DENÚNCIA CALUNIOSA
Sumário

Para o preenchimento do crime de denúncia caluniosa é necessário que o agente denuncie factos que saiba serem falsos, com intenção de fazer desencadear procedimento, seja criminal, contra-ordenacional ou disciplinar contra o denunciado, o que pressupõe, desde logo, a falsidade objectiva do que foi denunciado.

Texto Integral

I. Relatório
No processo 1357/09.3TACBR.C1 que, em fase de instrução, corre termos no Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra A... e B... apresentaram queixa contra C... por factos susceptíveis de integrar a prática de crime de denúncia caluniosa p. e p. pelo artigo 365º, nº nº 3, alínea a) do Código Penal.
Findo o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho, ordenando o seu arquivamento por insuficiência dos indícios da prática do crime denunciado.

Tendo-se constituído assistentes, os queixosos A... e B... requereram instrução manifestando a pretensão de que o arguido C... seja pronunciado pela prática de dois crimes de denúncia caluniosa p. e p. pelo artigo 365º, nº 3, alínea a) do Código Penal (em concurso aparente com dois crimes de falsas declarações p. e p. pelo artigo 360º do Código Penal).

Realizada a instrução foi proferido despacho de não pronuncia.

Inconformados com o teor de tal despacho, dele recorreram os assistentes, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:
1. A douta decisão instrutória de que se recorre é, salvo o devido respeito, nula por falta da necessária fundamentação.
2. Na verdade, desde logo, o genérico comando legal inserto no n.º 5 do artigo 97° do CP Penal - e que mais não constitui do que uma dimanação do artigo 205/1 da Constituição da República Portuguesa - obriga a que todos os actos decisórios sejam sempre fundamentados de facto e de direito.
3. Ora, a presente decisão não cumpre cabalmente tal comando normativo,
4. Quer porque não especifica os factos que considerou suficientemente indiciados,
5. Quer porque não discute questões jurídicas em que ancorava a divergência dos requerentes da Instrução face ao conteúdo da decisão de arquivamento.
6. Na verdade, da leitura da douta decisão instrutória fica sem se saber se se considera ter ocorrido, ou não, uma denúncia objectivamente subsumível ao artigo 365°, 1 do Código Penal.
7. Ora, tal omissão compromete definitivamente a inteligibilidade da decisão, na medida em que há segmentos da mesma tornados incompreensíveis para os destinatários.
8. De resto a idêntica solução de nulidade se chegará pela aplicação analógica - ex vi artigo 4° do Código de Processo Penal - dos artigos 374° e 379° do mesmo diploma procedimental.
Sem prescindir,
9. A douta decisão agora em recurso viola as disposições contidas nos artigos 308°, 1 do CPP e art. 365°, 1 e 3, al. a) e 360, n.º 1, do CP.
10. Na verdade, estão coligidos nos autos meios probatórios passíveis de suportarem um juízo de prognose antecipador de uma probabilidade séria do arguido vir a ser condenado numa pena pelos crimes de denúncia caluniosa, em concurso aparente com o crime de falsas declarações.
11. A Denúncia caluniosa é um crime que radica na consciência da falsidade dos factos imputados e no propósito de sujeitar outrem a procedimento criminal.
12. De facto, nos termos do nº 1 do artigo 365º do CPP "Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa".
13. Assim, resulta da análise do sobredito preceito normativo que o tipo legal de crime se encontra preenchido quando se verifiquem os elementos objectivo e subjectivo que o pressupõem.
14. Para o preenchimento do tipo objectivo de ilícito é, pois, necessário que a denúncia seja, no seu conteúdo essencial, falsa.
15. Do normativo analisado sobressai, ainda, que o facto só é punido a título de dolo (elemento subjectivo) - i.é, o agente terá de actuar "com consciência da falsidade da imputação" e, por outro lado, terá de o fazer "com intenção de que contra ela se instaure procedimento" - cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora 2001.
16. Ora, tais elementos - objectivo e subjectivo -- verificam-se na hipótese sub judice.
17. Com efeito, o arguido C... ao lançar sobre os assistentes a suspeita da prática de um crime de corrupção passiva, sabendo que os factos que lhes imputou eram falsos e que os meios de prova que coligiu para os secundar emergiam manipulados, intentou que contra estes fosse instaurado procedimento criminal, o que logrou.
18. Efectivamente, não hesitou em narrar a existência de conversa que nunca existiu - e descrevendo, em dois momentos distintos, versões absurdamente incompatíveis dessa conversa!
19. Ora, de que a conversa não existiu é ilustrativo o facto da investigação efectuada não lograr indiciá-la com qualquer elemento probatório, por ínfimo e circunstancial que fosse,
20. Não obstante em todo o período relevante para os factos os assistentes terem estado permanentemente sob escuta e terem sido alvo de buscas minuciosas e de devassa de toda e qualquer conta bancária detida.
21.Por outro lado, o arguido foi transmitindo outras falsidades nos depoimentos que foi prestando, designadamente coligindo elementos documentais propositadamente distorcidos para criar a ideia de favorecimento recorrente a uma das empresas a concurso - exactamente aquela oferente das putativas alvíssaras.
22. Bem como foi narrando outras situações desfasadas da realidade com o propósito de construir um cenário eminentemente desfavorável aos arguidos,
23. Exactamente para densificar as probabilidades do procedimento despoletado vir a ser credor de êxito - como foi, embora relativo ...
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente com a consequente revogação da decisão instrutória de não pronúncia, que deve ser substituída por acórdão que pronuncie o arguido pela prática de dois crimes de denúncia caluniosa, p. e p. pelo arte 365.°, n.º 3, al. a) com referência ao n.º 1, em concurso aparente com dois crimes de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 360°, todos do Código Penal.

