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SERVIDÃO DE PASSAGEM
SINAIS VISÍVEIS E PERMANENTES
Sumário
1.No domínio do Código Civil de Seabra, até à alteração introduzida neste código pelo Decreto n.º 19 126, de 16 de Dezembro de 1930, as servidões descontínuas, como é exemplo típico a servidão de passagem, não podiam ser adquiridas por usucapião. 2. A razão da proibição residia na circunstância do legislador recear que actos de tolerância, de solidariedade ou boa vontade dos proprietários, para com os seus vizinhos, tolerando a passagem destes pelos seus terrenos, se tornassem em motivo de aquisição de direitos, contrariando as expectativas de quem havia manifestado apenas tolerância e boa vontade. 3. A partir do momento em que o legislador permitiu a aquisição de servidões de passagem por usucapião, a lei exigiu, para isso ser possível, factos inequivocamente demonstrativos da existência de situações duradouras e vinculativas, isto é, a existência de sinais visíveis e permanentes – n.º 2 do artigo 1548.º do Código Civil –, demonstrativos da inexistência de uma situação precária originada por actos de mera tolerância. 4. A visibilidade dos sinais respeita à sua materialidade, no sentido de serem percepcionáveis e interpretáveis como tais pela generalidade das pessoas que se confrontem com eles. A permanência consiste na manutenção dos sinais, com a aludida visibilidade, ao longo do tempo, sem interrupções (pelo menos nos casos em que a ausência temporária dos sinais torne equívoco o seu significado), por forma a gerar e manter a ideia de que se trata de uma situação estável e duradoura e, ao mesmo tempo, afastar a hipótese de se tratar de uma situação precária, podendo tais sinais, no entanto, ser alterados ao longo do tempo ou substituídos por outros. 5. Uma abertura com largura superior a três metros, feita pela Ré, no muro de vedação do seu prédio, que confina a nascente com um prédio do Autor, destinada a permitir o trânsito para o prédio do Autor, cumprindo, é certo, um acordo escrito em documento particular, celebrado em 1980, onde se previa a constituição de uma servidão de passagem através do prédio da Ré, desde essa abertura até à estrada situada a poente, na ausência de quaisquer outros sinais visíveis e permanentes, designadamente a existência de um caminho a atravessar o prédio da Ré, não revela, objectivamente e a qualquer observador, a existência de uma servidão de passagem, desde logo, por inexistir um caminho no prédio da Ré que passe nessa abertura e se dirija a algum lugar, maxime, à estrada situada a poente.
Texto Integral
I. Relatório. a) O presente recurso versa sobre uma acção em que o Autor, agora recorrente, pediu, no confronto com a Ré, que fosse declarada pelo tribunal a existência de uma servidão de passagem, constituída por usucapião, a favor de um seu prédio que identificou, localizada sobre um prédio da Ré.
A Ré contestou a existência da servidão, mas, para o caso do tribunal considerar que existe tal servidão, deduziu reconvenção pedindo a declaração de extinção da mesma por desnecessidade, devido ao facto do prédio do Autor confrontar com um caminho público.
No final, o tribunal limitou-se a reconhecer que o Autor era titular do prédio que identificou na petição, mas julgou a acção improcedente quanto ao pedido relativo à servidão de passagem.
É desta decisão que o Autor interpõe o presente recurso, impugnando a decisão da matéria de facto e a solução jurídica exarada na sentença. b) O Autor concluiu as suas alegações desta forma:
(…)
*
A Ré contra-alegou e concluiu nestes termos:
(…) II. Objecto do recurso.
A primeira questão que se coloca consiste em saber se há razões para rejeitar o recurso por falta de concisão das conclusões, dado que as mesmas são em número de quarenta e oito, o que constituirá infracção ao disposto no n.º 1 do artigo 685.º-A do Código de Processo Civil.
