TÍTULO EXECUTIVO
MÚTUO NULO POR VÍCIO DE FORMA
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO DO CAPITAL MUTUADO
Sumário

O contrato de mútuo nulo por vício de forma em que o mutuário confessa o recebimento do capital mutuado constitui título executivo para realizar coercivamente a obrigação legal de restituir o capital mutuado derivada da declaração de nulidade por vício de forma do aludido contrato.

Texto Integral


Sumário do acórdão proferido no processo nº 733/12.9TBPFR.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 713º, nº 7, do Código de Processo Civil:

O contrato de mútuo nulo por vício de forma em que o mutuário confessa o recebimento do capital mutuado constitui título executivo para realizar coercivamente a obrigação legal de restituir o capital mutuado derivada da declaração de nulidade por vício de forma do aludido contrato.

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Acordam, em audiência, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório
A 09 de Maio de 2012, no Tribunal Judicial de Paços de Ferreira, B..... instaurou acção executiva sob forma comum, para pagamento de quantia certa, contra C..... e D..... exigindo o pagamento da quantia de setenta mil quinhentos e setenta e nove euros e noventa cents.
Para tanto, o exequente alegou o seguinte:
1. Por contrato de mútuo datado de 30 de Abril de 2002, que aqui se junta como doc. 1, e se dá por integralmente reproduzido para os legais efeitos, o exequente emprestou ao executado marido, o montante de € 70.579,90 (setenta mil quinhentos e setenta e nove euros e noventa cêntimos), ali se confessando o executado devedor daquela quantia.
2. A referida quantia mutuada deveria ser paga, total ou parcialmente, pelo executado marido, quando o exequente lhe solicitasse tal pagamento, o que não veio a suceder, pese embora tal solicitação lhe tenha sido feita por várias vezes, verbal e pessoalmente.
3. Com efeito, em 20 de Junho de 2011, o exequente interpelou o executado marido, através de carta registada com aviso de recepção, cuja cópia aqui se juta como doc. 2, e se dá por integralmente reproduzida para os legais efeitos, para que procedesse ao pagamento da referida quantia que lhe é devida pelo executado, sendo que este não procedeu ao pagamento, nem naquela data, nem posteriormente.
4. Assim é que, se encontra em dívida a referida quantia de de € 70.579,90 (setenta mil quinhentos e setenta e nove euros e noventa cêntimos), vencida em 20 de Junho de 2011.
5. O documento dado à execução constitui título executivo, ao abrigo do disposto no art. 46º, al. c), do C.P. Civil, sendo que o executado ali se confessa devedor ao exequente.
6. A dívida é certa, líquida e exigível.
Para justificar a demanda da executada alegou o seguinte:
A dívida é da responsabilidade de ambos os cônjuges, pois foi contraída pelo executado marido, no exercício do comércio e foi-o em proveito comum do casal, nos termos do disposto no art. 1691º, n.º 1, alínea d), do C. Civil.
A Sra. Agente de Execução procedeu à citação dos executados, tendo ambos deduzido oposição à acção executiva.
A 22 de Outubro de 2012 foi proferido despacho, notificado às partes por meio de notificação electrónica elaborada a 23 de Outubro de 2012, com o seguinte teor:
B..... deu à execução um documento escrito, denominado de contrato de mútuo, datado de 30 de Abril de 2002, no qual se declara que entrega nessa data a C..... a quantia de 70.579,90€ (setenta mil quinhentos e setenta e nove euros e noventa cêntimos), para que este a aplicasse em obras de que a empresa E....., Lda., de que ambos fazem parte, venha a realizar no âmbito da sua actividade, devendo tal quantia ser paga, total ou parcialmente, pelo segundo outorgante quando for solicitado pelo primeiro outorgante, tudo conforme termos do documento que foi junto com o requerimento executivo.
Foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre um eventual nulidade por violação do artigo 1143.º, do Código Civil, o que vieram fazer.
Cumpre apreciar.
