RECUSA DE TESTE DE ÁLCOOL
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário

O artigo 152º, n.º 3, do C. da Estrada, não padece de inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 18º, n.º 2, 21º e 32º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, ao cominar o crime de desobediência para a conduta do condutor que recusa submeter-se à análise de sangue para a detecção do estado de influenciado pelo álcool.

Texto Integral

I. Relatório.
1. No Tribunal Judicial de Figueiró dos Vinhos, após julgamento, em processo abreviado, o arguido A..., residente em …, Pedrógão Grande, foi absolvido do crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 348.º, n.º 1, alínea a), e 69.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, com referência ao disposto no artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, que lhe estava imputado na acusação pública.
Os fundamentos da absolvição radicaram na declarada inconstitucionalidade orgânica dos artigos 152.º, n.º 3, 153.º, n.º 8 e 156.º, n.º 2, ambos do Código da Estrada.

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2. O Ministério Público, nos termos do disposto nos artigos 280.º, n.ºs 1, al. a) e 3, da Constituição da República Portuguesa, e 70.º, n.º 1, al. a), e 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional (aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15-11), interpôs recurso (obrigatório) da sentença para o Tribunal Constitucional.
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3. Este Tribunal, em decisão sumária de 19-11-2011, decidiu:
a) Não julgar organicamente inconstitucionais as normas constantes dos artigos 152.º, n.º 3 e 153.º, n.º 8, do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro;
b) Consequentemente, tendo concedido provimento ao recurso, determinou que a decisão recorrida fosse reformulada em conformidade com o expresso juízo de não inconstitucionalidade.
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4. Proferiu então o tribunal de 1.ª instância nova sentença, na qual condenou o arguido, pela prática, em autoria material e na forma consumada, do imputado crime de desobediência, na pena de 4 meses de prisão, substituída por 120 dias de multa, à razão diária de € 5,50, e na pena acessória de proibição de conduzir qualquer veículo motorizado pelo período de 8 meses.
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5. Inconformado, o arguido interpôs recurso da sentença (fls. 149/154), tendo rematado a respectiva motivação com as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª - A sentença recorrida sofre de nulidade.
2.ª- Conforme o n.º 2 do relatório da sentença submetida à sindicância de V. Exas., o arguido apresentou contestação escrita, circunscrita à matéria de direito, tendo ali sido alegado a inconstitucionalidade orgânica dos arts. 153.º, n.º 8 e 156.º, n.º 2, do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 03/02, e a inconstitucionalidade material do art. 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, por a criminalização ínsita a tal comando legal constituir uma ilegítima violação do direito à integridade física, direito fundamental protegido pelo apertado regime dos Direitos, Liberdades e Garantias.
3.ª - Num primeiro momento o tribunal a quo absolveu o arguido com base na inconstitucionalidade orgânica invocada e, num segundo momento, após a procedência do recurso interposto pelo Ministério Público, nos termos do disposto nos arts. 280.º, n.º 1, al. a) e 3, da C.R.P, e 70.º, n.º 1, al. a) e 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, reformulou, em conformidade, a decisão da qual se recorre.
4.ª - O tribunal recorrido se pronunciou, na sentença recorrida, sobre a inconstitucionalidade material do art. 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, alegada em sede de contestação.
5.ª - Entende o arguido que tal norma viola o princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, e ainda o artigo 32.º, n.º 8, também da C.R.P., pois a recolha de prova para procedimento contra-ordenacional ou criminal, mediante colheita de sangue, é ofensiva do direito à integridade física do condutor, na medida em que o mesmo não autorize essa colheita e vai, por isso, ser sancionado criminalmente.
6.ª - A inconstitucionalidade, alegada e invocada pelo arguido em sua defesa, através da competente contestação escrita, não foi apreciada e sobre a mesma o tribunal recorrido não teceu qualquer consideração.
7.ª - In suma, o tribunal recorrido, perante a questão de inconstitucionalidade material que lhe foi colocada - nos números 11.º a 15.º da contestação oferecida aos autos - não a apreciou nem sobre a mesma se debruçou, nos termos a que legalmente estava obrigado, nos termos da al. d) do n.º 1 do art. 374.º do C.P.P..
8.ª - Pelo que é a sentença recorrida nula nos termos da al. c) do n.º 1 do art. 379.º do C.P.P..
9.ª - Mas para além deste erro de direito, sofre a sentença recorrida de erro na determinação da medida concreta da sanção acessória aplicada ao arguido.
10.ª - Ao aplicar tão longo período de inibição de conduzir, não teve o tribunal a quo em consideração os critérios que devem presidir à determinação da medida da pena.
11.ª - Como refere o Prof. Figueiredo Dias, o pressuposto material de aplicação da pena acessória referida no artigo 69.º do C.P. prende-se com o exercício da condução quando se tenha revelado, no caso concreto, especialmente censurável, então essa circunstância vai elevar o limite da culpa do facto.
12.ª - Para a aplicação da pena acessória prevista na al. c) do n.º 1 do art. 69.º do CP, relevante em termos de culpa, segundo o tribunal a quo, foi a recusa do arguido em submeter-se ao exame de álcool; todavia, face aos factos provados, a recusa do arguido consistiu na recusa através de colheita sanguínea e não a sua recusa a ser submetido a exame por outro meio, tanto que a eles se submeteu.
