Não é permitido atribuir a outrem, por mandato, a faculdade de designar a pessoa do donatário ou determinar o objecto da doação, salvo nos casos previstos no nº 2 do artigo 2182º do CC.
1. Relatório
Nos presentes autos de inventário para partilha dos bens comuns do requerente, A…, e da requerida, T…, que foram casados um com o outro e que se encontram divorciados por mútuo acordo, conforme sentença de 18/10/2009, que homologou o acordo que efectuaram com vista ao divórcio por mútuo consentimento sentença transitada em julgado, foi nomeado cabeça de casal o requerente.
Apresentada relação de bens, que consta a fls. 14, veio a requerida a fls. 19-20 reclamar da mesma, dizendo que a verba 1, e única, da relação de bens apresentada está mal relacionada, pois é um bem próprio seu, dado que foi-lhe doado pelos seus pais, por escritura de doação celebrada em 04/09/1987, sendo que requerente e requerida foram casados no regime de comunhão de adquiridos.
Conclui no sentido de que a referida verba única da relação apresentada deve ser retirada da relação de bens.
Mais diz que a verba 1, apresentada na relação de bens, não é a verba que foi doada à requerida na escritura de doação de 4 de Setembro de 1987.
Aquela verba proveio do artigo que foi doado à comunhão conjugal, não é o mesmo artigo, daí que, deva tal bem, relacionado na verba única da relação de bens apresentada ser considerado bem comum do casal e portanto objecto de partilha.
A fls. 61 e segs. a requerida veio juntar documentos relativos a IMI do prédio relacionado e outro, durante vários anos (1999 a 2009).
Conforme acta de fls. 81-82 foi ouvida a testemunha arrolada pela requerida/reclamante.
Notificado o requerente interpôs recurso que instruiu com as suas alegações e concluiu:
...
A requerida não contra alegou.
Por despacho de folhas 104, o recurso foi admitido como apelação a subir imediatamente e nos autos e ao qual foi fixado o efeito meramente devolutivo.
2. Delimitação do objecto do recurso
As questões[1] a decidir na apelação e em função das quais se fixa o objecto do recurso sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do artigo 660º e artigos 661º, 664º, 668º, 684º, nº 3 e 685ºA, todos do Código de Processo Civil, são as seguintes:
Ø Parcialidade do testemunho de N...
Ø Alcance do mandato. Validade da rectificação da escritura
Ø Erro de julgamento – violação dos artigos 949º e 2182º do CC.
3.1 – Parcialidade do testemunho de Nuno Miguel Rodrigues Vieira
…
4. Matéria de facto provada
1. Requerente e requerida casaram, sem convenção antenupcial, no dia 10 de Agosto de 1975.
2. Encontra-se relacionado (verba única) o seguinte bem: casa de r/chão ...
3. 3. De acordo com a certidão matricial de fls. 51 aquele artigo …“Veio do artigo urbano …”.
4. Por escritura de “Justificação e doação” outorgada no dia 04/9/1987, na Secretaria Notarial de Leiria, “J… e mulher J…, casados sob o regime da comunhão geral de bens (…) declararam “que doam a sua filha T…, terceira outorgante, o imóvel atrás identificado (…). Que fica dispensada a colação”, declarando a terceira outorgante “Que aceita a presente doação nos termos exarados”.
5. O imóvel identificado na referida escritura é “um prédio de rés-do-chão para habitação, (…)”.
6. Por escritura intitulada de “RECTIFICAÇÃO”, lavrado a 24/01/1991, na Secretaria Notarial de Leiria (…) compareceram como outorgantes:
b. J… e mulher, M….
c. M… e marido, J….
d. C… e marido, M….
e. G… e marido, A….
f. B… e marido, R…
POR TODOS OS OUTORGANTES FOI DITO:
“Que os identificados J…, M…, C…, T…, G…, B… e J… são os herdeiros de sua mãe e mulher, J… e nessa qualidade já se encontram habilitados por escritura de vinte e cinco de Outubro do ano findo (…), deste Cartório.
