O crime de falsificação de notação técnica tem em vista a protecção de um específico bem jurídico-criminal, qual seja a autenticidade do modo de produção automática da notação.
O objecto da acção típica no crime de falsificação de notação técnica é o objecto material que, total ou parcialmente, de forma automática, criou o registo técnico relevante.
No específico domínio da al. c), do n.º 1, do artigo 258º, do Código Penal, para a existência do crime é indispensável que se verifique, de forma automática, através de um aparelho técnico, o registo de um valor falso, de um peso falso, de uma medida falsa ou de um decurso falso de um acontecimento, devendo a notação técnica assim produzida ser adequada objectivamente para ter efeitos probatórios ou algum tipo de relevância jurídica.
No caso, provando-se que o arguido conduzia o veículo automóvel pesado de mercadorias, ostentando o tacógrafo um disco diagrama em nome de terceiro, tal factualidade não é constitutiva do crime de falsificação de notação técnica.
1.ª - Nos presentes autos foi proferida a sentença ora recorrida, da qual constam dados como provados os factos constantes da acusação pública, apenas com uma alteração, não substancial, no que diz respeito ao facto constante no ponto 6 da matéria dada como provada.
2.ª - Porém, a partir desta matéria de facto, entendeu-se que tal factualidade não integrava a prática do crime de falsificação de notação técnica porquanto, de acordo com o Meritíssimo Juiz a quo, não se verificou nenhuma interferência no processo de registo do tacógrafo do veículo conduzido pelo arguido pelo facto do arguido ter utilizado no tacógrafo um cartão de um terceiro condutor, nem ocorreu, consequentemente, através da manipulação desse aparelho, a produção de notação falsa das horas de condução.
3.ª - Esta é, em suma, a razão da nossa discórdia com a sentença recorrida, sendo que de seguida procuraremos demonstrar tais razões.
4.ª - Constitui falsificação de notação técnica a interferência em qualquer processo automático de notação que acabe por dar origem a um registo de notação falsa de um valor, de um peso, de uma medida, de um decurso de acontecimento e, por conseguinte, de uma notação técnica falsa. Aquela notação constituía a prova de um facto juridicamente relevante que devido à manipulação do processo automático está desvirtuada.
5.ª - Mas para que estejamos perante o crime de falsificação de notação técnica não poderemos estar perante uma notação qualquer, mas sim uma notação que constitua prova de um facto juridicamente relevante que devido à manipulação passe a estar desvirtuada.
6.ª - Por outro lado, para que haja uma falsificação da notação é necessário que se verifique uma perturbação no processo da notação.
7.ª - Se bem entendemos, a sentença segue a posição perfilhada no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6/4/2011 (disponível em www.dgsi.pt), sendo certo que a questão está longe de ser pacifica, porquanto por esta posição alinhou-se ainda no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/7/2008, relatado pelo Exmo. Desembargador Alberto Mira, processo n.º 88/05.STVIS.Cl, em sentido contrário, entendendo constituir a prática de um crime de falsificação de notação técnica vai o, também recente, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23/3/2011, relatado pelo Exmo. Desembargador Paulo Guerra (disponível em www.dgsi.pt), e indo mais longe, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7/4/2010, relatado pelo Exmo. Desembargador Esteves Marques, defende-se que tal tipo de factos se subsumem na prática, em concurso efectivo, de um crime de falsificação de notação técnica, previsto e punido pelo art. 258.º do Código Penal, e de um crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio, previsto e punido pelo art. 261.º do mesmo compêndio normativo.
8.ª - Salvo o muito respeito que temos por opinião contrária, afigura-se-nos que os factos em causa nos presentes autos configuram a prática de um crime de falsificação de notação técnica, previsto e punido pelo art. 258.º, n.º l, al. c), do Código Penal.
9.ª - Conforme o próprio legislador assume, o processo técnico de criação da notação técnica ainda que tenha de ser efectuado de forma automática, não tem de ser totalmente automática, mas apenas parcialmente automática.
10.ª - Assim, importa tentar compreender a realidade sobre a qual se recai nos presentes autos.
11.ª - Conforme resulta da al. a) do art. 2.º do Decreto-Lei n.º 169/2009, de 31 de Julho, constitui um aparelho de controlo o equipamento completo destinado a ser instalado a bordo dos veículos rodoviários para indicação, registo e memorização automática ou semi-automática de dados sobre a marcha desses veículos, assim como sobre tempos de condução e de repouso dos condutores, também designado por tacógrafo, o qual pose ser analógico ou digital.
12.ª - Por seu turno, na al. b) do mesmo preceito legal define-se cartão tacográfico o cartão com memória destinado à utilização com o aparelho de controlo e que permite determinar a identidade do titular, armazenar e transferir dados destinados, segundo o respectivo titular, ao condutor, à empresa detentora do veículo, ao centro de ensaio e às entidades de controlo.