Caso esta questão prévia não proceda, cumpre, de seguida, analisar o primeiro grupo de questões colocadas no recurso, o qual respeita à apreciação das respostas dadas em 1.ª instância à matéria dos quesitos 4.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 10.º, 12.º e 19.º da base instrutória, os quais foram, todos eles declarados «não provados», pretendendo ao Autor que esta matéria seja declarada «provada» com base no depoimento das testemunhas (…)conjugados com a prova documental de fls. 22 a 25 e 114 a 116 dos autos e ainda a prova pericial, pretensão à qual a Ré se opõe com base no depoimento produzido em sentido contrário pelas testemunhas (…).
Por último, cumpre verificar, face aos factos provados, se o pedido efectuado no final da petição procede ou se deve manter-se a decisão constante da sentença sob recurso. III. Fundamentação. A) Apreciação das questões objecto do recurso prévias à fixação da matéria de facto. (…) B) Matéria de facto provada.
1. No dia 5 de Janeiro de 2001 teve lugar no Cartório Notarial de Sever do Vouga uma escritura pública intitulada Compra e Venda, na qual intervieram como primeiras outorgantes (…) na qualidade de únicas herdeiras habilitadas de (…), e como segundo outorgante (…) na qualidade de administrador único e em representação da Sociedade I (…), S.A., aí tendo ficado a constar designadamente os seguintes dizeres (cfr. fls. 22 a 25, aqui dadas por reproduzidas): (…) E pelas primeiras outorgantes, foi dito: - Que na qualidade de únicas herdeiras habilitadas de (…) (…) vendem à representada do segundo outorgante, pelo preço de TRINTA MILHÕES DE ESCUDOS, já recebidos, o seguinte prédio, integrante da referida herança: Rústico, composto de pinhal e mato, sito no Areeiro, dita freguesia de Águeda, com a área de sete mil metros quadrados, a confrontar do norte com AAR(...), do sul com ASA(...), do nascente com regueira e do poente com ORN(...), Lda., inscrito na matriz no artigo 6.910, com o valor patrimonial de 11.491$00, omisso no Registo Predial. (…) Declararam ainda: - Que o prédio ora transaccionado, é servido por uma servidão de passagem de pé e de carro para acesso a todo o prédio, localizada ao longo da extrema norte do prédio confinante com este, pertencente à Sociedade Comercial por Quotas sob a firma O (…)Lda., constituída por escrito particular datado de doze de Junho de mil novecentos e oitenta, celebrado entre a referida Sociedade e o autor da herança na qual o prédio se integra. Declarou o segundo outorgante: - Que em nome da sua representada, aceita o presente contrato; e que o imóvel ora adquirido se destina a revenda. (…)
2. Na Conservatória do Registo Predial de Águeda está descrito o seguinte prédio, sob o n.º 0741/12012001 (cfr. fls. 20 e 21, aqui dadas por reproduzidas): PRÉDIO RÚSTICO – “Areeiro” – Terreno a pinhal e mato – 7.000 m2. Norte, AAR(...); Sul, ASA(...); Nascente, regueira; e Poente, ORN(...), Lda. V.p. 11.491$00. Artigo 6.910.
3. Pela Ap. 41/12012001 está inscrita em favor da Autora a aquisição do prédio referido em 1. e 2., por compra a A(...), B(...), C(...)e C(...) (cfr. fls. 21).
