PESSOAS OBRIGADAS À VIGILÂNCIA DE OUTRÉM
RESPONSABILIDADE CIVIL
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I – O art.491º do CC comina a responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de outrem, através de uma presunção de culpa (presunção juris tantum), configurando uma situação específica de responsabilidade (delitual) subjectiva pela omissão, assentando na ideia de que não foram tomadas as necessárias precauções para evitar o dano, por omissão do dever de vigilância.
II - Trata-se não de uma responsabilidade objectiva ou por facto de outrem mas por facto próprio, baseada na presunção ilidível de um dever de vigilância (culpa in vigilando).
III - Os pressupostos do art. 491º do CC são os seguintes : a existência de uma obrigação (legal ou convencional) de vigilância a cargo de um sujeito; a prática de um facto ilícito por parte do vigilando e a causação de um dano a terceiro.
IV - Ao lesado apenas compete provar a existência do dever de vigilância e do dano causado pelo acto antijurídico (ilícito) da pessoa a vigiar. Ao obrigado à vigilância cabe ilidir a presunção, ou seja, a prova liberatória: demonstrar que cumpriu o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivesse cumprido (relevância negativa da causa virtual do dano).
V - Para a compreensão do “dever de vigilância” deve apelar-se ao “padrão de conduta exigível”, com suficiente plasticidade, impondo-se a indagação casuística e a convocação do “pensamento tópico”, pelo que importa valorar, designadamente, a idade do incapaz, a perigosidade da actividade, a disponibilidade dos métodos preventivos, a relação de confiança e proximidade, a previsibilidade do dano.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I - RELATÓRIO

         1.1.- Os Autores – A… e mulher M…, G… ( menor, representada pelos pais, 1ºs Autores )  - instauraram na Comarca de Pombal acção declarativa, com forma de processo ordinária, contra os Réus – D… e mulher I...

         Alegaram, em resumo:

         Em 3 de Março de 200 a menor G… estava a brincar com outras crianças na rua quando foi embatida pela bicicleta conduzida a alta velocidade pelo menor S…, filho dos Réus, sofrendo lesões que motivaram o seu internamento hospitalar. Em consequência, os Autores sofreram danos patrimoniais e não patrimoniais.

         Os Réus, na qualidade de pais e legais representantes são responsáveis pela indemnização ( arts. 483, 491, 1877, 1878 CC ).

         Pediram a condenação dos Réus a pagar aos Autores:

         A quantia de € 50.460,00 (sendo € 460,00 de danos patrimoniais e € 50.000,00 de danos não patrimoniais), acrescida de juros desde a citação;

         A quantia a liquidar em futura execução de sentença referente aos danos patrimoniais (despesas médicas, hospitalares, medicamentosas, próteses, exames complementares de diagnóstico, tratamentos, material de recuperação ou reabilitação) que a menor Marisa venha a ser sujeita.

         Contestaram os Réus defendendo-se por impugnação motivada, em síntese:

         Foi a menor G… (então com 3 anos de idade) quem subitamente se atravessou à frente da bicicleta e os Réus cumpriram o dever de vigilância em relação ao filho, o que não sucedeu com os Autores (pais). O montante dos danos é exagerado.

         Replicaram os Autores.

         No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância.

         1.2. - Realizada audiência de julgamento foi proferida sentença a julgar a acção improcedente e absolver os Réus dos pedido.

         1.3. – Inconformados, os Autores recorreram de apelação, com as seguintes conclusões:

...


II - FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. – O objecto do recurso

         Alteração de facto ( quesitos 1º, 2º e 3º )

         A responsabilidade dos Réus ( violação do dever de vigilância )

         2.2. – Os factos provados ( descritos na sentença )

         2.3. - 1ª QUESTÃO

         2.4. – 2ª QUESTÃO

         A sentença recorrida absolveu os Réus do pedido argumentando, em síntese, não se demonstrarem os pressupostos legais da responsabilidade civil extracontratual, visto que, não se presumindo inimputável o S…, então com 9 anos de idade, os Autores não comprovaram a sua actuação ilícita e culposa, aquando do acidente, nem a violação do dever de vigilância por parte dos Réus, não sendo de aplicar a inversão do ónus da prova do art. 491 do CC.

