INDEFERIMENTO LIMINAR
PETIÇÃO INICIAL
INEPTIDÃO
CAUSA DE PEDIR
PETIÇÃO DEFICIENTE
APERFEIÇOAMENTO
Sumário

1. A petição inicial apenas é inepta, por falta de causa de pedir, quando o autor não indica o núcleo essencial do direito invocado, tornando ininteligível e insindicável a sua pretensão.
2. Se tal não se verifica a petição é, quando muito, deficiente, devendo o juiz proferir despacho de aperfeiçoamento – artºs 6º e 590º nº4 do CPC.
3. Em qualquer dos casos, se o réu a interpretou convenientemente, tal vício fica arredado/sanado – artº 186º nº3 – sendo, então, a questão da (im)procedência do pedido dilucidada a final.

Texto Integral





ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA.

1.

A (…) intentou  contra C (…), que se assume como M (…) e bem Estar Unipessoal, lda, ação declarativa, de condenação, com processo comum.

Pediu:

A condenação da ré no pagamento da quantia de € 24.000,00 (vinte e quatro mil euros), sendo vinte mil a título de danos não patrimoniais e quatro mil a título de danos patrimoniais.

Alegou:

Em 17 de Maio se deslocou às instalações da Ré a fim de ser submetida a um serviço de estética designado por electroestimulação facial, altura em que sofreu várias queimaduras no rosto.

Em consequência, efetuou uma série de tratamentos médicos, cujo valor suportou.

Sentiu dores, desconforto, e viu a sua vida quotidiana limitada por força das queimaduras de que foi vítima.

A Ré contestou.

Alegando a prescrição, impugnando que tivesse de alguma forma contribuído para a produção do resultado e afirmando que agiu de forma diligente e em absoluta conformidade com as normas adequadas ao tratamento.

Mais requereu a intervenção provocada da L (…) Seguros, S.A. com quem havia celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil, a qual foi admitida.

Foram as partes notificadas, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, para, querendo, se pronunciarem quanto à verificação da exceção dilatória de ineptidão da petição inicial, por falta de alegação do pressuposto atinente à culpa.

A  ré pronunciou-se no sentido da presença do vício e a  autora  pugnou pela sua inexistência.

2.

Seguidamente foi prolatado despacho no qual foi decidido:

«Face ao exposto, e com base nos normativos a que fizemos referência, declaro a nulidade da petição inicial, por inepta e, em consequência, absolvo os Réus da Instância.»

3.

Inconformada recorreu a autora.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. O Tribunal a quo fez uma interpretação e aplicação errónea do direito adjectivo ao caso em concreto pondo em causa o direito constitucional da Apelante de acesso aos tribunais nos termos do artº 20º da C.R.P.;

 II. O Tribunal a quo não atendeu às «soluções mais acertadas» -, tudo para fazer dirimir/eliminar os conflitos que são submetidos ao seu julgamento, nomeadamente interpretando os normativos que consagram os direitos das partes e a validade dos seus actos sempre no sentido do alargamento desses direitos e nunca da sua restrição nos termos do artº9 nº3 do Código Civil;

 III. O Tribunal a quo devia ter apreciado a excepção da prescrição invocada pelas partes tomando igual posição sobre a mesma, devendo a sentença ser nula nos termos do artº 615º nº1 al.d), do C.P.C.;

 IV. O Tribunal a quo declarou a NULIDADE da PETIÇÃO INICIAL, por inepta, violando de forma inequívoca o artº 186º nº1 e nº2 alínea a), do C.P.C. quando devia ter, de acordo com o citado artigo ter declarado formalmente a nulidade do processo e não a nulidade da petição inicial (a existir, diga-se!!) bem como viola a referida norma ao considerar/entender que falta à petição inicial a indicação da causa de pedir quando os autos demonstram o contrário;

V. O Tribunal a quo ao entender que existe falta de causa de pedir, não dando lugar à prolação do despacho de aperfeiçoamento viola os artº 560º, 590 nº1, nº2 alínea b) nº4, 5 e 6, do C.P.C., impedindo a Apelante de exercer o benefício concedido ao Autor de apresentar outra petição ou de apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido;