4. Com data de 12 de Junho de 1980, a Ré, representada pelos seus sócios gerentes, e (…) elaboraram o escrito que denominaram de Demarcação do pinhal sito no Raso de Paredes, em Paredes, do qual constam designadamente os seguintes dizeres (cfr. fls. 114 a 116, aqui dadas por reproduzidas): (…) E... (…) como dono e possuidor do prédio rústico sito no Raso de Paredes, limites do lugar de Paredes, freguesia de Águeda e concelho do mesmo nome, inscrito na matriz rústica desta freguesia sob o artigo 5768, e a sociedade por quotas, de responsabilidade limitada, sob a firma O (…) Lda. (…) representada pelos seus sócios-gerentes (…) (…), sendo esta sociedade também dona e possuidora do prédio rústico, sito no mesmo local do referido primeiro imóvel e a este contíguo, inscrito por sua vez na matriz sob os artigos 5769 e 5770, acordam em que aquele prédio inscrito sob o artigo 5768 passe a entestar directamente com o segundo prédio, pelo lado poente, com uma frente rectílinea de 47,30 m (…). Para melhor ficarem delimitados estes dois prédios (o do artigo 5768 do outro que tem os artigos 5769 e 5770) são colocados agora marcos, ficando um deles do lado sul-poente e o outro do lado oposto (norte-poente), situando-se o do lado norte-poente a 8,20 m para norte da esquina norte do já referido poste de alta tensão (o mais próximo da estrema). Já existe um outro marco (este antigo) na estrema norte-nascente e junto à ribeira, que se respeita, o qual dista do eucalipto de maior porte, implantado no terreno do (…) 17 metros. O Dr. (…) tolera que a sociedade proprietária do prédio rústico inscrito sob os arts. 5769 e 5770 (atrás identificado) se utilize da água que vai nesta data ser extraída de um poço aberto no prédio daquele Dr. (…), sem remuneração alguma por parte da dita sociedade, sendo o aproveitamento dessa água a título puramente precário e enquanto dela não precisar aquele primeiro interessado. (…) A sociedade, em referência, reconhecendo que o prédio inscrito na matriz sob o art. 5768 (do Dr. (…)) não tem acesso ao caminho público, sendo, por isso, prédio encravado, obriga-se a abrir desde já um caminho de pé e carro (motorizado ou não) para acesso a todo esse prédio, dentro deste e ao longo de toda a sua extrema norte, como também dentro do prédio daquela sociedade, junto à sua extrema norte, por forma a estabelecer com esse caminho a ligação directa do prédio com o artigo matricial 5768 (do Dr. E...) com o caminho público que passa a poente, passando assim a ficar constituída por este acto sobre aquele prédio inscrito na matriz sob os artigos 5769 e 5770 (que é da dita sociedade) uma servidão de passagem a favor do já referido prédio inscrito na matriz sob o artigo 5768, sem que seja devida por parte do outorgante (…) indemnização alguma à referida sociedade. (…)
5. O prédio descrito em 1. e 2. confronta pelo seu lado poente com um prédio pertença da Ré, inscrito actualmente na matriz urbana referente à freguesia e concelho de Águeda sob o art. 2469, composto de edifício de Rés-do-chão amplo destinado à indústria de electrodomésticos e 1º andar com 3 divisões destinadas à direcção, escritórios e desenho, casa de banho e anexo, uma dependência para serviços sociais, sanitários e logradouro (cfr. doc. de fls. 26, aqui dado por reproduzido).
6. Essa confrontação poente consiste numa linha recta de 47,30 metros, sobre a qual a Ré edificou uma parede de divisão e delimitação.
7. Os outorgantes do escrito mencionado em 4. quando se referiram ao artigo 5768.º, estavam a reportar-se ao prédio constante das actuais matrizes sob o art. 6910.º, descrito em 1. e 2.
8. E quando se referiram aos artigos 5769.º e 5770.º, estavam a reportar-se ao prédio constante da actual matriz sob o art. 2469.º.
9. O prédio referido em 1. e 2. não confina, por nenhum dos seus lados, com a via pública.
10. Existe uma abertura feita pela própria Ré, no seu muro de vedação que confina com o prédio do Autor, referido em 6., com dimensão suficiente para a passagem de uma camioneta e sempre superior a 3 metros de largura, que a Ré deixou, a nascente, para permitir o trânsito para o prédio referido em A) e B).
11. O prédio, com cerca de 7000 m2, dava para plantar cerca de 1500 árvores florestais.
12. A partir da estrada com que o prédio da Ré confronta pelo poente, e sensivelmente a 200 metros para norte do prédio da Ré, existe um caminho, afecto desde tempos imemoriais à livre e imediata utilização do público em geral, utilizado por quem queira lá passar, seja a pé, seja de veículos motorizados ou de tracção animal.
