ineficaz a escritura de justificação feita pelos primeiros RR., e referida em E) da fundamentação de facto, e declara-se nulo e de nenhum efeito o contrato de compra e venda feito pelos primeiros RR. aos segundos RR., titulado pela escritura referida em G) da fundamentação de facto;
• Ordena-se o cancelamento das inscrições registais correspondentes à inscrição a favor de … e mulher, aludida em F) da fundamentação de facto, e Ap. 1 de 2006/11/06 sobre o prédio rústico descrito sob o n.º …, na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Frades, e Ap. 2 de 2007/11/23 sobre o prédio rústico descrito sob o n.º …, na mesma Conservatória;
• absolvendo-se o R. A… e esposa (2.ºs RR.) do demais peticionado.
E
- Julga-se totalmente improcedente o pedido reconvencional deduzido pelos RR. A… e esposa contra a A., absolvendo-se a A./Reconvinda do pedido reconvencional.
[…]”
            [transcrição de fls. 286]

            1.4. Inconformados com este resultado, interpuseram os RR. (a fls. 302) o presente recurso de apelação, motivando-o a fls. 310/330, rematando esta peça com as seguintes conclusões:
“[…]

            1.4.1. A Apelada respondeu ao recurso a fls. 336/353, pugnando pelo seu não atendimento, sendo que nos preliminares dessa resposta, invocando o disposto no artigo 684º-A do Código de Processo Civil (CPC), mencionou o seguinte:
“[…]
[N]estas suas alegações-resposta, como é de lei, a A. e ora apelada também requer subsidiariamente, nos termos das disposições combinadas dos artigos 684º-A e 698º, nº 5, ambos do CPC, que o tribunal de recurso conheça também da nulidade e, assim, das consequências quanto à indemnização pelo dano, resultante este do corte dos pinheiros que, aliás, sempre serviu de fundamento à acção (a condenação de que a declaração é pressuposto, como se disse).
[…]”
            [transcrição de fls. 336/337]


II – Fundamentação

            2. Como sucede com qualquer recurso, o âmbito objectivo deste – e referimo-nos tanto à apelação, enquanto recurso dominante, como aos dois agravos interlocutórios arrastados pela subida a final daquela[8] – é delimitado pelas conclusões com as quais os Apelantes (e também a Agravante) remataram, num e noutro caso, as respectivas alegações (artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC), importando decidir as questões colocadas através dessas conclusões – e, bem assim, se se vierem a colocar, as que forem de conhecimento oficioso –, exceptuadas aquelas questões cuja decisão se mostre prejudicada pela solução dada a outras precedentemente apreciadas e decididas nesta instância (artigo 660º, nº 2 do CPC).

            É nestes termos que se fixa o âmbito temático da intervenção da instância de recurso.

            2.1. Importará ter presente, no quadro de apreciação que se abre a esta Relação, a subsistência dos referidos dois agravos interlocutórios (admitidos a fls. 211 e a fls. 277, v. nota 8 a este texto), arrastados pela presente apelação e cujo conhecimento deveria ocorrer agora, “[…] pela ordem da sua interposição […]”, como indica o nº 1 do artigo 710º do CPC. Ora, sendo certo que esta mesma disposição condiciona a apreciação desses agravos – “[…] interpostos pel[a] apelad[a] […]” – à não confirmação da sentença apelada, importa, de momento, aguardar pelo desfecho da apelação, funcionando ela como recurso condicionador desses agravos interlocutórios.

            2.1.1. Ainda num quadro preliminar, visando o saneamento desta instância de recurso, ocorre tomar posição quanto à pretensão da Apelada, formulada nas suas contra-alegações, de ampliação do objecto da apelação (da apelação dos RR.) nos termos do nº 1 do artigo 684º do CPC[9].

            Refere-se esta questão (em que a Apelada persiste, não obstante o despacho de fls. 295) à pretensão de que o recurso incida adicionalmente sobre o pedido (alínea C) do pedido de fls. 5) atinente à indemnização pelo corte dos quinze pinheiros situados no terreno reconhecido como fazendo parte do baldio, pedido no qual a A. decaiu (pois foi julgado improcedente). Sublinhar estas duas circunstâncias – tratar-se de um pedido da A. (e não de um fundamento da acção correspondente a um elemento da causa de pedir ou a um fundamento jurídico alternativa ou cumulativamente apresentado) e ter ele (pedido) sido julgado improcedente –, afirmar estas duas circunstâncias, dizíamos, tem relevância quanto à integração da facti species do artigo 684º-A, nº 1, entendendo esta Relação estar excluída a aplicação deste normativo à situação aqui configurada com a absolvição dos RR. de um dos pedidos formulados pela A., não estando aqui em causa um fundamento alternativo (está em causa um pedido) que poderia, se tivesse sido atendido, conduzir à procedência da acção.

            É este, com efeito, o sentido do artigo 684º-A, nº 1 do CPC: recuperar um fundamento rejeitado relativamente ao pedido atendido na decisão com base noutro fundamento, para salvar (a parte que não recorreu) uma subsistente necessidade de procedência da acção (face ao triunfo do recurso interposto pela parte contrária) com base no outro fundamento, cumulativo ou alternativo, desatendido ou não considerado na decisão recorrida[10].