VI. Mais entende a Apelante que a falta do pressuposto subjacente à culpa invocada pelo Tribunal a quo é uma manifesta falta de entendimento apenas quanto à leitura que o Tribunal faz, já que as partes interessadas, ainda que não obrigadas a fazê-lo, perceberam e exerceram o contraditório com base nos pressupostos da responsabilidade civil seja esta contratual ou extra-contratual;

VII. Mais refere o Tribunal a quo que nem a nulidade decorrente de ineptidão é suprível violando desta forma o artº 186 nº3, do C.P.C., devendo o Tribunal a quo, ainda que a petição inicial fosse inepta nos termos invocados alínea a) do nº2 artº186, do C.P.C., ainda QUE ARGUIDA, esta não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial. Ora, no caso dos presentes autos, não só temos dois Réus que não invocam a referida exeção que os beneficia como contestam com conhecimento, rigor e domínio perfeito e técnico-jurídico, o que é demonstrativo da interpretação da petição inicial, causa de pedir e pedido, no qual se incluem os pressupostos materiais e formais da responsabilidade civil;

 VIII. O Tribunal a quo devia ter aplicado o processo conjugado com o direito à tutela jurisdicional efectiva, impondo, por conseguinte, a prevalência da justiça material sobre a justiça formal, isto é, sobre uma pretensa justiça que, sob a capa de «requisitos processuais», se manifeste numa decisão que, afinal, não consubstancia mais do que uma simples denegação de justiça;

IX. Em denegação do direito da Apelante nem o Tribunal a quo atendeu à jurisprudência nacional relevante que considera que mesmo existindo ineptidão da petição inicial, nos termos do Art. 186.°, n.° 3, do Código de Processo Civil, o Tribunal a quo deve consider forçosamente sanada, prosseguindo os ulteriores termos do processo (Ac. do STJ 6500/07.4TBBRG.G2,S2, de 26-03-2015);

 X. Assim, violou o Tribunal a quo as normas dos artº 20º da C.R.P., artº 9º nº3 do C. Civil, artº 186 nº1 e nº2 al a), artº 186 nº3, artº 560, artº 590º nº1, nº2 al b) nº4, 5 e 6, e artº 615º nº1 al d), todos do C.P.C.

Contra alegaram a ré e a interveniente L (…) pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

Da ré:

Não tendo a Autora alegado factos concretos que possam integrar a causa de pedir, verifica-se a falta desta e, consequentemente, a ineptidão da petição inicial, o que acarreta a nulidade de todo o processo.

Noutras palavras, a Autora não alega os factos integradores dos pressupostos necessários para fazer nascer a obrigação de indemnizar, termos em que não merece qualquer censura a sentença proferida, magistralmente fundamentada acrescentamos, e para a qual se remete na íntegra!

Inexiste, do mesmo modo, a nulidade apontada à sentença recorrida (art. 615.º n.º 1 al. d) do CPC), porquanto a aludida exceção – de prescrição – porque perentória (art. 576.º n.º 1 e 2 do CPC), e seu conhecimento, implicaria uma decisão de mérito a que obsta o prescrito no n.º 2 do art. 576.º do CPC.

Da interveniente:

I. Embora a Recorrente alegue que na petição inicial a culpa da Recorrida está, efectivamente, alegada nos seus artigos 3.º e 7.º, nas suas doutas alegações não logra demonstrar a existência da mesma, nem, consequentemente, a inteligibilidade da causa de pedir.

 II. Diz-se inepta a petição quando falte a causa de pedir, nos termos e para os efeitos do artigo 186.º n.º 2 al. a) do Código do Processo Civil.

III. Ora, de facto, conforme resulta da douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, e discorrida a matéria factual alegada pela ora Recorrente na sua petição inicial, resulta omissa qualquer referência à culpa da Ré e, consequentemente, da Interveniente, ora Recorrida.

IV. Na verdade, para que surja uma obrigação de indemnizar em decorrência da responsabilidade civil (seja ela contratual ou extracontratual), deverão estar inequivocamente (e cumulativamente) preenchidos os seguintes pressupostos: i. facto ou acto humano voluntário, por acção ou omissão; ii. A ilicitude ou antijuridicidade do mesmo; iii. A imputação do facto ao lesante ou agente, ou seja a sua culpa (sendo a culpa apreciada em abstracto, na falta de critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, nos termos dos artigos 487.º, nº.2 e 799.º, n.º 2 10/18 do Código Civil); iv. A ocorrência de um dano ou lesão; e por fim, v. O nexo de causalidade entre o facto e o dano.