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:
Quanto à primeira questão (nulidade da decisão instrutória), prescreve o art.º 97.°, n.º 1, alínea b) e 4 do C.P.P. que os actos decisórios devem ser fundamentados, através da especificação dos motivos de facto e direito. Este dever resulta do imperativo constitucional plasmado no art.º 205.°, n.º 1 da C.R.P. que refere que as «decisões dos tribunais, que não sejam de mero expediente, são fundamentadas na forma prevista na lei».
Todavia, só em casos pontuais, maxime quanto à sentença, a lei processual penal especifica pormenorizadamente os requisitos da fundamentação (art.º 374.°, n.º 2 do C.P.P).
Para os demais casos em que a lei não estabelece quaisquer requisitos devem seguir-se os apontados na doutrina e jurisprudência, fundamentando-se a decisão com os elementos de facto e as razões de direito justificativas da decisão proferida. A falta de fundamentação dos actos decisórios, quando não tenha tratamento específico previsto na lei, constitui irregularidade submetida ao regime do art.º 123.° do C.P.P. Caso de tratamento específico é o de falta de fundamentação da sentença, que importa nulidade, nos termos do art.º 379.°, alínea c) do C.P.P. - cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado, 2ª edição, pág. 197.
No mesmo sentido, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal III, 1996, pág. 288, escreve «É hoje entendimento generalizado que um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com decisões que hajam de impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz. Por isso é que todos os códigos modernos exigem a fundamentação das decisões judiciais, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito».
No caso concreto, a decisão recorrida observou as regras ínsitas nos referidos preceitos, constando da mesma os motivos de facto e direito que levaram à decisão de não pronúncia do arguido.
Na verdade, a Mmª juíza enunciou o que deve ser entendido por indícios suficientes para efeitos de pronúncia, citando a disposição legal que define tal conceito. Seguidamente, elencou os elementos probatórios recolhidos em sede de inquérito e de instrução e, após apreciação crítica dos mesmos, concluiu no sentido de que a prova indiciária produzida não era suficiente para levar à provável condenação do arguido pelos crimes de denúncia caluniosa.
Assim, e contrariamente ao sustentado pelos recorrentes a decisão instrutória contém suficiente fundamentação, não sendo necessária, nem a lei o exige, a descrição pormenorizada dos factos indiciados e não indiciados.
No que concerne aos indícios, subscrevemos na íntegra a fundamentação explanada no despacho de arquivamento de fls. 476 a 485.
Sobre o crime de denúncia caluniosa, p e p pelo 365.°, n.º 1 do Código Penal, refere o Ac. da Relação do Porto de 26/01/2011, acessível através de www.dgsi.pt.que o mesmo pressupõe a criação de um perigo concreto da pessoa ofendida ver a sua liberdade posta em causa pela instauração de um procedimento persecutório: a denúncia ou suspeita tem de ser, no seu conteúdo essencial, falsa, no sentido de que, comprovadamente, a pessoa denunciada não cometeu o facto (crime, contra-ordenação ou ilícito disciplinar) por que o agente pretende vê-la perseguida.
O tipo subjectivo exige "um dolo qualificado por duas exigências cumulativas: por um lado, o agente terá de actuar com a consciência da falsidade da imputação; por outro lado e complementarmente, terá de o fazer com intenção de que contra ela se instaure procedimento. A consciência da falsidade significa que, no momento da acção o agente conhece ou tem como segura a falsidade dos factos objecto da denúncia ou suspeita".
Assim, para o preenchimento do tipo objectivo é necessário que a denúncia seja, no seu conteúdo essencial, falsa, e que, comprovadamente, a pessoa denunciada não tiver cometido o facto.
No caso, também nos parece que os elementos de prova recolhidos nos autos não infirmaram a afirmação do arguido de que ouviu através do telefone uma conversa entre os ora assistentes, na qual o recorrente B... dizia que o dinheiro deveria ser depositado em numerário, numa conta na Suíça e que era preciso cuidado com o contabilista da … . A prova indiciária recolhida não permite, pois, concluir que tal conversa não tenha existido ou que o arguido não a tenha ouvido através do telefone. Isso só basta para concluir pela falta de razão dos recorrentes, quando pretendem imputar ao arguido os crimes de denúncia caluniosa.
Aliás, não se vê porque motivo é que o arguido haveria de inventar essa conversa e a circunstância do inquérito n.º 262/04.4JACBR ter sido arquivado quanto a esses factos, não significa também que os mesmos não tivessem ocorrido. No aludido despacho, o titular do inquérito entendeu apenas que não se recolheram indícios para imputar aos ora assistentes a prática de factos, susceptíveis de integrar crimes de corrupção, o que não é mesma coisa que dizer que os ilícitos não ocorreram.
Relativamente às discrepâncias detectadas nos depoimentos prestados pelo arguido e nas quais os recorrentes pretendem ancorar inexistência da conversa que está em causa nos autos, há que ter em conta que foram prestados em processos e períodos temporais diferentes, sendo compreensível que entre eles não se verifique uma total coincidência. É sabido que qualquer pessoa ao tentar reproduzir uma determinada situação factual, nunca o faz da mesma maneira. O que verdadeiramente interessa é a essência do conteúdo do depoimento. Ora, como foi realçado no despacho de arquivamento e na decisão de não pronúncia, nos depoimentos prestados em dois processos (inquérito n.o 262/04 e processo instaurado pela Inspecção Geral de Saúde), o arguido manteve, no essencial, a mesma versão.
As apontadas discrepâncias respeitam a pormenores secundários e não devem ser valorizadas nos moldes propugnados pelos recorrentes, ou seja, que o arguido não ouviu a conversa que relatou e que está em causa nos presentes autos.
Assim e tal como se concluiu na decisão recorrida de não pronúncia, também se nos afigura que não existem indícios da prática pelo arguido dos crimes de denúncia caluniosa e de falsas declarações que lhe são imputados pelos recorrentes.
Finalmente, dir-se-á ainda que não se verifica a nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia.
Alegam os recorrentes que a Mmª Juíza de instrução não apreciou todas questões por eles suscitadas no requerimento instrutório, designadamente se o procedimento adoptado pelo arguido, ao relatar o teor da conversa ao Presidente do Conselho de Administração do W..., constitui, ou não, denúncia conducente ao preenchimento do crime de denúncia caluniosa, p e p no art.º 365.°, n.º 1 Código Penal.
A omissão de pronúncia só ocorre se o tribunal não se debruça sobre qualquer questão que devesse apreciar. Contudo, se a apreciação desta ficar prejudicada pelo conhecimento de outra anterior, já não deve entender-se que ocorreu omissão de pronúncia.
Foi exactamente o que sucedeu, no caso concreto, na medida em que a Mmª Juíza ao concluir pela inexistência de indícios da falsidade dos factos relatados pelo arguido, prejudicada ficou a questão suscitada e referente denúncia efectuada pelo arguido.
Pelo exposto, deverá improceder o recurso e manter-se a decisão instrutória de não pronúncia, que, contrariamente ao que sustentam os recorrentes, não violou qualquer disposição legal.
Contudo, V. Exªs. melhor decidirão, fazendo, como sempre, a costumada JUSTIÇA

