CHEQUE
PROVISÃO
CONVENÇÃO DE CHEQUE
CO-TITULAR
RESPONSABILIDADE
Sumário

I – A provisão e a convenção de cheque são simples condições de regularidade de emissão do cheque, não constituindo requisitos da sua validade jurídica, pelo que o efeito cartular não fica dependente da existência e regularidade de qualquer daquelas relações.
II - O co-titular de uma conta bancária e co-sujeito da convenção de cheque, não é sujeito da relação jurídica cambiária resultante da emissão, por um outro co-titular daquela conta e desta convenção, não assumindo, por virtude daquela co-titularidade, em relação ao portador, uma responsabilidade cambiária, ainda que a causa de não pagamento, pelo sacado, do cheque resulte da extinção, por sua iniciativa, do contrato de conta bancária e dos contratos de depósito e de cheque associados.
III - O sujeito que figure no cheque – de que não foi sacador, endossante ou avalista – na simples qualidade de co-titular da conta bancária solidária sacada não é dotado de legitimidade para a execução, dado que não figura no título na qualidade de devedor e aquela circunstância não lhe atribui aquela legitimidade.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

J… deduziu oposição à execução para pagamento de quantia certa, promovida por R…, que corre termos no 3º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande, pedindo se julgue extinta a instância executiva.

Fundamentou a oposição no facto de não ser parte legítima na execução, dado que não opôs a sua assinatura nos cheques – que contêm a rubrica da executada, S…, sua filha, no campo destinado à assinatura do sacador – sendo que o seu nome figura nos cheques na parte respeitante à identificação do titular da conta bancária, que manteve, com aquela, uma conta bancária solidária, que se destinava apenas a fazer face às despesas médicas com a doença que afecta a sua mulher e que, tendo constatado que a sua filha vinha utilizando as quantias depositadas para proveito próprio, deixando a conta “a zero”, deu instruções ao Banco … para o cancelamento da conta, pelo que os cheques emitidos pela filha foram devolvidos com a menção de “conta encerrada”, que a conduta da sua filha é do conhecimento do exequente, que sabia que os cheques foram utilizados abusivamente, à sua revelia, por aquela, pelo que age com má fé e abuso do direito, e de não restarem dúvidas acerca da inexistência ou inexequibilidade, relativamente a si, do título executivo, sendo certo que não deve quantia alguma nem teve qualquer relação comercial ou contratual com o exequente, desconhecendo o eventual relacionamento comercial existente entre aquele e a sua filha, subjacente à emissão dos cheques.

O exequente alegou, em contestação, que entre Dezembro de 2007 e Março de 2008 emprestou aos executados C… e S…, por diversas ocasiões, € 361.250,00, para cujo pagamento estes subscreveram e lhe entregaram dois cheques, no valor de € 37.500,00 e de € 75.000,00, assinados pela filha do opoente, ambos titulares de uma conta solidária no Banco …; que os cheques como títulos cambiários o dispensam de provar qualquer relação subjacente, atenta a autonomia cartular; que a sua apresentação foi essencial para o desembolsar do dinheiro que emprestou à filha do opoente; que aceitou os cheques desconhecendo se existe ou não qualquer diferendo entre o opoente e a filha; que a conta bancária é co-titulada por ambos, tendo os cheques sido apresentados a pagamento em tempo útil e recusados na compensação, pelo que sendo o opoente co-titular da conta solidária dos cheques sacados  responde por todos os débitos que à mesma respeitam, que se consubstanciam nas ordens de pagamento constantes dos cheques e que o expediente de mandar encerrar a conta não assiste ao oponente como manobra para se furtar ao pagamento, sendo totalmente alheio à situação alegada por aquele.

No despacho saneador julgou-se improcedente a excepção da ilegitimidade deduzida e, abstida a selecção da matéria de facto, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento.

A sentença final da oposição, proferida no dia 21 de Dezembro de 2012 – designadamente com fundamento em que o opoente não pode deixar de ser considerado parte legítima na instância executiva, na irrelevância da impugnação do negócio subjacente e na improcedência da excepção do preenchimento abusivo - julgou-a improcedente.

Apelou, naturalmente, o executado que pede, no recurso, que se revogue aquela sentença e se julgue procedente a oposição.

Para convencer do mal fundado da decisão contida na sentença impugnada, o apelante extraiu da sua alegação estas conclusões:

O exequente concluiu, na resposta, pela improcedência do recurso.

2. Factos provados.

2.1. Foram dados à execução a que os presentes se mostram apensos a escritura de confissão de divida que os co Executados C… e S… outorgaram e os cheques melhor constantes dos autos de execução cujo teor aqui se dá por reproduzido.

2.2. Nos documentos nos 6 e 8, no valor respectivamente de € 37.500 e 75.000€, consta que foram sacados sobre a conta ali melhor identificada do Banco … da titularidade do J...

2.3. E neles se mostra aposta uma rubrica pertença da filha do Executado aqui Oponente no lugar reservado ao sacador.

 2.4. Em tempos o Oponente teve uma conta solidária com a sua filha que se destinava a fazer face a despesas médicas com a doença grave da mulher do Oponente e mãe da Executada.

2.5. Em determinada altura constatou o ora Oponente que a sua filha vinha utilizando as quantias depositadas na referida conta bancária em seu proveito, deixando a mesma a zeros.

2.6. Logo que de tal facto tomou conhecimento deu instruções àquela referida instituição bancária para cancelamento da conta, tendo os cheques referidos sido devolvidos com a menção conta encerrada.