V. In casu, a Recorrente não alega factos integradores dos pressupostos necessários para fazer nascer a obrigação de indemnizar, não existindo qualquer alegação tendente à culpa da Ré, nem, consequentemente, da ora Recorrida.

 VI. A doutrina considera que a causa de pedir é, portanto, o acto ou facto jurídico do qual emerge o direito que o autor se propõe fazer valer. É um facto produtor dos efeitos jurídicos apontados pelo autor.

VII. Acresce que, conforme tem entendido a jurisprudência, a causa de pedir tem de ser concretizada ou determinada, consistindo em factos ou circunstâncias concretas e individualizadas; não podendo apresentar-se como manifestamente irrelevante ou contraditória com o pedido.

VIII. É sobre o autor, que invoca a titularidade de um direito, que cabe fazer a alegação dos factos de cuja prova seja possível concluir pela existência do direito.

 IX. O Autor apenas terá de formular um pedido inteligível e indicar o facto genérico do direito ou da pretensão que pretende fazer valor.

X. O que, in casu, a Autora, ora Recorrente, não logrou concretizar.

XI. Conforme decorre da douta Sentença, a Recorrente limitou-se a fundar “(…) o seu pedido de indemnização nos seguintes factos: deslocou-se à Ré para se submeter a um serviço de estética designada por electroestimulação facial; dirigiu-se à Ré na convicção de que esta prestaria um serviço de qualidade e com toda a segurança; quando se encontrava em plena sessão 11/18 de electroestimulação facial sofreu várias queimaduras no rosto: das na testa e duas nos maxilares; teve assistência hospitalar; foi informada pela gerente da Ré que a máquina estava com uma avaria”.

XII. Deste modo, não tendo no caso em análise a Autora alegado factos concretos que possam integrar a causa de pedir, entendeu o Tribunal a quo, verificar-se a falta de causa de pedir e, consequentemente, a ineptidão da petição inicial, o que acarreta, sem margem para dúvidas, a nulidade de todo o processo, nos termos e para os efeitos do artigo 186.º n.ºs 1 e 2 do Código do Processo Civil.

 XIII. Como é sabido, a nulidade de todo o processo constitui uma excepção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância, conforme decorre dos artigos 576.º n.ºs 1 e 2 e 577.º alínea b) do Código do Processo Civil.

XIV. Sendo de conhecimento oficioso pelo tribunal as excepções dilatórias (cfr. artigo 578.º do Código do Processo Civil).

XV. Cumpre esclarecer que há ineptidão e não simples deficiência da petição inicial quando, nesse articulado, não se alegam factos concretos que possam integrar causa de pedir. Nesse caso, não há lugar a convite à parte para suprir a nulidade (cfr. NETO, Abílio, Novo Código de Processo Civil Anotado, 2.ª edição revista e ampliada, 2014).

XVI. Mais acresce que, conforme decorre da douta Sentença, não podendo tal deixar de merecer a nossa inteira concordância: “(…) nos casos de falta de causa de pedir, não há lugar à prolação do despacho [de aperfeiçoamento] previsto no artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b), 4, 5 e 6: não há que suprir a falta de pressupostos processuais nem de aperfeiçoar a petição inicial, pois que 12/18 nem a nulidade decorrente da ineptidão é suprível nem a petição inepta por falta de causa de pedir carece de ser aperfeiçoada (…)”.

 XVII. Neste sentido, veja-se o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, em 08-10-2015 (Proc. n.º 855/12.6TBSLV.E1; Relator: Mário Serrano – www.dgsi.pt): «Se a petição for inepta, por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir (…), o juiz não profere despacho de aperfeiçoamento; a petição é indeferida, sendo o réu absolvido da instância. O vício é tão grave, que já não há remédio, muito embora (…) o autor possa propor nova acção.» (negrito e sublinhado nossos).

XVIII. Assim, não pode a ora Recorrente aperfeiçoar o que não existe.

 XIX. Dúvidas não subsistem quanto ao facto de não haver lugar a convite à parte para suprir a nulidade, pois ela não é sanável.