13. Que se desloca no sentido sudeste, inicialmente mais para este e inflectindo Progressivamente mais para sul.
14. O qual passa junto do prédio descrito em 1. e 2., bordejando-o pelo nascente e acompanhando em toda a sua extensão a aludida extrema nascente daquele prédio.
15. Durante uma dezena ou dezenas de anos de desenvolvimento vegetativo das árvores, nenhum trato especial lhes é exigido, uma vez que a adubagem é uma operação inerente à própria plantação, dispensando a produção florestal regas ou outras operações de manutenção.
16. O prédio descrito em 1. e 2., de acordo com o PDM de Águeda, integra-se, numa profundidade de 220m, em zona industrial e, numa profundidade de 25m, em zona industrial.
17. Os proprietários e utilizadores do prédio referido na al. A) deslocaram-se a este terreno, uma a duas vezes por ano, entre 1980 e 2003, entrando, a poente, no prédio da Ré e seguindo por trajecto não determinado em direcção a nascente, até à abertura existente no muro nascente do prédio da Ré, abertura que dá acesso ao prédio do Autor – resposta ao quesito 4.º - Passando pelo prédio da Ré sem reparo ou intromissão de ninguém e na convicção de que exerciam um direito próprio de servidão de passagem e de que não lesavam eventuais interesses alheios – resposta ao quesito 6.º
18. A partir de 2003 a Ré passou a impedir o Autor de passar pelo seu prédio e impediu-o neste ano de retirar a madeira do seu prédio – resposta ao quesito 8.º - ao actuar deste modo, a Ré sabia e sabe que estava e impedir a passagem do Autor – resposta ao quesito 12.º. C) Fundamentação jurídica.
1 – A questão jurídica que se coloca no presente caso consiste em saber se a seguinte actuação constitui o exercício de um direito de servidão de passagem, capaz de conduzir à usucapião: passagem, por parte do Autor e seus antecessores, através do prédio da Ré, durante mais de 20 anos, uma a duas vezes por ano, de poente para nascente e vice-versa, por locais não concretamente determinados, mas confluindo todos para a abertura que existe no muro do prédio da Ré, situada a nascente, na parte em que confina com o prédio do Autor, por onde esses antecessores entravam e saíam do prédio do Autor.
Como se dispõe no artigo 1543.º do Código Civil, a «Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente;...», podendo ter como objecto «...quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor» - artigo 1544.º do Código Civil.
No caso dos autos, a utilidade consistirá na passagem para o prédio do Autor através do prédio da Ré.
A existir tal direito, teria sido constituído por usucapião ([1]), nos termos dos artigos 1287.º do Código Civil, mas apenas no caso da existência da servidão ser aparente, isto é, de acordo com o disposto no n.º 2, do artigo 1548.º, do Código Civil, se a mesma se revelar «por sinais visíveis e permanentes», pois as servidões não aparentes não são susceptíveis de aquisição por usucapião – ver artigo 1293.º, al. a) e 1548.º, ambos do Código Civil.
Face a estas normas, resulta patente que o resultado da presente acção depende, desde já, da possibilidade de, face aos factos provados, ser possível, ou não, afirmar que existem sinais reveladores de uma servidão de passagem, ou seja, depende da existência dos mencionados «sinais visíveis e permanentes».
Vejamos este aspecto, primeiro em termos doutrinais e jurisprudenciais e, depois analisando os factos concretos.
Vejamos como se chegou ao actual regime jurídico.
No domínio do Código Civil de Seabra, até à alteração introduzida neste código pelo Decreto n.º 19 126, de 16 de Dezembro de 1930, as servidões descontínuas não podiam ser adquiridas por usucapião ([2]), sendo certo que as servidões descontínuas eram e são aquelas cujo exercício é constituído por acções do homem, onde se inclui, sem dúvida, a servidão de passagem ([3]).
Por conseguinte, até àquela data, as servidões de passagem não se constituíam por usucapião.