QUE rectificam a escritura de doação outorgada aos quatro de Setembro de mil novecentos oitenta e sete (…) do Segundo Cartório desta Secretaria. Rectificação que consiste tão só, e apenas, no sentido de declararem, como efectivamente declaram, que a doação então feita à identificada T… o foi para entrar na comunhão conjugal da donatária. Nessa escritura foram doadores o dito J… e mulher, J…, esta também já referida.
Que no mais mantém-se em vigor a escritura agora rectificada.”
Defende o requerente/apelante que «o contrato de mandato é o mais amplo e abrangente que pode haver. É claro que pelo mandato não é permitido atribuir a outrem, a faculdade de escolher a pessoa do donatário ou determinar o objecto da doação, mas é permitido tal como consta da procuração atribuir poderes a outrem para (…) rectificar a escritura de doação no sentido de que o imóvel foi doado para entrar na comunhão conjugal da donatária ou doado à donatária e marido (…)».
4.2 A decisão recorrida amparou-se no facto de não se estar perante a figura da «rectificação» mas sim da ampliação da doação quanto ao donatário/requerente/apelante, ampliação que dado o carácter pessoal da doação não é permitida – artigos 949º, nº 1 e 2182º, nº 1 ambos do CC.
Nos termos da alínea b) do nº 2 do artigo 80º do Código de Notariado devem especialmente celebrar-se por escritura pública os actos que importem revogação, rectificação ou alteração de negócios que, por força da lei ou por vontade das partes tenham sido celebrados, por escritura pública, sem prejuízo do disposto nos artigos 221º e 222º do Código Civil.
É claro em face do que consta que a doação é um negócio formal – artigo 947º do CC – e a sua rectificação tem de respeitar a forma dada ao contrato inicial [2] o que foi respeitado no caso em apreço já que a chamada «rectificação» foi feita mediante escritura pública.
Defende a decisão recorrida que a “rectificação” mencionada na escritura – facto 6 – não se integra na previsão do artigo 249º do CC, tal como não se integra, acrescentamos nós, em nenhuma das inexactidões indicadas nas alíneas a) a f) do nº 2 do artigo 132º do Código de Notariado e daí que impropriamente os intervenientes na escritura indicada em 6 tenham apelidado de «rectificação» quando na verdade, e aqui estamos com a sentença recorrida, se tratou de ampliar os efeitos da doação mencionada a um outro donatário, o marido da donatária e aqui requerida/apelada T...
Determina o artigo 940º, nº 1 do CC: doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente
Se atentarmos na matéria de facto – pontos 4 e 5 - não há dúvidas quanto à disposição gratuita do imóvel inscrito na matriz urbana sob artigo 513 por parte dos doadores e a favor da sua filha T…, doação realizada por escritura pública datada de 4 de Setembro de 1987.
Requerente e requerida casaram em Agosto de 1975 sem convenção antenupcial, dispondo a alínea b) do nº 1 do artigo 1722º do CC que são considerados bens próprios dos cônjuges os que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação, sendo que a situação factual plasmada na matéria de facto provada não cabe na excepção a que se reporta o nº 1 do artigo 1729º do CC na medida em que não foi claramente expressa a vontade dos doadores, já que a liberalidade foi apenas feita a favor da requerida/apelada sua filha e não a favor dos cônjuges.
Por aqui está afastada a possibilidade do bem doado integrar a comunhão de bens.
Mas mais.
O artigo 949º/1 do CC dispõe que não é permitido atribuir a outrem por mandato, a faculdade de designar a pessoa do donatário ou determinar o objecto da doação, salvo nos casos previstos no nº 2 do artigo 2182º.