 XX. Pelo que é de todo irrelevante que a Ré e a Interveniente tivessem percebido o alcance do peticionado, a causa de pedir e respectivo pedido e não tivessem invocado a ineptidão da petição inicial.

XXI. Motivo pelo qual não pode deixar de merecer a nossa concordância a conclusão do douto tribunal a quo: cabendo o ónus de alegação à Autora, e ainda que se conceba que o ónus probatório pudesse diferir (em face de se estar perante um caso de responsabilidade civil contratual ou extracontratual), sempre se dirá que, a provar-se todos os factos constantes da petição inicial, a acção teria sempre de improceder.

XXII. Face ao supra exposto, é de concluir que se verifica a falta de causa de pedir e, consequentemente, a ineptidão da petição inicial, o que acarreta a nulidade de todo o processo.

XXIII. Concluindo, e uma vez que a nulidade de todo o processo constitui uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso do Tribunal, nada obsta que o Tribunal a quo tenha conhecido do mérito da causa e absolvido os Réus da instância.

XXIV. Alega ainda a ora Recorrente que a sentença deve ser considerada nula, nos termos do artigo 615.º n.º 1 alínea d) do Código do Processo Civil, porquanto, no seu entendimento, o Tribunal a quo deveria ter apreciado a excepção de prescrição invocada pelas partes, tomando igual posição sobre a mesma.

XXV. Contudo, e salvo melhor opinião, a prescrição invocada pelas partes consubstancia uma excepção peremptória, o que implicaria que o Tribunal a quo conhecesse do mérito da causa.

 XXVI. Ora, conforme decorre da douta Sentença, “(…) a nulidade de todo o processo constitui excepção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância”.

XXVII. Face ao supra exposto, será, pois, de concluir que ao Tribunal a quo não cabe conhecer da excepção de prescrição, nos presentes autos, motivo pelo qual deve o pedido da ora Recorrente improceder.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  608º nº2 ex vi do artº 663º nº2, 635º nº4 e  639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.

5.

Apreciando.

5.1.

Estatui o artº 186º do CPC:

«1. É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.

2.  Diz-se inepta a petição:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir.

3.  Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com o fundamento na alínea a)…não se julgará procedente a arguição, quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.»

O nosso direito adjetivo, e quanto à causa de pedir, adota a teoria da substanciação  perante ou em função da qual pode definir-se causa de pedir como sendo o ato ou facto jurídico, simples ou complexo, de que deriva o direito que se invoca ou no qual assenta o direito invocado pelo autor e que este se propõe fazer valer – cfr. artº 581º nº4 do CPC.

 Tem-se em vista não o facto jurídico abstrato, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico material concreto, conciso e preciso, cujos contornos se enquadram na definição legal.

A causa de pedir é, pois, o facto material apontado pelo autor e produtor de efeitos jurídicos e não a qualificação jurídica que este lhe emprestou ou a valoração que o mesmo entendeu dar-lhe.

A ideia geral  e primordial  - desde logo na perspetiva do julgador - no que concerne à figura da ineptidão da petição inicial, é a de impedir o prosseguimento duma ação viciada por falta ou contradição interna da matéria ou objeto do processo, que mostre desde logo não ser possível um correto, coerente e unitário ato de julgamento, “judicium”- Cfr. Prof. Castro Mendes, Direito Processual Civil, ed. AAFDL, 1978, 3º, p.47.

O fito secundário – na perspetiva das partes – é permitir o cabal conhecimento por banda do réu das razões fácticas que alicerçam o pedido do autor para, assim, poder exercer cabalmente o contraditório.

 Por isso o estatuído no nº3 do artº 186º.

A dificuldade reside em manter uma linha de separação entre a ineptidão da petição, vício formal, e a inviabilidade ou improcedência, questão de mérito ou substancial.

Nesta matéria urge ter presente que  os factos que podem enformar os articulados  se podem integrar em três espécies, a saber:

- Factos essenciais ou estruturantes, aqueles que integram a causa de pedir ou o fundamento da exceção.

- Factos complementares, que concretizam a causa de pedir ou a exceção complexa.

- Factos instrumentais, probatórios ou acessórios, que indiciam os factos essenciais e/ou complementares.

Ora apenas a falta na pi dos factos essenciais determina a inviabilidade da ação por ineptidão daquela.

