ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO
CULPA
RISCO
CONCORRÊNCIA DA CULPA E RISCO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário

1. Segundo o artigo 505º do CC a concorrência entre o risco do veículo e a culpa do lesado só será excluída quando o acidente seja unicamente imputável ao próprio lesado ou a terceiro ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
2. O comportamento temerário de um peão que circula em estado de embriaguez, à noite, numa Estrada Nacional onde não há iluminação pública e que é atropelado a 0,4 m da berma direita atento o sentido do veículo, é de molde a excluir a responsabilização da seguradora com base no risco.
3. A omissão por uma das partes de um facto relevante só poderá configurar litigância de má-fé se essa omissão puder ter ela própria for suscetível de ter alguma influência no destino dos autos e já não quando se trata de um facto conhecido de todos os interessados, nomeadamente do réu, e de o documento que o comprova constar de um processo-crime a que ambas as partes tiveram acesso.

Texto Integral

                             



                                                                  

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

G (…)  intenta a presente ação declarativa sob a forma de processo comum, contra a T(…), S.A.,

pedindo a condenação da Ré no pagamento de:

a) € 190.000,00 a título de danos morais;

b) € 4.680,00 a título de alimentos devidos vencidos calculados desde 30.10.2014;

c) € 130,00 mensais a título de alimentos até serem devidos;

d) € 75.600,00, contabilizados à razão diária de € 100,00 desde 22.02.2012 até 19.04.2015, acrescidos de juros de mora vincendos calculados à taxa legal até efetivo e integral pagamento do devido;

e) Danos futuros materiais ou morais nos quais a autora venha a incorrer decorrentes do acidente objeto dos autos, designadamente danos patrimoniais futuros decorrentes do mesmo, com a atualização à taxa da subida do custo de vida e da expectativa de maior ganho do autor.

Para tanto alegou, em síntese:

é filha de M (…) o qual, no dia 30.10.2011, foi atropelado por um veículo automóvel conduzido por D (…) por conta e sob a direção da T (…) SA, da qual é empregado;

o veículo circulava a mais de 60 Km/hora numa localidade, não viu o peão por conduzir de forma desatenta, vindo a colhê-lo na parte dianteira do veículo pela direita;

a autora e a vítima sofreram vários danos de natureza patrimonial e não patrimonial, cujo ressarcimento a primeira peticiona.

A Ré apresentou contestação na qual deduziu pedido reconvencional, invocando a exceção de ilegitimidade da autora, impugnando as circunstâncias do acidente descritas na p.i., porquanto, no local do acidente a velocidade máxima permitida era de 80 Km/hora e o camião carregado circulava no sentido ascendente a cerca de 60 Km/hora; a vítima, circulava de forma errante e a cambalear, sendo portador de uma TAS de 2,44 g/l, invadindo a faixa de rodagem de forma imprevista e inesperada, não tendo o condutor do veículo seguro qualquer forma de evitar o atropelamento, tanto mais que o local onde o mesmo ocorreu tem pouca iluminação pública e o lesado vestia roupa escura, não sendo possível ao condutor avistá-lo a uma distância razoável.

Deduz pedido reconvencional, pedindo a condenação da autora no montante de € 760,79, correspondente à quantia que despendeu com a reparação do camião, pedindo ainda a condenação da autora como litigante de má-fé.

A autora deduziu réplica, respondendo às exceções deduzidas e pronunciando-se no sentido da improcedência do pedido reconvencional.

Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a exceção de ilegitimidade da Ré, julgando desde logo improcedente o pedido formulado sob a alínea d).

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar:

I – a ação improcedente, absolvendo os réus dos pedidos;

II – o pedido reconvencional improcedente, dele absolvendo a autora;

III – condenando a autora como litigante de má-fé em multa que fixa em 10 Ucs e na indemnização de 3.550,80 € a pagar à Ré.