2.7. A referida conduta era do conhecimento do Exequente.

2.8. Tendo sido comentado o comportamento da filha do Executado como tendo retirado dinheiro aos pais.

2.9. O Exequente é pessoa singular que, entre Dezembro de 2007 e Março de 2008, emprestou, por diversas ocasiões e em situação autónomas, o valor de 361.250,00 € aos executados C… e S…, esta última filha do ora Oponente.

2.10. Para pagamento da quantia emprestada os primeiros executados acima referidos subscreveram e entregaram ao Exequente, entre outros, dois cheques, no valor de 37.500,00 € e 75.000,00 €, que se juntaram como Docs. 6 e 8 ao Requerimento Executivo.

2.11. Os referidos cheques foram assinados pela filha do ora Oponente, ambos titulares de uma conta solidária no Banco ...

2.12. Foram apresentados a pagamento ao banco sacado com relação à conta bancária solidária do Oponente e da sua filha, tendo sido devolvidos na compensação e tendo a instituição de crédito recusado o pagamento (cfr. Docs. 6 e 8 junto ao Requerimento Executivo).

2.13. A apresentação dos cheques em causa foram essenciais para o desembolsamento das verbas em dinheiro que o exequente disponibilizou à filha do Oponente, e foi neste contexto que o Exequente aceitou os cheques daquele para quitação de valores em divida oriundos do empréstimo.

2.14. Foram várias as tentativas, por parte do Exequente, por meio de telefone, carta e fax, para ver liquidada a dívida, sendo que os co-executados reconheceram a dívida e se comprometeram a liquidar os valores devidos, o que não veio a suceder.

2.15. Aquando do envio dos referidos cheques para pagamento da dívida, o Exequente nunca pôs em causa a validade dos mesmos.

2.16. No decurso das relações estabelecidas, a Executada S… passou ao Exequente dois cheques com o nº … e nº …, no valor de € 37.500,00 e € 75.000,00, respectivamente, para pagamento de parte do empréstimo concedido.

2.17. A conta bancária a que corresponde o título cambiário e ordem de pagamento que dele consta é co-titulada, em regime de solidariedade, por S… e pelo Oponente.

2.18. Os cheques encontram-se datados de 12.04.2008 e de 10.04.2008.

2.19. Foram apresentados a compensação em 14.04.2008 e 10.04.2008 pelo Exequente e foram devolvidos na mesma compensação, tendo o Banco recusado pagamento, em 15.04.2008 e 11.04.2008.

2.20. Em ambos os cheques, nos respectivos versos, encontra-se inscrito, em selo legível, “Devolvido na Compensação de Lisboa na Sessão de”, acompanhada da inscrição das datas supra (cfr. Docs. 6 e 8 juntos ao Requerimento Executivo).

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada, expressa ou tacitamente, no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC de 1961).

Assim, tendo em conta a vinculação temática deste tribunal ao conteúdo da decisão impugnada e das conclusões do apelante, são duas as questões concretas controversas que este Tribunal é chamado a resolver:

 a) Se os documentos que servem de base à execução são extrinsecamente exequíveis;

b) Se o recorrente é dotado de legitimidade para a execução.

A resolução destes problemas vincula ao exame, ainda que breve, da condição da acção executiva representada pela exequibilidade extrínseca e das funções, constitutiva e delimitadora, do título executivo.

3.2. Exequibilidade extrínseca da pretensão e funções constitutivas e delimitadoras do título executivo.

A acção executiva, que visa a realização efectiva, por meios coercivos, do direito violado, tem por suporte um título que constitui a matriz ou limite quantitativo e qualitativo da prestação a que se reporta (artºs 2, 4 nº 3 e 45 nº 1 do CPC, 10 nºs 1, 4 e 5 do NCPC).

A exequibilidade extrínseca da pretensão é atribuída pela incorporação da pretensão no título executivo, i.e., num documento que formaliza, por disposição da lei, a faculdade de realização coactiva da prestação não cumprida (artº 45 nº 1 do CPC de 1961 e 10 nº 5 do NCPC).

O título executivo é o documento da qual resulta a exequibilidade de uma pretensão e, portanto, a possibilidade de realização da correspondente pretensão através de uma acção executiva. Este título incorpora o direito de execução, ou seja, o direito do credor a executar o património do devedor ou de terceiro para obter a satisfação efectiva do seu direito à prestação[1].

O título executivo exerce, assim, desde logo, uma função constitutiva – dado que atribui exequibilidade a uma pretensão, permitindo que a correspondente prestação seja realizada através de medidas coactivas impostas ao executado pelo tribunal.

A acção executiva visa a realização coactiva de uma prestação ou de um seu equivalente pecuniário. A exequibilidade da pretensão, na qual se contém a faculdade de exigir a prestação, e, portanto, a possibilidade de realização coactiva desta prestação, deve resultar do título.

O título deve, portanto, incorporar o direito de execução, quer dizer o direito do credor de obter a satisfação efectiva do seu direito à prestação.

Nestas condições não pode ser reconhecido valor executivo ao documento que não contenha, ao menos implicitamente, a constituição ou o reconhecimento de uma obrigação e o correspondente dever de cumprimento. Para que possa ser usado como título executivo o documento deve incorporar o direito a uma prestação; quando isso não ocorre, nada há a prestar por um sujeito passivo e, por isso, nada há a executar.

Nos casos em que documento que serve de suporte ao accionamento executivo não incorpora a faculdade de exigir o cumprimento de uma prestação, o título correspondente é extrinsecamente inexequível.