Já os factos complementares são indispensáveis à sua procedência, não contendendo a sua falta com aquele vício, mas com a questão de mérito a dilucidar a final – Neste sentido, cfr. Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed pág. 70.

Destarte, pode dizer-se que, por via de regra, se se formula um pedido com fundamento em facto aduzido e inteligível, mas que não pode ser subsumido no normativo invocado, o caso é de improcedência e não de ineptidão.

O que interessa, no ponto de vista da apreciação da causa de pedir é que o ato ou o facto de que o autor quer fazer derivar o direito em litígio esteja suficientemente individualizado na petição.

Na verdade e na lição sempre atual do Mestre Alberto dos Reis, há que ter presente que:

 «Se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta.

Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente…quando…sendo clara quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstancias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta: o que então sucede é que a acção naufraga - Comentário, 2º, 364 e 371.

No seguimento destes ensinamentos a jurisprudência tem, desde sempre, vindo a defender, em uníssono, que a insuficiência ou incompletude do concreto factualismo consubstanciador da causa petendi, não fulmina, em termos apriorísticos e desde logo formais, a petição de inepta, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a atendibilidade do pedido.

Efetivamente, reitera-se, petição prolixa não é o mesmo que petição inepta e causa de pedir obscura, imprecisa ou inadequada não é o mesmo que causa de pedir inexistente ou ininteligível.

No fundo só existe falta de causa de pedir quando o autor não indica o facto genético ou matricial, a causa geradora do núcleo essencial do direito ou da pretensão que aspira a fazer valer. – cfr. entre outros Acs. do STJ de 12.03.1974, BMJ, 235º, 310, de 26.02.1992, dgsi.pt, p.082001 e Acs. da RC de 25.06.1985 e de 01.10.1991, BMJ, 348º, 479 e 410º, 893.

Nesta conformidade, verdadeiramente só haverá falta de indicação da causa de pedir determinante da ineptidão quando, de todo em todo, falte a indicação dos factos invocados para sustentar a pretensão submetida a juízo, ou tais factos sejam expostos de modo tal que, seja impossível, ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar, qual o pedido e a causa de pedircfr. Acs. do STJ de 30.04.2003, 31.01.2007 e 26.03.2015,  p.03B560,  06A4150 e  6500/07.4TBBRG.G2,S2, in dgsi.pt,.

Neste entendimento se enquadra o estatuído no citado nº3.

Pois que, mesmo que o réu, na contestação, invoque a falta ou ininteligibilidade do pedido, tal invocação não é atendível se se concluir que ele, não obstante as deficiências invocadas, inteligiu o feito que o demandante introduziu em juízo e está cônscio das consequências que dele pretende retirar.

Não sendo possível, nestas circunstâncias, absolver o réu da instância por ineptidão da petição inicial – cfr.  Ac. do STJ de 01.10.2003, dgsi.pt, p.02S3742.

Do que decorre que outro fito – este na ótica dos litigantes e quiçá secundário ou não essencial   e como supra aludido -, prosseguido com afigura da ineptidão, é garantir o pleno ou pelo menos adequado exercício do contraditório da outra parte,  «possibilitando que se defenda do ataque, por excepção ou por impugnação, reportada aos factos alegados na petição, idóneos para germinarem o direito invocado e pretendido» - Ac. do STJ de  28.05.2002,  dgsi.pt, p.02B1457.

5.2.

E se esta interpretação, que, até certo ponto, se pode considerar restritiva no sentido da verificação do vício em dilucidação, já assim era maioritária antes da reforma processual de 1995, maior pertinência e acuidade ganhou com esta reforma, atento o fito primordial por ela propugnado, qual seja, privilegiar a obtenção de uma decisão de fundo, que aprecie o mérito da pretensão deduzida, em detrimento de procedimentos que condicionam o normal prosseguimento da instância.

Na verdade, e conforme se alcança do relatório do DL 329-A/95 de 12/12, consagrou-se como regra, que «a falta de pressupostos processuais é sanável».

 Tudo de sorte a «obviar-se a que regras rígidas, de natureza estritamente procedimental, possam impedir a efectivação em juízo dos direitos e a plena discussão acerca da matéria relevante para propiciar a justa composição do litígio».