13.ª - Não existem factos provados que permitam concluir que o arguido conduzia, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação, de forma censurável nem que o mesmo tenha boicotado o exame efectuado ou que a culpa do resultado “sopro insuficiente”, conforme o n.º 2 dos factos provados.
14.ª - Tal circunstância deveria ter pesado a favor do arguido nos termos do n.º 2 do art. 71.º do C. Penal.
15.ª - O Tribunal a quo, ao condenar o recorrente na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 8 meses, violou os art. 40.º, n.ºs 1 e 2, 71.º, n.ºs 1 e 2 e 47.º, n.ºs 1 e 2, todos do C. Penal, por excesso, desadequação e desproporcionalidade, pelo que, caso a sentença recorrida não sofra de nulidade, nos termos e para os efeitos do disposto na al. d) do n.º 1 do art. 374.º e al. c) do n.º 1 do art. 379.º do C.P.P., o que não se crê, deverá ser revista na parte em que condena o arguido naquela pena acessória e substituída por outra, que cumpra com os preceitos legais subjacentes à sua aplicação.
Termos em que, Venerandos Desembargadores, em conformidade com o exposto e requerido e pelo mais que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao recurso e a douta sentença recorrida ser declarada nula, ou, quando assim se não entenda, revogada e substituída por outra que decida em conformidade com as conclusões do recorrente como se mostra de, justiça!
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6. O Ministério Público respondeu ao recurso, conclusivamente como infra descrito:
1. Nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, a sentença recorrida padece do vício de nulidade, por omissão de pronúncia, uma vez que não se pronunciou acerca da inconstitucionalidade material invocada pelo arguido em sede de contestação.
2. A fixação da duração da pena acessória de proibição de condução de veículos com motor em oito meses, in casu não se mostra excessiva, desajustada ou desproporcional.
Deste modo, e em conformidade com o acima exposto, deve ser dado provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido recorrente, excepto se a nulidade invocada for entretanto suprida, caso em que deve ser o mesmo considerado improcedente, assim se fazendo justiça!
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7. Em seguida, a Mm.ª Juíza, recorrendo ao disposto no n.º 2 do artigo 379.º do CPP, reparou a nulidade, tendo conhecido da referida inconstitucionalidade material suscitada pelo arguido na contestação, nos termos constantes de fls. 162/163, que teve por não verificada, e, a final, determinou a notificação do recorrente para, querendo, em 10 dias, desistir, alargar ou restringir o âmbito do recurso, em conformidade com a alteração da decisão.
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8. No seguimento dessa notificação, o arguido veio ampliar o âmbito do recurso, como se vê das conclusões infra transcritas:
1.ª - O art. 1.º do Anexo à Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, consagrara como regra a detecção de álcool no sangue através de teste ao ar expirado, sendo excepcional a detecção por análise de sangue. Logo, é evidente a preferência por métodos não invasivos à integridade física e biológica do examinado, como é a colheita sanguínea, para exame de pesquisa e detecção de T.A.S..
2.ª - Cominando o n.º 3 do art. 152.º do C.E. a recusa do examinado às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool com o crime de desobediência, exige-se para preenchimento do tipo de ilícito, não só a recusa, mas também a prova da impossibilidade de detectar a presença de álcool no sangue (por operação qualitativa e/ou a sua quantificação em aparelho quantitativo), por teste no ar expirado, bem como que tal impossibilidade provenha de uma acção ou omissão do examinado.
3.ª - In casu, a conduta do recorrente consumou-se na recusa de detecção através de colheita de sangue e não na detecção por outro meio, tanto que a ele se submeteu, várias vezes.
4.ª - Não existem factos que permitam concluir que o recorrente, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação, tenha boicotado o exame efectuado ou que a consequência do resultado “sopro insuficiente” lhe seja imputável.
5.ª - São os factos (provados e não provados) omissos à impossibilidade de realização de pesquisa de álcool através do método de ar expirado, nada existe nos autos que permita asseverar e afirmar tal impossibilidade por teste no ar expirado, e se o examinado não conseguiu expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste, para justificar a opção de prosseguir com o exame para a detecção e quantificação por análise sanguínea, nos termos do art. 4.º do Anexo à Lei n.º 18/2007.
6.ª - Apenas se deu por provado o resultado de “sopro insuficiente”, desconhecendo-se a sua causa; se o alcoolímetro utilizado padecia, ou não, de qualquer deficiência ou anomalia no seu funcionamento; se ocorreram, ou não, irregularidades no seu manuseamento, tanto que nem dos factos provados consta que o mesmo estivesse aprovado para o efeito, nos termos do n.º 1 do art. 153.º do C.E..
7.ª - Devendo a autoridade fiscalizadora observar o estrito cumprimento dos procedimentos ínsitos ao Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, em obediência à hierarquia estabelecida no art. 1.º, não existe, à ordem emanada pelo Militar autuante, nos termos descritos nos n.ºs 3 e 4 dos factos provados, dever de obediência por parte do recorrente que não recusa submeter-se a exame por ar aspirado.