A inexequibilidade extrínseca do título constitui idóneo fundamento de contestação da execução (artºs 814 a), 2ª parte, e 816 do CPC de 1961, 729 a), 2ª parte, e 731 do NCPC). Se for considerado procedente, esse fundamento traduz-se na falta de um pressuposto processual da execução, o que conduz à extinção da instância executiva bem como à caducidade de todos os efeitos produzidos na execução (artºs 817 nº 4 do CPC de 1961 e 732 nº 4 do NCPC).

Na verdade, o objecto da acção executiva é necessariamente, e apenas, um direito a uma prestação, visto que só este direito impõe um dever de prestar e só este dever de prestar pode ser imposto coactivamente.

O título executivo cumpre, no processo executivo, também uma função delimitadora, dado que é por ele que se determinam, designadamente, os limites subjectivos da acção executiva, i.e., os limites respeitantes às partes na execução (artºs 45 nº 1 do CPC de 1961 e 10 nº 5 do NCPC). O título executivo exerce, portanto, uma função de legitimação: ele determina as pessoas com legitimidade processual para a acção executiva e, salvo oposição do executado, ou vício de conhecimento oficioso, é suficiente para iniciar e efectivar a execução.

Realmente, as partes legítimas para a execução determinam-se, em regra, pelo próprio título executivo: são partes legítimas, aquelas que figuram no título como credor e devedor (artº 55 nº 1 do CPC de 1961 e 53 nº 1 do NCPC). Note-se que o texto legal não diz que é parte legítima como exequente o credor, e como executado o devedor; não diz e não devia dizer, sob pena de lamentável confusão entre a questão da legitimidade e da procedência. É que o exequente e o executado podem ser partes legítimas – apesar de não serem credor e devedor.

A ilegitimidade executiva ocorre quanto a parte não coincide com aquela que consta do título executivo e nenhuma outra circunstância lhe atribua legitimidade. A ilegitimidade singular é uma excepção dilatória, oficiosamente cognoscível e insanável, podendo ser alegada pelo executado como fundamento de oposição à execução (artºs 814 c) e 816 do CPC de 1861 e 729 c) e 731 do NCPC).

É incontroverso que os dois títulos que aparelham ou servem de suporte à execução no tocante ao recorrente são legalmente qualificados como cheques (artº 1 da LUC). Também é claro que foram sacados sobre uma conta bancária colectiva, mais exactamente sobre uma conta solidária, titulada por um outro executado e pelo opoente, e em que, portanto, cada titular pode proceder à sua movimentação, sem o concurso dos demais contitulares, e sem ter também de demonstrar, perante o banco, a autorização dos últimos. É igualmente indiscutível que o banco recusou o pagamento dos cheques por virtude do encerramento da conta – promovido pelo apelante – sobre a qual foram sacados.

A abertura de conta e o depósito bancário são operações, rectior, contratos bancários, reservadas a banqueiros (artºs 362 do Código Comercial e 4 e 8 nºs 1 e 2 do RGIC, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro).

As noções de abertura de conta e de depósito bancário devem ser cuidadosamente recortadas e separadas.

A abertura de conta é, muitas vezes, confundida quer com a conta-corrente quer com o depósito bancário. Trata-se, porém, de realidades bem distintas.

A abertura de conta é um contrato celebrado entre um banqueiro e o seu cliente, pelo qual ambos assumem deveres recíprocos e diversas práticas bancárias[2]. Trata-se de um contrato bancário nuclear ou central, que, embora sem regime legal explícito, constitui a moldura dos diversos actos bancários subsequentes[3].

A conta-corrente bancária é uma conta-corrente comum mas celebrada entre o banqueiro e o cliente que se inclui no negócio jurídico mais vasto representado pela conta bancária: através dela fica assente o modo pelo qual a conta é movimentada em termos de débito e de crédito e tem por elemento nuclear o saldo, verdadeiramente autónomo em relação aos créditos que o antecedem (artº 344 do Código Comercial).

Se é perfeitamente admissível a conclusão de um contrato de abertura de conta, com a inerente conta-corrente bancária, sem um depósito inicial, a verdade é que o depósito é uma operação que surge, normalmente, associada a uma abertura de conta: aquando da conclusão deste último contrato, surge para o banqueiro, em regra, a obrigação de receber depósitos bancários.

O depósito bancário, em sentido estrito ou próprio, ou depósito de dinheiro ou disponibilidades monetárias, é o contrato pelo qual uma pessoa entrega uma quantia pecuniária a um banco, que dela passa a dispor livremente e se obriga a restituí-la, a solicitação do depositante, nas condições convencionadas (artºs 408 do Código Comercial e 1 do Decreto-Lei nº 430/91, de 2 de Novembro)[4].

O depósito bancário, proprio sensu, é portanto, um depósito em dinheiro constituído junto de um banqueiro, operação que surge sempre associada a uma abertura de conta. Tratando-se de depósitos à ordem, existe uma única convenção, anexa à abertura de conta e que vincula o banqueiro a receber, levando à conta, as diversas remessas feitas a título de dinheiro depositado.

Se a conta for titulada por duas ou mais pessoas, o depósito diz-se plural e será solidário se qualquer dos credores – depositantes ou titulares da conta - apesar da indivisibilidade da prestação, tiver a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral, ou seja o reembolso de toda a quantia depositada e em que a prestação assim efectuada libera o devedor – o banco depositário – para com todos eles (artº 512 do Código Civil). Uma conta desta espécie pode ser movimentada por qualquer dos seus titulares, indistinta ou isoladamente, podendo, os cheques ou as ordens de pagamento ser subscritas apenas por um dos titulares da conta, seja ele qual for. Note-se, porém, que a solidariedade que está aqui em causa – salva convenção contrária - é uma solidariedade circunscrita ao lado activo, que respeita à disponibilidade e à movimentação da conta a débito, que não uma solidariedade, a um tempo, activa e passiva (artº 528 do Código Civil)[5].