*

Inconformada com tal decisão, a autora dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem por súmula[1]:

(…)


*

A Ré apresentou contra-alegações no sentido da improcedência do recurso.
Cumpridos que foram os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº2, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Impugnação da matéria de facto.
2. Repartição de culpas do acidente.
3. Se existe um regime especial para a responsabilidade civil no caso de a vítima ser um peão.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Impugnação da matéria de facto

(…)


*

A. Matéria de facto

Sãos seguintes, os factos dados como provados pelo tribunal a quo e que aqui se mantêm inalterados:

1- No dia 30.10.2011, cerca das 23 horas e 21 minutos, na EN nº 1 ao Km 113,302, em Jardoeira, concelho da Batalha, distrito de Leiria o veículo pesado tractor de mercadorias de matrícula GP.... e semirreboque de carga, propriedade de O (….)Ldª. e conduzido por D (…) por conta e sob a direção da T (…) SA, atropelou M (…) que seguia a pé.

2- No local onde ocorreu o acidente a faixa de rodagem dispunha de duas vias destinadas a cada um dos sentidos de trânsito, o piso era em asfalto e estava em bom estado de conservação, dispondo a via, no local do embate, de uma largura de 3,6 metros, a berma direita de 2,4 metros e a berma esquerda de 0,9 metros.

3- A iluminação no local era fraca, em local onde não existem habitações ou passadeiras para peões, sendo as duas faixas de rodagem, em alguns metros divididas por um separador central metálico.

4- O veículo GP seguia no sentido Sul-Norte, carregado com produtos alimentares, em via ligeiramente ascendente e com curva longa à direita, a uma velocidade de cerca de 60 Km/hora.

5- O condutor do GP, próximo do local onde ocorreu o atropelamento, avistou Mykhaylo Genyk que se encontrava na berma direita, atento o seu sentido de marcha, que cambaleava.

6- Ao chegar ao local do embate, M (…) avançou para a estrada, mas apesar de o condutor do GP ter desviado o mesmo bruscamente para a esquerda, não conseguiu evitar embater no peão com a frente do lado direito do veículo, quando este se encontrava na faixa de rodagem a 0,4 metros da linha da berma direita, vindo a imobilizar-se a cerca de 96 metros do local onde o cadáver ficou.

7- Após o atropelamento, M (…) ficou prostrado na berma do lado direito no sentido Sul-Norte, a 23,8 metros do local do embate.

8- Antes do local do embate e após o mesmo não ficaram assinalados no asfalto quaisquer rastos de travagem.

9- Em consequência do embate M (…) sofreu lesões traumáticas crânio-meningoencefálicas, tóraco-abdominais e membros inferiores que lhe causaram morte imediata, encontrando-se já cadáver quando chegou o INEM.

10- Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1, M (…) era portador de uma TAS de 2,44 g/l.

11- Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1, M (…) vestia um blusão tipo Kispo azul, uma camisa com riscas azuis e brancas, calças de fazenda pretas e calçava botas de sola de borracha pretas.

12- No âmbito do processo 256/11.3 GTLRA foi proferida decisão de não pronúncia do ali arguido D (…) pela prática de um crime de homicídio por negligência p.p pelo artº 137º do Código Penal, sendo que foi a aqui autora quem requereu a abertura de instrução.

13- A autora é filha de M (…)  e nasceu em 31.05.1980.

14- M (…) nasceu no dia 10.02.1950 e faleceu no dia 30.10.2011, no estado de divorciado.

15- M (…) havia emigrado para Portugal no ano de 2000 e pretendia vir trabalhar na área da construção civil, ac«tividade que chegou a desempenhar, designadamente em Julho de 2007, pelo período de 15 dias para a empresa A (…) Ldª.

16- A autora estava na Ucrânia na data referida em 1 e ficou destroçada quando lhe disseram que o pai tinha morrido.