Toda a execução tem por base um título, sendo que por este se determinam o fim e os limites da acção executiva (artigo 45.º, 1, do Código de Processo Civil (CPC). O título executivo é o documento do qual resulta a exequibilidade de uma pretensão e, portanto, a possibilidade da realização coactiva da correspondente prestação através de uma acção executiva. Esse título incorpora o direito de execução, ou seja, o direito do credor a executar o património do devedor ou de um terceiro para obter a satisfação efectiva do seu direito à prestação.
Não parece que possa oferecer dúvidas que o documento junto aos autos de execução tem subjacente um contrato de mútuo. Não se conclui desta forma por o próprio documento intitular-se contrato de mútuo, mas por aquilo que nele consta, conforme acima se expôs, respeitar efectivamente às obrigações que resulta da celebração de um contrato de mútuo, que é aquele pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (artigo 1142.º, do CC), concretamente tendo o outorgante exequente entregue 70.579,90€ ao outorgante executado C....., e tendo este de lho restituir quando lhe fosse pedido.
Este título executivo junto com a acção executiva cumpre os requisitos formais previstos no artigo 46.º, c), do CPC, pois trata-se de um documento particular, que para estes efeitos importa o reconhecimento de uma dívida por parte do executado, já que recebeu do exequente 70.579,90€ que lhe tem de restituir quando lhe for solicitado, estando-o a ser, está assinado por um dos executados e o montante é determinado.
Todavia, a verificação da insuficiência formal relativamente ao contrato subjacente a esse reconhecimento de dívida tem de ser sujeita à sindicância judicial, nos termos artigo 458.º, 2, do CC.
Ora, este contrato de mútuo subjacente ao reconhecimento de dívida é nulo por vício de forma, uma vez que foi celebrado por 70.579,90€ (setenta mil quinhentos e setenta e nove euros e noventa cêntimos), obrigando a lei civil, à data do contrato de mútuo junto aos autos, à celebração por escritura pública do contrato de mútuo de valor superior a 20.000 € (artigos 1143.º e 220.º, do CC).
Esta forma é um requisito ad substantiam (artigo 364.º, 1, do CC), pelo que a sua inobservância importa a invalidade, na forma de nulidade, do contrato (artigos 219.º e 220.º, ambos do CC), nulidade que é invocável a todo o tempo e pode ser conhecida oficiosamente (artigo 286.º, do CC).
Sendo uma das características que se aponta ao título executivo a autonomia, que consiste na exequibilidade do título ser independente da exequibilidade da pretensão, todavia, esta autonomia não é total, pois pode suceder que o título executivo não garanta a validade formal do negócio jurídico subjacente, o que afecta não só a constituição do próprio dever de prestar como a eficácia do respectivo documento como título executivo (Miguel Teixeira de Sousa, Acção executiva singular, Lex, Lisboa 1998, p. 70).
Assim, formalizando o título ou nele se confessando a celebração de um negócio nulo, o mesmo não é exequível por a obrigação de pagar ser nula desde o início, não produzindo quaisquer efeitos a partir do momento da formação do negócio, voltando-se ao statu quo ante, impondo-se o recurso a uma acção declarativa, na qual, declarando-se a nulidade do mútuo se condene também na restituição da quantia emprestada, só dispondo os exequentes de título executivo a partir do trânsito em julgado dessa decisão condenatória (Acórdão da Relação do Porto de 13/10/2005 (processo n.º 0534550), consultado em www.dgsi.pt e Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, Coimbra Editora, 1999, p. 87).
Veja-se, por outro lado, que, salvo sempre melhor opinião, não se poderá defender que esta nulidade pode ser colmatada pelo reconhecimento por parte do executado do empréstimo da quantia, conforme vem o exequente defender, dado que os executados não o defendem, pelo contrário, afastam-no com a acção de oposição à execução, dizendo, entre o mais, que o contrato de mútuo que celebraram foi outro que não o junto com o requerimento executivo.