Ora, neste caso, do que se tratou (com a absolvição do pedido indemnizatório referido ao valor dos pinheiros cortados) foi de considerar improcedente um dos pedidos cumulados, por indemonstração dele, e não de afastar um específico fundamento, entre outros invocados pelo recorrido, que a decisão recorrida tenha desconsiderado. Estamos, enfim, perante uma situação que poderia (que para ser aqui apreciada deveria) integrar um recurso autónomo ou subordinado da A., que aqui não existiu[11].

Vale isto pelo desatendimento da pretensão da Apelada de ampliação do objecto do recurso, por referência ao nº 1 do artigo 684º-A do CPC.

2.2. Esclarecido isto, debruçar-nos-emos agora sobre as diversas questões colocadas no recurso de apelação, formando o objecto deste, por referência aos grupos temáticos que integram as conclusões dos Apelantes. Referimo-nos, pois, aos fundamentos da apelação, correspondendo estes às seguintes questões: (primeiro fundamento (a)) a alegada nulidade da sentença por excesso de pronúncia; a impugnação da matéria de facto (segundo fundamento (b)); afirmação (terceiro fundamento (c)) da prevalência do registo em favor dos RR., enquanto elemento propiciador e condicionador do resultado desta acção.

2.2.1. (a) Como primeiro fundamento da apelação – e assim encetamos o percurso delineado no item anterior – temos a imputação à Sentença apelada da nulidade por excesso de pronúncia, nos termos previstos na alínea e) do nº 1 do artigo 668º do CPC[12] (conclusões 1 a 4, cfr. o nº 3 do mesmo artigo 668º).

A decisão – dizem os Apelantes no recurso –, ao abranger na determinação do cancelamento dos registos incompatíveis com a dominialidade afirmada o prédio correspondente ao artigo matricial … (refere-se à descrição na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Frades com o nº …), por acréscimo ao artigo matricial … (descrição predial nº … da mesma Conservatória), este expressamente referido na petição inicial como correspondendo ao prédio coincidente com o “Baldio das Souças”, a Sentença, dizíamos, ao estender o seu pronunciamento a este outro prédio (descrição predial nº …)[13] teria, defendem-no os Apelantes, exorbitado do específico objecto da acção, delimitado este pelo estrito pedido da A. (confinado – e na acção veio-se a perceber o porquê desta incidência – à descrição predial nº …, abrangida pela escritura de justificação de fls. 22/24 e, posteriormente, pela escritura de compra e venda de fls. 18/20).

Esta questão prende-se com a circunstância da Sentença ter entendido – e cremos que bem (como resulta do item 1.1.1. supra) – que a pretensão veiculada pela A. (o pedido desta acção) se referia a todo o espaço do “Baldio das Souças”, sendo que este era então referenciado (apenas) pela escritura de habilitação de fls. 22/24, vindo-se a apurar, no desenvolvimento do processo, uma referenciação mais ampla (mas já implícita no pedido inicial, v. item 1.1.1. supra, cfr. doc. de fls. 25) do espaço desse Baldio, correspondente a dois prédios dos 2ºs RR., apurando-se que o acto apropriativo desse espaço por estes RR. (do espaço denominado “Cabeço da Souça”) apresentava dois elementos de referência, a saber: 1) a escritura de justificação notarial de fls. 22/24 [que justificou os 1ºs RR. como proprietários, por usucapião, do prédio rústico denominado “Cabeço da Souça”, com a área de 250 m2, inscrito na matriz sob o artigo …, prédio que, mais tarde, depois de vendido aos 2ºs RR., viria a ser inscrito no registo predial sob o nº … (v. fls. 92); 2) o contrato de compra e venda consubstanciado na escritura de fls. 85/88, junta pelos RR. com a contestação [com esta escritura foi transmitida aos 2ºs RR. a propriedade do prédio rústico também denominado “Cabeça da Souça”, com a área aí indicada de 90 m2, inscrito na matriz sob o artigo (v. fls. 86) que, já na pendência desta acção, e já depois da citação dos 2ºs RR., estes inscreveram no registo predial em seu nome (v. fls. 215), cabendo-lhe aí a descrição nº …].

Ora, a Sentença, sendo certo que na acção se apurou corresponder todo o “Baldio das Souças” aos dois prédios (… e …) registados em nome dos 2ºs RR.[14], abrangeu no pronunciamento decisório atinente ao cancelamento dos registos prediais contraditórios com a afirmada dominialidade desse Baldio enquanto tal[15], o registo referente ao prédio em causa na descrição … (além do correspondente à descrição …). Não deixaremos de aqui sublinhar, num aparte argumentativo, que, em rigor, o pronunciamento decisório da Sentença, desde logo para corresponder exactamente à situação existente no momento do encerramento da discussão em primeira instância (v. o artigo 663º, nº 1 do CPC), até deveria ter abrangido expressamente uma declaração de ineficácia relativamente ao contrato de compra e venda de fls. 85/88, quanto ao outro prédio (artigo … da matriz e descrição predial …) também correspondente ao “Baldio das Souças”, sendo que toda a discussão travada ao longo do processo assentou, como já se disse neste Acórdão, no pressuposto de que a A., ao “reivindicar” a dominialidade da correspondente comunidade local (a população de …) sobre o “Baldio das Souças”, pretendia a afirmação dessa dominialidade sobre um determinado espaço que se veio a perceber como correspondente a dois prédios indicados pelos RR. na contestação[16]

2.2.1.1. (a) Aplicou a decisão apelada, a respeito do cancelamento do registo correspondente à descrição … – e é desse aspecto que trata o presente recurso no fundamento sobre o qual ora nos pronunciamos –, assumidamente (v. fls. 282/283), a redacção introduzida no nº 1 do artigo 8º do Código do Registo Predial (CRPred.) pelo Decreto-Lei nº 116/2008, de 4 de Julho: “[a] impugnação judicial de factos registados faz presumir o pedido de cancelamento do respectivo registo”[17].