         Em contrapartida, sustentam os Autores a responsabilidade civil dos Réus, por violação do dever de vigilância.

         Numa tarde de Março de 2000, o menor S… de 9 anos de idade circulava com uma bicicleta numa rua sossegada (sem saída) quando a dada altura embateu na menor G…, de 3 anos de idade, em local não apurado, provocando-lhe lesões corporais.

         Problematiza-se no recurso a responsabilidade dos Réus, na qualidade de pais do S…, pela violação do dever de vigilância.

O art.491 do CC comina a responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de outrem, prevendo uma presunção de culpa (presunção juris tantum).
Abrindo uma excepção à regra do nº1 do art.487 C.C., não se altera, contudo, o princípio do art.483 CC de que a responsabilidade depende de culpa, pelo que se configura ainda uma situação de responsabilidade delitual.
Trata-se, neste caso, não de uma responsabilidade objectiva ou por facto de outrem, mas por facto próprio, baseada na presunção ilidível de um dever de vigilância (culpa in vigilando).
Por conseguinte, a norma do art.491 CC contempla uma situação específica de responsabilidade subjectiva pela omissão, assentando na ideia de que não foram tomadas as necessárias precauções para evitar o dano, por omissão do dever de vigilância.
Contrariamente ao que se depreende da sentença, a circunstância de o menor S… ter então 9 anos de idade, e por isso mesmo não se presumir inimputável ( art.488 nº2 CC ) não afasta a previsão do art. 491 do CC que abrange as situações de “incapacidade natural”, não redutível à inimputabilidade, que a lei presume nos menores de sete anos, aplicando-se tanto a menores inimputáveis, como a menores imputáveis. Na verdade, há uma estreita ligação entre o dever de vigilância por parte dos pais e a idade do filho, pois só finda com a maioridade (art. 1877 do CC), significando que o espectro normativo do art.491 do CC abrange as situações de menoridade, enquanto indiciadoras de causa de incapacidade natural (cf., por ex., HENRIQUE ANTUNES, Responsabilidade Civil dos Obrigados à Vigilância de Pessoa Naturalmente Incapaz, Universidade Católica Editora, 2000, pág. 94 e segs, VAZ SERRA, RLJ ano 111, pág. 22 e segs.).
Sendo assim, como a incapacidade natural nem sempre corresponde à inimputabilidade, pode cumular-se a responsabilidade do incapaz e a da pessoa obrigada à vigilância, caso em que ambas respondem solidariamente, nos termos do art. 497 do CC.
No entanto, o que se discute aqui é tão somente a responsabilidade dos Réus, na qualidade de pais e sujeitos obrigados legalmente à vigilância, em função da menoridade do filho, obrigação legal que decorre do conteúdo das responsabilidades parentais, visando a presunção do art. 491 do CC a tutela de terceiros lesados.
Os pressupostos do art. 491 do CC são os seguintes : a existência de uma obrigação (legal ou convencional) de vigilância a cargo de um sujeito; a prática de um facto ilícito por parte do vigilando e a causação de um dano a terceiro.
Por isso, ao lesado apenas compete provar (art.342 nº1 do CC) a existência do dever de vigilância e do dano causado pelo acto antijurídico (ilícito) da pessoa a vigiar (cf. VAZ SERRA, “ Responsabilidade das Pessoas Obrigadas a Vigilância “, BMJ 85, pág.424).
Ao obrigado à vigilância cabe ilidir a presunção, ou seja, a prova liberatória: demonstrar que cumpriu o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivesse cumprido (relevância negativa da causa virtual do dano).
Tem sido problemática, até por razões sociológicas, a compreensão do “dever de vigilância”, nomeadamente quanto a saber se se trata da “vigilância do momento” (em que ocorreu o facto danoso) ou antes uma “vigilância anterior”, reportada à educação e transmissão de regras de comportamento social, cujo exercício começa antes da produção do resultado danoso.