Nestes termos, não podendo então o documento junto os autos ser tido como documento particular a que se reporta o artigo 46.º, c), do CPC, é forçoso concluir que os exequentes não dispõem de título executivo, pelo que, tratando-se do primeiro despacho que se profere neste processo executivo, nos termos artigo 812.º-E, 1, a), do CPC, indefiro liminarmente o requerimento executivo.
As custas são devidas pelo exequente.
Notifique.
Inconformado com esta decisão, a 20 de Novembro de 2012, B..... interpôs recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
1ª Foi dado à execução um documento particular que as partes denominaram, incorrectamente de “contrato de mútuo”, nulo por falta de forma (art. 1143º do C. Civil), junto aos autos como docs. 1 e 2, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para os legais efeitos, tendo no mesmo, o executado C....., confessado o empréstimo da quantia de € 70.579,90, obrigando-se, este e conforme o ali clausulado, a restituir ao ora exequente, aquela mesma quantia sobre a qual não incidem juros.
2ª Assim é que o exequente B....., deu à execução o documento particular o qual, pese embora estar encimado com a designação de “CONTRATO DE MÚTUO”, assinado apenas pelo executado/apelado C....., mas em proveito comum do casal, nos termos do disposto no art. 1691º, n.º 1, alínea d), do C. Civil, consubstancia, inquestionavelmente, uma confissão de dívida de quem o assinou, o ora executado.
3ª Daquele documento, a que se alude nas cláusulas 1ª e 2ª, consta o seguinte, que foi assinado por ambas as partes:
“-------1º Que, neste acto entregou ao segundo outorgante – mutuário, a quantia de 70.579,90€ (Setenta mil quinhentos e setenta e nove Euros e noventa cêntimos).
2º Que a referida quantia foi mutuada a título particular para que o segundo a aplicasse em todas as obras que a empresa E....., Limitada, de que ambos fazem parte, venha a realizar no âmbito da sua actividade, bem como em contratos de suprimentos que este venha a fazer à referida Sociedade.
3º Que a quantia mutuada deverá ser paga total ou parcialmente, pelo segundo outorgante, quando solicitado pelo primeiro, sendo que terá que ser estabelecido um prazo razoável de modo a possibilitar a sua liquidação.
4º Sobre a Quantia mutuada, não incidem júris até efectivo pagamento, pelo que o primeiro não pagará quaisquer impostos por não obter com o presente contrato qualquer lucro.
Disse o segundo outorgante:
------Que aceita o presente contrato de mútuo nos exactos termos em que se encontra exarado. -----------“
4ª Citados os executados, pese embora terem deduzido oposição pelo facto daquele contrato só ter sido assinado pelo executado marido e não pela executada mulher, não questionaram o empréstimo em causa, reconhecendo-o, antes, dele se confessando devedor, o executado E....., sendo que, não invocou, sequer, a eventual nulidade daquele contrato, por violação do art. 1143º do C. Civil.
5ª Acontece que o Tribunal “a quo”, dado o documento estar encimado como “contrato de mútuo”, o qual não foi celebrado por escritura pública, não questionando a validade do contrato, nem constar do mesmo os requisitos exigidos para que o mesmo possa ser tido como título executivo – elementos nele consubstanciados – conforme o art. 46º, n.º 1, al. c), do C.P. Civil, declara-o nulo, ao abrigo do citado art. 1143º do C. Civil. Assim indeferindo, liminarmente, o requerimento executivo, despacho aquele de que se recorre.
6ª Na situação “sub judice”, afigura-se-nos salvo o devido respeito estarem preenchidos os requisitos necessários para que a referida confissão de dívida, seja qualificada como título executivo a que alude a alínea c) do n.º 1, do art. 46º, do C.P.Civil, sendo que o executado reconhece naquele documento, ter-lhe, o exequente, emprestado o montante e a existência de uma obrigação contratual para com o exequente, aqui apelante, obrigação essa que emerge do questionado documento (confissão de dívida), que é dizer, reconhece dever ao exequente, o montante de € 70.759,90, titulado por aquele documento particular, por si assinado.