Ora, tratando-se esta de alteração legislativa introduzida posteriormente à propositura desta acção (que ocorreu em 08/11/2007), pretendem os Apelantes ser aqui aplicável a anterior versão do CRPred. (v. a motivação do recurso a fls. 319). Esquece este argumento, desde logo, face à natureza inquestionavelmente processual do artigo 8º do CRPred., a sujeição deste, no seu novo conteúdo, ao princípio da aplicação imediata próprio do direito adjectivo[18]. Seja como for, independentemente dessa circunstância, tendo a nova redacção introduzida no nº 1 do referido artigo 8º consagrado um entendimento que, anteriormente, já era afirmado pela jurisprudência (correspondia mesmo à orientação dominante no STJ[19]), deve ser atribuída a essa alteração a natureza de lei interpretativa[20], com a consequente aplicação imediata afirmada no nº 1 do artigo 13º do Código Civil.

Vale isto pelo afastamento da pertinência do argumento dos Apelantes quanto à não aplicação ao caso, no momento da prolação da Sentença apelada, da redacção do nº 1 do artigo 8º do CRPred. introduzida pelo Decreto-Lei nº 116/2008, sendo que isto conduz, para além do que se disse supra, nos itens 1.1.1. e 2.2.1. (a) deste Acórdão, à não verificação da nulidade apontada a essa decisão.

            2.2.2. (b) Interessa-nos agora a dimensão do recurso respeitante à impugnação dos factos (conclusões 5 a 7 transcritas no item 1.4., supra), sendo que os Apelantes a estruturam, genericamente, em torno da contestação às asserções de facto correspondentes à afirmação da coincidência dos dois prédios que os 2ºs RR. reconvencionalmente reivindicaram ao Baldio cuja existência como tal foi reconhecida pela Sentença apelada.

2.2.2.1. (b) Para integral compreensão desta dimensão do recurso, aqui transcrevemos o elenco dos factos fixados na primeira instância:
“[…]
            [transcrição de fls. 271/274]

            2.2.2.2. (b) Estão em causa na crítica dos Apelantes a estes factos os trechos em que é afirmado um uso do espaço integrado pelos dois prédios (… e …), desde tempos imemoriais, pelos moradores do Lugar de …, para apascentar os seus gados, retirar estrumes, matos e lenhas, à vista de toda a gente, na convicção de que tal terreno pertence como bem comunitário aos habitantes da dita povoação, enquanto instrumento proporcionador dessas vantagens ao referido grupo de pessoas (parafraseamos os pontos J) e M) do elenco fáctico).

            Note-se que a prova destes factos foi exaustivamente explicitada pela Exma. Juíza a quo na fundamentação que consta de fls. 259/265. Não obstante o carácter verdadeiramente modelar desta peça, e a confirmação por esta Relação (depois de ouvir o registo sonoro integral da prova pessoal produzida em audiência) de todas essas asserções e, consequentemente, da falta de razão da contestação destas pelos Apelantes, não deixaremos aqui de formular um juízo próprio sobre o significado da prova[21].

            A este respeito, tomamos como ponto de partida o registo, num passado que alcança, como data mais próxima do presente, os anos quarenta do século anterior, na localidade de …, como único terreno ao qual é conferida a designação de baldio, o espaço que no “livro da Matriz Predial Rústica da Freguesia de … nº …” (documento de fls. 278/284, certificado pelo Arquivo Distrital de Viseu) é descrito como “um bocado de monte baldio, confronta a norte antecedente[[22]], nascente caminho”, indicando-se como proprietária deste terreno baldio a “Junta de Paróquia” (cfr. fls. 280)[23].

            É este, seguramente, o Baldio aqui em causa, não obstante essa designação matricial se ter perdido ou caído em desuso, aparentemente, nos anos quarenta/cinquenta do século passado. Todavia – e aqui valoramos a prova testemunhal correlacionada com o elemento documental acima referido (o documento de fls. 278/284) –, existem relevantes depoimentos testemunhais que nos permitem alicerçar a projecção temporal desse “bocado de monte baldio” reconhecido de antanho no “Baldio” aqui em causa (o único Baldio do lugar de …), como espaço afecto a um uso comunitário da população daquele lugar[24]. Referimo-nos aos depoimentos do antigo Presidente da Junta de Freguesia de … entre 1994 e 2001 (…), que vive na Freguesia desde 1964 e afirmou um uso comunitário incontestado[25] do espaço aqui em causa (incluindo o espaço do prédio a que corresponde a descrição …), asserção cuja continuidade no tempo foi reafirmada pelo posterior Presidente da Junta de Pinheiro (…)[26] e foi inteiramente corroborada por outras testemunhas (…).