17- M (…), pelo menos uma vez, enviou dinheiro para a autora tendo-o entregue a uma terceira pessoa que ia viajar para a Ucrânia e que lho entregou em mão.

18- A responsabilidade civil obrigatória e por danos próprios, designadamente choque, colisão e capotamento, decorrente da circulação do veículo de matrícula GP...., encontrava-se transferida para a ré pelo contrato de seguro titulado pela apólice nº 0000 (...) .

19- Por força da cobertura de danos próprios referida em 18, a ré pagou à tomadora do seguro a quantia de € 740,74 correspondente ao valor da reparação deduzido da respetiva franquia.

20- A ré enviou uma carta dirigida aos herdeiros de M (…) para a morada Rua (...) Jardoeira, solicitando o reembolso da quantia referida em 19.


*

B. O Direito

1. Responsabilidade do acidente por parte do condutor do veículo pesado

Na sentença recorrida entendeu-se que, encontrando-se demonstrada a culpa exclusiva do peão, se mostrava ilidida a presunção de culpa que impedia sobre o condutor do veículo pesado, afastando qualquer eventual responsabilidade pelo risco que se pudesse equacionar por força do disposto no artigo 505º do CC:

“O atropelamento de que foi vítima M (…) ocorreu quando o veículo GP.... transitava na EN 1, no sentido Sul-Norte em via ligeiramente ascendente e com curva longa à direita, a cerca de 60 Km/hora.

Por sua vez, M (…) transitava na berma direita, no mesmo sentido de marcha do veículo, cambaleando, e avançou para a estrada, altura em que o condutor do GP ainda se desvia para a direita, não conseguindo, no entanto, evitar o atropelamento.

Ora, atenta a forma brusca como foi feita esta manobra de recurso, necessariamente, quando o peão avança para a estrada, o veículo já se encontrava muito perto do mesmo.

Deste modo, não se vislumbra que o condutor do veículo por alguma forma tenha contribuído para a eclosão do acidente, devendo-se o mesmo tão somente a conduta pouco prudente, imprevisível e temerária do peão, que invadiu a faixa de rodagem por onde circulava o veículo, atitude esta explicável porque não se encontrava no pleno gozo das suas faculdades psico-motoras, visto que era portador de uma TAS de 2,44 g/l.”

A Apelante insurge-se contra tal apreciação, com fundamento em que o tribunal a quo não teve em conta que o condutor ia em excesso de velocidade e não afastou a presunção de culpa do comitente/comissário, pelo que, em seu entender sempre se deveria ter optado por uma repartição de culpas na ordem dos 70% para a viatura e 30% para o peão.

Ainda que assim não fosse, sustenta que sempre aquele deveria ser responsabilizado pelo risco.

Analisaremos separadamente cada uma das questões colocadas pela Apelante.
1.1. Conculpabilidade do condutor do veículo pesado

Quanto à existência de culpa por parte do condutor do pesado no deflagrar do acidente, a Apelante faz assentar o juízo de censurabilidade da sua conduta no facto de este circular em excesso de velocidade.

Contudo, tendo sido julgada improcedente a sua pretensão a dar como provada a existência de uma placa indicativa do limite máximo de velocidade de 60 km/hora, bem como a circulação de tal veículo a mais de 60 km/hora, os elementos constantes dos autos não nos permitem concluir pela existência de qualquer excesso de velocidade por parte deste: o acidente ocorreu numa Estrada Nacional, situada fora de uma localidade e em que as duas vias destinadas aos dois sentidos de trânsito se encontravam divididas por uma separatória metálica, sem passeios reservados aos peões (como se constata das fotografias juntas aos autos), e sem iluminação pública, onde não era expetável o aparecimento de peões a circular nas bermas ou a pretender atravessar a estrada, sobretudo àquela hora da noite.