O arguido, igualmente notificado, respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:
1. A douta decisão de não pronúncia não padece de qualquer nulidade, quer porque é por si só fundamentada e suficiente, quer porque atende a todas as questões suscitadas durante a fase de instrução.
2. Na verdade, do ponto de vista factual, todo o circunstancialismo em que a decisão assentou encontra-se discriminadamente narrado; do ponto de vista jurídico, toda a discussão envolvente é objecto de apreciação crítica e aprofundada.
3. De resto, não são comparáveis ou passíveis de analogia as exigências de precisão e especificação presentes na sentença final e no despacho que finda a instrução, atendendo a que este último não supõe uma convicção tão sólida, bastando se tão só com uma probabilidade.
Sem prescindir,
4. Na hipótese de se entender pela falta de fundamentação, a doutrina e jurisprudência convergem no sentido de uma mera irregularidade, e nunca numa nulidade, como pretendem os assistentes.
5. Passando à análise da suposta subsunção da conduta do arguido ao tipo de crime do art. 365.° do Código Penal, avulta que não resultou minimamente indiciado que a "denúncia" seja objectiva e subjectivamente falsa.
6. Desde logo, não se comprovou, conforme exige a doutrina de COSTA ANDRADE, que os factos descritos pelo arguido fossem infundados ou uma efabulação.
7. Configurando um pernicioso alargamento da punibilidade a perseguição criminal do arguido apenas porque o procedimento instaurado contra os assistentes foi arquivado.
8. Não são, ainda, detectáveis quaisquer divergências no discurso do arguido que ensombrem a sua credibilidade e a sua correspondência com a verdade dos factos.
9. Pois, quer nas suas declarações prestadas junto da Polícia Judiciária em 04/05/2004, quer nas que prestou junto da Inspecção-Geral da Saúde em 16/03/2006, quer no seu interrogatório em sede de instrução, o arguido não mudou de versão
10. Razão pela qual não preencheu também o ora arguido algum crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo art. 360.° do Código Penal.
Sem prescindir,
11. Na eventualidade de ser dado como fortemente indiciado o cometimento objectivo do crime de denúncia caluniosa, o que não se admite, semelhante juízo não pode ser alargado ao tipo subjectivo.
12. Dos elementos juntos aos autos, não se pode, de todo, inferir que o arguido estivesse ciente da suposta contradição entre os factos narrados e os factos reais.
13. Tanto mais que as alegadas animosidades entre o arguido e um dos assistentes não constituem substrato que permita indiciar o preenchimento do tipo subjectivo.
14. Verificando-se, pelo contrário, que tais animosidades não existiram, pois sempre houve uma relação polida entre o arguido e os assistentes até à instauração do procedimento criminal contra estes.
15. Outrossim, nada permite estabelecer uma relação directa ou necessária entre a conduta do arguido, ao alertar seu superior hierárquico para a gravidade dos factos por si auscultados, e a denúncia que este último realizou à Polícia Judiciária contra os assistentes.
16. Pelo que, face ao supra referido, outra opção não restará senão a de dar como não indiciado o elemento volitivo que consta do tipo subjectivo do art. 365.° do Código Penal.
17. Os relatos e testemunhos ouvidos durante a fase de instrução nada trouxeram de substancialmente novo que contrarie a decisão de arquivamento dos autos.
18. Somos, pois, a concluir que não foram abalados os fundamentos que presidiram ao despacho de arquivamento revalidado pela douta decisão instrutória, por inexistirem motivos suficientes para antever forte probabilidade de condenação ulterior do arguido.
Nestes termos, e com o mais que doutamente será suprido por V.Ex.as, deverá negar-se provimento ao recurso e confirmar-se na integra a douta decisão recorrida de não pronúncia do arguido, como é de JUSTIÇA!

