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COMPRA E VENDA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
DISCREPÂNCIA DE QUILOMETRAGEM
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
Sumário
I - O vendedor de carros usados ou sabe os quilómetros que o carro (para venda) tem ou não sabe e é uma destas informações que pode assegurar ao comprador. II - Se o vendedor de um automóvel usado assegura ao comprador que o veículo tem 74.000 Km e, já após a compra, este veio a verificar que o veículo tinha, meses antes, 161.000 Km, existe venda de coisa defeituosa. III - Provando-se que o comprador se determinou a comprar o veículo pelo facto deste não ter mais de 74.000Km e que este tinha, pelo menos, 161.000 Km, ocorre erro sobre os motivos determinantes da vontade do comprador, referido a um elemento essencial do objecto vendido, o que torna o contrato anulável.
I- A Causa.
1. C....... intentou, em 25/6/2007[1], contra B......., Ldª., a presente acção declarativa, com processo ordinário.
Alegou, em síntese, que:
Em 30/9/2006, comprou à ré, a qual se dedica à compra e venda de automóveis, um veículo automóvel, marca Renault, com 74.000 Km, pelo preço de € 17.000,00 e em Fevereiro de 2007, veio a ser informado, por uma oficina da marca que o veículo, em Agosto de 2005, já tinha 161.000 Km.
Para pagamento parcial do veículo contraiu um empréstimo bancário.
A ré, após interpelada pelo autor para lhe devolver o dinheiro que havia pago pelo veículo e para suportar os encargos do mútuo bancário por este contraído, declarou ao autor a sua intenção de substituir o veículo por outro, de iguais características e com cerca de 74.000 quilómetros efectivos, o que não fez.
Conclui pedindo:
- anulação do contrato de compra e venda;
- a condenação da autora, a título de indemnização, no pagamento da quantia de €322,00 que este suportou pela abertura do contrato de mútuo que teve de contratar para a aquisição da viatura, bem como em todas as despesas inerentes à liquidação integral do contrato de mútuo em montante a determinar ulteriormente.
Contestou a ré excepcionando a caducidade do direito do autor (o contrato data de 30/9/2006 e a denuncia do alegado vício ocorreu em 13/4/2007, havendo decorrido entre uma e outra data mais de seis meses) e sustentando, por impugnação, que o autor experimentou o veículo, sabia o que estava a comprar, teve permissão para o inspeccionar mais detalhadamente, como inspeccionou, mediante exame em oficina da marca e que o preço foi ajustado em função das condições de manutenção em que o mesmo se encontrava e não em função da sua quilometragem; vendeu o veículo no estado em que o adquiriu sem efectuar neste qualquer alteração.
Conclui pela improcedência da acção e provocou a intervenção nesta de D......., por haver sido a esta que adquiriu o veículo.
O autor respondeu à matéria da excepção concluindo pela improcedência desta uma vez que deu conhecimento à ré dos factos que fundamentam o pedido antes de 13/4/2006 e, ainda que assim não fosse, o prazo de caducidade aplicável é, no mínimo, de um ano e não de seis meses, pelo que está em tempo de exercer o direito.
Admitida a intervenção de D......., apresentou esta contestação excepcionando a caducidade do direito do autor (com fundamentos idênticos aos oferecidos pela ré), impugnando os factos por este alegados (por não os conhecer, nem a tal se encontrar obrigada), concluindo pela sua absolvição do pedido e provocando a intervenção de E......., Ldª, a quem havia comprado o veículo porque também ela, alega, vendeu o veículo como o comprou e sem lhe alterar o registo dos quilómetros.
Admitida a intervenção desta sociedade, como parte associada de D......., excepcionou a caducidade do direito do autor, impugnou os factos por este alegados, concluiu pela sua absolvição da instância (em termos coincidentes com a antes chamada) e provocou a intervenção de F....... a quem, alega, havia comprado o veículo que vendeu sem alteração do registo dos quilómetros.
Admitida esta intervenção e tornando-se inviável a citação pessoal do interveniente, o incidente foi dado por findo.
2. Foi proferido despacho saneador, relegado para a decisão final o conhecimento da excepção da caducidade e seleccionados os factos relevantes para a decisão da causa, com factos provados e base instrutória.
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, sem reclamações foi proferido despacho que respondeu à matéria de facto incluída na base instrutória e depois proferida sentença em cujo dispositivo se exarou: “ (…), julgo a acção parcialmente provada e procedente e, por conseguinte, anulo o contrato de compra e venda do veículo Renault Mégane com a matrícula ..-..-UP celebrado entre o autor e o réu, com a consequência de cada uma das partes dever restituir à outra a prestação recebida ao abrigo desse contrato (no caso do autor o veículo, no caso da ré o preço acordado). No mais absolvo a ré do pedido”.
II – O recurso.
1. Argumentos das partes.
É desta sentença que a ré recorre, formulando as seguintes conclusões que se transcrevem:
“1. A ora Recorrente e o Recorrido celebraram um contrato de compra e venda referente a um veículo automóvel usado, relativamente ao qual se veio a apurar que possuía mais quilometragem do que a apresentada no momento da compra, sendo certo que, tal facto era desconhecido do próprio vendedor.