O único limite de velocidade que temos de ter em consideração é o limite geral de velocidade de 80 Km/hora, tendo em consideração as características do veículo em causa (artigo 27º do C. Estrada) sendo que as condições do local não eram de molde a exigir-lhe uma especial redução da velocidade (artigos 24º, nº1, e 25º do Código da Estrada). O condutor do pesado circulava a 60 km/hora (ponto 4 dos factos dados como provados).

Assim sendo, não se encontra provado qualquer facto do qual se possa retirar um juízo de censurabilidade ao condutor do pesado: ao chegar ao local do embate, o peão avançou para a estrada, vindo a ser embatido pelo camião a 0,4 m da linha da berma do lado direito; o condutor do pesado ainda desviou o veículo bruscamente para a esquerda, não conseguindo evitar o embate.

A ausência de sinais de travagem aliada ao local onde o embate ocorreu – a 0,40 m da berma direita –, é indicativa da imprevisibilidade do comportamento do peão e da impossibilidade de evitar o embate por parte do condutor do camião.

Não se tendo por reconhecida a prática de qualquer ilícito por parte do condutor do veículo pesado e tendo-se por demonstrada a culpa (efetiva) do lesado, ilidida fica a presunção de culpa prevista no artigo 503º, nº3 do C. Civil para o condutor/comissário.

Confirmamos, assim, o juízo de culpa exclusiva por parte do peão lesado.

  1.2. Se a existência de culpa do lesado afasta a responsabilidade pelo risco/ artigo 11º do DL 291/2007 e Diretivas Europeias sobre Seguro Obrigatório Automóvel

A jurisprudência e a doutrina tradicionais vão no sentido de que o artigo 505º do C. Civil – que exclui a responsabilidade fixada pelo nº1 do artigo 503º quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro ou quando resulte de força maior – coloca a questão no âmbito do nexo de causalidade e não da culpa[2].

A responsabilidade pelos riscos próprios do veículo será afastada sempre que o acidente seja “imputável” ao próprio lesado ou a terceiro ou a caso de força maior estranha ao funcionamento do veículo, no sentido atribuível ou causado pela conduta de qualquer um deles, quer estes sejam ou não suscetíveis de culpa (pode ser um menor ou um demente)[3].

Tal corrente pura e simplesmente não admite a concorrência entre os riscos próprios do veículo e a conduta culposa do lesado, ainda que se trate de culpa leve, para responsabilizar os dois[4].

Contudo, a doutrina mais recente vem admitindo “o concurso da culpa da vítima com o risco próprio do veículo, sempre que ambos colaborem na produção do dano, sem quebra ou interrupção do nexo de causalidade entre este e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva do evento lesivo[5]”.

Segundo Calvão da Silva[6], a ressalva efetuada pelo artigo 505º – “sem prejuízo do disposto no artigo 570º – terá o significado de que a concorrência entre o risco de utilização do veículo (artigo 503º) e a culpa do lesado (artigo 570º) só será excluída quando o acidente seja unicamente imputável (no sentido de “devido”, com ou sem culpa) ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

Para José Brandão Proença “a posição tradicional, porventura justificada em certo momento, esquece hoje que, por ex., o peão e o ciclista (esse proletariado do tráfego de que alguém falava), são vítimas de danos, resultantes, muitas vezes, de reacções defeituosas ou pequenos descuidos, inerentes ao seu contacto permanente e habitual com os perigos da circulação, de comportamentos reflexivos ou necessitados (face aos inúmeros obstáculos colocados nas «suas vias») ou de «condutas» sem consciência do perigo (máxime de crianças) e a cuja danosidade não é alheio o próprio risco da condução. O que parece é poder dizer-se que esse risco da condução compreende ainda outros «riscos-comportamentos» ou que estes não lhe são, em princípio, estranhos”.

Não excluindo o concurso entre o risco dos veículos e a culpa dos lesados, tal autor[7] propõe que se reserve a exclusão do artigo 505º para as condutas imputáveis (retius, culposas) deliberadas e para as que, pela sua gravidade (não justificada), justifiquem uma imputação unilateral do dano ao lesado.