Um outro negócio subsequente à abertura de conta é a convenção de cheque, que tanto pode ser expressa como meramente tácita. Em regra, a convenção de cheque surge associada a um contrato de abertura de conta. Trata-se, porém, de uma convenção autónoma e não um simples acto integrado no negócio mais vasto da abertura de conta.

De forma deliberadamente simplificadora, bem pode dizer-se que o cheque é um documento, em regra normalizado, do qual consta uma ordem de pagamento, dada por um cliente ao seu banco, para que proceda a um determinado pagamento a um terceiro, ao portador ou até ao dador dessa ordem (artº 1, 2 e 12 nº 2 da LUC)[6].

O cheque enuncia uma ordem de pagamento que se dirige a um banqueiro, no estabelecimento do qual devem existir fundos à disposição do primeiro, em regra uma provisão constituída pelo emitente do título (artº 3 da LUC). É assim o cheque o meio pelo qual se mobilizam fundos, quer em benefício do emitente – cheque a favor do depositante – quer a favor de um terceiro. O cheque pode apresentar-se como título de crédito à ordem quando indica o nome do beneficiário da ordem de pagamento; é então correntemente denominado cheque nominativo, designação, contudo, imprópria, dado que a sua forma de transmissão é o simples endosso (artº 12, 1º § da LUC). Quando seja ao portador, o cheque transmite-se por simples traditio (artº 5 da LUC).

O cheque pressupõe, portanto, uma convenção de cheque e uma relação de provisão, de harmonia com a qual o banqueiro deve ter fundos à disposição do emitente do título. Não é necessário que o sacador tenha previamente depositado esses fundos no banco; basta, por exemplo, que este tenha concedido àquele um limite de crédito.

A convenção de cheque é, assim, o contrato, expresso ou tácito pelo qual o depositante fica com o direito de dispor de uma provisão, por meio de cheque, obrigando-se o banco a pagar o cheque até ao limite da quantia disponível, quer esta resulte de um depósito antecipadamente efectuado ou de crédito concedido pelo banqueiro (artº 3 da LUC). Esta convenção tem por fim a atribuição ao cliente do direito de dispor de fundos por meio de um ou mais cheques: o direito de dispor de fundos por cheque equivale ao direito de sacar cheques.

A convenção de cheque adstringe as partes – necessariamente o banqueiro e o seu cliente – a uma pluralidade de deveres, alguns ainda que puramente acessórios. O dever principal que para o banco decorre da convenção de cheque é, naturalmente, o de pagar o cheque que seja sacado sobre a conta que detenha no seu estabelecimento, à custa de fundos que nessa conta se encontrem disponíveis.

O cheque é, fundamentalmente, um meio ou instrumento de pagamento: a sua função económica primordial consiste em ser um meio de execução e extinção de dívidas pecuniárias, representando, desse modo, um sucedâneo da moeda legal – notas e moeda metálica.

A emissão de um cheque coenvolve o estabelecimento de relações jurídicas entre os vários intervenientes. Uma relação de cobertura – que vincula o sacador e o sacado, que se consubstancia na constituição de uma provisão de fundos e num pacto de disponibilidade por meio de cheques; uma relação de valuta, referida à ligação ente o sacador e o tomador, que explica a emissão do cheque como meio de pagamento de determinada divida pecuniária do primeiro ao último, embora, excepto em caso de convenção expressa das partes, a emissão dos títulos de crédito se entenda feita pro solvendo, com a consequência de que o saque do cheque não opera a extinção da relação fundamental do sacador-devedor (artº 840 do Código Civil).

O cheque, porém, não cria qualquer relação cambiária entre o sacado e o portador, como é patente em face do facto de o sacado não poder ser accionado em via de regresso, nem aceitar ou avalizar o cheque (artºs 4, 25 e 40 da LUC). Daqui decorre que o banco sacado, embora esteja obrigado a satisfazer a ordem emitida pelo sacador, não tem qualquer obrigação cambiária perante o portador, seja directa ou simplesmente de garantia – sem prejuízo, no entanto, da eventual responsabilidade civil extracontratual, que pode decorrer, quer da violação dos seus deveres gerais de conduta, quer da ofensa de deveres especiais de pagamento (artºs 73 e ss do RGIC, e v.g., 8 e 9 do DL nº 454/91, de 28 de Dezembro).

O cheque é um título pagável à vista, pelo que o seu vencimento ocorre na data da sua apresentação, ainda quando a data da emissão seja posterior (artº 28 da LUC). O cheque deve ser apresentado a pagamento pelo portador no prazo de oito dias a contar da data da sua emissão – no caso de ter sido passado no país onde é pagável – e deve ser pago pelo banco sacado, mediante qualquer modalidade admissível – entrega em numerário, crédito em conta, transferência bancária, compensação, etc. - excepto no caso de ultrapassagem do prazo de prazo de apresentação, hipótese em que o banco pode, embora não deva, pagar (artºs 29 e 32 nº 2 LUC).

Em face do regime da convenção de cheque, é controversa a sua natureza. No entanto, a jurisprudência e uma doutrina maioritária são hesitam em assinalar-lhe a natureza de um contrato de mandato, não representativo, ordenado, justamente, para a realização dos actos jurídicos inerentes ao pagamento do cheque[7]. Esta qualificação é extraordinariamente importante, dado que, em tudo o não for objecto de regulação específica, são aplicáveis as regras do mandato, seja directamente seja por força da extensão de regime das regras desse tipo contratual a todas as modalidades atípicas de contrato de prestação de serviço (artº 1156 do Código Civil). Realmente, o sacado mais não é do que um simples mandatário ou executante de uma ordem do sacador; a relação intercedente entre o banco e o sacador não tem por fonte o acto de emissão do título – mas um negócio jurídico que lhe é interior: a convenção ou contrato de cheque.