            Este entendimento não foi posto em causa por outras testemunhas dos RR. cuja referência ao uso daquele terreno (as parcelas A e B do levantamento de fls. 25) pela mãe da R. P… para depositar lenhas nos pareceu referida ao uso comunitário do Baldio[27] (este é o sentido claro dos depoimentos das testemunhas …). Especial menção merece aqui o depoimento da testemunha … (o vendedor do prédio …), para confirmar a asserção indicada na fundamentação da matéria de facto a fls. 260/262, quanto à circunstância de o conhecimento desta testemunha (além do interesse pessoal que protagoniza) funcionar numa espécie de “circuito fechado” lógico autojustificativo: as estremas do “seu” terreno eram as constantes da relação de bens anexa à escritura de partilhas do seu pai, logo era esse (com essas estremas) o prédio do seu pai. Note-se que esta justificação representa um enviesamento lógico na medida em que prescinde, enquanto justificação, da questão de fundo a justificar, que é a da existência, independentemente da expressão formal de quaisquer actos apropriativos mais recentes, de um uso comunitário dos terrenos, inequivocamente afirmado por outras testemunhas, designadamente pela testemunha ... Esta testemunha, porque utiliza como fonte de conhecimento a observação directa da realidade, e não os elementos formais constantes de uma relação de bens feita pelo próprio doador seu pai, alcançou objectivamente uma conclusão antagónica da do seu irmão, quanto à dominialidade daquele terreno.

            Valem estas considerações, enfim, enquanto confirmação, através da valoração autónoma da prova realizada por esta Relação, dos factos fixados na primeira instância, no que respeita à afirmação do espaço indicado no documento de fls. 25 como integrando o “Baldio das Souças”, sendo esta a asserção que está presente nos pontos da matéria de facto criticados pelos Apelantes. Não se justifica, pois, é o que aqui concluímos, a sua alteração.

           

2.2.3. (c) Fixado que está o elenco dos factos a considerar, interessa-nos agora o derradeiro fundamento da apelação (expresso nas conclusões 8 a 10, transcritas no item 1.4., supra) e que se traduz na afirmação de uma prevalência do registo em favor dos ora Apelantes dos prédios que aqui considerámos integrarem o espaço do “Baldio das Souças”.

Interessa-nos, a respeito desses registos – que nesta acção são suprimidos, o que confere a este argumento dos Apelantes uma espécie de natureza tautológica –, quanto a esses registos interessa-nos, como dizíamos, a constatação de corresponderem eles a actos de apropriação de um Baldio – de terrenos integrados num Baldio –, sendo que, nos termos do artigo 4º, nº 1 da Lei dos Baldios (Lei nº 68/93, de 4 de Setembro), “[o]s actos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, tendo por objecto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito […]”[28]. Note-se que esta ineficácia dos negócios de apossamento de Baldios suprime a base de sustentação dos registos aqui pretendidos fazer valer, retirando a esses registos qualquer valor.

De qualquer forma, centrando-nos aqui no prédio objecto da escritura de justificação notarial de fls. 22/24, não deixaremos de sublinhar que o objecto desta acção visa, precisamente, a declaração de inexistência dos factos objecto da justificação, já que foram estes, por terem sido afirmados nessa escritura, que conduziram – eles e apenas eles – à inscrição no registo predial aqui pretendida fazer valer pelos Reconvintes ora Apelantes.

Ora, conforme se observou no Acórdão de 23/04/2002 desta Relação, a propósito de acções visando contraditar factos levados ao registo predial com base em escrituras de justificação:
“[…]
O que normalmente se pretende com este modelo de acção é a declaração de que o réu não tem o direito que foi objecto da escritura de justificação notarial. A acção de impugnação de justificação notarial é uma acção de simples apreciação negativa, porque proposta para obtenção da declaração de inexistência dum direito (artigo 4º, nº 2, alínea a) do CPC). O que se pretende é a declaração de que o justificante não é o titular do direito justificado na escritura que vai servir [que aqui serviu] de base ao registo de aquisição, nos termos do artigo 116º do [CRPred].
[…]”[29]

            Esta natureza – de acção de simples apreciação negativa – convoca desde logo, enquanto regra específica de atribuição do ónus da prova, o artigo 343º, nº 1 do Código Civil[30]. Assente que assim é – ou seja, que neste tipo de acção compete ao réu o ónus da prova do que subjaz à escritura, com a correspondente regra de decisão inerente à indemonstração da sua versão[31] –, resta ponderar se a existência de registo a favor do justificante da escritura, registo este resultante do próprio documento[32], não conduz à presunção, decorrente do artigo 7º do CRPred, “[…] de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.