8.ª - Enferma assim a decisão recorrida de insuficiência para a decisão proferida da matéria de facto provada, nos termos da alínea a) do n.º 2 do art. 410.º do C.P.P., por referência aos elementos integradores dos preceitos legais de que o arguido vem acusado e ainda arts. 1.º, 2.º e 4.º do Anexo à Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio e art. 153.º, n.º 1, do C.E.. Devendo ser revogada, ou, caso os autos permitam, reformulada em conformidade.
9.ª - Caso assim se não entenda, sempre a sentença recorrida, salvo melhor entendimento, incorre em erro na aplicação do direito, por o tipo de ilícito ínsito ao n.º 3 do art. 152.º do Código da Estrada sofrer de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º, n.º 2; o direito de resistência a uma ordem ofensiva à sua integridade física e material biológico, constante no art. 21.º e artigo 32.º n.º 8, todos da Constituição da República Portuguesa.
10.ª - A recolha de prova para procedimento contra-ordenacional ou criminal, mediante colheita de sangue, é ofensiva do direito à integridade física do condutor, na medida em que o mesmo não autorize ou recuse tal colheita, pois que, in casu, tal colheita visou apenas a recolha e obtenção de uma prova, após exame qualitativo e alegada impossibilidade de exame quantitativo por ar expirado.
11.ª - Não existindo nos autos e na prova produzida factos que permitam concluir que o recorrente boicotasse o exame por pesquisa no ar expirado; nem que fora impossível obter ou proceder, por facto imputado ao recorrente/examinado, à realização de tal exame, a recusa ao exame por análise ao sangue, por ser acto que se consuma numa ofensa à integridade física do examinado, é ilegal.
12.ª - E o crime de desobediência, tipificado na al. a) do n.º 1 do art. 348.º do C.P., por referência ao n.º 3 do art. 152.º do Código da Estrada, materialmente inconstitucional, por não salvaguardar o direito do examinado à recusa de tal recolha, ou, salvaguardando-o, imputa-lhe de forma automática e imediata a cominação de desobediência.
13.ª - Se a impossibilidade de realização de pesquisa de álcool no ar expirado for alheia ao examinado - que culpa não tem no resultado obtido e a que é alheio, sem a prova de um único facto, mesmo assente nas regras comuns da experiência, de que o mesmo contribuiu para essa impossibilidade - atenta contra a sua liberdade e integridade física, qualquer ordem ou comando emitido, sob pena de desobediência, de submissão a análise sanguínea, só pelo simples facto de o resultado, naquele concreto alcoolímetro, acusar “sopro insuficiente”.
14.ª - Padece assim de inconstitucionalidade material o n.º 3 do art. 152.º do C.E, por violação dos arts. 18.º n.º 2; 21.º e 32.º, n.º 8, todos da Constituição da República Portuguesa; ao perfilhar entendimento contrário, viola a sentença recorrida tais artigos.
15.ª - Não obstante diferente entendimento e vendo improcedente as questões supra suscitadas, o Tribunal a quo incorre, também, em erro na escolha e medida concreta da pena, incluindo pena acessória, que pecam por excesso, estando mal doseadas, ultrapassando a culpa e as exigências de prevenção especial.
16.ª - O Tribunal a quo, na fundamentação da sua escolha, refere a existência de carência de socialização do recorrente assente no facto deste ter uma condenação por crime de idêntica natureza, em mais nenhum facto por referência aos provados e sem qualquer juízo de prognose, a opção pela pena privativa se encontra fundamentada e alicerçada para se impor.
17.ª - A existência de um antecedente criminal de igual natureza, não é, só por si, condição necessária e suficiente para dar por assente que a pena não privativa da liberdade não garante de forma adequada as necessidades de prevenção. É necessário que, no caso concreto, se fundamente e se explique qual o concreto juízo de (des)valor feito sobre o arguido, atentos os factos provados a sua conduta, gravidade, consequência, impõem a escolha de uma pena privativa em detrimento de uma não privativa, para que a decisão se possa impor como sentença.
18.ª - Os factos provados n.ºs 2, 6, 7 e 8, justificam a opção por pena não privativa da liberdade; ao decidir em sentido contrário violou o Tribunal a quo o critério norteador plasmado no art. 70.º do C.P..
19.ª - Já quanto à concreta medida da pena, de realçar que o arguido não recusou fazer exame qualitativo ou quantitativo, apenas recusou submeter-se a análise de sangue, devendo tal facto se valorado a seu favor, nos termos do n.º 2 do art. 70.º do C.P., ferindo a decisão recorrida, para além deste, o preceituado nos artigos 40.º e 71.º do mesmo Código, bem como o princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
20.ª - Do excesso, desadequação e desproporcionalidade, sofre a concreta pena acessória aplicada ao arguido por violação da al. c) do n.º 1 do art. 69.º; art. 40.º; art. 71.º e n.º 2 do art. 70.º, todos do C.P., deverá a mesma ser revogada e substituída por outra, que atento os princípios basilares àqueles normativos a fixem em conformidade.
Termos em que, Venerandos Desembargadores, em conformidade com o exposto e requerido e pelo mais que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao recurso e a douta sentença recorrida ser declarada revogada em conformidade, absolvendo o arguido, ou, quando assim se não entenda, revogada e substituída por outra que decida em conformidade com as conclusões do recorrente como se mostra de, justiça!