Dado que a convenção de cheque, embora seja um negócio eventual e autónomo relativamente à convenção troncal da relação banco-cliente, surge associada a este último contrato, a cessação deste negócio traz, naturalmente, implica a cessação daquela convenção, com a consequente extinção do direito do cliente de dispor dos fundos disponibilizados mediante a emissão de cheques e do correspondente dever do banco de proceder ao seu pagamento.

Como se notou já, a emissão de um cheque envolve entre os sujeitos intervenientes, entre outras, uma relação jurídica de cobertura, i.e., uma relação subjacente entre o sacador e o sacado, traduzida na constituição de uma provisão de fundos e num pacto de disponibilidade por meio de cheques.

No entanto, deve sublinhar-se que a provisão e a convenção de cheque são simples condições de regularidade de emissão do cheque, não constituindo requisitos da sua validade jurídica (artº 3, in fine, da LUC). Por isso que o cheque sacado sem provisão – ou sem acordo prévio do banco sacado – é perfeitamente válido, embora irregular, constituindo o sacador em responsabilidade civil e penal[8]. Mas mesmo nesse caso, continua a reconhecer-se ao portador as acções cambiárias, a que se soma a faculdade de accionar, civil e criminalmente, v.g., o sacador. O que parece induzir a conclusão de que o cheque é um título abstracto: pressupõe uma relação subjacente, mas o efeito cartular não fica dependente da existência e regularidade da relação de provisão: se ela não existir, o direito cartular não é posto em causa; a única consequência é a impossibilidade de o portador se satisfazer através do sacado, dirigindo-se o seu direito apenas contra o sacador, cuja assinatura dá, aliás, a garantia mínima do cheque.

O negócio jurídico originário do cheque, graças ao qual este é emitido, é o saque, que consiste na declaração unilateral, feita pelo emitente do título – sacador – e dirigida a um banco – sacado – que tem por conteúdo expresso uma ordem de pagamento de quantia pecuniária certa a favor de terceiro – tomador.

A obrigação do sacador é uma obrigação de garantia do pagamento do cheque: caso o banco não pague, o sacador deverá, ele mesmo, pagar directamente ao tomador ou portador do cheque (artº 12 da LUC). Outra obrigação de garantia de pagamento do cheque é a que decorre do endosso e do aval. O endossante fica constituído numa obrigação de garantia do pagamento perante o endossado e os portadores subsequentes (artº 18 nº 1 da LUC); o avalista, por sua vez, garante o pagamento do cheque por parte de um dos seus subscritores, mormente do sacador (avalizado) (artºs 25 a 27 da LUC).

No caso de falta de pagamento devido, o portador do cheque pode exercer judicialmente os seus direitos através da correspondente acção cambiária contra o sacador, endossantes ou outros co-obrigados – acção judicial que revestirá natureza executiva e pode ser movida contra qualquer daqueles obrigados (artºs 40, 41 e 43 da LUC).

À semelhança, por exemplo, da letra de câmbio, o cheque é um título de crédito de natureza creditícia, dado que incorpora um direito a uma prestação pecuniária, e abstracta, uma vez que lhe pode preencher uma pluralidade de causas-função. Mas já dela se distingue, visto que, para além de não constituir um instrumento de crédito mas um meio ou instrumento de pagamento, incorpora uma ordem de pagamento necessariamente dirigida a um determinado sacado – instituição de crédito ou bancária, na qual o emitente possui uma provisão de fundos.

Ao lado da sua função de meio ou instrumento de pagamento, o cheque pode também desempenhar uma função de garantia, como sucede, por exemplo, nos cheques pós-datados, que são, frequentemente, emitidos em garantia de uma obrigação de uma obrigação que pode ou deve ser cumprida doutro modo[9].   

Para além de literal, a obrigação incorporada no cheque é também abstracta. A criação da obrigação cartular pressupõe uma relação jurídica anterior que constitui a relação jurídica subjacente ou fundamental, causa remota da assunção daquela obrigação. Todavia, por força do princípio da abstracção, a causa encontra-se separada do negócio jurídico relativo à emissão do cheque, decorrente de uma convenção extra-cartular: a convenção executiva em conexão com a relação fundamental.

A obrigação incorporada constitutivamente no cheque é vinculante independentemente dos vícios da sua causa: as excepções causais são inoponíveis ao portador do cheque precisamente porque decorrem de uma convenção executiva extra-cartular, exteriores àquele negócio jurídico (artº 22 da LUC).

Mas isto só é assim nas relações mediatas – i.e., aquelas que se verificam entre o sacador e um portador que se lhe não siga imediatamente na cadeia cambiária e que, portanto, não é sujeito da convenção extra-cartular - as excepções ex-causa só são oponíveis demonstrando-se que o portador, ao adquirir o cheque, procedeu, conscientemente, em detrimento daquele que lhe opõe a excepção (artº 22 da LUC).

Portanto, aquele a quem é exigido o pagamento do cheque pode opor a terceiros excepções fundadas na relação fundamental ou causal do cheque, a não ser que esses terceiros tenham, ao adquirir o cheque, procedido conscientemente em detrimento do devedor.