2. Com efeito, provado está que a Recorrida/vendedora desconhecia a existência dessa diferença de quilómetros e que vendeu a viatura tal qual a mesma se encontrava (veja-se fundamentação da decisão – fls. 11, parágrafo 4 e 5).
3. Entendeu, todavia, o Meritíssimo Juiz a quo que o Autor não podia desconhecer, sem culpa, a aludida alteração de quilómetros, fundamento base para a condenação.
4. De facto, segundo o entendimento do Tribunal a quo, caberia ao Réu diligenciar no sentido de obter a confirmação dos quilómetros do veículo.
5. Ora, com este argumento não coincide o Recorrente. Na verdade, é nosso entendimento, que tal linha de pensamento serve igualmente para o comprador.
6. A Ré não foi menos diligente do que o Autor. Este, só por acaso, é que conseguiu a informação acerca da quilometragem real do veículo (V.d itens n.º 3 e n.º 4 dos factos provados da sentença). Não fosse esse acaso e a presente acção nunca tinha existido.
7. É caso para dizer «um peso, duas medidas».
8. Na verdade, nenhum pormenor relativo ao estado e manutenção do veículo fazia indiciar que o mesmo tivesse um maior número de quilómetros.
9. Aliás, o Autor teve a oportunidade de fiscalizar o veículo antes da compra e revelou-se satisfeito com o estado em que o mesmo se encontrava. Nunca existiu da parte deste, antes ou depois, da compra e mesmo após ter descoberto a real quilometragem da viatura, qualquer queixa relativamente ao estado de manutenção da mesma.
10. Não existe um único facto alegado pelo Autor que comprometa o veículo em termos do seu fim ou do uso normal a que é destinado.
11. Aliás, as testemunhas do próprio Autor esclareceram, em sede de audiência e julgamento, que o veículo estava em bom estado e que até nunca tinha avariado.
12. Ora, a jurisprudência tem vindo a entender que «a existência de vício da coisa, nos termos e para os efeitos do art. 913º do CC, assenta na função normal das coisas da mesma categoria e na qualidade normal das coisas da mesma natureza, que respeita à maior ou menor aptidão para realizar a sua função.
Sendo a coisa vendida usada, o acordo incide sobre o objecto com qualidade inferior e idêntico a um bem novo, razão pela qual o regime do cumprimento defeituoso só encontra aplicação na medida em que essa falta de qualidade exceder o desgaste normal.» - Ac. STJ de 27.04.2006.
13. In casu, embora o Autor tenha vindo apurar que a viatura tinha mais quilómetros, nada alegou ou provou quanto ao prejuízo concreto desse facto no que concerne ao desgaste normal do veículo.
14. Na verdade, o que resultou da audiência de discussão e julgamento foi até que, não obstante o número de quilómetros ser maior do que o apresentado no momento da compra, a viatura encontrava-se em bom estado e não apresentava avarias ou outros problemas.
15. Acresce que, ao contrário do que entendeu o Meritíssimo Juiz, não cabia à Ré provar que desconhecia, sem culpa, o aludido vício, mas antes ao Autor provar que aquela conhecia ou desconhecia com culpa o alegado defeito.
16. Com efeito, o artigo 915º do C.C estabelece que o comprador só tem direito à indemnização prevista no art. 909º se o vendedor conhecia ou não podia desconhecer o vício da coisa.
17. A recorrente entende que, face á letra e espírito da lei, tal facto é elemento constitutivo do direito á indemnização de que o Autor se arroga.
18. Como tal, ao contrário do que entendeu o Meritíssimo Juiz a quo, caberia ao Autor provar que a Ré conhecia o vício da viatura ou não o poderia ignorar, sem culpa, facto este que aquele nem sequer alegou.
Quanto á anulabiliadde do negócio por erro, sempre se dirá que,
9. Nos termos do disposto no artigo 251º do CC, «o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247º».
20. Ora, estabelece o art. 247º que a declaração negocial só é anulável quando o declaratário conheça ou não deva ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.
21. O Tribunal a quo fundamentou a anulação do negócio na cognoscibilidade da essencialidade do erro, sem que tal elemento tivesse sido sequer alegado pelo Autor.
22. Encontra-se, de facto, provado que o Autor nunca teria adquirido o automóvel se soubesse que a sua quilometragem era superior à que o conta quilómetros indicava. Todavia, tal não basta.
23. Era preciso que estivesse provado que, no momento da compra, a Ré tinha conhecimento de que o Autor não celebraria o negócio caso a viatura apresentasse os quilómetros que mais tarde se veio a apurar realmente ter.
24. Embora tal facto não conste da fundamentação de facto da douta sentença recorrida, o Meritíssimo Juiz a quo presumiu tal elemento só pelo facto de a Ré ter garantido ao Autor que a quilometragem apresentada no momento da venda era real.