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9. O Magistrado do Ministério Público na 1.ª instância concluiu a resposta que apresentou ao recurso assim inovado:
1. Sem prejuízo dos vícios de conhecimento oficioso, o recurso reformulado pelo arguido e apresentado a fls. 165 a 181 apenas deverá ser admitido e apreciado na parte em que se pronuncia sobre a alegada inconstitucionalidade material do artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada.
2. O artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, não é inconstitucional.
Deste modo, e em conformidade com o acima exposto, bem como com a resposta já apresentada a fls. 156 a 161, sendo que esta última agora restringimos e mantemos apenas no que se refere à questão da medida concreta da pena acessória de proibição de conduzir quaisquer veículos com motor, deve a decisão recorrida ser mantida na íntegra e, consequentemente, deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido recorrente, assim se fazendo justiça!
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10. Posteriormente, foi proferido despacho que se passa a reproduzir:
«O arguido, não se conformando com a sentença proferida a fls. 129-139, interpôs o recurso de fls. 149-154, com base nos seguintes fundamentos:
- nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, por não ter apreciado a inconstitucionalidade material do artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, suscitada na contestação; e
- erro na determinação da medida da pena acessória aplicada.
Na sequência do recurso interposto pelo arguido, foi suprida a nulidade aí invocada e, em consequência, foi determinada, nos termos do disposto no artigo 670.º n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4.º, do Código de Processo Penal, a notificação do recorrente e, após, do recorrido para, querendo, desistirem, alargarem ou restringirem o âmbito do recurso e resposta em conformidade com a alteração da decisão.
Veio, então, o arguido, a fls. 177-181, juntar “recurso reformulado” invocando:
- a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
- o erro na aplicação do direito mercê da inconstitucionalidade material do artigo 152.º, n..º 3, do Código da Estrada, por violação do princípio da proporcionalidade e do direito à integridade física, consagrados nos artigos 18.º, n.º 2, 21.º e 32.º, n.º 8, da CRP; e
- o erro na escolha e fixação da medida concreta da pena principal e da pena acessória.
Conforme resulta do exposto supra, o arguido, indo para além da faculdade que lhe foi concedida na sequência do suprimento da nulidade que havia suscitado, aditou fundamentos ao recurso que extravasam claramente o âmbito da alteração operada, o que, a nosso ver, lhe estava vedado. Com efeito, no momento da apresentação do “recurso reformulado”, o arguido já havia tido oportunidade para se pronunciar sobre a parte não alterada da decisão recorrida, bem como havia já decorrido o prazo para o efeito, estando, portanto, precludida a possibilidade de se pronunciar sobre outras questões não relacionadas com a alegada inconstitucionalidade material.
Por tempestivo, ter sido apresentado por quem tem legitimidade e a decisão ser recorrível, admito o recurso da sentença proferida a fls. 129-139, interposto pelo arguido a fls. 149-154, com o complemento de fls. 177 e ss apenas na parte relativa ao “erro na aplicação do direito” [alínea b)], dado que, no mais, o mesmo é extemporâneo, para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo - artigos 399.º, 401.º, n.º 1, alínea b), 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 2, alínea a), 408.º, n.º 1, alínea a), 411.º, n.º 1, alínea b), e 414.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal.
Notifique».
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11. Notificado do despacho ora transcrito, o recorrente não tomou qualquer iniciativa processual e, deste modo, com o mesmo se conformou.
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12. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto elaborou, a fls. 198/201, douto parecer, deste teor:
«(…).
2. O recorrente apresenta dois recursos diferentes, um no prazo legal de recurso da douta sentença condenatória e outro, após ter sido suprida nulidade nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 414.º, n.º 4 ambos do CPP, de acordo com o despacho de fls. 161 e 162.
3. Antes de nos pronunciarmos sobre as questões suscitadas no recurso, dir-se-á que tal como defende o Ministério Público na sua resposta de fls. 184 a 188, o segundo dos recursos apresentado não pode alargar o âmbito do recurso que anteriormente fora instaurado, no prazo legal, como é óbvio.
Aliás, nesse sentido se decidiu e bem, a nosso ver, no despacho que recebe o recurso de fls. 189-199.
O ilustre patrono do arguido bem sabia qual era o seu limite não só porque tal resulta da lei, como também nesse sentido e de forma expressa havia sido notificado, conforme despacho de fls. 163, isto é, para desistir, alargar ou restringir o âmbito do recurso “em conformidade com a alteração da decisão” e tão só.
Nessa medida e porque tal nos parece óbvio apenas deverá ser tido em conta o primeiro recurso apresentado, com a alteração que se reporta exclusivamente à questão da eventual inconstitucionalidade material que foi objecto de despacho de suprimento da nulidade por omissão de pronúncia na sentença recorrida.
4. O recurso nos apontados termos foi interposto e motivado em tempo, assim como tempestiva foi também a resposta do Ministério Público, pugnando pela manutenção do decidido.
Nenhuma circunstância obstará, dentro da apontada limitação ao seu conhecimento, devendo manter-se o regime de subida e os efeitos fixados no despacho de fls. 189-190.
5. As questões suscitadas resumem-se à eventual inconstitucionalidade material do art. 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, que o arguido mantém como argumento a partir da sua contestação e apesar da fundamentação já exposta na douta sentença recorrida e ainda à medida da pena acessória fixada na sentença recorrida que considera desproporcional e excessiva.