É, portanto, indispensável que o portador tenha agido, ao adquirir o cheque, com a consciência de prejudicar o devedor. No entanto, uma coisa é a intenção de prejudicar, outra, a consciência de prejudicar: o portador, ao adquirir o cheque, pode agir com o propósito de prejudicar o devedor mediante a inoponibilidade, por este, das excepções que tinha contra os precedentes portadores e pode proceder apenas com conhecimento dessas excepções e do prejuízo que é causado ao devedor com a perda delas. O adquirente do cheque, embora não a adquira com a intenção de iludir as excepções do devedor, pode fazê-lo sabendo que o devedor é prejudicado pela circunstância de não poder valer-se delas contra o novo portador.

Não é suficiente, portanto, o simples conhecimento, pelo adquirente, da existência das excepções, visto que a lei exige que o portador tenha agido conscientemente em detrimento do devedor e não age conscientemente em detrimento do devedor quem somente tem conhecimento das excepções que este poderia opor aos portadores antecedentes; não obstante esse conhecimento, pode o adquirente ter razões para supor que o devedor não será prejudicado, não excluindo, necessariamente, esse conhecimento, a boa fé do adquirente. Exige-se, assim, que o adquirente ao adquirir o cheque conhecesse a existência da excepção e tivesse consciência de prejudicar o devedor: uma tal consciência significa ter o adquirente conhecimento de que prejudica, com a perda das excepções o devedor, e que ele aceita, voluntariamente, este resultado, querendo provocá-lo ou, ao menos, aceitando-o[10]. A prova deste facto incumbe, naturalmente, ao excipiente (artº 342 nº 2 do Código Civil).

Todavia, nas relações imediatas, i.e., nas relações entre o sacador ou outro portador e o sujeito cambiário imediato, porque os sujeitos cambiários o são simultaneamente da convenção executiva, tudo se passa como se a obrigação incorporada no cheque deixasse de ser literal e abstracta. Quando isso suceda, o sacador pode opor ao portador as excepções decorrentes das relações pessoais entre ambos.

A abstracção da obrigação incorporada no cheque não significa, como se salientou, a ausência de uma causa de assunção dessa obrigação – mas apenas que essa causa se encontra separada do negócio cartular, decorrendo, não dele próprio mas de uma convenção subjacente, extra-cartular: a convenção executiva em conexão com a relação fundamental.

Como o Supremo já salientou[11], do ponto de vista da sua exequibilidade, o cheque – como, de resto, qualquer outro título de crédito – pode, analiticamente, ser encarado em três planos ou perspectivas distintas.

Assim, o cheque pode, desde logo, valer como verdadeiro e próprio título de crédito que, por respeitar a uma pretensão abstracta, é suficiente para fundamentar a execução, mesmo que dele não conste qualquer causa debendi. Se o direito de crédito se encontra titulado por um cheque, o exequente tem apenas este ónus: o de apresentar esse título, dado que ele incorpora a relação cambiária que constitui a causa petendi do pedido executivo. A dispensa da invocação da causa debendi no título executivo abstracto, como é, decerto, o cheque, tem, naturalmente, esta particular relevância: o de a sua exequibilidade não ser afectada por incidências relativas a essa causa de aquisição da prestação. O título é exequível, qualquer que seja a relação subjacente ou ainda que esta nem sequer se tenha constituído ou já não subsista.

No caso, porém, de não observar os requisitos previstos na respectiva Lei Uniforme – inobservância que é cominada com o vício grave da inexistência, ressalvados, naturalmente os casos, em que tal falta possa ser suprida pela lei (falta de indicação da época e do lugar de pagamento e do lugar de emissão), o documento correspondente – por carência de uma ou várias menções obrigatórias – mais do que um título inválido ou ineficaz, não pode ser sequer ser havido, de todo em todo, como cheque, o que sucederá, também nos casos, em que se mostre extinto, v.g., por revogação ou prescrição da obrigação cambiária (artºs 1, 2 nºs 1 e 2 a 4 da LUC).

Isso não significa, porém, que seja destituído de qualquer relevância jurídica, dado que pode valer como uma simples quirógrafo – ou seja, um documento particular probatório da obrigação fundamental subjacente, que implique o reconhecimento dessa obrigação causal subjacente, desde logo como reconhecimento unilateral de uma dívida, sem indicação da respectiva causa, que dispensa o credor de provar essa relação fundamental - desde que, segundo certo entendimento do problema, esta não esteja submetida a específicas formalidades legais – cuja existência, até prova do contrário, se presume (artº 458 do Código Civil). Nesta hipótese, valendo o título ou documento particular apresentado pelo exequente como declaração unilateral de reconhecimento de uma dívida, ele pode fundamentar a execução, não obstante dele não constar a causa debendi nem uma tal causa se mostrar alegada pelo exequente no requerimento executivo: quando isso suceda, apesar da causa debendi não resultar do título executivo nem este se mostrar completado com essa alegação, cabe ao executado proceder à ilisão da presunção, provando a inexistência ou a invalidade da obrigação presuntivamente confessada ou reconhecida pela declaração unilateral invocada pelo exequente (artº 349 e 350 nºs 1 e 2 do Código Civil).

Por último, pode o cheque que não incorpore todas as menções legais obrigatórias ou se mostre extinto, valer como quirógrafo da relação causal subjacente à respectiva emissão, desde que o facto constitutivo da obrigação causal resulte do próprio cheque ou tenha sido alegada pelo exequente no respectivo requerimento executivo. Como é claro, esta terceira virtualidade do cheque, apenas relevará nos casos em que a declaração cambiária não puder valer como declaração unilateral de reconhecimento do débito subjacente à emissão do cheque e, portanto, nas hipóteses em que o credor não puder beneficiar da presunção da existência da causa debendi (artº 458 do Código Civil). Neste caso, recairá sobre o exequente o ónus da alegação – e da prova – dessa causa debendi, do facto constitutivo da obrigação, porque sem essa alegação, a obrigação não fica individualizada e, por isso, o requerimento executivo é inepto por falta de indicação da respectiva causa de pedir (artºs 193 nº 2 a) do CPC de 1961 e 186 nº 2 a) do NCPC).