            Trata-se de uma questão à qual a nossa jurisprudência não tem fornecido uma resposta unânime. Esta Relação e Secção no Acórdão de 10/10/2006 (Jorge Arcanjo)[33], sumariou, por referência à jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, o estado da questão, nos seguintes termos:
“[…]
Quando o registo é feito com base na escritura de justificação, têm-se adoptado duas teses:
a) Uma no sentido de que o regime especial prescrito no artigo 343º nº1 do Código Civil cede perante a força da presunção derivada do registo (art.7º do Código de Registo Predial), fazendo operar uma inversão do ónus da prova (artigo 344º nº1 do Código Civil).
Nesta perspectiva, competiria aos Autores a prova de que não se verificou a causa de aquisição constante da escritura de justificação notarial, ou seja, de que não se verificou a usucapião a favor dos Réus (cf., por ex., Ac STJ de 19/3/2002, www.dgsi.pt/jstj[34], Ac RC de 25/11/97, C.J. ano XXII, tomo V, pág.23).
b) Outra defende que o registo efectuado com base na escritura de justificação não constitui, na acção de impugnação daquela escritura, presunção da propriedade (cf, por ex., Ac. do STJ de 3/3/98, C.J. ano VI, tomo I, pág.114, Ac RC de 26/6/2000, C.J. ano XXV, tomo III, pág.35, de 23/4/2002, C.J. ano XXVII, tomo III, pág.33, de 16/11/04, em www.dgsi.pt/jtrc[35])
[…]”

            Ora, um registo assente numa escritura de justificação notarial, como o aqui pretendido fazer valer pelos Apelantes, limita-se a transformar em descrição registral – ou seja, a registar – o que consta dessa escritura, sem qualquer outra base de indagação sobre a realidade do facto registado. Assim, a realidade que o registo descreve decorre, nestes casos, exclusivamente da circunstância de o interessado o ter declarado no momento da realização da escritura e de isso ter sido corroborado por testemunhas ad hoc. Daí que, visando a acção, como esta na prática visa, discutir a correspondência à realidade das declarações prestadas aquando desse acto notarial, com a consequente obrigação de ser concomitantemente pedido, como aqui o foi, o cancelamento do registo (artigo 8º do CRPred.), nos pareça adequado colocar essa discussão num plano exterior ao do registo. Ora, neste plano, expressando o pedido a relevância de um facto negativo – não se verifica a realidade relatada na escritura, por que o terreno sempre integrou um Baldio –, não vemos motivo para conferir à situação um tratamento distinto daquele que, através do nº 1 do artigo 343º do Código Civil, é dado a todas as situações de declaração de factos negativos: valem aqui, por identidade de razão, os elementos teleológicos presentes nesta norma.

            O argumento contrário a este entendimento, tende a valorizar, enquanto consolidação dos factos registados, a circunstância de ter decorrido o prazo de trinta dias previsto no nº 2 do artigo 101º do Código do Notariado[36], quando este prazo – a norma que o contém – se limita a regulamentar o processo respeitante ao acto notarial e não ao acto de registo predial[37].

            Daí que se entenda aqui – e entende-se independentemente de todas as outras considerações até agora efectuadas no percurso argumentativo deste Acórdão – que o ónus da prova da situação declarada na escritura, negada que o foi nesta acção pela A., incumbia aos RR., nos termos do artigo 343º, nº 1 do Código Civil, sendo que seriam estes (os RR. ora Apelantes) que suportariam a contingência, tivesse ela ocorrido, de verem indemonstrada a sua tese. Todavia, não deixaremos de sublinhar que a decisão aqui alcançada até se suporta na efectiva demonstração, face à valoração da prova, da tese da A. quanto à correspondência do espaço assinalado no documento de fls. 23 a um Baldio afecto à população de …, contra o sentido dos registos invocados, em ambos os casos (prédios 2593 e 2705), pelos RR. e, concretamente, pelos Reconvintes.

            Vale isto, enfim, como afirmação da improcedência da invocação pelos Apelantes do registo em seu favor dos prédios aqui afirmados, por demonstração de ser essa a realidade, como Baldio, como o “Baldio das Souças”, afecto ao uso, desde sempre, dos moradores do lugar de ...

            2.3. Aqui chegados, esgotados que estão os fundamentos da apelação e constatada a improcedência desta – e assim retomamos a questão dos dois agravos interlocutórios da aqui Apelada, equacionada no item 2.1. deste Acórdão –, resta-nos verificar a integração da situação prevista no trecho final do nº 1 do artigo 710º do CPC, daí decorrendo a não apreciação aqui desses recursos de agravo (a Sentença vai ser confirmada). Estes agravos, aliás, visando supostos desvalores decisórios praticados pelo Tribunal a quo em desfavor da A., nenhum efeito apresentaram no resultado alcançado em primeira instância e aqui.

            Resta-nos, pois, expressar decisoriamente essa improcedência do recurso de apelação dos RR.


III – Decisão

            3. Assim, na improcedência da apelação, confirma-se a Sentença recorrida.

            Custas do recurso a cargo dos Apelantes.