Em anotação a esta norma escrevem os Srs. Prof. P. Lima e A. Varela que «o mandato para doar cui voles et quae voles era condenado pela doutrina. Justificava-se a solução, fundamentalmente, pelo carácter pessoal e espontâneo que devem ter as liberalidades. (…). O carácter pessoal das doações ficou equiparado ao das disposições testamentárias, admitindo-se as mesmas excepções, que são a da repartição dos bens doados por uma generalidade de pessoas (…) e a escolha do donatário de entre as pessoas determinadas pelo doador – cf. artigo 2182º, nº 2 do CC»[3].
Também o Sr. Prof. Batista Lopes[4] in das Doações, 1970, pág. 81, perfilha do entendimento que «não é permitido atribuir a outrem, por mandato a faculdade de: designar a pessoa do donatário; determinar o objecto da doação, exceptuadas as hipóteses contempladas no artigo 2182º do CC» que declara no seu nº 2:
O testador pode, todavia, cometer a terceiro:
a. (…)
b. A nomeação de legatário de entre as pessoas por ele determinadas
Claramente as excepções contempladas nesta norma não se verificam já que no dizer dos Srs. Profs. P. Lima e A. Varela «são os casos em que a vontade do terceiro em lugar de se substituir à vontade do doador, vem apenas completá-la ou executá-la, visto que esta já se encontra determinada nos seus aspectos fundamentais»[5], o que claramente não se verifica na situação em apreço, sendo clara a intenção do legislador em «reservar para o próprio doador a exclusividade da designação da pessoa do donatário e do objecto da doação, proibindo o mandato para doar»[6].
Não se enquadrando a situação dos autos em nenhuma das excepções do artigo 2182º do CC, a procuração que se encontra junta a folhas 42 e 43 é nula por violação dos artigos 280º e 286º do CC, na medida em que o requerente e requerida atribuíram poderes a um terceiro procurador – A… – para rectificar a escritura de doação no sentido de que o imóvel foi doado para entrar na comunhão conjugal da donatária ou doado à donatária e marido (…).
Violando o mandato conferido em 20 de Agosto de 1990 a uma norma legal de carácter imperativo – artigo 949º/1 CC – razão porque não pode deixar de ser considerada nula nos termos do disposto no nº 1 do artigo 280º do CC, nulidade que pode ser conhecida oficiosamente nos termos do disposto no artigo 286º do mesmo Código, nulidade que sempre afectaria a escritura de “RECTIFICAÇÃO» nos termos do disposto nos artigos 262º e 268º/1 ambos do CC.
Reafirmamos com a sentença recorrida que a ter havido reparações na casa doada, a questão não pode ser abordada nestes autos, antes se impondo o envio das partes para os meios comuns onde tal questão será apreciada e decidida.
Em conclusão e reproduzindo o sumário do douto acórdão da Relação do Porto já que claramente aborda a questão colocada à apreciação deste Tribunal dir-se-á:
“Não é permitido atribuir a outrem, por mandato, a faculdade de designar a pessoa do donatário ou determinar o objecto da doação, salvo nos casos previstos no nº 2 do artigo 2182º do CC.
Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos acorda-se em negar provimento ao recurso e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.
Jacinto Meca (Relator)
Falcão de Magalhães
Sílvia Pires
[1] É dominantemente entendido que o vocábulo «questões» não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por «questões» as concretas controvérsias centrais a dirimir – Ac. STJ, datado de 2.10.2003, proferido no âmbito do recurso de revista nº 2585/03 da 2ª Secção.
[2] Só com a alteração introduzida pelo artigo 4º do DL nº 116/2208 é que a doação de imóveis pode ser feita através de documento particular autenticado.
[3] Código Civil Anotado, Volume II, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 242.
[4] Citado pelo acórdão da RP, datado de 2 de Outubro de 1997, CJ, Ano XXII, tomo, IV, pág. 207.
[5] Obra citada, pág. 242.
[6] Ac. Relação do Porto identificado em 4.