25. Sucede que, a Ré ao fazer o negócio garantiu a viatura no estado em que a mesma se encontrava. Tal facto faz parte da sua boa-fé contratual; não, significa, contudo, que a Ré tivesse conhecimento da essencialidade de certos elementos em concreto no que concerne á realização ou não do negócio por parte do Autor.
26. Aliás, o Autor teve a oportunidade de, previamente, fiscalizar o veículo e revelou-se satisfeito com o estado em que o mesmo se encontrava.
27. Face a tal postura e comportamento do Autor era legitimo que a Ré não se apercebesse da essencialidade do elemento referente ao número de quilómetros na concretização do negócio.
28. Ademais, não se logrou demonstrar que a diferença de quilómetros se tenha manifestado num qualquer prejuízo para o comprador ou que tenha sequer afectado o estado de manutenção da viatura.
29. Isto é, nunca em momento algum, o Autor justificou em que medida a diferença de quilometragem detectada afectou o estado, o uso, ou a manutenção do veículo que comprou.
30. Não se verificam, pois, in casu, os pressupostos da anulabilidade do negócio por erro sobre o objecto do negócio.
31. Salvo sempre melhor opinião, é nosso entendimento que a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 247º, 251º, 909º, 913º e 915º do C.C.
O RECURSO MERECE PROVIMENTO, O QUE, DATA VENIA, SE REQUER.”[2]
O autor não respondeu.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
2. Objecto do recurso.
Considerando o exposto, as conclusões do recurso e o disposto nos artºs. 684º, nº3 e 690º, nº1, ambos do Código de Processo Civil, a questão essencial que importa decidir consiste em determinar se é anulável a compra e venda de um veículo automóvel cuja quilometragem real se veio a verificar ser superior à garantida pelo vendedor aquando da compra.
3. Fundamentação.
3.1. Os factos.
Sem impugnação, vêm provados os seguintes factos:
a) A ré é uma sociedade comercial que se dedica à compra e venda de automóveis, com intuito lucrativo.
b) Em 30 de Setembro de 2006, a ré vendeu ao autor, pelo preço de 17.000,00€, o veículo automóvel de marca Renault, modelo Mégane, com a matrícula ..-..-UP.
c) O veículo automóvel em causa estava exposto nas instalações da ré.
d) Dão-se como integralmente reproduzidas as cartas que o autor dirigiu à ré com data de 13 de Abril de 2007 e que a ré em resposta dirigiu ao autor com data de 26 de Abril de 2007, juntas a folhas 19 a 24 dos autos.
e) Quando o autor se dirigiu às instalações da ré para visualizar o veículo este foi-lhe apresentado como tendo cerca de 74.000 km. percorridos.
f) Na altura a ré garantiu ao autor que essa quilometragem que o conta-quilómetros indicava era a quilometragem real do veículo.
g) O Autor nunca teria adquirido aquele veículo se soubesse que a sua quilometragem era superior à que o conta-quilómetros indicava.
h) Em Fevereiro de 2007, porque o veículo tinha de ser sujeito à inspecção automóvel obrigatória, o autor deslocou-se a uma oficina autorizada da Renault para verificar se o veículo tinha algum problema que pudesse impedir a aprovação na inspecção.
i) E foi então informado que em Agosto de 2005 aquele veículo automóvel já apresentava a quilometragem de cerca de 161.000 km.
j) Ainda antes de realizar a inspecção automóvel obrigatória, em 19 de Fevereiro de 2007, o autor deslocou-se às instalações da ré onde comunicou ao gerente da ré o que lhe haviam afirmado quanto à quilometragem do veículo.
l) Na sequência disso, o gerente da ré fez algumas diligências e admitiu perante o autor que a quilometragem do veículo havia sido alterada.
m) Para pagar o preço deste veículo, o Autor entregou ao Réu outro veículo que já possuía e que para o efeito ambos avaliaram em €7.000 e teve de recorrer a um financiamento bancário, pelo que com esta aquisição despendeu, a final, o montante global de €19.051,05.
n) E suportou despesas no montante de €322,00 com a contratação desse crédito.
3.2. Os factos e o direito na perspectiva do recurso.
O contrato de compra e venda em litígio nos autos incide sobre um veículo automóvel usado que a ré, em 30 de Setembro de 2006, garantiu ao autor haver percorrido 74.000 km (quilometragem indicada pelo conta-quilómetros) e que o autor, meses mais tarde, veio a saber que em Agosto de 2005 já apresentava uma quilometragem de cerca de 161.000 km.
A sentença recorrida, necessariamente circunscrita pelo pedido do autor, decidiu pela anulação do contrato, com a consequente restituição do veículo à ré e do preço ao autor, na consideração que o veículo não tinha as qualidades asseguradas pelo ré/vendedora e que tais qualidades incidiram “sobre um aspecto de tal maneira relevante que não pode deixar de ser tido normativamente como essencial e, outrossim, um aspecto com cuja essencialidade para o negócio e para o comprador, o vendedor não podia normativamente deixar de contar”.