Na indagação do conceito operatório da “vigilância” deve adoptar-se uma síntese de ambas as posições, sendo certo que varia em função das concepções sócio-culturais dominantes, apelando-se então ao “padrão de conduta exigível”, com suficiente plasticidade, impondo-se a indagação casuística e a convocação do “pensamento tópico”.
A este propósito, importa salientar os “ Princípios de Direito Europeu da Responsabilidade Civil“ (disponível em http//civil.udg.es/tort/principles/doc/ PETLPortugueses doc.), cujo art.6º.101, ao enunciar a responsabilidade por actos de menores, contém também uma presunção de culpa, traduzindo-se a prova liberatória para as pessoas obrigadas em “mostrarem que cumpriram o dever de vigilância de acordo com o padrão de conduta exigível”. E na definição do art.4º.102, o padrão de conduta exigível “corresponde ao de uma pessoa razoável colocada nas mesmas circunstâncias e depende, especialmente, da natureza e valor do interesse protegido em questão, da perigosidade da actividade, da perícia que é de esperar da pessoa que a exerce, da previsibilidade do dano, da relação de proximidade ou da particular confiança entre as partes envolvidas, bem como da disponibilidade e custos de métodos preventivos ou alternativos “.
Neste contexto, releva naturalmente a idade do menor, em que a moderna jurisprudência dos países europeus se caracteriza pela benevolência dos tribunais para com os pais dos adolescentes com idade próxima da maioridade e por um maior rigor com crianças de tenra idade. Tem-se entendido que o fundamento para a responsabilização dos pais, obrigados à vigilância, radica na tutela do lesado contra o risco da irresponsabilidade ou insolvabilidade do autor directo da lesão e na necessidade de estimular o dever de vigilância, preconizando-se uma interpretação actualista do art. 491 CC ao assumir uma função, já não tanto sancionatória, mas antes de “garantia perante terceiros”, havendo mesmo quem fale de um processo de objectivação da responsabilidade civil dos pais, justificada por razões de justiça e de equidade (cf., por ex., MARIA CLARA SOTTOMAYOR, “A Responsabilidade Civil dos Pais pelos factos ilícitos praticados pelos filhos menores“, BFDUC vol.LXXI, 1995, pág.450 e segs.; no plano jurisprudencial, por ex., Ac STJ de 3/2/2009, proc. nº 08A3806, em www dgsi. pt.
Pois bem, sendo o S… então de menor idade (9 anos), sobre os pais (Réus) impendia o dever legal de vigilância, e está provado a existência de danos para a menor G…, em consequência do embate.
Contudo, desconhece-se como se produziu o sinistro, em que se circunstâncias ocorreu, na medida em que apenas se provou que o S… descia a rua conduzindo uma bicicleta a velocidade não apurada, em local não apurado da faixa de rodagem, e embateu na G… também em local não apurado. Daí que os elementos factuais disponíveis não permitam afirmar a ilicitude da actuação do menor, condutor do velocípede, designadamente qualquer infracção às regras de circulação rodoviária, sendo certo que nenhuma das versões do acidente logrou acolhimento em função do precipitado da prova, nem mesmo em sede recursiva, conforme pretendiam os Apelantes.
Coloca-se, porém, a questão de saber se o art.491 do CC tem aplicação à reparação dos danos devidos em consequência de uma responsabilidade objectiva do vigilando.
Não ficou consagrada na letra do art.491 do CC a redacção contida no anteprojecto do Prof. VAZ SERRA no sentido de limitar aos actos antijurídicos ou ilícitos a responsabilidade da pessoa a vigiar, nem a expressa consagração de que “ nº 5 a presunção de culpa (…) não se aplica à reparação dos danos devida, em consequência de uma responsabilidade, pela pessoa a vigiar”, mas daqui não se pode concluir que o preceito é aplicável aos casos de responsabilidade objectiva, por remissão do art. 499 do CC, pois, como adverte DARIO DE ALMEIDA “ logicamente, não se afigura concebível que alguém responda por carência culposa de vigilância, quando o vigilando apenas responder por um mero risco de actividade. A presunção de culpa ficaria sem objecto adequado, envolvendo uma responsabilidade por factos sem qualquer conexão com a vigilância; ou, então, ficaria antecipadamente ilidida, por força da própria lei, já que os danos sempre viriam a produzir-se, ainda que a vigilância tivesse sido exercida com eficácia (artigo 491, parte final). Acabaria por envolver uma contradição nos termos” (Manual de Acidentes de Viação, 2ª ed., pág. 326).