7ª Por isso, devendo aquela confissão de dívida ser tida como título executivo, o que se infere de todo o seu conteúdo e da vontade das partes, não será pelo facto de no referido documento ter sido encimada como “contrato de mútuo”, que o mesmo poderá ser entendido como tal, tanto mais que lendo e interpretando tal documento, o mesmo não reúne os requisitos do contrato de mútuo (art. 1143º do C. Civil). Neste sentido, ensina o Prof. Anselmo de Castro, “in” A Acção Executiva, Singular, Comum e Especial, págs. 41 e 42, 3ª edição: “não há coincidência entre a força probatória legal e força executiva ou exequibilidade. A lei concede força executiva a títulos que não possuem força probatória legal”. E acrescenta mais adiante: “mesmo quando representativas de mútuo” – referindo-se a obrigações pecuniárias -, “formalmente nulo, será o título de considerar-se sempre exequível para a restituição da respectiva importância, só o não sendo para o cumprimento específico do contrato (v.g. para exigir os juros) ”.
8ª Na verdade, do documento particular, dado à execução, o devedor, que reconhece ter recebido do exequente a importância de € 70.579,90, dela se confessando devedor, obriga-se a restitui-la, logo que lhe seja exigida, o que é dizer que estando reconhecida e determinada a quantia exequenda, o referido documento configura, inquestionavelmente, um título executivo, nos termos do art. 46º, n.º 1, al. c), do C.P.Civil, e é bastante para instruir e sustentar a presente acção executiva (cfr. neste sentido, Ac. STJ de 19/02/2009, Proc. 07B4427, “in” www.dgsi.pt, Ac. do STJ, de 13/07/2010, Proc. 6357/04.7MTS“in” www.dgsi.pt e Ac. da Relação de Coimbra, de 20/06/2012, Proc. 280/10.3TBVNO-A.C2, “in” www.dgsi.pt.
9ª Dúvidas não poderão restar que o documento dado à execução é um documento particular, o qual, numa análise e interpretação jurídica avisada, tal como aconteceu no douto Acórdão invocado, reunindo, em qualquer dos casos, os necessários requisitos do título executivo, a que alude o art. 46º, n.º 1, al. c), do C.P. Civil, é válido e com força vinculativa, para sustentar a presente acção executiva, que deverá prosseguir os seus termos até final.
10ª É que, pese embora o título dado à execução, se entendido como “contrato de mútuo”, seja nulo, o mesmo vale como documento particular, onde é reconhecido o crédito exequendo e onde se consignaram as razões que o originaram (empréstimo com obrigação de devolução, confessado pelo executado, aqui apelado), sempre sendo título executivo à luz do disposto no art. 46º, n.º 1, al. c), do C.P.C.
11ª E mesmo que se entendesse ser o referido título, num contrato de mútuo, declarado nulo por falta de forma, constando do título, o reconhecimento da dívida exequenda e a obrigação de restituição, não emergindo o direito do exequente do contrato, face à sua nulidade formal, sempre está obrigado a restituir o que lhe foi emprestado, na medida em que, naquele documento reconhece a dívida e a obrigação de pagá-la, cabendo ao credor o direito de exigi-la e executá-la ao abrigo do disposto nas disposições conjugadas do art. 289º, n.º 1, do C. Civil (art. 46º, n.º 1, al. c), do C.P.Civil), dando à execução o questionado título, sem necessidade de propor uma acção declarativa para o efeito, segundo os ensinamentos do já citado Acórdão do STJ.
12ª Configura, assim, o questionado documento, por parte do exequente, um empréstimo (crédito) e por parte do executado, uma dívida por si reconhecida (débito), tal documento constitui, indiscutivelmente, um documento particular, válido como título executivo, nos termos do art. 46º, n.º 1, al. c), do C.P. Civil, sendo por consequência título bastante para alicerçar a presente acção executiva, deverá, o douto despacho “sub judice”, que indefere liminarmente o requerimento executivo, ser revogado e substituído por outro e que ordene o prosseguimento dos autos executivos até final.