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, a Exmª Procuradora- Geral Adjunta emitiu parecer do seguinte teor:
No parecer que nos cumpre emitir, importa referir que sufragamos a posição do MP em 1ª Instância, expressa na resposta à motivação de recurso que dos autos consta a fls. 795/799, para a qual remetemos, atenta a pertinência e correcção jurídica da respectiva fundamentação, concluindo, como ali, no sentido de que a decisão impugnada não é merecedora de um juízo de censura nos termos propugnados.
Assim, em abono do que vem e bem sustentado, limitar-nos-emos a aditar os ensinamentos da mais recente jurisprudência deste Tribunal da Relação de Coimbra, colhidos no Acórdão n° 1801/06. 1 TAAVR. A-C1, de 18.05.2011, também mencionado pelo arguido, no sentido de que a falta de fundamentação do despacho de não pronúncia não constitui nulidade, mas apenas uma mera irregularidade a dever ser atempada mente suscitada perante o juiz de instrução, sob pena de se considerar sanada In www.dgsi.pt, relator Alice Santos, jurisprudência esta que não é isolada, como pode ver-se do extracto do mencionado acórdão, ao referir:
"O despacho de não pronúncia não está sujeito às exigências de fundamentação das sentenças, estabelecidas no art.º 374.°, n.º 2, mas apenas ao dever genérico previsto no art.º 97.º, n.º 4, consistindo a falta de fundamentação numa irregularidade, sujeita ao regime geral do art.º 123.°, devendo para o efeito ser atempadamente suscitada perante o juiz, sob pena de se considerar sanada [Acs. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de Janeiro de 2004, in CJ, Tomo I, pág. 125; de 14 de Outubro de 2004, in CJ, Tomo IV, pág. 145; do Tribunal desta Relação de Coimbra, de 14 de Junho de 2006, no recurso n.º 823/06; do Tribunal da Relação do Porto, de 1 de Setembro de 2007, in recurso n.º 5119/07-1]".
Ora, o recorrente a entender insuficiente a fundamentação do despacho posto devia ter feito uso desse mecanismo, em tempo oportuno, o que não fez.
Pelo que, não pode agora com tal fundamento, vir impugnar o despacho de não pronúncia.
Resta-nos a questão de saber se há indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos da prática, pelo arguido, dos indicados crimes de denúncia caluniosa, p. p. pelo artº 365°, nº 1 e falsas declarações, p. p. pelo artº 360°, todos do CP.
Também, nesta parte, estamos em sintonia com os argumentos esgrimidos nas respostas apresentadas, quer pela Magistrada do MP na 1ª Instância quer pelo Arguido, à motivação do recurso dos assistentes, que bem demonstram as razões que devem conduzir à manutenção do despacho de não pronúncia.
Efectivamente, na decisão instrutória de não pronúncia, o juiz decide que os autos não estão em condições de prosseguir para a fase de julgamento, por não se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança criminais.
Assim, e com relevância para a decisão a proferir, importa considerar, além dos meios de prova produzidos em sede de inquérito os da instrução (com relevância para a presente decisão)
Pelo que, aplicando o princípio e conceito enunciado no artº 308°, nº 1 do CPP, ao caso sub judice e, porque na nossa perspectiva, durante a instrução não vieram aos autos factos susceptíveis de alterar a fundamentação do despacho de arquivamento do inquérito, entendemos, que nos autos não existe prova indiciária suficiente, para a imputação dos aludidos crimes ao arguido e, bem assim, que algum dia, possa sofrer uma pena, pela sua comissão.
Donde, na nossa perspectiva, face à incensurável fundamentação do decidido, bem andou a MMa JIC ao proferir despacho de não pronúncia.
Pelo exposto, sem necessidade de mais considerandos, somos de parecer que o recurso dos assistentes deve ser declarado improcedente.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo sido exercido o direito de resposta.

Procedeu-se a exame preliminar e foram cumpridos os demais trâmites legais.
Colhidos os vistos legais e realizada conferência, cumpre apreciar e decidir.

***
II. Fundamentos da Decisão Recorrida
A Decisão Instrutória é do seguinte teor na parte relevante para apreciação do recurso interposto:
Pugnam os assistentes pela pronúncia do arguido por dois crimes de denúncia caluniosa, previstos e punidos pelo artigo 365º, nº 3, alínea a), com referência ao nº 1, em concurso aparente com dois crimes de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 360º, todos do Código Penal.

Nos termos do artigo 365º, nº 1 do Código Penal “quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita de um crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
“Se o meio utilizado pelo agente se traduzir em apresentar, alterar ou desvirtuar meio de prova, o agente é punido, no caso do n.º 1, com pena de prisão até 5 anos” – nº 3, alínea a) da mesma norma legal.
Para haver o crime em causa é indispensável que o facto constante da falsa denunciação seja imputado a pessoa determinada; que a imputação constitua típico ilícito penal; exige-se, ainda, a espontaneidade da imputação, isto é, esta deve ser da exclusiva iniciativa do denunciante, pelo que inexistirá o crime, por exemplo, quando a falsa acusação é feita por um réu, em sua defesa, no curso do interrogatório, ou por uma testemunha, ao depor nas polícias ou em juízo, e que a denunciação seja objectiva e subjectivamente falsa, isto é, deve estar em contradição com a verdade dos factos e o denunciante deve estar plenamente ciente de tal contradição - cfr. Sima Santos e Leal Henriques, Código Penal de 1982, vol. 4, págs. 514 e 515.
O dolo específico do crime de denúncia caluniosa pressupõe a intenção de fazer desencadear, com a denúncia, procedimento criminal contra o denunciado.
Com este tipo de crime pretende proteger-se, principalmente, o interesse que tem a administração da justiça em que o procedimento criminal contra determinada pessoa seja sinceramente requerido.