Sendo que o processo civil - rectius as respectivas normas - não pode ser perspetivado, interpretado e aplicado como um fim em si mesmo, mas antes como: «um instrumento ou …mesmo uma alavanca no sentido de forçar a análise, discussão e decisão dos factos…»

A reforma de 2013 acentuou ainda mais este fito.

Assim ressuma do dever de gestão processual consagrado no artº 6º do CPC.

Perante este:

«1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.

2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo

Nesta conformidade importa atentar no disposto no artº 590º, a saber:

«1 - Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º.

2 - Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a:

a) Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º;

b) Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes;

c) Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.

3 - O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.

4 - Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.»

Da interpretação concatenada destas disposições retira-se a conclusão que, quando o juiz, por imposição legal ou por iniciativa própria, formule/tenha de formular, um juízo liminar sobre a possível ocorrência de exceção dilatória suprível, como seja a nulidade do processo por ineptidão da pi – cfr. artº 577º al. b) -  deve providenciar pelo seu suprimento, vg. através de convite à parte para o efeito.

5.3.

No caso vertente a julgadora decidiu alicerçada no seguinte discurso argumentativo:

«No que ora releva, os dois tipos de responsabilidades enunciadas distinguem-se, no que concerne à culpa, no facto de na primeira das opções a mesma se ter por presumida. Ou seja, o autor tem o ónus de alegação deste pressuposto sendo certo que incumbe ao réu ilidir a presunção de culpa que sobre si impende (cfr. artigos 342.º e 344.º do Código Civil).

No caso sub judice, a Autora funda o seu pedido de indemnização nos seguintes factos: deslocou-se à Ré para se submeter a um serviço de estética designada por electroestimulação facial; dirigiu-se à Ré na convicção de que esta prestaria um serviço de  qualidade e com toda a segurança; quando se encontrava em plena sessão de electroestimulação facial sofreu várias queimaduras no rosto: duas na testa e duas nos

maxilares; teve assistência hospitalar; foi informada pela gerente da Ré que a máquina estava com uma avaria.

Aqui chegados concluímos que a Autora não alega os factos integradores dos pressupostos necessários para fazer nascer a obrigação de indemnizar, independentemente de perfilharmos a tese da responsabilidade contratual ou extra-contratual, isto porque não há qualquer alegação tendente à culpa da Ré.

Ora, não tendo, no caso vertente, a Autora, alegado factos concretos que possam integrar a causa de pedir, verifica-se a falta desta [por falta de um pressuposto subjacente à culpa] e, consequentemente, a ineptidão da petição inicial, o que acarreta a nulidade de todo o processo (artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do Código de Processo Civil). …

E quando assim sucede, isto é, nos casos de falta de causa de pedir, não há lugar à prolação do despacho [de aperfeiçoamento] previsto no artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b), 4, 5 e 6: não há que suprir a falta de pressupostos processuais nem de aperfeiçoar a petição inicial, pois que nem a nulidade decorrente da ineptidão é suprível nem a petição inepta por falta de causa de pedir carece de ser aperfeiçoada – vide, neste sentido, e entre outros, o aresto do Tribunal da Relação do Porto, datado de 23.02.2006, e disponível no sítio da internet www.dgsi.pt.

Nesse caso, não há lugar a convite à parte para suprir a nulidade, pois ela não é sanável, pelo que é de igual forma de todo irrelevante, e salvo melhor entendimento, que a Ré e a Interveniente tivessem percebido o alcance do peticionado, a causa de pedir e respectivo pedido, e não tivessem invocado a ineptidão da petição inicial.

O problema é precisamente outro: não se pode aperfeiçoar o que não existe; e, claudicando um dos pressupostos fundamentais da responsabilidade, cujo ónus de alegação  seria sempre da Autora, sendo certo que o que poderia diferir era o ónus probatório (caso se enveredasse por um ou outro tipo de responsabilidade), temos que mesmo a provar-se todos os factos constantes da petição inicial a acção teria que improceder.»

(sublinhado nosso)

Pelas razões em tese supra aludidas  não se corrobora, ssdr, este entendimento.

Na verdade, e como ressuma do trecho sublinhado, o qual corresponde, no essencial, ao plasmado pela demandante na pi., tem de concluir-se que ela deu a conhecer suficientemente as razões essenciais ou determinantes, ou seja, a causa petendi, da sua pretensão.