Um tal alargamento da exequibilidade dos documentos negociais particulares – obtido em nítido prejuízo do princípio da suficiência do título executivo, de harmonia com o qual o título é, em si mesmo, suficiente para fundamentar uma execução – foi expressamente reconhecido pelo legislador da Reforma de 2003, instrumentalizada pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março, ao admitir a possibilidade o exequente expor os factos que fundamentam a pretensão executiva, quando estes não constem do título executivo (artº 810 nº 3 b) do CPC).

O que, em todo o caso não pode dar-se por certo, em face da natureza do cheque e da obrigação que dele emerge é que o cheque a que falte um qualquer dos requisitos exigidos pela lei ou se mostre extinto possa valer como reconhecimento unilateral de divida.

Realmente, ao contrário do que sucede com a letra e com a livrança, que contêm uma inequívoca promessa de pagamento de uma dada quantidade de espécies pecuniárias, o cheque, dado que se limita a incorporar uma ordem de pagamento dirigida a uma instituição financeira ou a um banco, não importa exactamente um reconhecimento, directo e expresso, de uma dívida do executado relativamente ao portador e, nessas condições, dificilmente poderá beneficiar da presunção da existência de uma qualquer causa debendi, que, portanto, dispense o exequente da alegação do facto constitutivo da obrigação (artº 458 do Código Civil)[12].

Este viaticum habilita-nos, com suficiência, à resolução das duas questões concretas que constituem objecto da impugnação.

3.3. Concretização.

De harmonia com o recorrente, os cheques que servem de título executivo seriam extrinsecamente inexequíveis, por não incorporarem o direito a uma prestação. Razão: a extinção do contrato de contrato de conta bancária e a consequente extinção da convenção de cheque e da relação de provisão. Estes factos são exactos; mas é inexacta a consequência jurídica que o impugnante deles extrai.

Efectivamente, já adquirimos à certeza que a provisão e a convenção de cheque são simples condições de regularidade de emissão do cheque, não constituindo requisitos da sua validade jurídica e que o cheque sacado sem o acordo prévio do banco sacado é perfeitamente válido, facultando ao portador o acesso às acções cambiárias, apenas excluindo a possibilidade de aquele obter do sacado o pagamento do cheque, que, porém, pode ser exigido a qualquer obrigado cambiário, maxime, ao sacador (artº 3, in fine, da LUC).

Este fundamento da oposição – e do recurso – é pois, claramente improcedente.

Resta, porém, saber se o apelante figura ou não naqueles títulos como devedor e, portanto, se aquele é ou não dotado de legitimidade para a execução. A resposta é claramente negativa.

No tocante ao apelante a causa de pedir do pedido executivo é constituída unicamente pela relação jurídica cambiária incorporada nos cheques que servem de fundamento à execução. Realmente, no tocante ao recorrente, o exequente não alega qualquer causa debendi. Uma tal causa debendi – constituída pelo contrato de mútuo, seja qual for o juízo que se deva fazer sobre a validade desse negócio – só foi alegada no tocante a outro demandado – a executada S… – autora do negócio jurídico originário do cheque: o saque.

Os cheques não foram sacados pelo recorrente – mas por um outro executado e os respectivos instrumentos não documentam qualquer negócio jurídico cambiário de que seja autor o apelante, como o endosso ou o aval, que o constitua na obrigação – de garantia – de pagamento do cheque. Realmente, o recorrente figura nos cheques numa única qualidade: a de titular da conta bancária e, correspondente, de parte no contrato de depósito e da convenção de cheque.

Simplesmente, essa qualidade não tem a virtualidade de obrigar cambiariamente o apelante. A única pessoa que figura nos cheques que servem de título executivo na qualidade de devedor é o sacador deles – a executada S... E esta é o único sujeito cambiário que, por força do saque, se vinculou a obrigação de pagar, ela mesma o cheque ao tomador – o exequente – caso o sacado o não pagasse, e só esta é parte na relação de valuta.

É exacto que a recusa de pagamento dos cheques resultou da extinção, promovida pelo apelante, do contrato de conta bancária e dos contratos de depósito e de cheque associados. Todavia, a cessação, por iniciativa do apelante, daqueles contratos não o constitui numa responsabilidade cambiária face ao portador – única que lhe é imputada pelo exequente - nem essa responsabilidade – e o correspondente dever de prestar – é documentada pelo título.

Em face dos títulos, é patente que o apelante não é parte na relação jurídica cambiária decorrente dos cheques – como, de resto, também o não é na relação jurídica subjacente que constitui a causa próxima de emissão dos cheques - nem, aliás, está vinculado, relativamente ao exequente ou a qualquer outro interveniente cambiário, à realização das prestações pecuniárias neles incorporadas.

Portanto, o recorrente não coincide com a parte que consta dos títulos executivos como devedor e nenhuma outra circunstância lhe atribuiu legitimidade. A conclusão de que o recorrente não é, realmente parte, legítima, é, neste contexto, puramente consequencial.

                Quanto a este ponto o recurso tem, pois, bom fundamento.

                Cumpre, por isso, declará-lo procedente e, consequentemente, julgar extinta, no tocante ao recorrente, a execução (artºs 817 nº 4 do CPC de 1961 e 732 nº 4 do NCPC).