Quanto ao crime de falsidade de testemunho, dispõe o artigo 360º do C.P., nos seus nºs 1 e 3 que:
“1. Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.”
“3. Se o facto referido no n.º 1 for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, a pena é de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias.”.
O bem jurídico protegido por este crime é a realização ou administração da justiça como função do Estado.
Os processos judiciais visam uma decisão que assenta em provas. Exige-se que a prova produzida o seja de forma verdadeira para a obtenção de uma decisão justa e de um resultado que permita a correspondência entre a verdade judicial e a verdade dos factos (realidade).
E porque a função da realização ou administração da justiça tem um valor primordial num Estado de Direito Democrático, é penalmente tutelada.
O tipo objectivo de ilícito exige que o facto seja praticado por quem tenha uma particular função processual – no que ao caso releva, de testemunha.
A acção típica consiste na prestação de declaração falsa perante Tribunal.
A falsidade da declaração só é relevante penalmente quando o agente se encontre sujeito a um dever processual de verdade. As testemunhas, pelo relevante papel que desempenham na prova dos factos, factos que são a base da realização da justiça, têm um dever não só de colaborar com a justiça, como têm um dever de colaborar com a prestação das suas declarações de forma verdadeira (no que se refere ao Processo Penal, dispõe o artigo 132.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Penal, que à testemunha incumbe o dever de “Responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas.”).
A testemunha tem o dever de declarar os factos de que possua conhecimento directo e apenas esses.
A falsidade da declaração apura-se relativamente ao seu conteúdo. “Uma declaração é falsa quando aquilo que se declara (conteúdo da declaração) diverge daquilo sobre o qual se declara (objecto da declaração)” - A. Medina Seiça, in Comentário Conimbricense do Código Penal, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2001, Tomo III, pág. 474.
No que ao objecto da declaração diz respeito, debatem-se posições divergentes.
Para a teoria objectiva, a falsidade da declaração reside na contradição entre o declarado e a realidade.
Para a teoria subjectiva, a falsidade da declaração apura-se pela contradição entre a declaração e o conhecimento do declarante, ou seja, conhece a verdade dos factos mas declara-os falsamente.
Independentemente da posição tomada relativamente à falsidade, ela verificar-se-á sempre que ocorra uma contradição, contradição essa que o declarante conhece.
Relativamente ao disposto no n.º 3 do art. 360.º do Código Penal, a moldura penal é elevada para cinco anos de prisão ou 600 dias de multa, se o declarante houver prestado juramento e tiver sido advertido das consequências penais da falsidade da declaração.
O que se trata é de uma qualificativa que tem a sua razão de ser na violação mais intensa do dever de verdade porquanto, depois de prestar juramento e de ser advertido das consequências penais decorrentes da falsidade, o acto do agente implica um maior esforço para a prática do ilícito penal.
O tipo subjectivo de ilícito exige o dolo, em qualquer das suas modalidades, previstas no artigo 14º do Código Penal.
Para a verificação do tipo subjectivo o agente tem que ter consciência da falsidade da declaração e conhecer a competência do Tribunal para receber como meio de prova a sua declaração.

Cumpre agora apreciar os indícios recolhidos quer em sede de inquérito quer em sede de instrução:

Como resulta do auto de denúncia oral, de fls. 30 e seguintes, efectuada junto da PJ a 4 de Maio de 2004, … , médico e então Presidente do Conselho de Administração do W..., disse que a 19.4.2004 procedeu-se á abertura de propostas do concurso internacional para compra de 62 implantes, através de acto público, tendo concorrido as empresas … . Mais disse que então o concurso estava em fase de ser enviado para o Serviço de Aprovisionamento ao júri para elaboração de parecer de adjudicação. Após, seria remetido ao Conselho de Administração para adjudicação. Disse ainda que no dia 21 de Abril desse ano de 2004 foi informado pelo vogal do conselho de Administração do teor de uma conversa com o Dr. C… que lhe disse ter ouvido uma conversa entre o Dr. B... e o irmão, Dr. A…, na qual se referia que era preferível depositar o dinheiro numa conta na Suíça em vez de na Alemanha, que era preferível que o depósito fosse em numerário e não em cheque, que a quantia envolvida daria para comprar um BMW topo de gama e que só tinham de ter cuidado com o contabilista da … . Depois solicitou ao DR. C...que lhe explicasse o contexto e o conteúdo da conversa que ouvira e o Dr. C...confirmou que a conversa ocorrera e em que circunstâncias.
Posteriormente e ainda nesse dia, o ora arguido foi ouvido pela PJ na qualidade de testemunha. Disse que telefonou ao Dr. B... e a certa altura este deixou de lhe responder, dando a ideia de que tinha deixado de o ouvir. Todavia continuou a ouvir o Dr. B... a falar com o irmão, Dr. A…, sabendo que era este porque o Dr. B... tinha dito que o irmão ia a conduzir. Disse então o Dr. B... ao irmão que o dinheiro deveria ser depositado numa conta na Suíça e não na Alemanha, por questões de segurança e confidencialidade que a Suíça melhor garantia. Mais referiu que esse depósito não deveria ser feito em cheque mas em numerário e que aquele montante dava para adquirir um BMW topo de gama. Ouviu-o ainda a dizer que era preciso ter muito cuidado com o contabilista da .... Foi por isso e porque no meio da conversa o Dr. B... já mencionara a ... que relacionou esta conversa com o concurso em causa. Ficou consternado com esta conversa e comunicou-a de imediato ao Administrador, que por sua vez a comunicou ao Presidente do Conselho de Administração.
A fls. 15 e seguintes encontram-se as declarações do ora arguido, prestadas a 16.3.2006, no processo instaurado pela Inspecção-Geral de Saúde. Nessa ocasião disse que telefonou ao Dr. B... e, quando estava a falar com ele, o Dr. B... Rodrigues interrompeu-o, dizendo-lhe que tinha uma outra chamada importante para atender e que depois falavam. Então começou a ouvir na sua extensão a conversa do Dr. B… com o outro interlocutor. Era uma conversa em português e ouviu o Dr. B... dizer que esse dinheiro todo dá para comprar um BMW topo de gama e que era melhor o dinheiro não ser depositado na Alemanha, mas sim na Suíça, porque era mais seguro, contudo, era preciso ter cuidado com o contabilista da ....
A denúncia efectuada á PJ e supra referida deu origem ao processo crime nº 262/04.4JACBR. No âmbito deste processo foi proferida acusação por alguns factos e posteriormente despacho de pronúncia pelos mesmos factos da acusação.
No entanto, quanto á matéria denunciada não foram recolhidos indícios suficientes para ser proferida uma acusação e por isso determinou-se o arquivamento.
Pergunta-se então: o facto de não terem sido recolhidos indícios suficientes de tal matéria denunciada, acarreta para o denunciante, seja ele o arguido ou outrem, a prática de um crime de denúncia caluniosa. Entende-se que não.
Como se disse supra, para a verificação deste crime é necessário que alguém denuncie factos que saiba serem falsos, com intenção de fazer desencadear procedimento criminal contra o denunciado.
Ora, não se pode concluir pela falsidade dos factos relatados pelo ora arguido pelo simples facto de não se terem recolhido indícios dos mesmos. Não se pode esquecer que estava a decorrer um importante concurso internacional para a aquisição de um número considerável de implantes e que foram vertidos na acusação factos relativos ao mesmo e relacionados com a … . Como se pode ler na acusação do processo 262/04, no seu ponto 29, “após análise preliminar, o arguido B... constatou que a proposta da ... não cumpria cabalmente o requisito especial da alínea f) do ponto nº 2.1 do Caderno de Encargos do Concurso, por dela não constarem os preços unitários de todos os componentes do implante (…). No ponto 30. da acusação lê-se “decidiram então os três comunicar ao referido … a fim de que este providenciasse pela entrega dos elementos em falta”. Consta da mesma acusação que posteriormente o … dirigiu-se ao W... para entregar o documento em falta que foi integrado na proposta da ....
Isto para dizer que a investigação levada a cabo no processo nº 262/04 recolheu indícios de factos que depois foram vertidos na acusação proferida nesse processo, relativos aos ora assistentes e á .... Não se recolherem indícios de todos eles, mormente dos denunciados e supra referidos, não significa que o arguido tenha denunciado factos falsos com intenção de desencadear procedimento criminal contra os assistentes.
Nem mesmo um eventual relacionamento menos amistoso que pudesse existir entre o ora arguido e o Dr. B... pode, só por si, levar á conclusão de que o arguido sabia serem falsos os factos que levou ao conhecimento do Conselho de Administração.
Segundo o Ac. da RP de 10.9.2008, in CJ on line, “só há crime de denúncia caluniosa se o denunciado como autor de factos susceptíveis de integrarem determinado crime, comprovadamente, os não praticou; e se o autor da denúncia agiu com a consciência da falsidade da imputação e com a intenção de ver instaurado o correspondente procedimento criminal contra o denunciado”.
Por outro lado, não se vê que o arguido tenha mudado de versão quando relatou tais factos tanto na PJ, como no âmbito do processo instaurado pela Inspecção Geral de Saúde. Sempre disse que ouviu apenas o Dr. B... a falar, que este seguia num carro com o seu irmão e o teor da conversa sempre foi o mesmo. Aliás, o cerne da conversa é precisamente o que disse o Dr. B... e não a quem disse. E esse tem sido inalterável ao longo dos anos, mormente aquando do seu interrogatório em sede de instrução nos presentes autos.
E também pelo que acaba de ser dito, não se vê que o ora arguido tenha prestado falsas declarações. Não se vê nas suas declarações discrepâncias ou contradições tais que possam levar á subsunção em tal crime.
Segundo o Ac. da RL de 3.2.2000, in CJ on line “pratica o crime de falso testemunho, previsto e punido no art. 360º, do Código Penal, e não o de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo art. 365º do mesmo Diploma, o arguido que, como testemunha, tenha narrado uma versão dos factos que sabia não corresponder à verdade, com o propósito de incriminar o ofendido (…)”.
Ora, o que narrou o ora arguido sempre incriminava de igual modo o Dr. B... porque relatou sempre de igual forma as suas palavras e sempre o Dr. A... teria ouvido o que disse o B... porque estaria no carro. Quer este estivesse a falar com o irmão quer com terceira pessoa.
Entende-se, pois, que não existem indícios da prática pelo arguido quer dos crimes de denúncia caluniosa quer dos crimes de falsas declarações que lhe são imputados no RAI pelos assistentes.
Nem mesmo os factos relatados pelas testemunhas ouvidas em sede de instrução abalam ou alteram o que ficou dito supra. Nada do que foi dito pode levar á conclusão de que o arguido não ouviu a conversa que relatou e que está em causa nos autos.
Pelo que fica dito, reafirma-se que não existem indícios dos elementos típicos dos crimes imputados ao arguido. Por essa razão, bem andou o M.P. ao proferir despacho de arquivamento e deve ser proferido despacho de não pronúncia.
De facto, não existe uma probabilidade de futura condenação do arguido e caso ele fosse submetido a julgamento muito provavelmente seria absolvido.
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Nestes termos e sem necessidade de mais considerações, decide-se proferir despacho de não pronúncia do arguido C..., quanto á prática pelo mesmo dos dois crimes de denúncia caluniosa, previstos e punidos pelo artigo 365º, nº 3, alínea a), com referência ao nº 1, em concurso aparente com os dois crimes de falsas declarações, previstos e punidos pelo artigo 360º, todos do Código Penal, que lhe são imputados no RAI pelos assistentes.
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Condenam-se os assistentes em taxa de justiça, que se fixa em 2 UCs.
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III. Apreciação do Recurso
Como é sabido o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal). Vistas essas conclusões, são suscitadas as seguintes questões:
- se a decisão instrutória é nula;
- se os autos contém indícios da prática pelo arguido dos crimes de denúncia caluniosa que lhe são imputados, devendo ser pronunciado.