6. Quanto ao objecto do recurso, nos termos supra delimitados, somos de parecer que não assiste qualquer razão ao recorrente, concordando com a bem elaborada resposta à motivação do recurso apresentada pela Exma. Procuradora-Adjunta junto da 1.ª instância, que aqui damos por inteiramente reproduzida.
Com efeito, a sentença apresenta no despacho de suprimento da nulidade por omissão de pronúncia de fls. 162-163, a pertinente fundamentação, aliás, baseada em acórdão do Tribunal Constitucional de 1995 que decidiu de forma clara e inequívoca sobre a questão, no sentido de que não se verifica qualquer inconstitucionalidade material da norma do art. 152.º, n.º 3 do Cód. da Estrada, tendo posteriormente este Tribunal da Relação já tido oportunidade de se pronunciar sobre a mesma questão, em douto acórdão de 19-1-2011, conforme referência feita na resposta do Ministério Público na 1.ª instância (a fls. 186).
6.1. Em relação à determinação da medida de inibição de conduzir, sendo que a douta sentença se mostra devidamente fundamentada, assentando no grau de ilicitude e da culpa, bem assim nas necessidades de prevenção geral e especial sentidas no caso concreto, não sendo o arguido delinquente primário por ter já cometido dois crimes anteriormente, um deles igual ao que cometeu nos presentes autos, não merece provimento a argumentação do recorrente nesta parte.
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Nestes termos, acompanhando, como se disse, o Ministério Público na 1.ª instância na sua douta resposta, sem necessidade de outros considerandos, somos de parecer que, por não merecer a mesma qualquer censura, deverá o recurso do arguido improceder, mantendo-se assim a sentença recorrida».
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12. Notificado, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 417.º do CPP, o recorrente não exerceu o seu direito de resposta.
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13. Efectuado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação.
1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).
No presente caso, considerado o circunstancialismo supra exposto, o recurso do arguido de fls. 150/154, complementado nos termos considerados no despacho acima reproduzido, convoca para apreciação as seguintes questões:
- Se o artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada padece de inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, 21.º e 32.º, n.º 8, todos da CRP;
- Quantitativo da pena acessória de proibição de condução de veículos com motor.
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2. Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1. No dia 16.07.2010, a hora não concretamente apurada, mas entre as 21h30m e as 21h46m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula … , na localidade de … Pedrógão, onde foi interceptado pelos militares da Guarda Nacional Republicana, que se encontravam devidamente identificados e aí procediam a uma operação de fiscalização do trânsito.
2. Solicitado ao arguido que efectuasse o exame de pesquisa de álcool no sangue, pelo método do ar expirado, no alcoolímetro n.º ARAA-0056, modelo Alcotest 7110MKIII P, o mesmo efectuou o sopro por três vezes, sendo sempre o resultado “sopro insuficiente”.
3. Em face de tal resultado, foi o arguido informado de que teria de lhe ser recolhida, numa unidade de saúde credenciada para o efeito, uma amostra de sangue para pesquisa de álcool no sangue, o que o mesmo recusou de imediato.
4. Nesta sequência, foi o arguido advertido de que era obrigado por lei a fazer tal exame e que, recusando-se, incorreria na prática de crime de desobediência, p. e. p. pelo artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada; não obstante manteve a postura de recusa a efectuar tal exame.
5. Ao recusar submeter-se ao exame que lhe foi ordenado e legalmente imposto, inclusive com a cominação de desobediência, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei penal.
6. O arguido é solteiro, tem o 4.º ano de escolaridade e vive em casa dos pais.
7. Está reformado por invalidez e recebe uma pensão de cerca de € 246,36 por mês.
8. O arguido, por sentença proferida em 08.06.2009, transitada em julgado em 08.07.2009, foi condenado pela prática, em 25.05.2009, de um crime de desobediência, na pena de 50 dias de multa, declarada extinta pelo cumprimento em 05.02.2010, e, por sentença proferida em 28.10.2010, transitada em julgado em 29.11.2010, foi condenado pela prática, em 28.03.2009, de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 200 dias de multa.
*
3. Não havendo factos não provados a considerar, relativamente à motivação da convicção ficou consignado:
A convicção probatória do tribunal fundou-se, além do mais, nas declarações do arguido, nos depoimentos das testemunhas e nos documentos juntos, como se passa a expor.
O arguido declarou que no dia da acusação fez o teste de pesquisa de álcool no ar expirado e que acompanhou a GNR ao Posto. Já não convenceu quando afirmou que nunca lhe foi solicitada a realização do exame através de colheita sanguínea, por estar em contradição com o depoimento, considerado credível, de B... e não ter sido corroborado por nenhum outro relato, como a seguir se verá.
A testemunha B..., militar da GNR, relatou que, no dia referido na acusação, ao escurecer, interceptou o veículo que o arguido conduzia e submeteu o arguido a teste de pesquisa de álcool no ar expirado. Disse que, uma vez que o resultado deu insuficiente, solicitou ao arguido que realizasse exame de recolha sanguínea, sob pena de cometer um crime de desobediência, ao que o arguido se recusou.
Confrontado com o auto de notícia de fls. 3-4, confirmou o seu teor e assinatura.