Pode, no entanto, a pessoa obrigada à vigilância responder objectivamente na qualidade de detentora do veículo (art. 503 do CC), nomeadamente porque os pais têm a administração dos bens dos filhos (art. 1878 nº1 CC) são eles quem criam o risco ao deixarem a viatura entregue à condução dos filhos menores ou quando cooperam na direcção efectiva e interessada do veículo (cf. DARIO DE ALMEIDA, loc. cit., pág. 327).
Sucede que nada se sabe quanto à detenção da bicicleta, a quem pertencia, pois apenas se provou que o S… e quem o acompanhava circulavam com bicicletas, sendo insuficiente para imputar aos Réus a qualidade de detentores, ou seja, haverem a direcção efectiva do velocípede, ou mesmo a guarda dela.
De resto, a circunstância de um menor de 9 anos de idade andar de bicicleta numa rua (em alcatrão, com 3 metros de largura), sem saída, junto de casa, onde apenas raramente circulam veículos dos residentes não justifica, segundo o critério do padrão de conduta exigível, um dever de vigilância apertado, de presença física dos pais, contrariamente ao reclamado pelos Apelantes.
Refira-se, por fim, a evidente contradição dos Apelantes ao reivindicarem uma falta de vigilância dos pais em relação ao menor S…, de 9 anos de idade, mas já não no tocante à menor lesada, de apenas 3 anos de idade, por parte dos Autores, seus pais, quando, na verdade, por ali se encontrava sem a presença de qualquer adulto, apesar da tenra idade.
Em resumo, não se verificando os requisitos legais do art. 491 do CC, sendo que a pretensão recursiva tinha como pressuposto a alteração de facto, mas uma vez inviabilizada, improcede a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
2.5. - Síntese conclusiva
1.- O art.491 do CC comina a responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de outrem, através de uma presunção de culpa (presunção juris tantum), configurando uma situação específica de responsabilidade (delitual) subjectiva pela omissão, assentando na ideia de que não foram tomadas as necessárias precauções para evitar o dano, por omissão do dever de vigilância.
2.- Trata-se não de uma responsabilidade objectiva ou por facto de outrem mas por facto próprio, baseada na presunção ilidível de um dever de vigilância (culpa in vigilando).
3.- Os pressupostos do art. 491 do CC são os seguintes : a existência de uma obrigação (legal ou convencional) de vigilância a cargo de um sujeito; a prática de um facto ilícito por parte do vigilando e a causação de um dano a terceiro.
4.- Ao lesado apenas compete provar a existência do dever de vigilância e do dano causado pelo acto antijurídico (ilícito) da pessoa a vigiar. Ao obrigado à vigilância cabe ilidir a presunção, ou seja, a prova liberatória: demonstrar que cumpriu o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivesse cumprido (relevância negativa da causa virtual do dano).
5.- Para a compreensão do “dever de vigilância” deve apelar-se ao “padrão de conduta exigível”, com suficiente plasticidade, impondo-se a indagação casuística e a convocação do “pensamento tópico”, pelo que importa valorar, designadamente, a idade do incapaz, a perigosidade da actividade, a disponibilidade dos métodos preventivos, a relação de confiança e proximidade, a previsibilidade do dano.

III – DECISÃO
         Pelo exposto, decidem:
1)
         Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
2)
         Condenar os Apelantes nas custas.
         Coimbra, 17 de Setembro de 2013.
( Jorge Arcanjo - Relator)
( Teles Pereira )
( Manuel Capelo )


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