Como razão justificativa argumentava-se, segundo Guilherme Moreira, «…que é pela continuidade da servidão que pode constituir-se uma posse que exclua o acto de tolerância ou complacência que as relações de boa vizinhança não só aconselham mas em certos casos quase impõem. É assim, que nas servidões descontínuas, não existindo uma situação com carácter de permanência que exclua o acto de tolerância, não pode dar-se uma posse que conduza à prescrição» ([4])
Mas, contra esta doutrina, pronunciavam-se diversos autores referindo-se, como Guilherme Moreira, que «É efectivamente pelas obras ou sinais que se constitui uma situação de facto em que se revela ordinariamente de modo iniludível o propósito de que essa situação se torne duradoura e normal, não podendo assim deixar de atribuir-se a essas obras ou sinais maior eficácia jurídica que ao facto de a servidão depender ou não de facto do homem», pelo que o autor preconizava que «Numa remodelação da nossa legislação civil deverá ser modificada esta doutrina, estabelecendo-se para a aquisição das servidões pela prescrição uma disposição correspondente à que para a sua constituição por destinação de pai de família se formulou no artigo 2274.º» ([5]), o que veio, efectivamente, a acontecer, como acabou de se referir.
Verifica-se, pois, que o receio do legislador (no sentido de se poderem confundir actos de tolerância, de solidariedade ou boa vontade dos proprietários, para com os seus vizinhos, tolerando a passagem destes pelos seus terrenos, se tornasse em motivo de aquisição de direitos, contra as expectativas de quem manifestou tolerância e boa vontade), o levou, por isso, a proibir a aquisição de servidões de passagem por usucapião e, mais tarde, a consentir nesse tipo de aquisição, mas apenas nos casos em que a servidão de passagem se revelasse através de sinais visíveis e permanentes demonstrativos da inexistência de uma situação precária.
Justifica-se plenamente este regime, pois em caso algum um prédio fica desamparado no que respeita ao acesso à via pública, já que o proprietário, se o prédio for efectivamente encravado, tem sempre a possibilidade de constituir uma servidão legal de passagem, nos termos do artigo 1550.º do Código Civil, indemnizando, porém, o proprietário do prédio serviente – artigo 1554.º do Código Civil.
Ou seja, admite-se a constituição de servidões legais de passagem, mas apenas em relação a situações de facto que mostrem inequivocamente a existência da servidão e essa inequivocidade resulta da existência de sinais visíveis e permanentes.
O que se entende por «sinais visíveis e permanentes»?
Ainda segundo Guilherme Moreira, «…só podem considerar-se aparentes as servidões cujo exercício e incidência sobre o prédio serviente e a relação entre este e o dominante se patenteiem claramente, devendo ser consequentemente visíveis, inequívocas e permanentes as obras ou os sinais por que se manifesta essa servidão. Se às obras ou sinais por que a servidão se manifesta faltar qualquer destes requisitos, a servidão não estará constituída de forma que se possa considerar aparente» ([6]).
Referia ainda este autor, que «Quaisquer obras ou sinais são suficientes desde que por eles se revele a existência da servidão. É assim que a servidão de passagem se tornará aparente desde que para esse efeito se faça um caminho, se construa uma ponte ou se abra uma porta; …» ([7]).
No mesmo sentido, Pires de Lima/Antunes Varela, quando referiram que «…para que uma servidão de passagem possa ser adquirida por usucapião torna-se imprescindível a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício (como, por exemplo, um caminho ou uma porta ou porta de comunicação entre o prédio dominante e o serviente)» ([8]).
Por conseguinte, a visibilidade dos sinais respeita à sua materialidade, no sentido de serem percepcionáveis e interpretáveis como tais, pela generalidade das pessoas que se confrontem com eles e a permanência consiste na manutenção dos sinais, com a aludida visibilidade, ao longo do tempo, sem interrupções (pelo menos nos casos em que a ausência temporária dos sinais torne equívoco o seu significado), por forma a gerar e manter a ideia de que se trata de uma situação estável e duradoura e, ao mesmo tempo, afastar a hipótese de se tratar de uma situação precária, podendo tais sinais, no entanto, ser alterados ao longo do tempo ou substituídos por outros ([9]).