É, pois, mais do que evidente que ela é perfeitamente inteligível e sindicável, o que, como se viu, é o qb, para se concluir que não é taxável de inepta.

Na verdade, o quid essencial aduzido para o indeferimento – falta de alegação do requisito culpa -  não está presente por duas ordens de razões.

Primeira porque, dos factos aduzidos pela autora, devida e cabalmente interpretados - como constitui poder dever do juiz -  tem de concluir-se que a demandante imputa subjetivamente à ré a responsabilidade pelo ocorrido.

Segunda porque, mais uma vez adequadamente interpretado o acervo factual alegado, tem de inferir-se que estamos perante responsabilidade contratual, rectius perante um contrato de prestação de serviços – cfr. artº 1154º do CC.

Ora como é sabido, neste tipo de responsabilidade, a lei consagra uma presunção de culpa do devedor, pelo que não é ao autor que cumpre demonstrar a culpa do réu, mas antes sobre este incidindo o ónus de provar a ausência da mesma – artºs 799º do CC.

Mostra-se, assim, menos curial a asserção plasmada no despacho de fls 100 de que tal presunção apenas releva relativamente ao ónus probatório que não quanto ao ónus de alegação.

Se o autor não tem que provar um facto não tem, necessariamente, de o alegar, pois que o ónus da prova apenas incide sobre factos constitutivos da causa petendi e que tenham de ser alegados e provados por quem eles aproveitam.

Assim, mesmo que a autora nada alegasse quanto à culpa, se a ré não alegasse e provasse a sua falta de culpa, a ação procederia, pois que aquela beneficiaria de uma presunção, não ilidida, da atuação desta com culpa – artº 350º nº1 do CC.

Fosse como fosse e em todo o caso, e porque, como se viu, a pretensão da autora é suficientemente percetível, nunca estaríamos perante ineptidão da pi, mas antes perante uma questão de (im)procedência, sendo estas questões dilucidadas a final em sede de decisão de mérito.

Ademais, e se mais não houvesse, que há, como se expendeu, sempre seria de chamar à colação o disposto no nº3 do artº 186º.

Na verdade, a ré e a chamada contestaram, defendendo-se quer por exceção quer por impugnação, demonstrando, muito clara e inequivocamente, ter intuído, plena e cabalmente, a pretensão da autora e os fundamentos por ela invocados para a sufragar; e nem sequer levantando, formal e expressamente, a questão da ineptidão da petição.

Finalmente, e mesmo concedendo na perspetiva da julgadora de que era necessária uma referência expressa à culpa da ré, a petição não poderia ser taxada de inepta - pois que o núcleo factual essencial da pretensão foi invocado-, mas antes ser considerada incompleta ou deficiente.

Ora neste caso, e considerando o disposto nos citados artºs 6º e 590º nº4, impendia sobre a Srª Juíza o dever de convidar a autora a completá-la e/ou aperfeiçoá-la.

Não foi este o caminho trilhado, antes a julgadora despendeu tempo com a notificação das partes para se pronunciarem sobre um vício inexistente, o  qual, mesmo a existir, com tal convite poderia  ser sanado; assim se protelando  a decisão e se pretendendo relevar, indevida e intoleravelmente, a forma, sobre a sempre preferível dilucidação do mérito da causa.

Procede o recurso.

6.

Sumariando.
I-  A petição inicial apenas é inepta, por falta de causa de pedir, quando o autor não indica o núcleo essencial do direito invocado, tornando ininteligível e insindicável a sua pretensão.
II – Se tal não se verifica a petição é, quando muito, deficiente, devendo o juiz proferir despacho de aperfeiçoamento – artºs 6º e 590º nº4 do CPC.
III – Em qualquer dos casos, se o réu a interpretou convenientemente, tal vício fica arredado/sanado – artº 186º nº3 – sendo, então, a questão da (im)procedência do pedido dilucidada a final.
7.
Deliberação.
Termos em que se acorda julgar o recurso procedente, revogar o despacho recorrido e ordenar o legal prosseguimento dos autos.

Custas pelo vencido a final.

Coimbra, 2016.09.27.

Carlos Moreira ( Relator)

Moreira do Carmo

Fonte Ramos