Foi um depoimento prestado de forma desinteressada, imparcial, séria e objectiva e coincidente com os documentos juntos aos autos, pelo que logrou convencer o tribunal.
A testemunha … esclareceu que o arguido, antes de ser interceptado, esteve a jantar no seu restaurante com … e que ambos beberam uma garrafa de vinho. Afiançou que o arguido não estava embriagado.
Por sua vez, … , vizinho do arguido, confirmou que jantou com este no dia em que o mesmo foi interceptado. Disse que cada um bebeu um copo de vinho e que saíram do restaurante cerca das 21h30m. Disse que o arguido sofreu um acidente de viação há vários anos, que o afectou de tal forma que o mesmo pode aparentar estar embriagado quando na realidade não o está. Este facto foi confirmado pela testemunha … , irmão do arguido.
Estes depoimentos, pese embora tenham sido prestados de forma natural e verdadeira, não foram suficientes para infirmar a veracidade do relato de B..., tanto mais que as testemunhas não revelaram possuir conhecimento directo dos factos descritos na acusação. Com efeito, o facto de o arguido normalmente aparentar estar embriagado mercê do acidente de viação de que foi vítima e a circunstância (mencionada pelo arguido e por outras testemunhas) de a estrada onde foi interceptado ser um local onde são realizadas com frequência acções de fiscalização não são susceptíveis de pôr em causa a credibilidade do depoimento de B... e de sustentar a versão dos acontecimentos apresentada pelo arguido.
Os factos vertidos em 5 resultam da conjugação da factualidade objectiva apurada com as regras de experiência comum.
No que respeita às condições pessoais e sócio-económicas do arguido, consideraram-se as declarações por este prestadas, que mereceram a credibilidade do tribunal.
Ajudaram ainda a formar a convicção do tribunal o auto de notícia de fls. 3-5 e o talão de fls. 13.
A existência de condenações anteriores resulta do certificado de registo criminal junto a fls. 91-94 dos autos.
***
4. Do mérito do recurso:
4.1. Da inconstitucionalidade do artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada:
Estatui o art. 152.º, n.º 1, al. a) do Código da Estrada (versão do DL n.º 44/2005, de 23-02):
«1 - Devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas:
a) Os condutores;
(...)
3 - As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por desobediência.
(...)».
Na regulamentação das matérias conexionadas com o regime jurídico da fiscalização da condução sob o efeito do álcool ou de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, dispõem, inter alia, os artigos 1., 2.º e 4.º do Regulamento de fiscalização da condução sob influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas, anexo à Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio (doravante apenas designado por Regulamento):
Art. 1.º:
«1 - A presença de álcool no sangue pode ser indiciada por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador qualitativo.
2 - A quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador quantitativo, ou por análise de sangue.
3 - A análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo».
Artigo 2.º:
«1 - Quanto o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo (...).
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, o agente de autoridade acompanha o examinando ao local em que o teste possa ser efectuado, assegurando o seu transporte, quando necessário.
(...)».
Artigo 4.º:
«1 - Quando, após três tentativas sucessivas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização de teste, é realizada análise de sangue.
(…)»..
A análise complexiva dos preceitos supra citados, por si e na sua interligação, desde logo permite ver o alcance e a teleologia que lhe estão subjacentes.
Esquematicamente, e na vertente correlacionada com o caso dos autos, a detecção qualitativa de álcool no sangue pode fazer-se com recurso ao teste de ar expirado, com utilização de aparelho aprovado para o efeito. Quanto qualitativamente indiciada a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, este destinado a determinar o valor daquela substância no sangue.
Efectuadas três tentativas sucessivas em analisador quantitativo sem que o examinando consiga expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste, é efectuada análise sanguínea.
Deste modo, uma observação atenta dos normativos que se citaram põe em evidência, sem grande esforço argumentativo, que a recusa, não justificada, ou seja, fora do contexto previsivo da lei, de submissão pelo examinando ao teste de sangue, é punida como desobediência, como estipula o n.º 3 do art. 158.º do Código de Estrada.
Neste contexto, a impossibilidade de realização da análise sanguínea nunca poderá decorrer de um “mero capricho do visado” - só compreensível como tentativa de iludir o sistema legal de punição de actos de condução sob o efeito de álcool -, mas antes terá de ter origem no impedimento que a própria lei objectivamente consagra (cfr. art. 7.º do Regulamento), justificativo do recurso a outro meio de recolha de prova (submissão a exame médico).
Revertendo ao caso dos autos, em consonância com o preceito acima citado (art. 4.º, n.º 1, do Regulamento), o arguido efectuou as três tentativas sucessivas de sopro legalmente previstas em analisador quantitativo e, não obstante, apesar de ter sido devidamente esclarecido de que a impossibilidade de realização do teste no ar expirado implicava a realização da análise ao sangue, após as três referidas tentativas, recusou-se à realização da dita análise, não obstante ter sido advertido de que a sua conduta o fazia incorrer no crime de desobediência.
Tal comportamento consubstancia um acto de desobediência a ordem legítima, que ao arguido foi regularmente comunicada, sendo a fonte do dever incumprido uma disposição legal que comina, no caso, a punição. Como se verifica também o preenchimento do tipo subjectivo do crime de desobediência do art. 348.º do Código Penal, traduzido no incumprimento, voluntário e consciente, pelo arguido, da predita ordem.
