INSOLVÊNCIA
VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR
NULIDADE
Sumário

Em processo de insolvência, a venda por negociação particular nas situações em que as alienações constituam actos de especial relevo, sem prévia comunicação ao devedor e sem o prévio consentimento da assembleia de credores, não se encontra, em princípio, ferida de nulidade.

Texto Integral

Proc. n.º 757/09.3TYVNG-P.P1
Tribunal do Comércio de V. N. Gaia 3.º juízo
Relator: José Carvalho
Adjuntos: Desembargadores Rodrigues Pires e Márcia Portela

Acordam na 1.ª secção cível do Tribunal da Relação do Porto

Decretada a insolvência de “B…, Lda.” foram apreendidos os bens descritos no “Auto de Arrolamento e do Balanço” (fls. 2, v.º a 4), entre os quais (verba n.º 8) uma central de betão, a que foi atribuído o valor base de €50.000,00.
O Sr. administrador da insolvência escolheu a venda por negociação particular, que justificou invocando receio de com o decurso do tempo (a insolvência requerida em 24-9-2009, decretada em 09-09-2010 e a deliberação de prosseguimento dos autos de liquidação em Junho de 2011) os bens móveis se degradarem e serem alvo de vandalismo e furto.
Em 27-12-2011 o Sr. administrador da insolvência informou nos autos que tinha recebido uma proposta para a aquisição da verba n.º 8, no valor de €35.000,00 e que tinha procedido à adjudicação à proponente – a sociedade “C…, S.A.” – mas que esta tinha sido impedida de remover os bens.
Em 27-12-2011 a insolvente apresentou o requerimento reproduzido a fls. 10, v.º a 13, no qual, após considerar que a verba n.º 8 deve ser alienada como um todo e que a intenção de efectuar a venda não tinha sido comunicada e que a venda efectuada reduz o valor a receber para a massa insolvente, requeria a anulação da venda em causa. Requeria ainda a imediata suspensão da entrega do bem e da sua desmontagem.
Notificado daquele requerimento, o Sr. administrador invocou que nenhum credor nem a própria insolvente requereu a nomeação da comissão de credores ou requereu esclarecimentos sobre a venda, até finais de Outubro de 2011. Concluía pelo indeferimento da pretensão da insolvente.
O Sr. Procurador da República pronunciou-se, entendendo que o processo foi transparente e se encontra devidamente justificada a modalidade da venda adoptada; que o demais ocorrido “constitui um caso de polícia e uma postura criminosa de oposição a um acto legal e legítimo e como tal deverá ser tratado com a maior brevidade”. Terminava promovendo a reposição da legalidade necessária, “sem prejuízo de os lesados procurarem nas instâncias penais a satisfação e o ressarcimento que os actos contra si praticados justificam” (fls. 52, v.º).
Conclusos os autos, foi então proferido o seguinte despacho:
fls . 29 e ss: Sufragando a Versada posição do Exmo. Senhor Procurador -e depois de sindicância critica dos pregressos termos dos autos e à míngua de relevante factualidade que decisivamente milite em divergente sentido -parece-me que a venda em crise atendeu ao preceituado "de jure constituto" (vd. os arts. 1589 e ss .do CIRE), mormente por relação a fls.7 a 13.
Quando ao remanescente, o assunto coloca-se "a latere" do pertinente "iter" processual a ser trilhado.
Destarte, como corolário do supra exarado indique o Exmo. AI. se ainda necessita da ajuda do tribunal (mormente no apelo à Autoridade Policial- art. 5199 do CPC -na esteira da M.D. Promoção) para a cabal prossecução do seu "múnus" ou se, pelo contrário, a questão está pacificada ao presente momento.
A insolvente interpôs recurso, finalizando as alegações com as seguintes conclusões:
A- Estando em causa a venda de uma unidade de produção de betão dita central de betão, referente a empresa que tinha como seu negócio principal a fabricação de betão, ainda que o valor da central em concreto possa ser considerado inferior a 100% do valor total da massa insolvente, pelo facto de esta massa insolvente ter património imobiliário, não permite que se considere o bem em causa como desprovido de valor económico, nomeadamente para efeitos da dispensa da consulta dos credores e da insolvente, quando se decida pela modalidade de venda por negociação particular;
B- Não pode ser dispensada nem a consulta prévia aos credores e ao insolvente sobre a modalidade da venda, omitindo-se a sua notificação, e uma vez que apresentada a proposta de aquisição, não pode ser realizada a venda sem que seja devidamente notificada à insolvente nos termos do art.º 161.º, n.º 4, do CIRE;
C- A falta de notificação dos credores e da insolvente constitui a preterição de formalidade da venda que determina a sua anulação.