 

Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca



[1] Este dado de tempo – tratar-se de processo iniciado em 2005 (distribuído já em 2006), muito antes de 1 de Janeiro de 2008 –, significa a aplicação a esta instância de recurso do regime processual anterior à reforma introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 9º, alínea a), 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Note-se, aliás, que, por essa mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil doravante citada neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterado pelo mencionado DL 303/2007, se refere à versão anterior à introduzida por este Diploma.
[2] Tendo-se constatado que este falecera em 29/09/2007 (fls. 41), antes da propositura da acção, foram habilitados para a causa a R. P…, sua mulher, e os seus filhos, L… e M… (v. fls. 16/17 do Apenso de habilitação e fls. 39 deste processo).
[3] Escritura de fls. 22/24.
[4] Escritura de fls. 18/20.
[5] Diz a A. no articulado inicial:
“[…]
11º
Neste terreno assim constituído e com a configuração que vai no doc. nº 8 junto, desde tempos imemoriais, há mais de 100 ou 200 anos, que os moradores do lugar de … têm apascentado os seus gados, retirando dele estrumes verdes, matos e lenhas , à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de que tal terreno pertence como bem comunitário (baldio) aos habitantes da dita povoação.
[…]”
                [transcrição de fls. 3 vº]
[6] É o seguinte o teor do artigo 8º da contestação mencionado no pedido reconvencional:
“[…]
8
Encontram-se descritos na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Frades os seguintes prédios sitos em …:
1. Prédio rústico denominado Cabeço da Souça, composto de terreno de pinhal e mato que confronta do …, inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Frades;
2. Prédio rústico denominado Cabeço da Souça, inculto, a confrontar …, inscrito na matriz respectiva sob o artigo e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Frades sob o nº da freguesia de ...
[…]”
                [transcrição de fls. 69, sublinhados acrescentados]
Tenha-se presente desde já, por constituir um aspecto relevante na economia decisória da presente acção e deste recurso, que relativamente ao primeiro destes dois prédios (artigo … da matriz) ocorreu inscrição no registo predial já na pendência desta acção, em 23/11/2007 (v. fls. 214/215) e já depois dos RR. terem sido citados para a mesma (v. fls. 33/35). Significa isto que o artigo matricial … corresponde à descrição na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Frades com o nº …
Este problema interessa, como adiante se verá, à questão da nulidade por excesso de pronúncia invocada pelos Apelantes neste recurso (item 2.2.1. (a), infra).
[7] Daí que, como adiante se dirá no item 2.2.1. (a), exista identidade de objecto entre o pedido (devidamente interpretado no contexto que a acção revelou) e a condenação proferida na primeira instância.
[8] Os agravos, ambos interpostos pela A. ora Apelada, de fls. 163 (que foi alegado a fls. 221/229 e admitido a fls. 211) e de fls. 274 (que foi alegado a fls. 296/302 e admitido a fls. 277). Coloca-se, relativamente a estes agravos, o condicionamento previsto na parte final do nº 1 do artigo 710º do CPC (“[…] se a sentença não for confirmada”), tal como se colocaria a questão de interesse no respectivo provimento, decorrente do nº 2 do mesmo artigo 710º, tendo presente o pronunciamento desta Relação quanto ao recurso de apelação dos RR.
[9] Este foi introduzido pela reforma consubstanciada no Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro e dispõe o seguinte:
Artigo 684º-A
(Ampliação do objecto do recurso a requerimento do recorrido)
1 – No caso de pluralidade de fundamentos da acção ou da defesa, o tribunal de recurso conhecerá do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respectiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.
[10] É o que refere António Santos Abrantes Geraldes, anotando este artigo 684º-A:
“[…]
O preceito foi aditado pelo DL nº 39/95, de 15 de Fevereiro, visando clarificar uma dúvida que anteriormente se suscitava a respeito dos meios que deveriam ser accionados quando, apesar da decisão ser favorável à parte vencedora, não tivessem sido nela acolhidos todos ou alguns dos fundamentos de facto ou de direito invocados.
[E]m tais circunstâncias a parte não tem legitimidade para recorrer, uma vez que não é vencida quando se estabelece o confronto entre a decisão e a acção ou a defesa. No entanto, pode não ser de todo indiferente o modo como o tribunal a quo fundamentou a decisão se acaso vierem a ser acolhidos pelo tribunal ad quem as questões suscitadas pelo recorrente. Neste caso, se porventura fosse vedada ao recorrido a possibilidade de promover a ampliação do objecto do recurso, poderia ver-se definitivamente prejudicado num momento em que já não teria capacidade de reagir.
[…]
[Q]uando a parte vencida, na perspectiva do resultado final da acção, interponha recurso da decisão […] já não é indiferente para a contraparte a resposta que o tribunal a quo tenha dado aos argumentos de facto ou de direito invocados. Na verdade, se acaso o tribunal ad quem reconhecer razão aos argumentos invocados pelo recorrente, pode revelar-se importante para a defesa dos interesses do recorrido que exista pronúncia também sobre os argumentos que oportunamente esgrimiu e que foram objecto de resposta desfavorável.
A solução legal assim clarificada proporciona à parte vencedora, com total razoabilidade, a possibilidade de suscitar a reapreciação de fundamentos em que tenha decaído, esconjurando os riscos derivados de uma total adesão do tribunal de recurso aos argumentos do recorrente.
[…]” (Recursos em Processo Civil. Novo Regime, 3ª ed., Coimbra, 2010, pp. 107/109).