Em suma a conduta do arguido é tipificada como crime de desobediência, p. p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a), do CP, por referência ao art. 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, do Código da Estrada.
Feito este parêntesis, importa ver se esta norma é violadora dos normativos constitucionais plasmados no n.º 2 do artigo 18.º, no artigo 21.º e no artigo 32.º, n.º 8.
Dispõe a primeira norma:
«A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
E a segunda:
«Todos têm o direito de resistir a qualquer a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública».
E, por fim, a terceira:
«São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações».
Como é sabido, os direitos fundamentais, como sejam o direito à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação (artigo 26.º), à liberdade e à segurança (artigo 27.º), à integridade moral e física e outros previstos na Constituição constituem alicerces fundamentais das sociedades humanistas, democráticas e pluralistas.
Por isso, constitui hoje posição unânime da nossa jurisprudência e doutrina que não há direitos absolutos e ilimitados, não fugindo à regra o rosário de direitos indicados supra, aos quais, do mesmo modo, só devem ser impostas as restrições que sejam absolutamente imprescindíveis.
É dizer, não é admissível que os direitos e liberdades que estão constitucionalmente consagrados cerceiem outras liberdades ou direitos legítimos. Por isso, o primeiro que há a destacar é o facto de que nenhum direito tem uma formulação tão ampla como para impedir o direito de outros à sua própria efectividade. Não há liberdade alguma que seja ilimitada.
Um dos pressupostos materiais para a restrição legítima de “direitos, liberdades e garantidas” consiste em que ela só tem justificação para salvaguarda de um outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, ou seja, que tenha no texto constitucional suficiente e adequada expressão.
Acresce ainda que, a dita restrição legítima de “direitos, liberdades e garantias” consiste naquilo que genericamente se designa por princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso, que se desdobra em três subprincípios: (i) princípio da adequação, ou seja, as medidas restritivas constitucionalmente previstas devem constituir meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (ii) princípio da exigibilidade ou da necessidade, segundo o qual as referidas medidas restritivas têm de ser necessárias, porque os fins visados pela lei não poderiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos liberdade e garantias; (iii) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, a significar que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa “justa medida”, impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos Cfr. J J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, págs. 392 e 393. .
Posto isto, dada a sua clarividência, não resistimos a transcrever certa passagem do Ac. do TC n.º 319/95, de 20 de Junho, já referenciado na sentença sob recurso, qual seja:
«Ora, o exame para pesquisa de álcool, com o recorte que, nos seus traços essenciais, dele se deixou feito, destinando-se, não apenas a recolher uma prova perecível, como também a impedir que um condutor, que está sob a influência do álcool, conduza pondo em perigo, entre outros bens jurídicos, a vida e a integridade física próprias e dos outros, mostra-se necessário e adequado à salvaguarda destes bens jurídicos e ao fim da descoberta da verdade, visado pelo processo penal. Ao que acresce que o quadro legal que rege a matéria, na parte que permite que os agentes de autoridade policial submetam, por sua iniciativa, os condutores ao teste de detecção de álcool, é de molde a garantir que a actividade policial, essencialmente preventiva, se desenvolva “com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos” (artigo 272.º da Constituição).
No confronto de direitos, estes interesses prosseguidos com a análise de sangue têm relevo bastante para justificar, constitucionalmente, a contrição de um grau mínimo de ofensa corporal (é este o direito protegido que o recorrente acentua) em que se traduz essa mesma análise.
Na verdade, está em causa a recolha de um meio de prova perecível no âmbito da prevenção e punição de comportamentos que põem em perigo a segurança rodoviária e os valores pessoais e patrimoniais inerentes.
De outro modo, não ficaria satisfeita a eficácia preventiva das medidas de combate à condução sob o efeito do álcool (para além de ficarem também em causa os valores relativos ao dever de respeito pela autoridade). Os bens que se pretendem proteger com a previsão do n.º 3 do artigo 152.º do Código da Estrada assim como a perigosidade das condutas a prevenir justificam e legitimam sobejamente a medida normativa em questão.
*
No que concerne à invocada violação do artigo 21.º (“Direito de resistência”), importa deixar bem claro que as necessidades de prevenção subjacentes ao regime legal estabelecido para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool conferem ao cidadão, no que importa considerar, ao condutor, a total liberdade de não querer efectuar o respectivo exame, quer através do ar expirado, quer através de análise sanguínea.
Como está escrito no Ac. desta Relação de Coimbra de 14 de Julho de 2010 In Colectânea, Tomo III/2010, pág. 62., citando Figueiredo Dias, «ainda aqui a liberdade individual, “de ir livre e conscientemente para o inferno”».
Todavia, esse amplo campo de liberdade tem os seus custos. Precisamente a prática, como já ficou dito, de um crime de desobediência, em conformidade com o disposto no artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada.