13ª Ao decidir, como decidiu, o douto despacho, ora em crise, viola o disposto no art. 46º, n.º 1, al. c), do C.P. Civil.
Não foram oferecidas contra-alegações.
Ordenou-se a baixa dos autos ao tribunal a quo a fim de se proceder à fixação do valor da causa.
O valor da causa foi fixado no montante de € 70.579,90.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
A única questão a apreciar e decidir é a da exequibilidade do título exequendo se acaso o negócio por ele titulado for nulo por vício de forma.
3. Fundamentos de facto
Além dos factos que constam do relatório que antecede, relato que se baseou no que resulta dos autos de folhas 2 a 178 e que por razões de economia processual se não reproduz, devem ainda relevar-se mais os seguintes factos:
3.1
Em escrito datado de 30 de Abril de 2002, intitulado “Contrato de Mútuo”, subscrito por B..... e C....., declarou o primeiro outorgante, o referido Feliciano, que neste acto entregou ao segundo outorgante, o citado C……, a quantia de € 70.579,90; que a referida quantia foi mutuada a título particular para que o segundo a aplicasse em todas as obras que a empresa E..... Limitada, de que ambos fazem parte, venha a realizar no âmbito da sua actividade, bem como em contratos de suprimentos que este venha a fazer à referida sociedade; que a quantia mutuada deverá ser paga total ou parcialmente, pelo segundo outorgante, quando solicitado pelo primeiro, sendo que terá que ser estabelecido um prazo razoável de modo a possibilitar a sua liquidação; sobre a quantia mutuada, não incidem juros até efectivo pagamento, pelo que o primeiro não pagará quaisquer impostos por não obter com o presente contrato qualquer lucro, declarando o segundo outorgante que aceita o presente contrato de mútuo nos exactos termos em que se encontra exarado.
3.2
C..... e D..... deduziram oposição à acção executiva sob forma comum, para pagamento de quantia certa, nº 733/12.9TBPFR, que contra eles foi instaurada por B..... invocando a ilegitimidade passiva da executada, negando a entrega do capital que se afirma ter sido entregue no título exequendo e alegando ainda que o montante exequendo foi pago mediante dações em pagamento, pela não exigência do valor de suprimentos que o executado tinha a haver na sociedade de que exequente e executado foram sócios e ainda pela não exigência do custo de serviços de contabilidade que o executado prestou à mesma sociedade.
4. Fundamentos de direito
4.1 A eventual nulidade formal do negócio titulado pelo título executivo obsta à sua exequibilidade?
O recorrente pugna pela revogação da decisão sob censura alegando que o título exequendo consubstancia uma confissão de dívida, reunindo todos os requisitos necessários para valer com título executivo, à luz do disposto no artigo 46º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil e que, ainda que consubstancie um mútuo nulo por vício de forma, isso não obstará à exequibilidade do título na veste de instrumento para operar a obrigação de restituição decorrente da declaração de nulidade.
Cumpre apreciar e decidir rememorando, antes de mais, os elementos normativos essenciais à dilucidação do caso.
“Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva” (artigo 45º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Nos termos do disposto no artigo 46º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil, à execução podem servir de base os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto.
Os documentos particulares são uma categoria residual, pois que são constituídos por todos os documentos que não são autênticos (artigo 363º, nº 2, do Código Civil).
“Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário” (artigo 458º, nº 1, do Código Civil).
“A promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental”[1] (artigo 458º, nº 2, do Código Civil).
No reconhecimento de dívida, o credor da dívida reconhecida fica dispensado de provar a causa da dívida reconhecida, presumindo-se a existência de causa, sem prejuízo da prova do contrário por parte daquele que se obriga mediante o reconhecimento de dívida (artigos 458º, nº 1 e 350º, nº 2, ambos do Código Civil).