A ré não concorda com a decisão, em síntese, por três razões:
- não se logrou demonstrar que a diferença de quilómetros se tenha manifestado num qualquer prejuízo para o comprador ou sequer tenha afectado o estado de manutenção da viatura;
- a decisão recorrida fundamentou a anulação do negócio na cognoscibilidade da essencialidade do erro, sem que tal elemento tivesse sido alegado pelo autor;
- era ao autor a quem incumbia provar que a ré conhecia o erro e não à ré que desconhecia o erro sem culpa.
3.2.1. A falta de qualidades da coisa vendida asseguradas pelo vendedor.
É da natureza do contrato de compra e venda a transmissão da propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço (artº 874º, do Código Civil, como o serão os demais artigos mencionados sem outra indicação); por efeito do contrato o vendedor entrega a coisa e o comprador paga o preço (artº 879º).
A coisa entregue pelo vendedor pode estar afectada de vícios jurídicos ou vícios materiais. Interessam-nos estes últimos e sobre eles diz o artº 913º: “1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes. 2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria ”.
Embora sujeitas a um mesmo regime, o defeito da coisa juridicamente relevante comporta diversas situações que a lei distingue e, como tal, o intérprete não pode olvidar: - vícios que desvalorizem a coisa; - vícios que impeçam a realização do fim a que a coisa é destinada; - falta de qualidades asseguradas pelo vendedor; - falta de qualidades necessárias à realização do fim a que a coisa é destinada.
A coisa vendida em que se verifique uma, ou mais, destas ocorrências traduz uma venda de coisa defeituosa. A propósito, escreve Menezes Leitão:
“A aplicação do regime da venda de coisa defeituosas assenta em dois pressupostos de natureza diferente, sendo o primeiro a ocorrência de um defeito e o segundo a existência de determinadas repercussões desse defeito no âmbito do programa contratual. Quanto ao primeiro pressuposto, a lei faz incluir assim no âmbito de coisas defeituosas, quer os vícios da coisa, quer a falta de qualidades asseguradas pelo vendedor (…) Em relação ao segundo pressuposto, para que os defeitos da coisa possam desencadear a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas torna-se necessário que eles se repercutam no programa contratual, originando uma de três situações: a desvalorização da coisa; a não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor e a sua inaptidão para o fim a que é destinada. A primeira refere-se aos vícios da coisa e a segunda à falta de qualidades, enquanto a terceira abrange estas duas situações”[3].
O defeito da coisa com relevância para a dinâmica contratual não se circunscreve apenas ao vício que desvalorizea coisa ou que impeça a realização do fim a que se destina ou à falta de qualidades necessárias à realização do fim a que a coisa é destinada, como supõe a tese da ré (nunca em momento algum, se justificou em que medida tal diferença de quilometragem afectou o estado, o uso, ou a manutenção do veículo, argumentou) podendo resultar autonomamente da falta de qualidades asseguradas pelo vendedor; se a coisa se mostra desconforme com as especificações e características supostas pelo contrato, a lei considera-a coisa defeituosa independentemente de afectada por vício material que a desvalorize ou que impeça a realização, total ou parcial, do fim a que é destinada. É o que também ensina Calvão da Silva, “(…) Esta concepção subjectiva do defeito supõe que as partes tenham determinado no contrato (…) as características fundamentais da coisa e o fim a que se destina. Pelo que o vício da coisa recebida apreciar-se-á em concreto, por comparação com as precisões ou especificações do contrato, devidamente contextualizado na fase negociatória, traduzindo-se numa desconformidade com estas.”[4]
É esta, estamos em crer, a situação posta nos autos.
Em 30 de Setembro de 2006, data do contrato, a ré garantiu ao autor que o veículo automóvel, objecto do contrato, tinha 74.000 quilómetros e este, em Agosto de 2005, já apresentava cerca de 161.000 km [als. b), e), f) h) e i) dos factos provados], ou seja, o veículo não possuía asqualidades asseguradas pela ré.
A fiabilidade de um determinado veículo usado está indissociavelmente ligada aos quilómetros percorridos, sendo a partir deles que o comprador determina o risco do seu investimento numa prognose de durabilidade, assistência e manutenção futuras; como se acentuou na decisão recorrida, os quilómetros percorridos pelo veículo traduzem “(…) um elemento relevante para a fixação do preço do veículo e, como tal, um argumento comercial para quem vende e de um factor de decisão para quem compra” (não será por acaso que o veículo indica menos quilómetros do que os realmente percorridos) e daqui a subsunção do caso concreto ao regime da venda de coisas defeituosas; ao dizer isto, que temos por certo, porém, estamos a valorar a falta das qualidades asseguradas à coisa pelo vendedor e a apreciar a relevância desta para a economia do contrato, mais apropriadamente para a decisão de contratar o que, em bom rigor, nem é necessário. A falta de qualidades asseguradaspelo vendedor integra, por si só, ou seja, independentemente de considerações sobre a maior ou menor perturbação causada na economia do contrato, uma venda de coisa defeituosa, a falta decorre objectivamente da desconformidade entre as qualidades asseguradas pelo vendedor e as qualidades concretas da coisa, independentemente da relevância destas para a realização do fim a que se destina; pode a coisa ter as qualidades asseguradas pelo vendedor e revelar-se inapta para o fim a que é destinada, como pode ter as qualidades necessárias ao fim a que é destinada e não ter as qualidades asseguradas pelo vendedor, ambos os casos traduzem uma venda de coisa defeituosa.