                Síntese recapitulativa:

a) A provisão e a convenção de cheque são simples condições de regularidade de emissão do cheque, não constituindo requisitos da sua validade jurídica, pelo que o efeito cartular não fica dependente da existência e regularidade de qualquer daquelas relações;

b) O co-titular de uma conta bancária e co-sujeito da convenção de cheque, não é sujeito da relação jurídica cambiária resultante da emissão, por um outro co-titular daquela conta e desta convenção, não assumindo, por virtude daquela co-titularidade, em relação ao portador, uma responsabilidade cambiária, ainda que a causa de não pagamento, pelo sacado, do cheque resulte da extinção, por sua iniciativa, do contrato de conta bancária e dos contratos de depósito e de cheque associados;

c) O sujeito que figure no cheque – de que não foi sacador, endossante ou avalista – na simples qualidade de co-titular da conta bancária solidária sacada, não é dotado de legitimidade para a execução, dado que não figura no título na qualidade de devedor e aquela circunstância não lhe atribui aquela legitimidade.

                O apelado sucumbe no recurso. Deverá, por esse motivo, suportar as respectivas custas (artº 527 nºs 1 e 2 do NCPC).

3. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a sentença impugnada, julga-se a oposição deduzida pelo recorrente, J…, procedente, e declara-se, no tocante a ele, a extinção da execução.

Custas pelo apelado.

                                                                                                              14.02.18

                                                                                                              Henrique Antunes - Relator

                                                                                                              José Avelino Gonçalves

                                                                                                              Regina Rosa


[1] J. C. Ferreira de Almeida, Algumas considerações sobre o problema da natureza e função do título executivo, RFD, 19, (1965), pág. 317 e ss.
[2] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 3ª edição, 2006, págs. 410 a 416.
[3] José Simões Patrício, Direito Bancário Privado, Quid Iuris, Lisboa, 2004, págs. 139 a 141 e Acs. da RC de 09.03.99, CJ, XXIV, II, pág. 21 e do STJ de 19.12.06, www.dgsi.pt; cfr. a Directiva 2002/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de Setembro – JO L 271, de 9 de Outubro, considerando 17 e a Instrução do Banco de Portugal nº 48/96, de 17 de Junho (Boletim Oficial do Banco de Portugal nº 1/96, de 17 de Junho de 1996) relativa aos requisitos a observar pelas instituições de credito na aberturas de contas de depósito, designadamente quanto à identificação dos respectivos titulares e representantes.
[4] Cfr. Paula Ponces Camanho, Do Contrato de Depósito Bancário, Almedina, Coimbra, 1998, págs. 93 a 98 e Carlos Barata, Estudos em Honra do Professor Doutor Galvão Telles, Volume II, Direito Bancário, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 7 a 66.
[5] Manuel Januário da Costa Gomes, Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2012, pág. 141.
[6] Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Volume III, Títulos de Crédito, Lisboa, 1982, pág. 243 e 244 e Ferrer Correia e António Caeiro, “Recusa do pagamento do cheque pelo banco sacado; responsabilidade do Banco face ao portador”, in RDE, Vol. IV, t. 2, 1978, pág. 447.
[7] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 3ª edição, 2006, Almedina, Coimbra, pág. 497 e Sofia de Sequeira Galvão, Contrato de Cheque, Lisboa, Lex, 1992, págs 63 e 64, e Filinto Elísio, “A revogação do cheque”, in O Direito, Ano 100º, 1968, pág. 490, Ferrer Correia e António Caeiro, “Recusa do pagamento do cheque pelo banco sacado; responsabilidade do Banco face ao portador”, cit., pág. 463, e Acs. do STJ de 19.10.93, de 20.12.77 e de 03.02.05, BMJ nºs 430 e 272, págs. 466 e 217, e www.dgsi.pt, respectivamente. No sentido de que se trata de um contrato a favor de terceiro, Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Títulos de Crédito, cit., pág. 256. Cfr., o Assento do STJ, nº 4/2000, DR, I Série-A, nº40, de 17 de Fevereiro de 2000, e o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 9/2008, DR, 1ª Série, de 27 de Outubro de 2008.
[8] Sofia de Sequeira Galvão, Contrato de Cheque, Lex, Lisboa, 1982, págs. 26 e 27 e Paulo Olavo Cunha, Cheque e Convenção de Cheque, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 116 e 117.
[9] Paulo Olavo Cunha, “O Cheque enquanto Título de Crédito, Evolução e Perspectivas, AAVV, “Estudos de Direito Bancário”, Coimbra Editora, 1999, págs. 243 a 260 e Nogueira M. Serens, “Natureza Jurídica e Função do Cheque”, Revista da Banca, 1991, págs. 99 a 131.
[10] Para o problema da oponibilidade das excepções que o devedor pode opor ao portador do cheque valem exactamente as mesmas soluções que são propostas no tocante às letras e às livranças: Ac. do STJ de 16.06.09, www.dgsi.pt. Cfr., Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, Letra de Câmbio, Coimbra, 1975, pág. 75, José de Oliveira Ascensão, Direito Comercial, vol. III, Títulos de Crédito, Lisboa, 1992, pág. 37, Abel Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças Anotada, 6ª edição, Lisboa, 1990, págs. 116, 126 e 127, Vaz Serra, RLJ Ano 105, pág. 376 e Acs. do STJ de 12.10.78 e 26.06.73, BMJ nºs 280, pág. 343 e 228, pág. 233.
[11] Ac. do STJ de 21.10.10, www.dgsi.pt.
[12] Assim, v.g., os Ac. do STJ de 19.12.06 e de 18.10.07, www.dgsi.pt.