Em primeiro lugar alegam os recorrentes quer a decisão instrutória é nula por falta da necessária fundamentação porque não especifica os factos que considerou suficientemente indiciados e não discute questões jurídicas suscitadas pelos requerentes da instrução.
Na tese dos recorrentes seriam aplicáveis, por força do artigo 4º do Código de Processo Penal, os artigos 374º e 379º do mesmo diploma.
Trata-se, porém, de entendimento que não tem apoio legal e jurisprudencial.
É que o recurso ao disposto no artigo 4º do Código de Processo Penal supõe a existência de uma lacuna que no caso se não verifica.
Com efeito, o artigo 97º, nº 5 do Código de Processo Penal dispõe que "os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão".
O artigo 374º do Código de Processo Penal diz respeito exclusivamente aos requisitos da sentença, entre os quais a fundamentação, tratando-se de norma especial, em princípio aplicável apenas a tal acto decisório, cuja inobservância produz nulidade como se prevê no artigo 379º, nº 1, alínea a) do mesmo diploma.
O nº 1 do artigo 118º do Código de Processo Penal preceitua que "a violação ou inobservância das disposições das leis de processo penal determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei". E o nº 2 "nos caos em que a lei não cominar a nulidade o acto ilegal é irregular".
Ou seja, a falta de fundamentação de decisão instrutória, porque outra consequência não se encontra cominada, apenas constitui irregularidade que, no caso, sempre se encontraria sanada por não ter sido arguida em tempo de acordo com a previsão do artigo 123º, nº 1 do Código de Processo Penal ( a Exmª Procuradora-Geral Adjunta no seu douto parecer cita pertinente jurisprudência neste sentido).
Ainda assim, diga-se que não se vislumbra que pudesse ser assacada à decisão instrutória qualquer irregularidade por insuficiência da sua fundamentação de facto ou de direito, quer porque nela se mencionam os factos que o tribunal considerou ou não considerou indiciados como em função disso justificou a impossibilidade da imputar aos arguidos a prática dos crimes em causa.
A exigência de fundamentação não implica que o tribunal se deve pronunciar sob cada argumento esgrimido pelas partes, bastando apenas que a fundamentação utilizada conduza só por si à solução encontrada.
O STJ tem acentuado em diversos Acórdãos que a falta de apreciação de argumentos das partes não constitui omissão de pronúncia ou falta de fundamentação se não eram necessários à conclusão a que se chegou ou ficaram prejudicados por esta.