2 - Vejamos agora o caso concreto ([10]).
Verifica-se, pela matéria de facto provada, que existe apenas um sinal que aponta para a existência da servidão de passagem e tal sinal consiste, como adverte o Autor nas alegações de recurso, na existência de uma abertura, deixada pela Ré, no muro que delimita o sua propriedade, a nascente, sendo o único ponto do prédio da Ré, ao longo da estrema nascente, onde se pode passar do prédio da Ré para o do Autor.
A entrada para a fábrica da Ré, a partir da estrada a poente, aberta no muro de vedação, não constitui um sinal da servidão, pois o significado social, isto é, público, de tal abertura é este: «esta abertura destina-se a dar acesso às instalações fabris que estão implantadas para além do muro onde existe a abertura», sendo certo que essas são as instalações fabris da Ré.
Também não existem quaisquer sinais gravados no terreno do prédio da Ré que mostrem a existência de um caminho, designadamente um caminho direccionado no sentido de poente/nascente e dirigido àquela abertura.
Com efeito, não se provou que o caminho previsto no documento particular tivesse chegado a ser aberto e, se porventura o foi, desapareceu.
Assim, aquela abertura, situada no muro da Ré, situada a nascente, perde o significado de sinal integrante de uma servidão de passagem através do prédio da Ré.
Perde o significado porque, objectivamente, tal abertura no muro não se encontra ligada a um outro sinal, a um segundo sinal, susceptível de, em conjunto com a abertura, formarem na mente de um observador esta conclusão: «existe aqui uma servidão de passagem que termina ou se inicia nesta abertura e termina ou começa acolá…».
Não é possível interpretar a realidade factual apurada desta forma, não sendo possível reconhecer um trajecto como é próprio de uma servidão que obrigatoriamente tem de se revelar por sinais visíveis e permanentes que se iniciam num ponto e terminam noutro ponto.
Efectivamente, olhando só para a abertura, destituída da existência de um caminho que a ela conduza, que de facto não existe, o que significa a abertura?
Afigura-se que o observador olhando para a abertura concluirá que serve para passar de um prédio para outro, mas não sabe qual é o prédio dominante ou qual é o serviente, pelo que, devido à falta de informação que resultaria de outros sinais ficará em estado de dúvida e nada concluirá e seguramente não concluirá por uma servidão de passagem, por verificar que não existe qualquer caminho no prédio da Ré a terminar ou a iniciar-se nessa abertura.
Aliás, objectivamente, face ao aspecto físico dos prédios, um observador que verifique a ausência de um caminho desenhado no chão e situado a poente da abertura, até poderá concluirá que a abertura não se destina a dar acesso ao prédio da Ré.
Como resulta das citações feitas anteriormente, de Guilherme Moreira e Pires de Lima/Antunes Varela, este autores dão como exemplo de sinal de uma servidão, a existência de uma porta ou portão no prédio dominante, rasgada, pressupõe-se, na linha divisória entre ambos os prédios.
Porém, estes autores não fornecem mais informações sobre o contexto factual ou as circunstâncias em que a abertura de uma porta pode implicar, só por si, um sinal evidente da existência de uma servidão e, como se referiu acima, só se concebe que essa porta assuma o carácter de sinal se, nas circunstâncias, a sua existência puder ser interpretada como revelando inequivocamente a existência de uma servidão.
Não é o caso dos autos, como se afigura ter ficado demonstrado acima.
Dir-se-á que, no caso concreto dos autos, a Ré sabia bem que tinha acordado constituir uma servidão de passagem com o anterior proprietário e, por isso, entre as partes, não podem existir dúvidas de que a abertura é um sinal claro da existência da servidão, existência que, em termos factuais, já resultava também do documento subscrito pela Ré, onde se previu a constituição da servidão, abrindo-se, para o efeito, um caminho no terreno da Ré e também no do Autor.