E daqui a irrelevância, neste ponto, da argumentação da ré. Demonstrando o autor, como demonstrou, que o veículo não tinha as qualidades asseguradas por aquela, tanto basta para concluir pela venda de coisa defeituosa, independentemente da sua aptidão para o fim ou uso a que o autor o destinou, que constitui a essência do argumento da ré. Neste particular não se reconhece razão à ré.
3.2.2. – A cognoscibilidade da essencialidade do erro.
Por força da remissão do artº 913º, aplica-se à venda de coisa defeituosas, ou mais concretamente, à venda específica de coisas defeituosas[5], o artº 905º que dispõe:
“Se o direito transmitido estiver sujeito a alguns ónus ou limitações que excedam os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, o contrato é anulável por erro ou dolo, desde que no caso se verifiquem os requisitos legais da anulabilidade”.
Incidindo a venda sobre coisa defeituosa, o comprador pode requerer a anulação do contrato, por erro ou dolo, desde que se verifiquem no caso concreto os requisitos legais da anulabilidade. Para o caso, apenas interessa o erro por constituir este o fundamento da peticionada e deferida anulabilidade do contrato.
E, quanto a este, exige a lei, é certo, a sua essencialidade para o declarante e o conhecimento dessa essencialidade pelo declaratário, como seguramente resulta do disposto nos artºs 247º e 251º, onde respectivamente se lê: “Quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”. “O erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira …ao objecto do negócio, torna este anulável nos termos do artº 247º”.
A situação dos autos convoca o erro na formação da vontade, o chamado erro-vício ou simplesmente erro da vontade, no caso, reportado ao objecto do negócio – o veículo vendido pela ré - o qual abrange, além da própria identidade existencial do objecto (uma pessoa que compra um cavalo que tem diante dos olhos, julgando ser ele o mesmo que viu noutra ocasião, ou do qual lhe falaram, ou que ganhou certa corrida[6]), as suas qualidades. “O erro acerca do objecto costuma dizer-se que pode recair sobre a sua própria identidade (error in corpore) ou apenas sobre as suas qualidades (error qualitatis).”[7] “O erro relativo ao objecto tem sido prudente e correctamente alargado pela doutrina e pela jurisprudência. Não está em causa, apenas, a identidade do objecto, mas as suas qualidades e, particularmente o seu valor”.[8]
Em qualquer caso, o erro acerca do objecto relevante para a anulabilidade do negócio supõe a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que recaiu e o conhecimento dessa essencialidade, pelo declaratário ou o dever de a conhecer.
A lei não exige que o declaratário conheça o erro, mas também não exige, como ensina Oliveira Ascensão, “(…) que tenha sido declarada especificadamente a essencialidade desse elemento, como no artº 252/1. Basta que o declaratário não devesse ignorar essa essencialidade (…). A previsão de não dever ignorar dá carácter ético ao estado subjectivo do declaratário.”[9]
No dizer de Menezes Cordeiro, “(…) a essencialidade permite excluir o erro indiferente e o erro incidental: no primeiro caso, o declarante concluiria o negócio tal como resultou, no final; no segundo, concluí-lo-ia igualmente, ainda que com algumas modificações. A bitola da essencialidade é subjectiva: cada um determina, livremente, os factores que o possam levar a contratar. O conhecimento da essencialidade do elemento, por parte do declaratário é, também, um dado subjectivo: ou conhece ou não conhece. Em regra, o conhecimento derivará duma comunicação expressa, nesse sentido: todavia, ele poderá advir do conjunto das circunstâncias que rodeiem o negócio. Já o dever de conhecer a essencialidade é objectivo: tem natureza normativa. (…) A essencialidade e o conhecimento – ou as circunstâncias que originam o dever de conhecer – devem ser invocadas e provadas pelo interessado em anular o negócio. ”[10]
Vertendo estes considerandos na situação concreta dos autos nenhuma dificuldade emerge, nem a ré a suscita, em concluir que a desconformidade entre os quilómetros efectivamente percorridos pelo veículo e os supostos pela vontade do autor (declarante) na realização da compra, comporta um erro sobre um elemento essencial acerca do objecto do negócio e isto porque se mostra provado nos autos que “o autor nunca teria adquirido aquele veículo se soubesse que a sua quilometragem era superior à que o conta-quilómetros indicava” e que esta quilometragem (74.000), indicada pelo conta-quilómetros e garantida pela ré, era inferior aos quilómetros (161.000) já percorridos pelo veículo [als. e) a g) e i) dos factos provados]. O elemento sobre que incidiu o erro assume-se assim, na economia dos autos, como essencial para a decisão negocial do autor e, como tal, com eficácia anulatória do contrato. Nisto converge a ré. O enfoque da sua divergência não está na essencialidade, para o autor, do elemento sobre que recaiu o erro, mas sim na ausência do conhecimento dessa essencialidade, por si, enquanto declaratária e isto porque, no seu dizer, “era preciso que também estivesse provado que a ré era conhecedora dessa situação, ou seja, (…) que, no momento da compra, a Ré tinha conhecimento de que o Autor não celebraria o negócio caso a viatura apresentasse os quilómetros que mais tarde se veio a apurar realmente ter.”