Também Moitinho de Almeida[8] e Sinde Monteiro[9] se pronunciam no sentido da incompatibilidade com o direito comunitário de uma interpretação do artigo 505º CC, no sentido da exclusão automática da responsabilidade pelo risco prevista no nº1 do artigo 503º, em caso de culpa do lesado.

Ora, ainda que se adote este critério de interpretação do artigo 505º, mais favorável aos lesados, sempre, no caso em apreço, será de se considerar excluída a responsabilidade da seguradora.

Vejamos, assim, se para além da culpa do peão também o risco próprio do veículo pesado terá contribuído para a eclosão do acidente.

De um lado está o peão que cambaleava na berma direita e que a certa altura avançou para a estrada, sendo portador de uma taxa de alcoolémia de 2,44 g/l.

Do outro está um veículo pesado, carregado de produtos alimentares e que seguia no sentido ascendente, cujo condutor ao avistar o peão a avançar para a estrada vindo do seu lado direito, se desviou bruscamente para a esquerda, não conseguindo evitar embater no peão com a frente do lado direito do veículo, quando este se encontrava na faixa de rodagem a 0,4 m da linha da berma direita.

É que, para além da perigosidade em abstrato do veículo, resultante da sua estrutura física, dimensões, do seu peso, velocidade que pode atingir e maior ou menor dificuldade em manobrar, que terá levado à projeção do corpo do peão a 23,8 m do local do embate, nenhum outro risco especial lhe poderá ser assacado, sendo que, o facto de o embate se ter dado a 0,40 m da berma direita, é indicativo de que o peão avançou para a estrada quando o pesado já se encontrava muito próximo do mesmo (dois passos do peão são suficientes para percorrer a distância ao ponto de embate) e da consequente de dificuldade em desviar o veículo em tempo útil.

Para aquilatarmos a medida da relevância da contribuição do risco no acidente, José Carlos Brandão Proença, propõe um critério basicamente ponderativo que avalie o peso contributivo do risco ativo e da conduta culposa do lesado: a necessidade de tutelar os acidentados do tráfego (maxime os peões), cuja conduta mais ou menos culposa, foi apenas concorrente, constituiu a razão de se ser do critério avaliador e a base para se tratar favoravelmente o dano pessoal sofrido pelo inimputável, pelo fragilizado ou pelo que foi vítima de um evento relacionado com a condição humana.

Tal autor propõe que se distingam condutas qualitativamente diversas: “efetivamente, não nos parece justo remeter para o âmbito exoneratório do artigo 505º tanto a conduta do adulto, que atravessou imprevistamente, com sinal luminoso impeditivo ou que se viu obrigado a descer o passeio, como a daquele que, na fragilidade da sua condição, deu um passo imprevidente ou a da criança que, assutada com a aproximação de um cão, fugiu para a estrada”.

E, apelando à necessidade de reformular o preceito do artigo 505º em ordem a englobar na eficácia exoneratória as condutas exclusivas cuja intensidade culposa justifique a denegação da responsabilidade, tal autor dá como exemplos de comportamentos sintomáticos dessa gravidade preclusiva, o subir e descer de um comboio em andamento, o não respeitar os sinais semafóricos e o comportamento temerário do que se passeia em estado de embriaguez ou do que atravessa no nevoeiro ou circulam num autoestrada em sentido contrário[10].

Como tal, entendemos que, apesar de sermos favoráveis à interpretação do artigo 505º no sentido de admitir a possibilidade da concorrência do risco com a culpa do lesado, desde que o sinistro não possa ser exclusivamente imputável a este, no caso em apreço, a conduta do peão, metendo-se a atravessar uma Estrada Nacional de noite, em local sem iluminação pública, em estado de embriaguez (com uma taxa de 2.44 g/l) e a cambalear, avançando sobre a estrada quando o veículo pesado (que circulava com as luzes acesas) vinha já próximo de si, surge-nos como perfeitamente temerário, configurando negligência grave e de molde a afastar a responsabilidade pelo risco.