13.ª - Resulta assim que no caso do registo operado por tacógrafo digital, este não é completamente automático pois depende da introdução de um cartão de condutor ou cartão tacográfico, sendo certo que não só a notação fica registada no aparelho, como ainda no cartão tacográfico de condutor.
14.ª - É que não se poderá deixar de ter presente a finalidade do registo que se pretende com tais aparelhos de controlo para a subsunção dos factos ao tipo de crime em causa nos autos. Ou seja, o registo em causa, que visa assegurar o cumprimento das disposições comunitárias no domínio dos transportes, não resulta apenas do aparelho de controlo - vulgo tacógrafo - mas do funcionamento conjugado de tal aparelho com o cartão tacográfico de condutor.
15.ª - É precisamente essa introdução de um cartão tacográfico de condutor diverso do que efectivamente se encontra no exercício da condução do veículo que constitui a interferência no processo de registo do tacógrafo.
16.ª - O registo juridicamente relevante, ou seja, o registo da velocidade, tempo de condução e de repouso de um determinado condutor, não é completamente automático pois necessita dessa introdução manual do cartão.
17.ª - Introduzindo-se um cartão de um terceiro interfere-se nesse registo passando este a não corresponder à verdade, pois se até se pode entender que o registo da velocidade do veículo corresponde à verdade, já o período de exercício da condução e do correspectivo descanso pelo condutor não são verdadeiros. O tacógrafo indica ou regista um decurso de acontecimento - o exercício da condução e de descanso - que efectivamente não se mostra conforme com a realidade.
18.ª - Daí que exista falsificação da notação técnica, pois um dos elementos dessa notação é a identificação do condutor e esse mostra-se alterado ou falso.
19.ª - Assim e tendo em conta a matéria dada como provada, mostram-se preenchidos os elementos, quer objectivos, quer subjectivos, do crime de falsificação de notação técnica, previsto e punido pelo art. 258.º, n.º l, al. c) do Código Penal, devendo o arguido ser condenado pela prática do mesmo.
20.ª - Tal condenação, atendendo, às necessidades de prevenção geral e ao dolo directo, por um lado, e à ausência de antecedentes criminais e da baixa necessidade de prevenção especial, por outro, aconselha a aplicação de uma pena de multa a rondar os 100 dias, com uma taxa diária um pouco acima do limite mínimo legal, ou seja, de € 6.
Termos em que deve a sentença ser alterada no sentido supra preconizado, condenando-se o arguido pela prática de um crime de falsificação de notação técnica, previsto e punido pelo art. 258.º, n.º l, al. c) do Código Penal.
V. Exas. farão, como sempre, a costumada justiça.
Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).
As conclusões da motivação do recurso interposto pelo Ministério Público demandam para conhecimento uma só questão, traduzida em saber se os factos provados na sentença recorrida integram o tipo objectivo e subjectivo do crime imputado ao arguido.
O Tribunal formou a sua convicção acerca da matéria de facto provada com base nas declarações do arguido, que no essencial os admitiu, quando relacionado com as regras da experiência e da normalidade do acontecer.
Não é credível que, tendo a referida B… ido ter com o arguido para trazer o camião de volta para que fosse usado o cartão tacográfico dela uma vez que o do arguido estava a esgotar as horas de circulação legalmente admissíveis para determinado período de tempo, e já não podia chegar à sede da empresa, tendo aquela adoecido subitamente, o arguido não se lembrasse que não era o seu cartão que estava introduzido no tacógrafo mas sim o da dita Sónia.
A preocupação que determinou a que a B...fosse ter com o arguido à zona de Almeida, também estava presente, de certo, no espírito do arguido quando voltou a arrancar com o camião, e isso de certo que o iria alertar para que não era o seu cartão que estava ser usado mas o da dita B… .
Já quanto à vantagem que o arguido pretendia obter com o uso do cartão de outrem, não pode ser o de poder fazer mais quilómetros e mais tempo de viagem do que o legalmente permitido. Pois que o arguido sabia logo á partida que, havendo uma fiscalização, estando introduzido no aparelho de tacógrafo um cartão tacográfico em nome de uma mulher, rapidamente a autoridade policial perceberia que o arguido estava a fazer uso de outro cartão que não o seu.
A vantagem do arguido é a de que, enquanto faz uso de um cartão de outrem que ali está introduzido, o seu cartão passa a não registar qualquer período de circulação e, por isso, estando a contar como descanso, mais cedo o arguido pode voltar à estrada sem perfazer o número de horas de descanso legalmente impostas.
Daí a matéria de facto consignada como não provada.
Tivemos em conta o CRC do arguido junto aos autos .
[1] Cfr. Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 671.
[2] Idem, pág. 702.
[3] Helena Moniz, ibidem, pág. 707.