Dos autos não consta que tenham siso apresentadas contra-alegações.
Os factos
Além dos acima enunciados, com interesse para a decisão relevam os seguintes factos:
1. No auto de arrolamento constam, nos bens imóveis, 6 prédios urbanos e 1 prédio rústico. Sobre 5 dos prédios urbanos e sobre o prédio rústico incidem hipotecas.
2. Os prédios encontram-se referidos pelo valor- base de: €55.336; €37.897; €25.608; €383.983; €19.058; 13.863; €45.868.
3. No mesmo auto consta ainda a mencionada verba n.º 8 (€50.000), a n.º 9, constituída por “equipamentos de escritório obsoletos”, com o valor base de €200; em “Outros direitos”, mencionam-se saldos de duas contas bancárias, no valor de €1.238,90 e €97,68, respectivamente.
4. Na verba n.º 8 consta a seguinte descrição: Uma central de betão, composta por um vibrador para betão, uma electrobomba, um compressor, conjunto de jogos forras, uma electrobomba, uma sonda de humidade, um secador central de betão, um depósito vertical750 litros para ar, um agitador de peneiros, conjunto de forras central, um medidor de corrente, uma recicladora de betão, uma bomba hidráulica, uma máquina de marca Caddy, um reservatório, uma estufa laboratório, uma pá carregadora, marca Caterpillar modelo …, uma motorrosadora, uma motobomba, uma balança, um silo, uma fonte de alimentação, uma bomba.
5. Não foi solicitado o consentimento da assembleia de credores para a venda por negociação particular nem a insolvente foi notificada da modalidade da venda nem da identidade do comprador e/ou das condições do negócio.
6. A actividade da insolvente era a fabricação de betão.
O direito
Questão a decidir: Se foi preterida formalidade que acarrete a anulação da venda.

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Está em causa a venda dos bens móveis que integram a central de betão.
A escolha da modalidade da venda dos bens apreendidos para a massa insolvente encontra-se cometida ao administrador da insolvência (art. 164.º, n.º 1, do CIRE – diploma a que pertencerão as normas adiante referidas sem diferente indicação de origem).
De acordo com o n.º 1 do artigo 161.º, a prática de actos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência, depende do consentimento da comissão de credores, ou, se esta não existir, da assembleia de credores.
A existência da comissão de credores não é obrigatória (art. 67.º, n.º 1). Segundo refere o Sr. administrador da insolvência, não foi requerida a constituição da comissão de credores.
O conceito de acto de especial relevo é concretizado nos nºs 2 e 3 do artigo 161.º. O n.º 2 manda atender aos riscos envolvidos e às suas repercussões sobre a tramitação ulterior do processo, às perspectivas de satisfação dos credores da insolvência e à susceptibilidade der recuperação da empresa.
Para Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “os actos de liquidação da massa, que se traduzam na venda de bens que a integram, não serão aqui abrangíveis, visto que, por um lado, não comportarão obrigações para a insolvência, não deixarão a massa na contingência de recebimentos futuros, nem se projectarão sobre o normal desenvolvimento do processo” (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 2008, p. 535p. 535).
A venda em causa, respeitando a uma central de betão e sendo o fabrico de betão o objecto da insolvente, poderia enquadrar a previsão da alínea b) do n.º 2 do artigo 161.º, que alude à “alienação de bens necessários à continuação da exploração da empresa, anteriormente ao respectivo encerramento”.
A intenção de efectuar alienações que constituam actos de especial relevo por negociação particular, bem como a identidade do adquirente e todas as demais condições do negócio deveriam ter sido comunicadas ao devedor, com a antecedência mínima de 15 dias relativamente à data da transacção (art. 161.º, n.º 4). Esta regra não foi cumprida.
A inobservância do preceituado no artigo 161.º não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte (art. 163.º). Decorre da leitura desta norma que a venda por negociação particular nas situações em que as alienações constituam actos de especial relevo, sem prévia comunicação ao devedor e sem o prévio consentimento da assembleia de credores não se encontra ferida de nulidade. Entendem os autores acima citados (anotação ao art. 163.º) que a regra geral é a de que a violação da lei, traduzida na falta do consentimento necessário para a prática do acto, nos termos em que ocorreu, e de que o administrador devia munir-se, não afecta a eficácia do acto, o que significa a inoponibilidade do vício à contraparte. Só assim não será, precisamente, quando as obrigações que se projectam na massa e a vinculam excederem manifestamente as assumidas pela outra parte.” Acrescentam que a solução adoptada no artigo 163.º privilegia a tutela daqueles que negoceiam com o administrador, mesmo à custa dos interesses dos credores (obra citada, p. 542).
Também o Prof. Luís Menezes Leitão refere que a violação pelo administrador da insolvência das disposições contidas nos artigos 161.º e 162.º não prejudica a eficácia dos actos que pratique, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte (Direito da Insolvência, 2009, p. 251).
No caso, não se coloca o problema de obrigações assumidas pelo Sr. administrador da insolvência, inexistindo fundamento para a anulação da venda por negociação particular do mencionado bem. Isto não afasta a eventual responsabilidade do Sr. administrador da insolvência, que poderá responder pelos danos causados à devedora e aos credores (art. 59.º). Mas nos presentes autos apenas estava em causa a validade da venda por negociação particular, de um bem integrante da massa insolvente. Pelas razões acima aduzidas a pretendida anulação da venda da verba n.º 8 improcede.

Decisão
Pelos fundamentos expostos, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela massa insolvente.

Porto, 21.5.2013
José Bernardino de Carvalho
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
Márcia Portela