E não se diga (como o faz a apelante) que este “modus julgandi” contraria o Direito Comunitário, concretamente a Diretiva 2005/14/CE, de 11 de maio (5ª Diretiva Automóvel).

Como defende Calvão da Silva, “apesar da jurisprudência europeia favorável ao lesado, não me parece incompatível com o direito comunitário a possibilidade de exclusão da indemnização da vítima em circunstâncias excepcionais e na base de uma apreciação individual no caso específico pelo julgador (…) Nestas condições, a seguradora pode opor ao lesado, não só a falta de responsabilidade do detentor do veículo segurado – acidente devido unicamente à vítima ou a terceiro, ou acidente exclusivamente devido a causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (artigo 505º) –, mas também um comportamento voluntário grave e indesculpável, doloso ou imprevisível, do lesado, nas circunstâncias do caso concreto[11]”.

Alega ainda o apelante que em virtude de uma interpretação generosa da Diretiva nº 2005/14/CE, do Parlamento Europeu, o artigo 11º do DL 291/2007, teria passado a cobrir os danos dos peões com base na responsabilidade objetiva.

Não podemos concordar com tal interpretação.

Atentar-se-á em que se a Proposta de uma quinta diretiva, propunha que o seguro obrigatório passasse a cobrir “os danos não patrimoniais sofridos por peões e ciclistas (…) independentemente da responsabilidade do respetivo condutor”, tal proposta não passou para o texto final, prevalecendo, tão só a ideia de melhorar a proteção dos mais fracos participantes no trânsito, com a introdução na terceira diretiva de um Artigo 1º-A[12]:

O Seguro (…) assegura a cobertura dos danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas que (…) têm direito à indemnização de acordo com o direito civil nacional”. “O presente artigo não prejudica nem a responsabilidade civil nem o montante das indemnizações”.

O nº2 do artigo 11º do DL 291/2007, de 21 de Agosto (que aprova o Regime do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, transpondo parcialmente a citada Diretiva nº2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio), não vai além do disposto no artigo 1º-A da 5ª Diretiva[13]:

“O seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 4º abrange os danos causados por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados nas estradas quando e na medida em que a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel determine o ressarcimento desses danos”.

Em Portugal, o contrato de seguro garante a responsabilidade civil do proprietário, usufrutuário, adquirente, locatário, legítimos detentores e condutores, onde se incluem os garagistas e automobilistas e, ainda, dos autores de furto, roubo ou furto de uso de veículo, nos termos da lei civil, ou seja, de acordo com as regras gerais da responsabilidade civil por fatos ilícitos (em regra), podendo a responsabilidade civil ser subjetiva ou objetiva[14].

Afastada fica, assim, igualmente a responsabilidade da ré com base no risco.

3. Condenação em litigância de má-fé.

A sentença recorrida veio a condenar a autora como litigante de má-fé, com os seguintes fundamentos, que aqui se reproduzem:

“Encontra-se provado que previamente à instauração dos presentes autos, correu termos o processo crime com o nº 256/11.3 GTLRA onde foi proferida decisão de não pronúncia do ali arguido D (…) pela prática de um crime de homicídio por negligência p.p pelo artº 137º do Código Penal, sendo que foi a aqui autora quem requereu a abertura de instrução.

Como se constata da certidão daquele processo que se mostra junta a fls 165 a 209, designadamente dos elementos que da mesma constam, em especial relatório da autópsia a fls 165 vº a 167, no qual são mencionadas as conclusões com os resultados dos exames da toxicologia forense a fls 166, não podia a autora ignorar determinados factos essenciais, mormente que o seu pai, na altura se encontrava com uma TAS de 2,44 g/l.