Este argumento não tem, porém, a validade ou a força que aparenta ter, pelas seguintes razões:
Uma servidão é um direito real e os direitos reais são direitos que, nas palavras de Oliveira Ascensão, «…não assentam em relação alguma. Os seus titulares têm uma posição absoluta, porque é garantida pela ordem jurídica, independentemente de qualquer relação particular. Por isso são válidos erga omnes – no sentido de que podem ser feitos valer potencialmente contra qualquer um. A relação surge acessoriamente na vida destes direitos, mas não é constitutiva deles» ([11]).
Ou seja, nos direitos reais a relação que possa ser estabelecida entre pessoas, como no caso dos autos, entre Autor, e seus antecessores no direito, e a Ré, não é constitutiva destes direitos, pelo que os mencionados sinais, visíveis e permanentes, tenham de ser visíveis e permanentes não só para Autor e para a Ré, como para todos os outros cidadãos.
Voltando a Guilherme Moreira, dir-se-á que «Não é apenas em relação ao proprietário do prédio serviente que se deve revelar a constituição da servidão por meios de obras ou sinais para que ela se considere aparente. Essas obras ou sinais devem tornar a servidão patente a todos os interessados, isto é, a quaisquer pessoas que adquiram direitos sobre o prédio serviente que sejam prejudicados pela servidão.
É assim que, não sendo obrigatório o registo das servidões aparentes (decreto de 30 se Setembro de 1870), se vê que essas servidões produzem efeito em relação a terceiros independentemente do registo, tornando-se consequentemente necessário que essas servidões possam ser conhecidas de terceiros por obras ou sinais permanentes. Desde que essas obras ou sinais deixem de existir, as servidões aparentes entrarão na categoria das não aparentes» ([12]).
Presentemente, nos termos da al. b) do n.º 2, do artigo 5.º, do Código do Registo Predial, as servidões aparentes produzem efeitos contra terceiros mesmo não estando registadas ([13]).
Daí que, para emergir, por usucapião, a constituição de uma servidão de passagem sobre prédio de terceiro, se exija a respectiva publicidade, digamos erga omnes, equivalente à publicidade proporcionada pelo registo, mas obtida por outros meios, neste caso, conseguida através dos respectivos sinais visíveis e permanentes, para todos.
Ora, como se referiu, no caso dos autos, inexistem sinais visíveis e permanentes próprios da servidão de passagem.
Ou seja, um bonus pater familias se visitasse os prédios, como se explicou acima, não reconheceria ali a existência de uma servidão.
Tem, por isso, de improceder a acção, cumprindo confirmar a sentença recorrida.
Muito embora se tenha alterado, em parte, a matéria de facto, tal alteração não surte quaisquer efeitos ao nível da decisão final, que coincide com a da 1.ª instância. IV. Decisão.
Considerando o exposto, altera-se a matéria de facto nos termos que ficaram supra indicados, mas julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
*
Coimbra, 10 de Julho de 2013.
Alberto Augusto Vicente Ruço ( Relator )
Fernando de Jesus Fonseca Monteiro
Maria Inês Carvalho Brasil de Moura
[1] Verifica-se que o documento assinado pelos representantes legais da Ré e pelo antecessor do Autor, o mencionado Dr. (…), no qual se previu a constituição da servidão, não tem valor jurídico para constituir uma servidão, pois, à época, exigia-se como forma legal para a constituição de servidões prediais a escritura pública, como resulta do disposto na al. a) do artigo 89.º do Código do Notariado («Devem celebrar-se por escritura pública, além de outros especialmente previstos na lei: a) Os actos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, enfiteuse, superfície ou de servidão sobre imóveis;…»), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 619, de 31 de Março de 1967.