Como se viu, não é assim, ou melhor, não é exactamente assim; o ónus da prova, é certo, incumbe ao interessado em anular o negócio, no caso autor, mas o objecto da prova não coincide com a preconizada pela ré e isto porque provando o autor, como prova, a essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro, o seu conhecimento para o declaratário não tem que resultar expressamente provado do julgado após a instrução, podendo resultar do conjunto das circunstâncias que rodeiem o negócio e, ainda que não resulte, basta que da prova se conclua o dever de não ignorar, pois a lei atribui a esta circunstância idêntica relevância que atribui ao conhecimento; se pelo conjunto de circunstâncias que rodearam o negócio se concluir que a ré, enquanto declaratária, conhecia ou tinha o dever de conhecer a importância essencial, para o autor, do conhecimento real dos quilómetros percorridos pelo veículo e que a decisão de contratar decorria desse conhecimento no caso concreto, o erro tem eficácia anulatória, demonstrando o autor, como demonstra, a essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro.
Ora, este dever conhecer infere-se, estamos em crer, com a necessária clareza das circunstâncias que, no caso concreto, rodearam o negócio e resulta até implícito, importa dizê-lo, das normais circunstâncias que rodeiam negócios similares.
Provou-se, e não é fruto do acaso, que na altura a ré garantiu ao autor que essa quilometragem que o conta-quilómetros indicava era a quilometragem real do veículo [al. f)]. E, se assim o garantiu a ré, foi por saber que se tratava, na dinâmica contratual, de um argumento comercial de peso, ou seja, de um facto essencial. O próprio termo garantia assim o indica, embora usado sem o seu pendor jurídico, tem aqui o significado de dar a palavra e apesar da mudança dos tempos, dar a palavra significa comprometer-se, a minha palavra é uma escritura dizia-se, dá-se a palavra quando o motivo é sério, quando tem importância. O motivo justificava-o, a ré sabia-o ou, no limite, porque se comprometeu, não o podia ignorar, que à decisão de compra do autor era essencial o conhecimento da quilometragem já percorrida pelo veículoe, por isso a garantiu ao autor.
Acresce, um outro argumento; a lei confere ao comprador de coisa defeituosa, nomeadamente por faltar à coisa as qualidades asseguradas pelo vendedor, a faculdade de reequilibrar o negócio (por reparação, substituição da coisa ou redução do preço – artºs 913º, 914º e 911ª) ou até de o destruir (por anulação – artºs 913º e 905º ou resolução[11]) e, por isso, se pode afirmar a essencialidade, na dinâmica contratual, das qualidades da coisa asseguradas pelo vendedor, por decorrência objectiva da lei e, como tal, a presunção normativamente fixada, do conhecimento da essencialidade para a ré no caso concreto.
Por último, e ainda que assim não fosse, como estamos em crer que é, a cognoscibilidade do elemento que incidiu o erro, em situações como a colocada nos autos, afigura-se-nos de uma evidência tal, que, em bom rigor, nem precisa de ser alegada, nem provada, por de facto notório se tratar (artº 514º, nº1, do Código de Processo Civil); de facto, a maioria dos cidadãos regularmente informados, e não se exagera ao afirmarmos, a totalidade dos cidadãos regularmente informados, não ignora que o conhecimento da quilometragem real do carro usado constitui um factor determinante da decisão do comprador[12] e se assim é para o consumidor final, por maioria de razão o será para a ré, que se dedica à actividade de compra e venda de automóveis.
Verificam-se, assim, os requisitos da anulabilidade, por erro, do negócioe havendo sido este o entendimento da decisão recorrida, não merece censura.
3.2.3. O ónus da prova do conhecimento pelo vendedor da falta de qualidades da coisa.
A sentença recorrida julgou procedente o pedido de anulação do contrato e embora haja considerado que a ré não provou que desconhecia sem culpa a falta de qualidades de que a coisa padece, incorrendo, assim, na obrigação de indemnizar o autor pelos danos emergentes do contrato, terminou por não condenar a ré no pagamento de qualquer indemnização.
A ré evidencia no recurso a sua discordância com este fundamento da sentença afirmando que o comprador só tem direito à indemnização prevista no artº 909º se o vendedor conhecia ou não podia desconhecer o vício da coisa e conclui que a sentença viola esta disposição legal.
Em primeiro lugar convém notar que o conhecimento do vício da coisa ou da falta de qualidades de que a coisa padece é uma situação psicológica do vendedor diferente do conhecimento da essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro, supra analisado; são realidades diferentes (o vendedor pode desconhecer, sem culpa, que o produto não tem as qualidades indicadas no rótulo e não ignorar que tais qualidades são essenciais para a decisão do comprador).