O reconhecimento de dívida não é assim um negócio abstracto, no sentido de ser independente de uma causa, apenas se presumindo iuris tantum essa causa por efeito do reconhecimento[2]. Além disso, o reconhecimento de dívida pressupõe, necessariamente, a identificação ou, ao menos, a determinabilidade do credor da dívida reconhecida (artigo 511º do Código Civil).
“Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade” (artigo 1142º do Código Civil).
“O contrato de mútuo de valor superior a 20 000 euros só é válido se for celebrado por escritura pública, e o de valor superior a 2 000 euros se o for por documento assinado pelo mutuário” (artigo 1143º do Código Civil, na redacção introduzida pelo decreto-lei nº 343/98, de 06 de Novembro, versão em vigor a 30 de Abril de 2002).
“A declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei” (artigo 220º do Código Civil).
“A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal” (artigo 286º do Código Civil).
“Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente” (artigo 289º, nº 1, do Código Civil).
Importa ainda não perder de vista que o Supremo Tribunal de Justiça proferiu o Assento nº 4/95[3], publicado no Diário da República nº 114/95, de 17 de Maio de 1995, actualmente com o valor da jurisprudência uniformizada (artigo 17º, nº 2, do decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro), do seguinte teor:
- “Quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil.
No caso em apreço, a factualidade provada permite-nos concluir, com segurança, que o recorrente declarou ter entregue ao recorrido a quantia de € 70.579,90, o que foi aceite pelo recorrido. Nesta medida, pode dizer-se que o recorrido confessa ter recebido do recorrente a quantia de € 70.579,90, confissão que tem força probatória plena (artigo 358º, nº 2, do Código Civil). Atente-se que a confissão, extrajudicial no caso, exarada em documento particular, pode ser declarada nula ou anulada, nos termos gerais, por falta ou vícios da vontade ou impugnando a genuinidade da assinatura ou ainda, sendo reconhecida a genuinidade da assinatura, demonstrando-se a falsidade do documento, não podendo porém o confitente demonstrar a falsidade da sua própria confissão[4].
A mesma factualidade provada dá conta que a entrega daquela quantia foi a título gratuito, obrigando-se o recorrido a restituí-la ao recorrente logo que tal for solicitado por este, sendo que terá que ser estabelecido um prazo razoável de modo a possibilitar a sua liquidação. Deste modo, o recorrido obrigou-se à restituição da importância recebida do recorrente e logo que este lho exija, fixando-se um prazo razoável para que a restituição se efective.
Estes dados de facto permitem-nos concluir que o título dado à execução consubstancia um contrato de mútuo[5], tendo o prazo de restituição da importância mutuada sido estabelecido em benefício do mutuante, o aqui recorrente.
A confissão do recorrido de recebimento da quantia mutuada é uma realidade bem distinta de um reconhecimento de dívida pois traduz-se no reconhecimento da perfectibilização do contrato de mútuo mediante a entrega do bem mutuado ao mutuário, com indicação da causa dessa entrega, ao invés do que sucede no reconhecimento de dívida que consiste numa declaração unilateral, sem indicação da causa.
À luz do disposto no artigo 46º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil, o título exequendo constitui indubitavelmente um documento particular[6], assinado pelo recorrido, que importa o reconhecimento de uma obrigação pecuniária determinada de que é credor o aqui recorrente, sendo por isso, a uma primeira abordagem, título executivo.
Contudo, constituindo o título exequendo um contrato de mútuo de valor superior a vinte mil euros, atenta a data em que foi exarado o documento exequendo (30 de Abril de 2002), a sua validade dependia da celebração mediante escritura pública (artigo 1143º do Código Civil, na redacção antes citada).
Não tendo sido observada esta forma, o referido contrato enferma de nulidade (artigo 220º do Código Civil), vício que é de conhecimento oficioso (artigo 286º do Código Civil), tendo a declaração de nulidade eficácia retroactiva, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, em espécie, se tal for possível ou, não o sendo, o valor correspondente (artigo 289º, nº 1, do Código Civil). Sendo o dinheiro um bem fungível por excelência, a declaração de nulidade implica que o mutuário deva restituir o capital que recebeu a título de mútuo nulo por vício de forma
Somos assim conduzidos à questão nuclear deste recurso: pode um documento que titula um contrato de mútuo nulo por vício de forma servir de título executivo em acção executiva instaurada pelo mutuante contra o mutuário e respectiva esposa, a fim de haver deles a restituição da quantia mutuada?