[11] “[S]e o decaimento se reportar a um pedido principal ou subsidiário que tenha sido formulado, não é através da ampliação do âmbito do recurso que o interessado poderá promover a reapreciação da decisão no segmento em que saiu vencido, mas mediante impugnação autónoma  ou recurso subordinado […]” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, cit., p. 108, nota 183).
[12] Diz este segmento da norma:
Artigo 668º
Causas de nulidade da sentença
1 – É nula a sentença:
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
e) Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.
[13] Interessa a este fundamento o seguinte pronunciamento decisório: “[o]rdena-se o cancelamento das inscrições registais correspondentes à inscrição a favor de M… e mulher, aludida em F) da fundamentação de facto, e Ap. 1 de 2006/11/06 sobre o prédio rústico descrito sob o n.º …, na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Frades, e Ap. 2 de 2007/11/23 sobre o prédio rústico descrito sob o n.º …, na mesma Conservatória” (sublinhou-se o trecho respeitante ao prédio envolvido neste fundamento do recurso).
[14] Os próprios RR., negando embora que se tratasse de um Baldio, afirmaram na contestação que o espaço pretendido pela A. correspondia a esses dois prédios (v. itens 1.1 e 1.1.1. supra), a eles referindo o pedido reconvencional.
[15] Enquanto terreno possuído e gerido por determinada comunidade local [v. artigo 1º da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro (Lei dos Baldios)].
[16] Todavia, devemos considerar tal pronunciamento implícito e, nesse sentido, abrangido pelo caso julgado formado (aliás, que se virá a formar) pela decisão ora apelada.
[17] Dizia a redacção anterior (a contemporânea da propositura desta acção): “[o]s factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em juízo sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo”.
[18] “A doutrina a adoptar, no silêncio dos textos, quanto ao domínio de aplicação das leis processuais traduz-se essencialmente neste princípio [aplicação imediata]. De acordo com ele, uma nova lei de processo será de aplicar, desde logo, nas próprias causas já instauradas, a todos os termos processuais subsequentes” (Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, reedição, Coimbra, 1979, pp. 41/42).
[19] Como se afirmava no Acórdão do STJ de 22/01/1998:
“I – O cancelamento do registo é uma consequência do pedido em que se pede se reconheça que o direito pertence a quem não é o titular inscrito.
II – Assim, tendo-se omitido tal pedido expresso de cancelamento e tendo a acção prosseguido após os articulados é de considerar que o mesmo se encontra implicitamente efectuado e, em consequência, deve ordenar-se o cancelamento do registo” (Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, I/1998, p. 26).
[20] “Poderemos […] dizer que são de sua natureza interpretativas aquelas leis que, sobre pontos ou questões em que as regras jurídicas aplicáveis são incertas ou o seu sentido controvertido, vem consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adoptado” (J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1983, p. 246).
[21] Este Tribunal formou, pois, por referência à prova testemunhal, uma convicção autónoma da da primeira instância, assente numa livre valoração própria dessa prova, seguindo o entendimento usualmente referido como “tese conformadora do poder-dever da Relação formar uma convicção própria sobre os factos” (v. o Estudo de J. P. Remédio Marques, “Um breve olhar sobre o duplo grau de jurisdição em matéria de facto”, in Cadernos de Direito Privado, número especial 01/Dezembro 2010, pp. 80/90): “[a] Relação desfruta não apenas do poder de aferir a razoabilidade da convicção dos juízes de primeira instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, nos casos flagrantes ou notórios de desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão de facto proferida pela primeira instância, mas também (e sobretudo) de um poder-dever de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação da prova, sem se achar limitada ou condicionada pela convicção que tenha servido de base à decisão recorrida.
Este poder-dever pressupõe que a Relação valore, ela própria, de modo crítico e fundado, a prova disponível, não se limitando a aceitar passivamente a convicção formada pela primeira instância ou a controlar somente a formação dessa convicção efectuada na primeira instância” (pp. 85/86).
[22] Refere-se ao prédio antecedentemente indicado no livro, seguindo a sequência dos designados “números de ordem topográfica” (v. fls. 280).
[23] “Junta de Paróquia” correspondeu, entre 1830 e a Implantação da República em 1910, à designação da Freguesia (Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 6ª ed., Lisboa, 1963, pp. 429/431), entidade à qual sempre foi reservado um papel particularmente relevante na administração dos Baldios, enquanto bens afectos ao proveito directo da colectividade (Marcello Caetano, Manual…, cit. pp. 218/223).
“Depois da Revolução Liberal de 1820 a Lei dos Forais de 1822 reconheceu aos concelhos poderes de administração sobre os baldios. No período posterior, do confronto entre as correntes políticas liberais e as partidárias do antigo regime, ao território das Paróquias religiosas com os seus habitantes, foi atribuído, por Decreto de 26 de Novembro de 1830, o estatuto de autarquia local, integrando todavia o Município onde se situava, mas com poderes reduzidos. Pelo Decreto de 26 de Março de 1832 foi retirado às Paróquias o estatuto de autarquias locais. Pela Lei de 25 de Abril de 1835 foi-lhes, de novo, reconhecido esse estatuto.