Feita esta advertência, um obstáculo, de natureza formal, se avista à pretensão da ré. Os recursos destinam-se a corrigir decisõesdesfavoráveis e não fundamentos desfavoráveis; se a decisão comporta um segmento justificativo que embora desfavorável ao recorrente é inócuo para o dispositivo propriamente dito, não há qualquer razão prática que justifique o conhecimento, nesta parte, do recurso.[13]
O fundamento da sentença que considerou incumbir à ré a prova que desconhecia sem culpa a falta de qualidades de que a coisa padece para, assim, concluir que esta incorreu na obrigação de indemnizar o autor pelos danos emergentes do contrato, não culminou em uma qualquer decisão desfavorável para a ré (pelo contrário, foi desfavorável ao autor que dela não recorreu) e tal bastaria para rejeitar o conhecimento, desta parte, do recurso, por falta de interesse da ré em agir. Ainda assim, a situação posta nos autos justifica um acrescento substantivo.
O que a ré defende, na essência, é que um comerciante de carros usados, como é o seu caso, pode ao mesmo tempo garantir ao comprador a verdade dos quilómetros percorridos por um veículo e desconhecer sem culpa que o veículo tem mais quilómetros (no caso mais do dobro) do que aqueles que garantiu ao comprador e não é, nem em rigor podia ser, assim.
Não é assim porque as regras da boa-fé com implicações relevantes designadamente na formação dos contratos (artº 227º) impõem o dever de informar que, por sua vez, implica a obrigação de estar informado, ou seja, o vendedor de carros usados ou sabe os quilómetros que o carro para venda tem ou não sabe e é uma destas informações que pode assegurar ao comprador, informação diferente é eticamente inaceitável[14], com reflexos directos na quebra de confiança dos consumidores.
E, no rigor, não poderia ser assim, porque se judicialmente ratificada, no limite, esta tese conduziria, quebrada aquela confiança, à destruição do próprio mercado de carros usados que a autora, enquanto profissional do ramo, tem interesse em preservar e salvaguardar.[15]
Ainda assim, por força da remissão do artº 915º, para os artºs 909º e parte final do artigo 914º, nos casos de anulação da venda de coisa defeituosa, fundada em simples erro, o vendedor é obrigado a indemnizar o comprador pelos danos emergentes do contrato, obrigação que, diz a lei, não existe se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece
Ora, a lei não diz, como supõe a tese da ré que a obrigação de indemnizar o comprador (pelos danos emergentes do contrato) só existe se o vendedor desconhecia com culpa a falta de qualidades da coisa, se fosse esta a solução legal ao autor cabia, então, provar a falta de qualidades eo desconhecimento com culpa do vendedor, mas não é, e dizendo, como diz, que a obrigação não existe se o vendedor desconhecia sem culpa a falta de qualidade de que a coisa padece a prova destes factos interessam ao vendedor e não ao comprador e é àquele e não a este, a quem incumbe a respectiva prova[16], aliás, de acordo com a regra geral que presume a culpa do devedor no cumprimento defeituoso da obrigação (artº 799º, nº1); no caso, o ónus da prova do desconhecimento sem culpa da falta de qualidades da coisa incumbia, pois, à ré, como bem se considerou na decisão recorrida.
Decisão recorrida que, aliás, na improcedência do recurso, impõe confirmação.
Sumário:
I - O vendedor de carros usados ou sabe os quilómetros que o carro (para venda) tem ou não sabe e é uma destas informações que pode assegurar ao comprador.
II - Se o vendedor de um automóvel usado assegura ao comprador que o veiculo tem 74.000 Km e, já após a compra, este veio a verificar que o veículo tinha, meses antes, 161.000 Km, existe venda de coisa defeituosa.
III – Provando-se que o comprador se determinou a comprar o veículo pelo facto deste não ter mais de 74.000Km e que este tinha, pelo menos, 161.000 Km, ocorre erro sobre os motivos determinantes da vontade do comprador, referido a um elemento essencial do objecto vendido, o que torna o contrato anulável.
4. Dispositivo.
Delibera-se, pelo exposto, em julgar improcedente o recurso mantendo-se, em consequência, a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Porto, 9/4/2013
Francisco Matos
Maria João Areias
Maria de Jesus Pereira
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[1] Porque iniciado antes de 1/1/2008, aplica-se ao presente processo o regime de recursos prévio à reforma introduzida pelo Dec-Lei nº 303/2007, de 24/8 (v. os respectivos artigos 9º, alínea a), 11º, nº1 e 12º, nº1). Pela mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil citada neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterado pelo referido D.L., referir-se-á à versão anterior a este.
[2] Transcrição de fls. 212 a 216.
[3] Direito das Obrigações, vol. 3º, 8ª ed., pág. 112.
[4] Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 5ª ed. pág.44.