A questão que se acaba de enunciar não é doutrinal e jurisprudencialmente virgem nem pacífica, verificando-se um grande desencontro entre a maior parte da doutrina e a jurisprudência maioritária.
Assim, na doutrina, pronunciam-se em sentido negativo:
- José Maria Gonçalves Sampaio in A Acção Executiva e a Problemática das Execuções Injustas, Edições Cosmos 1992, página 64;
- Miguel Teixeira de Sousa in Acção Executiva Singular, Lex 1998, página 70, alínea b), posição que reafirma in A Reforma da Acção Executiva, Lex 2004, página 70;
- Lebre de Freitas in A Acção Executiva, Coimbra Editora 2009, página 62;
- Fernando Amâncio Ferreira in Curso de Processo de Execução, Almedina 2010, 13ª edição, página 41.
Em sentido afirmativo pronuncia-se Artur Anselmo Castro in A Acção executiva, Singular, Comum e Especial, Coimbra Editora 1977, 3ª edição, páginas 41 e 42.
Na jurisprudência, convergindo com a doutrina maioritária recenseamos, sem preocupação de exaustividade o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Novembro de 2011, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Alves Velho, no processo nº 4719/10.0TBMTS-A.S1 e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de Outubro de 2005, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Fernando Baptista, no processo 0534550, ambos acessíveis no site da DGSI.
Na jurisprudência, em sentido dissonante com a doutrina maioritária, também sem preocupações de exaustividade, indicam-se as seguintes decisões, todas acessíveis no site da DGSI:
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Fevereiro de 2009, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Pires da Rosa, no processo nº 07B4427;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Julho de 2010, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro João Camilo, no processo nº 6357/04.7TBMTS-B.P1.S1;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01 de Fevereiro de 2011, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Nuno Cameira, no processo nº 7273/07.6TBMAI-A.P1.S1;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Maio de 2011, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Salazar Casanova, no processo nº 4716/10.5TBMTS-A.S1;
- acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13 de Setembro de 2011, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Artur Dias, no processo nº 189/10.0TBMGR-A.C1;
- acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20 de Junho de 2012, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Carlos Querido, no processo nº 280/10.3TBVNO-A.C1.
Cumpre tomar posição nesta querela doutrinal e jurisprudencial.
A nossa lei processual não identifica o título executivo com o instrumento constitutivo da obrigação exequenda, bastando que o título exequendo contenha o reconhecimento da obrigação exequenda. Só assim se entende a contraposição entre constituição e reconhecimento constante da alínea c), do artigo 46º do Código de Processo Civil.
No caso em apreço, o executado ao aceitar ter recebido o capital exequendo do exequente, obrigando-se a restituí-lo logo que para tanto isso lhe for solicitado e mediante a concessão de um prazo razoável, confessa inquestionavelmente a obrigação de restituir a quantia cuja cobrança coerciva é pretendida pelo exequente, assim reconhecendo essa obrigação. Essa obrigação de restituir existe ou constitui-se por força dos efeitos da declaração de nulidade do contrato de mútuo que deu causa à entrega do capital exequendo, nulidade que é de conhecimento oficioso e que foi declarada pelo tribunal a quo.
Por outro lado, por força da jurisprudência uniformizada contida no Assento nº 4/95[7], “Quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil.” Embora a espécie jurisprudencial que se acaba de citar tenha o seu campo de aplicação mais talhado para a acção declarativa, nenhuma razão séria se divisa para que igual doutrina não seja seguida em sede executiva, tanto mais que esta sede, seja pela via da oposição à acção executiva, seja pela via do contraditório ad hoc, ex vi artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, não deixa o executado desprotegido.