Pelo Código Administrativo de 1842 perderam-no novamente. Com o Código administrativo de 1878 voltou o território das Paróquias religiosas, com os seus habitantes, a ser reconhecido como autarquia. Com a Lei nº 88, de 7 de Agosto de 1913, a sua designação passou a ser Freguesia, tendo-a mantido na Lei nº 621 de 23 de Junho de 1916.
Com a institucionalização, dentro do Município, da autarquia local Freguesia, passaram para esta os poderes administrativos sobre os Baldios usados pelos habitantes de uma ou mais povoações da Freguesia” (António Bica, “O Regime Jurídico dos Baldios”, in Voz da Terra, Janeiro de 2003, p. 11, disponível em: http://www.cna.pt/artigostecnicos/antoniobica/12_vtjaneiro2003_antoniobica.pdf).
[24] Note-se ser esse uso comunitário projectado no tempo que define um Baldio [v., por exemplo, o Acórdão desta Relação de 28/04/2010 (Barateiro Martins), proferido no processo nº 98/07.0TBFAG.C1, directamente disponível no sítio do ITIJ, no endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/6a09c790cea3a4da80257727004b1c86.
[25] Além da percepção por esta testemunha do depósito de lenhas por “toda a população” naquele terreno, Junta de Freguesia aí executou trabalhos ao longo dos tempos, como beneficiação de caminhos à custa do terreno e daí cortou e retirou lenhas para aquecimento do edifício da escola primária, sem qualquer contestação, designadamente de qualquer dos aqui RR., ou afirmação de uma dominialidade do terreno que fosse incompatível com esse uso em favor da comunidade dos habitantes de ...
[26] Este depôs como parte (a requerimento dos RR.), sendo duvidoso que o pudesse fazer, já que nunca poderia confessar relativamente a um Baldio em nome da Junta de Freguesia. Está aqui em causa, assim, uma valoração autónoma deste depoimento, que nos pareceu objectivo, em conjugação com a prova testemunhal e documental que sempre o corroborou.
[27] Dispondo a R. P… (a mãe desta, …, como a identificaram as testemunhas) e o pai das testemunhas de terrenos colindantes com o espaço aqui reconhecido ao Baldio é normal que também utilizassem esse espaço (também eles integravam a população de …) e que, por razões de maior proximidade geográfica que outros habitantes, até fossem os utilizadores mais frequentes. Cremos ser esta, aliás, a explicação para a tentativa de apropriação do terreno por estas pessoas e os seus sucessores: a circunstância de disporem de terrenos adjacentes ao Baldio e de também o utilizarem.
[28] V., quanto à caracterização desta nulidade como colocação dos Baldios “fora do comércio jurídico”, ou seja, como realidades juridicamente imunes a actos apropriativos, Jaime Gralheiro, Comentário à Nova Lei dos Baldios, Coimbra, 2002, pp. 76/81 (trata-se de anotação a este artigo 4º da Lei dos Baldios)
[29] Relatado pelo Desembargador Coelho de Matos e publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVII, Tomo II/2002, pp. 33/36 (34).
[30] “Nas acções de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga”.
[31] Ou seja, adaptando a formulação de Pedro Ferreira Múrias (Por uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lisboa, 2000, pp. 20/21) quanto à caracterização do chamado “ónus objectivo da prova”: “[…] o instituto que determina segundo qual das versões disputadas deve decidir-se quando é incerta a verificação de algum facto pertinente […]”, utilizando esta formulação, diríamos resultar ser a versão do autor a feita prevalecer quando indemonstrada a versão do réu, neste tipo de acções.
[32] Pois, como resulta do artigo 116º, nº 1 do CRPred, “[o] adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial […]”. Escritura esta que assenta basicamente nas declarações prestadas pelo justificante, confirmadas por testemunhas.
[33] Proferido no processo nº 1094/06.0YRCBR, disponível na base do ITIJ, directamente, no endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/cf4a6b6b312bc44c8025720a004ebb5a.
[34] Pode ser procurado nesta base através do Processo nº 02A197 e do Nº Convencional JSTJ00042898.
[35] Pode ser procurado nesta base através do Processo nº 2766/04.
[36] Que estabelece:
Artigo 101º
(Impugnação)
1 – […].
2 – Só podem ser passadas certidões de escritura de justificação decorridos 30 dias sobre a data em que o extracto for publicado, se dentro desse prazo não for recebida comunicação da pendência da impugnação.
[37] Neste sentido, refere-se no Acórdão do STJ de 24/06/2004 (Lucas Coelho), proferido no processo nº 03B3843 e disponível na base do ITIJ, directamente, no endereço: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ce5321f7a73d697080256ecf004f2aba: “[…]
Questão diferente é, porém, a de saber se o decurso desse prazo [do prazo de 30 dias do artigo 101º, nº 2 do Código do Notariado] produz a inversão do ónus da prova cometido ao réu pelo n.º 1 do artigo 343.º do Código Civil, na acção impugnatória de simples apreciação negativa instaurada posteriormente.
Consideramos ainda, quanto a esta vertente da problemática que se vem apreciando, não se vislumbrarem razões justificativas de uma diversa repartição do ónus da prova pelo mero facto de a acção de impugnação haver sido instaurada antes ou depois da consumação do prazo […].
E se antes da instauração da acção estiver já realizado o registo da justificação notarial? Quid iuris, atenta a presunção emergente do artigo 7.º do Código do Registo Predial?
Observa-se no acórdão deste Supremo, de 28 de Abril de 1994 […], que as declarações dos réus contidas na escritura, como meras declarações apenas ratificadas por três pessoas, «só terão valor para efeitos de descrição na Conservatória do Registo Predial se não vierem a ser impugnadas», mas «se o forem, o direito passa a ser incerto, pelo que não pode fundamentar a presunção que o artigo 7.º do Código do Registo Predial contém», nem a inversão do ónus da prova plasmada no artigo 343.º do Código Civil.
[…]”.