[5] Sobre o regime dos defeitos supervenientes e dos defeitos na venda de coisa futura ou na venda de coisa genérica dispõe o artº 918º: “Se a coisa, depois de vendida e antes de entregue se deteriorar, adquirindo vícios ou perdendo qualidades, ou a venda respeitar a coisa futura ou a coisa indeterminada de certo género, são aplicáveis as regras relativas ao não cumprimento das obrigações”, daquiresultando, com escreve Menezes Leitão, que “(…) sempre que os defeitos da coisa não correspondam a vícios da coisa específica comprada, já existentes no momento da venda , não é aplicável o regime dos arts. 913º e ss., baseado primordialmente na consideração da situação como erro ou dolo, que viciou o contrato. Antes manda aplicar o regime do não cumprimento das obrigações.” Ob. cit., pág. 118.
[6] Manuel Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, 1983, vol.II, pág. 248.
[7] Manuel Andrade, Ob. cit., pág. 235.
[8] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Parte Geral, Tomo I, 3ª ed. pág. 825
[9] Direito Civil, Teoria Geral, 2ª ed. pág. 146.
[10] Ob. cit., págs. 817 e 818.
[11] Cfr. Calvão da Silva, ob. cit. pág. 72, com citação de jurisprudência concordante.
[12] Facto notório com relevantes antecedentes históricos que se surpreendem na síntese popular “a cavalo dado não se lhe olha o dente”, a qual supõe a importância de olhar os dentes do cavalo se o caso fosse de compra, pois era pelos dentes do cavalo que se determinava a sua idade, relevante para prognosticar o seu provável tempo de vida, a duração provável para proporcionar o uso a que era destinado, situação similar se coloca com os quilómetros nos automóveis (ou as horas de uso em veículos agrícolas e industriais que trabalham fixos), também é por estes que, na tracção mecânica, se vaticina o seu provável tempo de vida; tivessem hoje os automóveis a importância que os cavalos assumiram no passado e certamente se diria “a automóvel dado não se olha aos quilómetros”.
[13] Cfr., a este propósito, Alberto dos Reis, CPC anotado, 1952, 5º vol., págs. 385 e 285 e, mais recentemente, Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, págs. 144 e 145, ambos apoiados no ensinamento de Manuel de Andrade quando afirma que sediz “(…) vencida a parte que sofreu gravame com a decisão; a quem ela foi desfavorável. Este gravame ou desfavor afere-se por um critério prático, referindo ainda Alberto dos Reis, para com ele concordar, o Ac. do STJ de 28/11/1950 onde se escreveu: “Percorrendo os arts. 677º e segs., deles se conclui, sem sombra de dúvida, que o recurso cabe das decisões judiciais, e não dos seus fundamentos. Quer dizer, o recurso não pode interpor-se das razões de facto ou de direito, em que a decisão se baseie, mas sim, e apenas, da parte dispositiva ou decisória do julgado, pois é esta que vincula as partes, que as obriga”.
[14] “Há dolo ilícito sempre que, na negociação, uma das partes use de artifícios enganosos, omita informações que deva prestar ou não cumpra o dever de esclarecimento com violação da boa fé e dos usos próprios do comércio, ou daquele comércio, ou daquela praça, ou daquela terra” – Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 5ª ed., pág. 676
[15] Cfr., para mais desenvolvimentos, quanto a este último ponto, o Ac.RC de 23/1/2007 (Teles Pereira), onde designadamente se considerou: «(…) enquanto elemento característico deste tipo de mercados, a existência de um desequilíbrio de informação (a tal informação assimétrica) relativo à qualidade dos produtos transaccionados, desequilíbrio existente entre vendedor e comprador, num sentido favorável àquele, traduzido na circunstância de aquele que quer vender determinado produto dispor naturalmente de um manancial informativo, respeitante à qualidade desse produto – aos elementos relevantes para a aferição da qualidade desse produto –, muito superior à daquele que pretende comprar esse bem. Aquilo que o economista George Akerlof resumia no dilema, tão velho quanto o são os mercados, do comprador de cavalos numa feira: “se ele quer vender aquele cavalo, será que eu quero mesmo comprá-lo?” (…). Este dilema de todos os compradores, ou para sermos exactos, o comportamento de minimização ou de recusa do risco que tal dilema induz na generalidade dos compradores, produz aquilo a que se chama uma “falha de mercado” (market failure), a qual projecta em compras futuras de bens dessa natureza uma espécie de memória intuitiva traumática quanto à possibilidade de a qualidade do produto não ser boa, afectando o funcionamento deste tipo de mercados e podendo mesmo, em circunstâncias extremas, destruí-los, atirando para fora deles, através do funcionamento de uma “Lei de Gresham”[ A expressão com que os economistas qualificam, por referência à constatação – a “Lei de Gresham” – de que a “má moeda” tende a expulsar do mercado a “boa moeda”, os efeitos perversos do que é valorativamente “mau” sobre o que é “bom”.]», in www.dssi.pt..
[16] No sentido do decidido, cfr. Calvão da Silva, ob. cit. pág. 53 e Menezes Leitão ob. cit. pág. 115.