Ainda que o fundamento jurídico da pretensão exequenda não seja aquele que efectivamente opera por força da declaração de nulidade, os efeitos práticos atingidos são num e noutro caso idênticos, só assim não sucedendo, se porventura o exequente tivesse exigido o pagamento de juros remuneratórios, o que não foi o caso dos autos, tanto mais que o mútuo foi gratuito.
A exequibilidade do título em que se confessa o recebimento de certo capital por força de um contrato nulo por vício de forma é a solução que melhor se conforma com o princípio da economia processual, sem contudo molestar as garantias de defesa do executado, como antes se evidenciou.
Assim, face ao exposto, conclui-se que não obstante a nulidade por vício de forma do negócio que serviu de causa à entrega do capital confessado pelo executado, o referido documento constitui título executivo para obter a realização coerciva da obrigação legal de restituição do capital mutuado cuja entrega se acha confessada, pelo que o despacho sob censura deve ser revogado.
5. Dispositivo
Pelo exposto, em audiência, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar procedente o recurso de apelação interposto por B..... contra a decisão proferida a 22 de Outubro de 2012 e, consequentemente revoga-se a mesma, ordenando-se o prosseguimento dos autos, se a tanto não obstarem quaisquer outras causas que não a que foi apreciada neste recurso.
Custas a cargo dos recorridos, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
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O presente acórdão compõe-se de treze páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 22 de Abril de 2013
Carlos Pereira Gil
Luís Filipe Lameiras
Carlos Manuel Marques Querido
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[1] Deste normativo parece lícito concluir-se que o reconhecimento de dívida depende, quanto à forma, das formalidades ad probationem requeridas para a relação subjacente, não resultando desta previsão legal que idêntica dependência exista quando se trate de formalidade ad substantiam (a propósito desta distinção importa nunca perder de vista o disposto no artigo 364º do Código Civil). Neste aspecto, a solução acolhida no Código afastou-se claramente da proposta pelo Sr. Professor Vaz Serra (veja-se o Boletim do Ministério da Justiça nº 83, página 65), pois no articulado proposto para esta figura previa: “A promessa ou o reconhecimento, para que tenham o carácter previsto no parágrafo anterior, devem fazer-se por escrito, a não ser que tenham por base uma conta realizada com a cooperação de ambas as partes; mas, se para a promessa da prestação ou para a relação fundamental forem necessárias outras formalidades, também a promessa ou o reconhecimento de dívida devem obedecer a essas formalidades.
[2] Assim veja-se Contratos II, Almedina 2007, Carlos Ferreira de Almeida, página 120.
[3] Criticamente relativamente a este aresto, se bem se interpreta o texto da autora, veja-se, Acto e Processo, Coimbra Editora 2003, Paula Costa e Silva, página 577 e nota 1217, embora na página 572 e na nota 1204 pareça admitir a correcção da doutrina nele veiculada.
[4] Sobre esta questão, veja-se, na doutrina, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora 1987, Pires de Lima e Antunes Varela, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, página 319, último parágrafo da anotação 4. Na jurisprudência veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Maio de 2011, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Salazar Casanova, no processo nº 4716/10.5TBMTS-A.S1.
[5] Será um contrato de mútuo de escopo porquanto a importância mutuada destinava-se a ser aplicada pelo recorrido em todas as obras que a empresa E..... – Construções Limitada, de que recorrente e recorrido fazem parte, venha a realizar no âmbito da sua actividade, bem como em contratos de suprimentos que o recorrido venha a fazer à referida sociedade.
[6] Pois não foi elaborado por uma autoridade pública, nos limites da sua competência, nem foi exarado por notário ou outro oficial público provido de fé pública, dentro do círculo de actividade que lhes é atribuído (artigo 363º, nº 2, do Código Civil).
[7] Criticamente relativamente a este aresto, se bem se interpreta o texto da autora, veja-se, Acto e Processo, Coimbra Editora 2003, Paula Costa e Silva, página 577 e nota 1217, embora na página 572 e na nota 1204