Ora, não é o facto de ter existido um, processo-crime, com os resultados que se conhecem, que pode fundamentar quanto a nós uma condenação da autora como litigante de má fé, já que, dadas as características daquele e de uma acção cível e dos pressupostos de uma condenação em processo crime e dos pressupostos da responsabilidade civil, afigura-se legítimo o recurso pela autora aos meios cíveis, não obstante a existência de um despacho de não pronúncia em processo crime.

Porém, a autora, na qualidade de assistente naquele processo, não ignorava as conclusões do relatório de toxicologia forense e independentemente de poder defender que o estado de alcoolémia de que o pai era portador não foi causal do acidente, posição que admitimos como legítima, o que já não lhe é legítimo fazer é, por um lado, omitir em absoluto tal facto e, por outro juntar elementos que sabe serem incompletos, como sucede com o relatório da autópsia junto com a p.i, o qual ainda não dispõe dos resultados da toxicologia forense.

Conclui-se assim que omitiu factos relevantes para a decisão da causa, o que integra uma conduta consubstanciadora de uma litigância de má-fé, nos termos do disposto no artº 542º nº 2 al. b) do CPC.”

A decisão recorrida faz assentar a censurabilidade da conduta processual da autora, na circunstância de esta ter procedido à junção aos autos de um primeiro relatório de autópsia que ainda não se mostrava completo, por não conter os resultados da toxologia forense, omitindo fatos relevantes para a decisão da causa, ou seja, que a vítima apresentada uma taxa de 2,44 g/l.

A apelante discorda de tal condenação, alegando que a cada uma das partes cabe alegar os factos que lhe são favoráveis.

É certo que com o DL 320-A/95, o legislador passou a sancionar, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária: quer o dolo, quer a negligência grave, caraterizam hoje a litigância de má-fé, com o intuito de atingir uma maior responsabilização das partes.

A decisão recorrida integra a atuação da autora na al. b), do nº1 do art. 542º CPC – tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a discussão da causa.

Ao propor a presente ação, a autora não refere na petição inicial que o exame toxicológico efetuado ao lesado acusou uma taxa de alcoolémia de 2,44 g/l e que procede à junção aos autos de um primeiro relatório de autópsia que ainda não continha os resultados toxicológicos.

Omitiu um facto que é decisivo para a decisão da causa. Contudo, a nosso ver, tal omissão não reveste a gravidade que lhe é assacada pelo tribunal recorrido. Embora se tratasse de um facto importante, que a autora não referiu na petição inicial – não era a ela que lhe incumbia a sua alegação –, a circunstância de não o referir não pode ser interpretada como um meio de ocultar a verdade, uma vez que o resultado do exame toxicológico era do conhecimento não só da autora como dos demais interessados, nomeadamente da Companhia de Seguros que desde o seu inicio esteve a par do processo-crime (como se constata da missiva que enviou à aqui autora a 30 de janeiro de 2012), e o documento que o certificava, tanto estava ao alcance da autora como da ré.

Assim sendo, considera-se não se encontrar demonstrada que a omissão de tal facto configure negligência grave por parte da autora.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e revogando-se a decisão recorrida na parte em que condena a autora como litigante de má-fé.

Custas da apelação a suportar pela apelante e pela apelada, na proporção de ¾ e ¼, respetivamente.                           

                                                                            Coimbra, 14 de março de 2017

Maria João Areias ( Relatora)

Vítor Amaral

Luís Cravo


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. Segundo o artigo 505º do CC a concorrência entre o risco do veículo e a culpa do lesado só será excluída quando o acidente seja unicamente imputável ao próprio lesado ou a terceiro ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
2. O comportamento temerário de um peão que circula em estado de embriaguez, à noite, numa Estrada Nacional onde não há iluminação pública e que é atropelado a 0,4 m da berma direita atento o sentido do veículo, é de molde a excluir a responsabilização da seguradora com base no risco.
3. A omissão por uma das partes de um facto relevante só poderá configurar litigância de má-fé se essa omissão puder ter ela própria for suscetível de ter alguma influência no destino dos autos e já não quando se trata de um facto conhecido de todos os interessados, nomeadamente do réu, e de o documento que o comprova constar de um processo-crime a que ambas as partes tiveram acesso.