Pugnam os recorrentes no sentido de que os autos contêm indícios suficientes da prática pelo arguido dos crimes de denúncia caluniosa que lhe imputaram pretendendo, por isso, que sejam pronunciados por tal crime em concurso aparente com dois crimes de falsas declarações.
Se o concurso aparente é aquele que não existe (é meramente aparente) começa por não se entender a referência, até porque também não é possível num requerimento de instrução do assistente, como numa acusação do Ministério Público, efectuar incriminações alternativas.
Mas ultrapassando tal questão, apenas lateral no caso, entre o mais alegam os recorrentes resultar do processo que o arguido sabia da falsidade das imputações que efectuou "descrevendo em dois momentos distintos versões incompatíveis".
Segundo se consegue entender do alegado a falsidade do facto imputado derivaria de o procedimento criminal instaurado com base na denúncia não ter conduzido a acusação e de terem ocorrido contradições entre os depoimentos prestados em diversos momentos pelo ora arguido.
Pode ler-se no despacho recorrido sobre os factos:
Como resulta do auto de denúncia oral, de fls. 30 e seguintes, efectuada junto da PJ a 4 de Maio de 2004, … , médico e então Presidente do Conselho de Administração do W..., disse que a 19.4.2004 procedeu-se á abertura de propostas do concurso internacional para compra de 62 implantes, através de acto público, tendo concorrido as empresas … e a .... Mais disse que então o concurso estava em fase de ser enviado para o Serviço de Aprovisionamento ao júri para elaboração de parecer de adjudicação. Após, seria remetido ao Conselho de Administração para adjudicação. Disse ainda que no dia 21 de Abril desse ano de 2004 foi informado pelo vogal do conselho de Administração do teor de uma conversa com o Dr. C...que lhe disse ter ouvido uma conversa entre o Dr. B... e o irmão, Dr. A..., na qual se referia que era preferível depositar o dinheiro numa conta na Suíça em vez de na Alemanha, que era preferível que o depósito fosse em numerário e não em cheque, que a quantia envolvida daria para comprar um BMW topo de gama e que só tinham de ter cuidado com o contabilista da .... Depois solicitou ao DR. C...que lhe explicasse o contexto e o conteúdo da conversa que ouvira e o Dr. C...confirmou que a conversa ocorrera e em que circunstâncias.
Posteriormente e ainda nesse dia, o ora arguido foi ouvido pela PJ na qualidade de testemunha. Disse que telefonou ao Dr. B... e a certa altura este deixou de lhe responder, dando a ideia de que tinha deixado de o ouvir. Todavia continuou a ouvir o Dr. B... a falar com o irmão, Dr. A..., sabendo que era este porque o Dr. B... tinha dito que o irmão ia a conduzir. Disse então o Dr. B... ao irmão que o dinheiro deveria ser depositado numa conta na Suíça e não na Alemanha, por questões de segurança e confidencialidade que a Suíça melhor garantia. Mais referiu que esse depósito não deveria ser feito em cheque mas em numerário e que aquele montante dava para adquirir um BMW topo de gama. Ouviu-o ainda a dizer que era preciso ter muito cuidado com o contabilista da .... Foi por isso e porque no meio da conversa o Dr. B... já mencionara a ... que relacionou esta conversa com o concurso em causa. Ficou consternado com esta conversa e comunicou-a de imediato ao Administrador que por sua vez a comunicou ao Presidente do Conselho de Administração.
A fls. 15 e seguintes encontram-se as declarações do ora arguido, prestadas a 16.3.2006, no processo instaurado pela Inspecção-Geral de Saúde. Nessa ocasião disse que telefonou ao Dr. B... e, quando estava a falar com ele, o Dr. B... interrompeu-o, dizendo-lhe que tinha uma outra chamada importante para atender e que depois falavam. Então começou a ouvir na sua extensão a conversa do Dr. B… com o outro interlocutor. Era uma conversa em português e ouviu o Dr. B... dizer que esse dinheiro todo dá para comprar um BMW topo de gama e que era melhor o dinheiro não ser depositado na Alemanha, mas sim na Suíça, porque era mais seguro, contudo, era preciso ter cuidado com o contabilista da ....
A denúncia efectuada á PJ e supra referida deu origem ao processo crime nº 262/04.4JACBR. No âmbito deste processo foi proferida acusação por alguns factos e posteriormente despacho de pronúncia pelos mesmos factos da acusação.
No entanto, quanto á matéria denunciada não foram recolhidos indícios suficientes para ser proferida uma acusação e por isso determinou-se o arquivamento.
Pergunta-se na decisão instrutória se o facto de não terem sido recolhidos indícios suficientes da matéria denunciada, acarreta para o denunciante, seja ele o arguido ou outrem, a prática de um crime de denúncia caluniosa, entendendo-se que não.
E com efeito, indubitável é que para o preenchimento do crime de denúncia caluniosa é necessário que o agente denuncie factos que saiba serem falsos, com intenção de fazer desencadear procedimento, seja criminal, contra-ordenacional ou disciplinar contra o denunciado, o que pressupõe desde logo a falsidade objectiva do que foi denunciado.
Sendo certo que se verificam pequenas discrepâncias entre as várias declarações prestadas pelo arguido em momentos distintos, o núcleo essencial do que declarou ter ouvido sempre se manteve.
Por outro lado, nenhuma explicação plausível foi trazida aos autos no sentido de explicar que a imputação produzida pelo arguido seja efectivamente falsa e que o arguido tinha conhecimento de tal falsidade, ou seja que o arguido tenha inventado essa imputação com o desígnio de prejudicar os assistentes. Não existe, na verdade, nenhum elemento que posso explicar um tal desígnio., que o possa tornar plausível em face das regras da experiência.
Sendo certo que dificilmente se poderia produzir prova directa sobre o facto, ela poderia emergir por ilação de alguma circunstância do relacionamento entre o arguido e os assistentes que pudesse levar este a querer prejudicá-los e a fazer fosse o que fosse com essa intenção.
Não é contudo nesse sentido que a prova produzida indica, antes estando por explicar, para o caso de a imputação ser falsa, porque terá o arguido querido que contra os assistentes fosse instaurado procedimento, senão criminal, pelo menos disciplinar.
E as conclusões do despacho de pronúncia vão precisamente nesse sentido quando aí se afirma que:
"Ora, não se pode concluir pela falsidade dos factos relatados pelo ora arguido pelo simples facto de não se terem recolhido indícios dos mesmos. Não se pode esquecer que estava a decorrer um importante concurso internacional para a aquisição de um número considerável de implantes
Nem mesmo um eventual relacionamento menos amistoso que pudesse existir entre o ora arguido e o Dr. B... pode, só por si, levar á conclusão de que o arguido sabia serem falsos os factos que levou ao conhecimento do Conselho de Administração.
Citando-se o significativo Acórdão da RP de 10.9.2008, in CJ on line, “só há crime de denúncia caluniosa se o denunciado como autor de factos susceptíveis de integrarem determinado crime, comprovadamente, os não praticou; e se o autor da denúncia agiu com a consciência da falsidade da imputação e com a intenção de ver instaurado o correspondente procedimento criminal contra o denunciado”.
Entende-se, pois, em consonância, com a decisão recorrida, que não existem indícios suficientes da prática pelo arguido dos crimes de denúncia caluniosa imputados, como do mesmo modo dos crimes de falsas declarações que igualmente pressuporiam a mesma falsidade.
Não pode pois obter provimento o recurso interposto.
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pelos assistentes e, em consequência, manter o despacho recorrido.
Pelo seu decaimento em recurso condenam os recorrentes em custas, fixando a taxa de justiça individual em quatro UC.
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Maria Pilar Pereira de Oliveira (Relatora)
José Eduardo Fernandes Martins