Presentemente tais actos podem ser validamente celebrados por escrito particular autenticado, nos termos conjugados dos artigos 875.º («Sem prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado» - redacção introduzida pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho) e 939.º (As normas da compra e venda são aplicáveis aos outros contratos onerosos pelos quais se alienem bens ou se estabeleçam encargos sobre eles, na medida em que sejam conformes com a sua natureza e não estejam em contradição com as disposições legais respectivas»), ambos do Código Civil, e n.º 2 do artigo 80.º do actual Código do Notariado (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto), nos termos do qual, salvo disposição legal em contrário, devem especialmente celebrar-se por escritura pública «a) As justificações notariais», «b) Os actos que importem revogação, rectificação ou alteração de negócios que, por força da lei ou por vontade das partes, tenham sido celebrados por escritura pública, sem prejuízo do disposto nos artigos 221.º e 222.º do Código Civil», as «d) As habilitações de herdeiros» e «g) Os actos de constituição de associações e de fundações, bem como os respectivos estatutos, suas alterações e revogações».
Assumem a qualificação de «autenticados» os documentos particulares «…desde que as partes confirmem o seu conteúdo perante o notário» - n.º 1 do artigo 150.º do Código do Notariado. [2] Ver neste sentido Pires de Lima, quando referiu: «Poderia parecer que esta importância tivesse desaparecido com a Reforma do Código Civil (Decreto n.º 19 126 de 16 de Dezembro de 1930) porque, efectivamente, no regime do Código anterior à Reforma, só as servidões contínuas aparentes podiam ser adquiridas por prescrição; porém, hoje, pela nova redacção dada ao art. 2272.º, todas as servidões aparentes, quer contínuas, quer descontínuas, podem ser adquiridas por prescrição» - Lições de Direito Civil (Direitos Reais). Coimbra, Livraria Atlântida, 1933, pág. 273. [3] Neste sentido, Guilherme Moreira: «Consideramos, pois, a servidão de passagem como constituindo sempre, em face do nosso código civil, uma servidão descontínua» - As Águas no Direito Civil Português, Vol. II (Das Servidões das Águas). Coimbra Editora, 1960, pág. 77.
No mesmo sentido, Pires de Lima quando diz que «…a servidão de passagem é sempre uma servidão descontínua» - Ob. cit., pág. 278. [4]Ob. cit., pág. 85.
Segundo Pires de Lima «O facto do nosso legislador não admitir que as servidões descontínuas pudessem ser adquiridas por prescrição, é um reflexo da doutrina já antiga, de que, em vista dos usos locais e da facilidade com que os proprietários fazem concessões benévolas, deve legislar-se sempre com um certo receio que destes se abuse para fundamentar direitos ou pretensões em actos de mera tolerância ou de complacência…» - Ob. cit., pág., 273, nota 1.
No mesmo sentido, ver Pires de Lima/Antunes Varela, em Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição, reimpressão. Coimbra Editora, 1987, pág. 629, [5]Ob. cit., pág., 85-86. [6]Ob. cit., pág., 81. [7]Ob. cit., pág., 83. [8]Ob. cit., pág., 630. [9] Neste sentido, Pires de Lima/Antunes Varela. Ob. cit., pág., 630 e Guilherme Moreira, quando referiu que «o que é sempre indispensável é a permanência de sinais ou obras, podendo dar-se a sua substituição ou transformação»- Ob. cit., pág. 83. [10] Pode ver-se um caso, com algumas semelhanças com o presente, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11 de Dezembro de 2013 (Barateiro Martins), onde se decidiu que «Não constitui sinal visível e permanente, para efeitos de constituição, por usucapião, de servidão de passagem, o caminho que apesar de ser utilizado para aceder a um prédio rústico a partir da via pública há mais de 70 anos, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, em parte da sua extensão apenas tinha sinais de passagem no período em que o respectivo terreno não era cultivado» - Colectânea de Jurisprudência, ano XXXVII, tomo V, pág. 29. [11]Direitos Reais, 4.ª edição refundida. Coimbra Editora, 1987, pág. 57 [12]Ob. cit., pág., 83. [13] «1 - Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo.
2 - Exceptuam-se do disposto no número anterior: a)…; b) As servidões aparentes; …» - artigo 5.º do C. R. Predial.