[1] Face ao nítido incumprimento da obrigação de sintetizar os fundamentos do recurso, nos termos do artigo 639º
[2] Cfr., entre outros e a título meramente exemplificativo, Acórdão do TRC de 21-04-2014, relatado por Maria Inês Moura, disponível in www.dgsi.pt., e Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, Almedina, pág. 703.
[3] Dario Martins de Almeida, “Manual de Acidentes de Viação”, 3ª ed., Almedina – 1987, p.152.
[4] Dario Martins de Almeida, obra citada, pp.153-159.
[5] Calvão da Silva, Revista de Legislação e Jurisprudência Ano 134, anotação ao Acórdão do STJ de 1 de março de 2001, p.115. Em igual sentido, Brandão Proença, “Responsabilidade pelo risco do detentor do veículo e conduta do lesado: a lógica do tudo ou nada”, in Cadernos de Direito Privado, nº7, 2004, p.31.
[6] Anotação ao Acórdão do STJ de 1 de março de 2001, relatado por Neves Ribeiro, in RLJ Ano 134, p. 115, e anotação ao Acórdão do STJ de 04 de outubro de 2007, in RLJ Ano 137, 2007, p.51. 
[7] “A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual”, Coleção Teses, Almedina 1997, p. 277.
[8] “Seguro Obrigatório Automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias” – disponível no site do STJ, www.stj.p., p.6.
[9] “Direito dos Seguros e Direito da Responsabilidade Civil – Da Legislação Europeia sobre o Seguro Automóvel e a sua repercussão no regime de Acidentes Causados por Veículos. A propósito dos Acórdãos Ferreira dos Santos, Ambrósio Lavrador (e.o.) e Marques Almeida”, Revista de Legislação e Jurisprudência Ano 142 (Novembro-Dezembro 2012), p.104.
[10] “A Conduta do Lesado como Pressuposto (…), pp.823-824, em especial nota 2082.
[11] RLJ Ano 137, pp.60-61.
[12] Neste sentido, J. Sinde Monteiro, “Direito dos Seguros e Direito da Responsabilidade Civil – Da Legislação Europeia sobre o Seguro Automóvel (…)”, Revista de Legislação e Jurisprudência Ano 142 (Novembro-Dezembro 2012), p.85. Também Moitinho de Almeida salienta que a indemnização de peões, ciclistas e de outros utentes não motorizados, independentemente da respetiva culpa, se encontrava contemplada na proposta da 5ª diretiva automóvel, mas foi criticada no Parecer do Comité Económico e Social sobre a referida proposta por se tratar de matéria alheia aos seguros e que deveria ser objeto de harmonização própria, não sendo incluída na posição comum do Parlamento Europeu e do Conselho – “Seguro Obrigatório Automóvel: o direito português face à jurisprudência (…), p.11.
[13] Como refere Arnaldo Filipe da Costa Oliveira, a versão final do art. 4º/2 da 5ª DAS acabou por fazer depender tal cobertura pelo seguro obrigatório de a lei aplicável ao sinistro admitir tal indemnização, o que no caso da lex loci delicti comissi ser a portuguesa determina a não cobertura de tais danos pelo seguro obrigatório [art. 505º e art. 11º, 1º, al. a), do DL 291/2007] – “Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Síntese das Alterações de 2007 – DL 291/2007, de 21 de Agosto, pp.46-47.
[14] Maria Manuela Ramalho Sousa Chichorro, “O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel”, Coimbra Editora, p. 139.