«O direito de resistência é a última ratio do cidadão ofendido nos seus direitos, liberdade e garantias, por actos do poder público (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, p. 152), sendo-lhe apontada a nota inescapável da subsidiariedade, por referência às normas constitucionais - artigos 20.º, 202.º, n.º 2 e 268.º, n.ºs 4 e 5, da CRP - que fazem do acesso aos tribunais e à justiça admninistrativa, de uma forma particular, o meio de defesa por excelência (neste sentido, Jorge Miranda, O regime dos direitos, liberdades e garantias, Estudos sobre a Constituição, 3.º volume, Livraria Petrony, 1979, p. 87, Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 342 e 344 e ss., e Maria Margarida Mesquita, Direito de Resistência e ordem jurídica portuguesa, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (160), 1989, p. 32 e ss.). Como se trata de um meio não jurisdicional que só tem sentido em última ratio, Vieira de Andrade não deixa de concluir que o direito de resistência só justifica o comportamento de um particular que resista a “actos evidentemente inconstitucionais (nulos) das autoridades” (…)» Ac. do TC n.º 34/2012, de 24-01-2012..
Seguindo ainda a fundamentação do referido Acórdão do TC, em face do exposto, é manifestamente claro que a norma do artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, também nesta vertente, não viola o artigo 21.º, primeira parte, da CRP.
Efectivamente, situamo-nos perante ordem de agente de autoridade legalmente prevista nos artigos 152.º, n.º 1, alínea a), e 153.º, do Código da Estrada.
Por fim, no caso dos autos, não tem qualquer sentido a invocação do artigo 32.º, n.º 8, da CRP, uma vez que, não tendo sido efectuada análise sanguínea, está obviamente arredada a possibilidade de verificação de prova nula. Porém, recorda-se, existe conformidade constitucional da norma infra constitucional do referido artigo 152.º, n.º 3, do C.E..
Em síntese conclusiva: o artigo 152.º, n.º 3, do C.E. não padece de inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, 21.º e 32.º, n.º 8, da CRP, ao cominar o crime de desobediência para a conduta do condutor que recusa submeter-se à análise de sangue para a detecção do estado de influenciado pelo álcool.
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4.2. Da medida da pena acessória:
O arguido insurge-se contra o quantum da pena acessória.
Vejamos se lhe assiste razão.
A proibição de conduzir, como verdadeira pena que é, submete-se às regras gerais de determinação, constantes do art. 71.º do Código Penal, ressalvando-se a finalidade a atingir, que se revela mais restrita, porquanto a sanção em causa visa primordialmente prevenir a perigosidade do agente, ainda que se reconheçam também necessidades de prevenção geral positiva ou de integração, através da tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma in casu violada.
Culpa e prevenção geral são pois os dois binómios limitadores da determinação da pena acessória.
A medida de prevenção geral, que não pode em nenhuma circunstância ser ultrapassada, formata a moldura penal correspondente à pena acessória. Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o julgador, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, sem poder ultrapassar a medida da culpa, indispensável ao respeito mínimo pela dignidade de qualquer pessoa, pelo simples facto de o ser.
O princípio da culpa tem a consideração do pensamento rector da justiça penal: a pena criminal só pode basear-se na constatação de que cabe reprovar ao agente a formação de vontade conducente à decisão de facto e tão pouco pode superar a que o autor mereça segunda a sua culpabilidade.
O princípio da culpabilidade tem como pressuposto lógico a liberdade de decisão do homem, constituindo um marco decisivo no controlo da actividade punitiva do Estado.
A culpabilidade na individualização da pena surge referida não só ao facto, mas também à personalidade do delinquente.
A ilicitude e a culpabilidade são conceitos graduáveis se forem entendidos como elementos materiais do delito. Isto significa, entre outras coisas, que a magnitude do dano, ou do perigo, o modo de execução do facto e perturbação da paz jurídica contribuem para a configuração do grau de injusto, enquanto que a desconsideração, a reflexão, no fundo, os elementos próprios da atitude interna reflectidos no facto, a valorar em conformidade com as normas de ética social, devem ser tomados em conta para graduar a culpa.
A moldura penal abstracta da sanção acessória configurada no art. 69.º, n.º 1, al. a) do CP, tem como limite mínimo e máximo de proibição de condução de veículos com motor três meses e três anos, respectivamente.
No caso concreto, ponderando, por um lado:
- Que a violação jurídica cometida pelo arguido tem um grau de gravidade correspondente à normalidade das situações geralmente ocorridas;
- A premência cada vez maior das exigências de prevenção geral positiva ou de integração, num circunstancialismo temporal em que cada vez se registam mais comportamentos ligados, directamente ou indirectamente, ao consumo excessivo de álcool, quando conexionado com a condução de veículos motorizados;
- Que o arguido foi condenado, pela prática, em 25-05-2009, de um crime de desobediência.
E por outro, as suas condições pessoais, económicas e sociais (é solteiro, tem o 4.º ano de escolaridade, vive em casa de seus pais, está reformado por invalidez e aufere uma pensão no valor aproximado de € 246,36);
temos como justa e adequada a concreta pena acessória, de 8 meses de proibição de condução de qualquer veículo automóvel, fixada pelo tribunal a quo.
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III. Dispositivo:
Posto o que precede, acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, mantendo-se, na íntegra, a sentença recorrida.
Taxa de justiça a cargo do arguido, cujo quantitativo se fixa em 3 UC [artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1, ambos do CPP; artigo 8.º, n.º 5, e tabela anexa, do Regulamento das Custas Processuais (DL n.º 34/2008, de 26-02)].
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(Processado e integralmente revisto pelo relator, o primeiro signatário)
Coimbra, 24 de Abril de 2012

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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales)