CRIME DE PECULATO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
ELEMENTOS DO TIPO
CONCEITO DE POSSE
APROPRIAÇÃO
Sumário

I – O bem jurídico protegido pelo crime de peculato, previsto no n.º 1 do art.º 375º do CP, é, por um lado, a tutela de bens jurídicos patrimoniais; e, por outro, a tutela da probidade e fidelidade dos funcionários.
II – São elementos do tipo:
a) Que o agente seja um funcionário para efeitos do artigo 386º do CP;
b) Que tenha a posse do bem (dinheiro) em razão das suas funções;
c) Que se passe a comportar como se fosse proprietário do dinheiro, o que deve revelar-se por actos objectivamente idóneos e concludentes que traduzam a “inversão do título de posse ou detenção”;
d) Que o agente faça seu o dinheiro, com consciência de que se trata de bem alheio do qual tem a posse em razão das suas funções e que tenha consciência e vontade de fazer seu o bem para seu próprio benefício ou de terceiro.
III – O conceito de posse, para efeitos do tipo legal, deve entender-se em sentido lato, englobando quer a detenção material quer a disponibilidade jurídica do bem, ou seja, a
detenção indirecta (a detenção material pertence a outrem, embora o agente possa dispor do bem ou conseguir a sua detenção material mediante um acto para o qual tem
competência em razão das suas funções).
IV – O agente tem a posse do bem “em razão das suas funções” quando a relação do agente com o bem deriva das funções que o agente exerce. Trata-se, assim, de um abuso ou infidelidade à função que o agente exerce que só existirá quando o agente tem, devido exactamente às funções que exerce, a posse do bem.
V – A apropriação traduz-se sempre na inversão do título de posse ou detenção.

Texto Integral

Proc. n.º 48/10.7TAVLP.P1
Valpaços.
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto.
2ª secção criminal.

I -Relatório.
No processo Comum singular nº 48/10.7TAVLP do Tribunal Judicial de Valpaços foi submetida a julgamento a arguida B…, com os restantes elementos identificativos constantes da sentença de fls. 847 a 872 dos autos.
A sentença de 19.12.2012, depositada no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:
«Em face do exposto, julgando totalmente procedente, por provada, a acusação pública, decide-se:
6.1.) Condenar a arguida B…, em autoria material e sob a forma consumada, pela prática de um crime de peculato, na sua forma continuada, previsto e punido pelos artigos 30.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, conjugado com o artigo 386.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal, numa pena de 3 (três) anos de prisão;
6.2.) Suspender a execução da pena de prisão mencionada em 6.1.), pelo período de 3 (três) anos, sujeita a regime de prova g subordinada ao dever de entregar, no prazo de 2 (dois) anos, a quantia de €4.271,40, aos herdeiros de C…, aqui representados, para estes efeitos, pela assistente D…, juntando comprovativo do pagamento naquele prazo (artigo 50.º, n.º 2, artigo 51.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, e 53.º, n.º 1, do Código Penal).
6.3.) Condenar a arguida B… nas custas e encargos do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 U.c. (duas unidades de conta) (artigos 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil, e artigo 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais);
6.4.) Remeter, após trânsito, boletim aos Serviços de Identificação Criminal (artigo 5.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto, e artigo 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 381/98, de 27 de Novembro).
Deposite-se a presente sentença, nos termos do disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 372.º, e n.º 2 do artigo 373.º, ambos do Código de Processo Penal.

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Após trânsito, comunique a presente decisão à Direcção Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais competente a quem incumbirá a elaboração do plano de reinserção social a que alude o artigo 53.º, n.º 2, do Código Penal (artigo 494.° do Código de Processo Penal).
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Após trânsito, comunique a presente decisão à Comissão para a Eficácia das Execuções.»
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Inconformado com a decisão veio o Ministério Público interpor recurso da mesma conforme motivação de fls. 880 a 888 dos autos, que remata com as seguintes conclusões:
«1ª) Por sentença judicial datada de 19 de Dezembro de 2012, a arguida B… foi condenada, em autoria material e sob a forma consumada, pela prática de um crime de peculato, na sua forma continuada, p. e p. pelos artigos 30°, n.º 2 e 375°, n.º 1, ambos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova e subordinada ao dever de entregar, no prazo de 2 (dois) anos, a quantia de € 4.271,40 (quatro mil, duzentos e setenta e um euros e quarenta cêntimos), aos herdeiros de C…, aqui representados, para estes efeitos, pela assistente D…, juntando comprovativo naquele prazo;
2ª) O crime de peculato configura uma dupla protecção de bens jurídicos: por um lado, tutela bens jurídicos patrimoniais; por outro lado, tutela a probidade / fidelidade / integridade dos funcionários para se garantir o bom andamento e a imparcialidade da administração;
3ª) A pluralidade de vítimas deve ser ponderada em todos os crimes que protegem bens jurídicos não supra-individuais, como são os bens de carácter patrimonial - embora o bem jurídico protegido seja idêntico, a existência de dois ofendidos, de duas vítimas do crime (ainda que apenas reflexamente considerados) deve ser levado em consideração pelo Tribunal a quo na condenação da arguida, sob pena de, não o fazendo, se «desconsiderar» a identidade própria dos lesados e o carácter único e individual do património de cada um;
4ª) A execução de forma essencialmente homogénea supõe a similitude do modus operandi do agente e, designadamente, dos meios utilizados na prática do crime - embora a conta bancária, pertencente à arguida B…, para a qual foram transferidas as quantias acima referidas, seja a mesma, e as quantias referidas tenham sido transferidas em datas relativamente próximas, a verdade é que estamos no âmbito de dois processos executivos absolutamente distintos, com diferentes exequentes e executados, as quantias transferidas tiveram origem em contas bancárias perfeitamente autónomas e dissemelhantes e as mesmas tiveram um destino particular;
5ª) Fará sentido condenar a arguida pelo crime continuado, sempre que os processos corram termos em determinada comarca, e em concurso efectivo de crimes, quando os mesmos sejam tramitados em comarcas diferentes? E em relação às transferências ocorridas nos meses imediatamente subsequentes? A partir de que mês a execução deixa de ser essencialmente homogénea? O teor da sentença judicial levanta todas estas questões, mas não responde a nenhuma delas;
6ª) Não basta a circunstância da arguida, na qualidade de agente de execução, possuir uma conta bancária, para a qual são transferidas as quantias bancárias relativas aos diversos processos de execução, para se concluir que a mesma actuou num contexto factual que lhe diminui consideravelmente a sua culpa - a diminuição sensível da culpa supõe a menor exigibilidade de conduta diversa do agente;
7ª) Fará sentido diminuir sensivelmente a culpa da arguida que, no exercício das suas funções, se locupletou indevidamente com as quantias monetárias que lhe foram entregues, em clara violação de um dever profissional que impende sobre si? Fará sentido (quase que) desculpá-la por desviar, de forma flagrante, quantias que não lhe pertenciam e que foram confiadas pelo Estado, pelos Tribunais e pelas partes envolvidas? Entendemos que, pelo contrário, tal conduta deverá ser fortemente repreendida e negativamente valorada, pois contraria todos os princípios éticos, morais e profissionais das funções desempenhadas pela arguida, além de contribuir para desvalorização e para o descrédito da função jurisdicional globalmente considerada.
8ª) Ao proferir a decisão judicial acima citada, condenando a arguida B…, em autoria material e sob a forma consumada, pela prática de um crime de peculato, na sua forma continuada, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 30º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.

Termina pedindo que a sentença recorrida seja revogada e substituída por outra, que condene a arguida B… pela prática, em concurso efectivo, de 2 (dois) crimes de peculato, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 30º, n.º1 e 375º, n.º1, ambos do Código Penal, na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova e subordinada ao dever de entregar, no prazo de 2 (dois) anos, a quantia de € 4.271,40 (quatro mil, duzentos e setenta e um euros e quarenta cêntimos), aos herdeiros de C…, aqui representados, para estes efeitos, pela assistente D….»
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Também a arguida, não se conformando com a decisão veio interpor recurso da mesma conforme motivação de fls. 889 a 893 dos autos, que remata com as seguintes conclusões:
«1º Preceitua o artigo 375º, nº 1 do Código Penal que: "O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de um a oito anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.";
2º São elementos do tipo: (i) A qualidade de funcionário; (ii) A prática dos factos no exercício das suas funções; (iii) A ilícita apropriação, em proveito próprio ou de terceiro, (iv) De dinheiro ou coisa móvel (v) Que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse, ou lhe seja acessível em razão das suas funções;
3º Para que a Recorrente pudesse ser condenada pela prática deste crime, teria o Tribunal recorrido de ter dar como provados todos os factos necessários ao preenchimento do tipo, o que não sucedeu;
4º Isto é, do elenco de factos provados não resulta provado que houve apropriação ilícita em proveito próprio ou de terceiro (da quantia depositada à ordem da Recorrente);
5º E, não se provando este facto, não poderia o Tribunal "a quo" ter dado como provada a prática do crime de que a Arguida vem acusada;
6º Efectivamente não basta a mora da Recorrente, o atraso em transferir a quantia à sua guarda, ou a sua transferência em duas prestações, para que se possa considerar consumado o crime de peculato;
7º Atento o exposto, não cometeu a arguida o crime de que vinha acusada, devendo em consequência disso, ser absolvida;
8º Ao assim não decidir, está a Mmª Juiz do Tribunal recorrido a violar o preceituado nos artigos 375º, nº 1, conjugado com o artigo 386º, nº 1 al. c), ambos do Código Penal.
Termina pedindo a revogação da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, considerando como não provada a prática do crime de que a arguida vem acusada, quanto ao primeiro dos factos denunciados, absolvendo a arguida da sua prática.»
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O Ministério Público respondeu conforme fls. 909 a 914 dos autos ao recurso da arguida rematando a sua resposta com as seguintes conclusões:
«1ª) Por sentença judicial datada de 19 de Dezembro de 2012, a arguida B… foi condenada, em autoria material e sob a forma consumada, pela prática de um crime de peculato, na sua forma continuada, p. e p. pelos artigos 30º, nº2 e 375º, nº1, ambos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova e subordinada ao dever de entregar, no prazo de 2 (dois) anos, a quantia de € 4.271,40 (quatro mil, duzentos e setenta e um euros e quarenta cêntimos), aos herdeiros de C…, aqui representados, para estes efeitos, pela assistente D…, juntando comprovativo naquele prazo
2ª) Ao contrário do que sustenta a arguida, ainda que pudesse vislumbrar-se apenas uma situação de mora injustificada, a arguida teria sempre de ser condenada, uma vez que a quantia de € 4.271,40 (quatro mil, duzentos e setenta e um euros e quarenta cêntimos) foi transferida para a sua conta bancária e nunca foi devolvida ao exequente, conforme decisão judicial, apesar da mesma ter sido notificada por duas vezes para proceder a essa devolução (cfr. factos provados n.ºs 2.1.10. a 2.1.17), pelo que estaria preenchido o tipo objectivo do crime de peculato;
3ª) Após uma leitura atenta da sentença judicial, em especial dos factos dados como provados 2.1.6. a 2.1.9. e 2.1.19, a única conclusão que se pode extrair é que se provou a existência de uma apropriação ilícita, em proveito próprio ou de terceiro, na forma dolosa, daquela quantia (mais de € 30.000);
4ª) Constando dos factos provados que a mandatária das exequentes, em diversas ocasiões, contactou a arguida no sentido de lhe serem entregues as quantias devidas, tendo esta última respondido que não o podia fazer porque essas quantias ainda não estavam disponíveis, pelo facto do executado ainda não as ter pago (o que não correspondia à verdade, como também ficou assente), tal permite concluir, apelando às regras de experiência comum e do normal desenvolvimento da realidade, que a arguida quis fazê-las suas e integrá-las no seu património, o que basta para o preenchimento do tipo de ilícito de peculato;
5ª) O tipo objectivo do crime de peculato é preenchido com a apropriação da coisa pelo agente, sendo irrelevante, para outros efeitos que não a conduta posterior ao crime e a sua influência na determinação da medida da pena, a sua posterior devolução;
6") A sentença judicial não violou o disposto no artigo 375º, nº1 do Código Penal.
Termina pugnando que seja negado provimento ao recurso apresentado pela arguida, sendo mantida a decisão judicial proferida pela Mmª Juíza do Tribunal a quo nos termos em que foi proferida, (com as alterações requeridas na motivação de recurso subscrita pelo signatário da presente resposta, em data anterior), uma vez que inexiste fundamento legal para que a sua alteração nos termos defendidos pela recorrente.»
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A arguida não respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público.
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação do Porto, por despacho constante de fls. 916.
Nesta Relação, o Excelentíssimo PGA emitiu parecer no sentido da improcedência de ambos os recursos.
Foi cumprido o artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II- Fundamentação.
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
1.-Questões a decidir:
Face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
A).Averiguar do preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo do crime de peculato (recurso da arguida)
B).Averiguar se os factos configuram a prática de um crime continuado de peculato ou antes a prática de dois crimes (recurso do MºPº). Efeitos quanto à medida da pena.
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2. Factos provados
Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respetiva motivação.
«2. Fundamentação de facto
2.1. Factos provados
2.1.1. Correu termos no Tribunal Judicial de Valpaços a acção n.º 156/04.3TBVLP, na qual a autora herança ilíquida e indivisa de E…, representada por F… e G…, peticionou contra H… e mulher, a quantia de €25.000,00.
2.1.2. Por sentença proferida em 20 de Janeiro de 2006, foram os réus condenados a pagar à autora a quantia de €26.301,00 acrescida de juros vincendos.
2.1.3. Interposta a acção executiva, os réus prestaram caução a fim de suspender a execução até ser proferida decisão do recurso apresentado. Confirmada a sentença no Tribunal da Relação, por despacho datado de 12 de Fevereiro de 2009 foi ordenado o pagamento das quantias depositadas nos autos à exequente e notificado às partes em 15 de Abril de 2009.
2.1.4. A mandatária da exequente enviou à agente de execução nomeada nos autos, a ora arguida, o NIB das representantes da Autor para que o respectivo depósito fosse efectuado.
2.1.5. A agente de execução, ora arguida, procedeu à notificação da I…, para que o pagamento fosse feito; no entanto, esta instituição bancária informou que, por se tratar de um depósito autónomo, tal quantia teria que ser creditada em nome do Instituto de Gestão Financeira Patrimonial e de Infra-estruturas da Justiça.
2.1.6. No dia 28 de Abril de 2009, a arguida notificou aquele instituto para que procedesse à transferência da quantia de €26.595,50 para a sua conta com o NIB ………………… do J…, o que veio a acontecer no dia 14 de Agosto de 2009 tendo ficado a quantia disponível em 01 de Setembro de 2009.
2.1.7. A mandatária das ofendidas F… e G… foi contactando o escritório da arguida, no sentido de saber qual a data da transferência da supra referida quantia para que as suas clientes, obtendo como resposta que o pagamento ainda não tivera lugar.
2.1.8. Depois de contactada a arguida, esta apenas em 22 de Janeiro de 2010, depositou na conta das exequentes a quantia de €5.000,00.
2.1.9. A arguida procedeu ao pagamento da quantia remanescente no dia 5 de Abril de 2010.
2.1.10. No dia 18 de Maio de 2009, deu entrada no Tribunal Judicial de Valpaços o requerimento executivo relativo à execução com o n.º 166/04.0TBVLP, na qual o exequente K… peticionava a quantia de €3.559,50 contra C…, exercendo a arguida a função de agente de execução.
2.1.11. A L… informou a agente de execução, ora arguida, que o executado era co-titular de uma conta bancária com o saldo de €4.271,40, ou seja, um saldo igual ou superior ao limite da penhora.
2.1.12. Pela arguida, na qualidade de agente de execução, foi ordenada àquela instituição bancária, por notificação datada de 28 de Julho de 2009, a transferência deste montante para a conta com o NIB ………………… do J…, conta esta titulada pela arguida.
2.1.13. Assim, foi penhorado o referido saldo bancário do executado e transferido para a conta da arguida, em 19 de Agosto de 2009, que, em virtude da sua função de agente de execução, foi nomeada fiel depositária daquela quantia.
2.1.14. Por despacho datado de 28 de Setembro de 2010, foram declarados nulos todos os actos praticados, após a entrada em juízo daquele requerimento executivo, designadamente a penhora de saldos da conta bancária efectuada pela agente de execução, ora arguida, por ter sido adoptada uma tramitação incorrecta, aí tendo sido determinado que a ora arguida procedesse ao cancelamento da penhora e devolução da quantia ao executado.
2.1.15. A arguida foi notificada do despacho referido em 2.1.14. por ofício datado de 30 de Setembro de 2010.
2.1.16. Por despacho datado de 27 de Janeiro de 2011, a agente de execução foi novamente notificada para proceder à devolução do saldo da conta bancária do executado, sob pena de nada fazendo ser condenada em multa, incorrer em responsabilidade criminal e disciplinar e ser destituída do cargo.
2.1.17. O executado C… nunca recebeu a quantia indevidamente penhorada pela arguida, tendo a mesma de forma ilícita integrado a mesma no seu património e, por sua vez, pela arguida nunca foi instaurada a adequada execução a favor de K… para cobrança da quantia que lhe era devida pelo executado.
2.1.18. Deste modo, a arguida, no cumprimento das suas funções de agente de execução, integrava de forma regular e continua, montantes em dinheiro na sua conta bancária resultante das penhoras efectuadas aos executados, valores esses que a mesma deveria, posteriormente, entregar às exequentes e no último caso ao executado, a quem eram destinadas.
2.1.19. A arguida agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, com o propósito firme de integrar directamente no seu património, como efectivamente aconteceu, as referidas quantias recebidas por depósitos bancários, no montante total de €30.866,90, não obstante saber que as mesmas não lhe pertenciam e que depois de as receber, em virtude da sua função de agente de execução, teria que as devolver a quem eram devidas e a quem legitimamente pertenciam, o que apenas veio a acontecer em relação à quantia devida na acção executiva a que se reporta o processo n.º 156/04.3TBVLP em 22 de Janeiro de 2010 (no montante de €5.000,00) e 5 de Abril de 2010 (o remanescente).
2.1.20. A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
[Antecedentes criminais]
2.1.21. A arguida não tem antecedentes criminais.
[Condições pessoais e económicas]
2.1.22. A arguida é licenciada em solicitadoria e, actualmente e desde 27 de Janeiro de 2011, por força de um processo disciplinar que lhe foi instaurado pela Comissão para a Eficácia das Execuções, encontra-se suspensa provisoriamente das suas funções de agente de execução.
2.1.23. A arguida encontra-se, actualmente, desempregada, mantendo, contudo, o seu escritório de solicitadora/agente de execução em Vila Pouca de Aguiar, reside com o seu companheiro, que aufere, mensalmente, a quantia correspondente ao salário mínimo nacional, suportando este todas as despesas do casal.
2.1.24. A arguida tem dívidas decorrentes do empréstimo contraído para a compra de um veículo automóvel.
2.1.25. A arguida pretende exercer as funções de solicitadora, caso lhe seja permitido pela Câmara dos Solicitadores após decisão final do procedimento disciplinar.
2.2. Factos não provados
2.2.1. No âmbito da acção executiva referente ao processo n.º 156/04.3TBVLP, a arguida foi notificada em 26.06.2009 e 18.12.2009 para informar se a quantia já se encontrava paga.
2.2.2. A mandatária das ofendidas participou o caso ao Instituto de Gestão Financeira Patrimonial e de Infra-estruturas da Justiça e solicitou o pagamento do valor.
2.2.3. No dia 29 de Dezembro de 2009, a mandatária da exequente foi contactada telefonicamente pelos serviços do Instituto de Gestão Financeira Patrimonial e de Infraestruturas da Justiça a informar que a quantia devida fora depositada no dia 14 de Agosto de 2009 na conta com o NIB ………………… do J…, em nome da arguida.
2.2.4. A conta descrita em 2.1.6. é pessoal da arguida.
2.3. Da análise crítica das provas e convicção A convicção do tribunal fundou-se na prova produzida em audiência de julgamento – nomeadamente, as declarações da arguida, os depoimentos prestados pelas testemunhas e os documentos juntos ao processo –, analisada e conjugada, criticamente, à luz das regras da experiência comum, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do Código de Processo Penal).
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A arguida prestou declarações, tendo confirmado a sua nomeação como agente de execução nos processos em causa nos presentes autos.
Não negou que não entregou as quantias devidas às partes nos processos logo que as mesmas chegaram à sua posse. Aliás, a arguida confessou o depósito das quantias na sua conta bancária bem como o facto de não ter restituído, logo que eram devidas, as quantias em causa nos processos.
Contudo, no que respeita ao processo n.º 156/04.3TBVLP-A, a arguida justificou a sua conduta pelo facto de ter confundido processos e ter utilizado a quantia depositada à ordem daquele processo para pagamento de um outro processo, sendo que pagou, volvidos alguns meses, a quantia às exequentes. No âmbito deste processo confirmou os contactos que foram sendo estabelecidos pela Ilustre Mandatária das exequentes, dizendo que a quantia ainda não tinha sido depositada o que se deveu a lapso da sua parte por ter confundido os processos.
No que respeita ao processo n.º 166/04.0TBVLP, a arguida declarou que, quando foi notificada em 27 de Janeiro de 2011, foi precisamente nessa data que ficou suspensa das suas funções de agente de execução, razão pela qual ficou impedida de aceder aos processos e às suas contas bancárias, motivo pelo qual não devolveu a quantia ao executado.
Das testemunhas inquiridas apenas os depoimentos de G… e F… mostraram alguma relevância para a matéria em causa no processo, sendo que a testemunha K… apenas confirmou, genericamente, a existência do processo que lhe diz respeito e a circunstância de ainda não ter sido pago de nada. Aquelas duas testemunhas confirmaram que a arguida apenas procedeu à entrega da quantia de €5.000,00 em Janeiro de 2010, sendo que procedeu ao pagamento do remanescente volvidos 2/3 meses, quando a mesma já estava na posse da quantia desde 14 de Agosto de 2009, segundo informações que lhe foram prestadas pela Ilustre Mandatária que telefonou para o instituto e a informaram da concretização da transferência em 14 de Agosto de 2009. Apesar disso, cada vez que a arguida era contactada dizia que a quantia ainda não tinha sido depositada.
A demais prova testemunha produzida não relevou para a matéria em causa no processo, nada adiantando acerca da mesma.
Dos documentos juntos aos autos é importante destacar os seguintes no que respeita à acção executiva relativa ao processo n.º 156/04.3TBVLP:
- certidão do processo n.º 156/04.3TBVLP a correr termos no Tribunal Judicial de Valpaços a acção n.º 156/04.3TBVLP de fls. 79,
- sentença proferida nesse mesmo processo a fls. 6 a 15,
- despacho de admissão de recurso de fls. 16,
- pedido de prestação de caução de fls. 17 a 19,
- requerimento executivo de fls. 20 a 22,
- acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 23 a 28,
- despacho datado de 12.02.2009 no apenso A (execução) de fls. 29,
- email datado de 16.04.2009 de fls. 30 e 31,
- ofício de notificação à I… datado de 16.04.2009 de fls. 32 e
33,
- informação da I… de fls. 34,
- ofício de notificação à I… datado de 28.04.2009 de fls. 35,
- documento de fls. 55 do qual consta como 14.08.2009 como data da transferência para a conta da arguida,
- extractos bancários, nomeadamente de fls. 570 e 595
- requerimento de fls. 43 a 45
- e requerimento de fls. 50.
Da conjugação destes documentos com as declarações prestadas pela arguida e os depoimentos prestados pelas testemunhas foi possível concluir pela verificação dos factos descritos em 2.1.1. a 2.1.9..
E no que respeita ao processo n.º 166/04.TBVLP é relevante evidenciar os seguintes documentos:
- certidão do processo n.º 166/04.TBVLP-A, concretamente requerimento executivo de fls. 237 a 242,
- declaração de aceitação da nomeação de fls. 243,
- ofício da L… datado de 24 de Julho de 2009 de fls. 254,
- ofício a determinar a transferência da quantia depositada naquela instituição bancária a fls. 255,
- auto de penhora de fls. 256,
- extractos bancários, nomeadamente fls. 568 e 569 (período de 03.08.2009 a 31.08.2009),
- despacho datado de 28.09.2010 de fls. 270 e 271,
- ofício de notificação datado de 30.09.2010 a fls. 272,
- despacho datado de 27.01.2011 de fls. 278,
- e ofício de notificação de fls. 279.
Deverá, ainda, considerar-se o teor da informação prestada a fls. 842 do J… da qual resultam os saldos bancários das contas tituladas pela arguida.
Da conjugação destes elementos com a demais prova produzida é possível concluir pela verificação da factualidade descrita em 2.1.10. a 2.1.16..
Da prova produzida foi, também, possível concluir, com certeza suficiente, que a arguida, no cumprimento das suas funções de agente de execução, integrava de forma regular e continua, montantes em dinheiro na sua conta bancária resultante das penhoras efectuadas aos executados, valores esses que a mesma deveria, posteriormente, entregar às exequentes e no último caso ao executado, a quem era destinadas e que agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, com o propósito firme de integrar directamente no seu património, como efectivamente aconteceu, as referidas quantias recebidas por depósitos bancários, no montante total de €30.866,90 (soma das quantias devidas nos dois processos), não obstante saber que as mesmas não lhe pertenciam e que depois de as receber, em virtude da sua função de agente de execução, teria que as devolver a quem eram devidas e a quem legitimamente pertenciam, o que apenas veio a acontecer em relação à quantia devida na acção executiva a correr termos sob o processo n.º 156/04.3TBVLP em 22 de Janeiro de 2010 (no montante de €5.000,00) e 5 de Abril de 2010 (o remanescente).
É que a versão apresentada pela arguida não convenceu, de todo, o Tribunal.
De facto, o que os elementos objectivos elucidam é que a arguida pretendeu e integrou no seu património quantia total mencionada supra – €26.595,50 do primeiro processo e €4.271,40 do segundo – sem prejuízo de, posteriormente, ter restituído a quantia de €26.595,50 a quem de direito.
Não se vislumbra com que outra intenção a arguida agiu ao não entregar as quantias em causa nos autos a quem as mesmas pertenciam e no devido tempo.
Note-se que os elementos bancários juntos aos autos não corroboram o facto de a arguida não ter restituído, logo que a recebeu, a quantia de €26.595,50 às exequentes por ter confundido o processo 156/04.3TBVLP com um outro processo e ter entregue a quantia por conta desse outro processo.
Compulsados tais elementos verifica-se que as transferências operadas após a data em que o dinheiro ficou disponível na conta bancária (datadas de 04.09.2009 no valor de €5.000,00, de 07.09.2009 no valor de €2.000,00, de 09.09.2009 no valor de €2.000,00, de 11.09.2009 no valor de €6.000,00, de €15.09.2009 no valor de €10.000,00, de 23.09.2009 no valor de €2.000,00) não são de valor igual àquela quantia. Assim, não se vislumbra credível que a arguida tivesse transferido parcialmente a quantia para uma outra conta bancária da sua titularidade com vista a liquidar o montante devido no outro processo cuja identificação nem sequer logrou dizer ao tribunal, o que não se compreende na medida em que se assim tivesse ocorrido sempre teria que haver um documento comprovativo do pagamento desse alegado processo, documento esse que a arguida, apesar de ter junto outros, não cuidou de exibir ao tribunal. Note-se, ainda, que não era impeditivo da transferência total daquela quantia para o alegado processo que gerou a confusão o facto de não ser possível transferir a quantia total, tendo havido necessidade de transferir a quantia parcelarmente. É que constam transferências nos elementos bancários de quantias superiores a €26.595,50 como resulta de forma evidente de fls. 295 (valores de €45.000,00 e €50.000,00) precisamente para outra conta da arguida.
Por outro lado, não se compreende como é que a arguida, recebendo uma quantia tão elevada na sua conta e sendo contactada pela Ilustre Mandatária das exequentes para saber se a mesma já tinha sido recebida, não cuidou de contactar o Instituto com vista a saber se, de facto, a quantia tinha ou não sido depositada, tanto mais que foi a própria que notificou, em 28 de Abril de 2009, o instituto para que procedesse ao depósito da quantia na sua conta com o NIB ………………… do J….
No que respeita à quantia devida no processo n.º 166/04.0TBVLP, não vinga, igualmente, a versão apresentada pela arguida no sentido de que não restituiu a quantia porquanto quando foi notificada para o efeito em 27 de Janeiro de 2011 tinha sido precisamente nessa data suspensa provisoriamente das suas funções de agente de execução ficando sem acesso às contas bancárias e aos processos. Não está em causa que a arguida foi, efectivamente, suspensa do exercício das suas funções por decisão datada de 27 de Janeiro de 2011. Aliás, tal facto é corroborado pelo teor do ofício da Comissão para a Eficácia das Execuções datado de 27 de Janeiro de 2011 junto pela arguida em sede de audiência de julgamento (cfr. fls. 789 a 791). Contudo, a verdade é que a arguida já havia sido notificada para proceder à restituição da quantia por ofício datado de 30 de Setembro de 2010 e, nessa sequência, para além de não ter dado qualquer justificação ao tribunal, não restituiu a quantia em causa, quando o poderia e deveria ter feito, integrando-a, assim, no seu património quando a recebeu na sua conta bancária.
De destacar, ainda, que é a própria arguida que acaba por admitir que existem quantias em falta nos processos executivos na qual foi nomeada como agente de execução (de acordo, aliás, com o que vem expresso no documento junto a fls. 794 – autos de entrega de processos judiciais), quantias essas nas quais se pode concluir que se inclui a devida no processo n.º 166/04.0TBVLP porquanto a mesma não foi restituída pela arguida, não existindo nas suas contas bancárias saldos de valor igual ou superior ao devido no processo – informação prestada a fls. 842.
Para além do exposto, os elementos objectivos subjectivos dos factos imputados à arguida, pertencendo os mesmos à vida interior de cada um, decorrem da conjugação da factualidade objectiva apurada com as regras da normalidade e da experiência comum do julgador. Quem actua como a arguida actuou, sem qualquer interferência de elemento perturbador da capacidade intelectual e volitiva, não pode deixar de querer actuar como descrito, de ter consciência da proibição da conduta e de conformar-se com as consequências legais da mesma.
Foram estas as razões que alicerçaram a convicção do tribunal, para além de qualquer dúvida razoável, permitindo dar como provados os factos descritos em 2.1.1. a 2.1.20.
A ausência de antecedentes criminais resultou provada do Certificado de Registo Criminal de fls. 757.
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Os factos relativos às condições pessoais e económicas da arguida resultaram provados das suas declarações, não tendo sido afastadas por outros meios de prova.
Considerou-se, ainda o teor do documento junto pela arguida de fls. 789 a 791 (da Comissão para a Eficácia das Execuções) do qual decorre que à arguida foi instaurado um processo disciplinar e que a mesma foi suspensa provisoriamente do exercício das suas funções de agente de execução.
***
Quanto aos factos não provados, a prova produzida não foi suficiente no sentido da sua verificação, por não ter sido inquirida nenhuma testemunha com conhecimento directo dos factos e não ter sido junto qualquer documento que corrobore o descrito na acusação quanto à matéria não provada (sendo que relativamente às notificações alegadamente efectuadas à arguida nos dias 26.06.2009 e 18.12.2009 foram efectuadas às exequentes como resulta de fls. 36 a 45).»
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3. Apreciação do recurso.
A) Recurso da arguida.
1.Averiguar do preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo do crime de peculato.
Sustenta a recorrente que “do elenco de factos provados não resulta que houve apropriação ilícita em proveito próprio ou de terceiro (da quantia depositada à ordem da recorrente); E, não se provando este facto, não poderia o Tribunal "a quo" ter dado como provada a prática do crime de que a arguida vem acusada”. Argumenta que “não basta a mora da recorrente, o atraso em transferir a quantia à sua guarda, ou a sua transferência em duas prestações, para que se possa considerar consumado o crime de peculato”.
O MP, por sua vez argumenta que o crime se consuma com a manifestação externa do acto de apropriação, o mesmo é dizer com a inversão do título de posse. E que uma das mais frequentes e mais concludentes manifestações externas de apropriação é constituída pela recusa de restituição. Assim, constando dos factos provados que a mandatária das exequentes, em diversas ocasiões, contactou a arguida no sentido de lhe serem entregues as quantias devidas, tendo esta última respondido que o não podia fazer porque essas quantias ainda não estavam disponíveis, pelo facto de o executado ainda não as ter pago (o que não correspondia à verdade, como também ficou assente) tal permite concluir, que a arguida quis fazê-las suas e integrá-las no seu património, o que basta para o preenchimento do tipo de ilícito de peculato. Isto ainda que, posteriormente (seis meses mais tarde), tenha entregue as quantias devidas, visto que o tipo objectivo de peculato é preenchido com a apropriação da coisa pelo agente.

Vejamos.
Dispõe o artigo 375º, do CPP:
1 - O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de um a oito anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Por sua vez- diz-se no artigo 386º, n.º1 al. c)
1 - Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange:
a…);
b…);
c) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.
O bem jurídico protegido é por um lado a tutela de bens jurídicos patrimoniais e por outro a tutela da probidade e fidelidade dos funcionários.
A propósito do tipo objectivo de ilícito do crime de peculato escreve Conceição Cunha, Comentário Conimbricense, tomo III, pág. 692 a 698:
Objecto do crime de peculato é o “dinheiro”, a “coisa móvel” ou seja os “valores ou objectos”.
O agente “do presente tipo legal terá de ser um funcionário (sobre este conceito cf. art. 386º) Não basta, no entanto que se trate de um funcionário; necessário é que o funcionário, em razão das suas funções, tenha a posse do bem (cf. infra § 11 s.) objecto do crime; é essa qualidade do agente (e essa relação do agente com o objecto) que torna a ilicitude do crime de peculato mais grave do que a do furto.
(…)
Por outro lado, tem de se tratar de bens que tenham sido entregues, estejam na posse ou sejam acessíveis ao agente, em razão das suas funções (…).
(…)
O conceito de posse, para efeitos deste tipo legal, deve, de facto, entender-se em sentido lato, englobando quer a detenção material quer a disponibilidade jurídica do bem, ou seja, a detenção indirecta – quando a detenção material pertence a outrem, mas o agente pode dispor do bem ou conseguir a sua detenção material mediante um acto para o qual tem competência em razão das suas funções (…). Ora, este conceito lato de posse engloba quer a situação em que o bem foi entregue ao agente (como é evidente, por título não translativo da propriedade, que é o que aqui está em causa) – detenção material –, quer a noção de acessibilidade se a entendermos como sinónimo de disponibilidade (por ter a detenção material ou a disponibilidade jurídica); assim sendo, a posse poderia abarcar os outros dois conceitos. No entanto, se entendêssemos a acessibilidade num sentido ainda mais lato – não só a detenção material ou a disponibilidade jurídica como a proximidade do bem ou a facilidade na sua apropriação –, já seria este conceito o mais amplo. Porém, tendo em conta que a acessibilidade deve derivar das funções do agente, parece que deverá haver uma efectiva detenção material ou disponibilidade jurídica do objecto, não sendo suficiente, segundo cremos, a mera proximidade material do bem ou a facilidade em conseguir a sua apropriação (…). Sendo assim, posse em sentido lato e acessibilidade seriam conceitos que se identificariam e abarcariam a situação de entrega do bem (…).
(…) O agente deve ter a posse do bem "em razão das suas funções"; o facto da relação do agente com o bem derivar das funções que o agente exerce confere especificidade a este tipo legal, agravando a ilicitude da apropriação (cf. supra § 7 (…)
(…) trata-se, assim, de um abuso ou infidelidade à função que o agente exerce (…) que só existirá quando o agente tem, devido exactamente às funções que exerce, a posse do bem.»
«A conduta punida por este tipo legal consiste na apropriação ilegítima; por apropriação deve entender-se o acto de fazer seu o bem, agindo como se fosse seu proprietário e não mero possuidor; a apropriação é ilegítima desde logo porque não deriva de nenhum título aquisitivo da propriedade.»
E escreve Figueiredo Dias, no mesmo Comentário, a págs. 103 a 106 sobre o elemento apropriação e apropriação ilegítima, para que remete a anotação do artigo 375º «a apropriação no abuso de confiança “não pode ser…um puro fenómeno interior – até porque cogitationis poenam nemo patitur – mas exige que o animus que lhe corresponde se exteriorize, através de um comportamento, que o revele e execute”(doutrina que a jurisprudência portuguesa assumiu de forma absolutamente dominante). É a teoria, que não pode deixar de ser acolhida, do acto manifesto de apropriação e que tem relevo, entre outros, para efeitos de consumação.»
(…)
«A apropriação traduz-se sempre, no contexto do abuso de confiança, precisamente na inversão do título de posse ou detenção
(…)
«O agente, que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela – naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais – uti dominus; é exactamente nesta realidade objectiva que se traduz a “inversão do titulo de posse ou detenção” e é nela que se traduz e se consuma a apropriação.»
(…)
Problemas são aqui de novo suscitados pela apropriação de coisas móveis absolutamente fungíveis, nomeadamente dinheiro
(…)
«…o tipo objectivo de ilícito do abuso de confiança não será integrado pela mera confusão ou o simples uso de coisa fungível, mas, mais tarde, pela sua disposição de forma injustificada ou pela não restituição no tempo e sob a forma juridicamente devidos; ao que, é claro, terá de acrescer o dolo correspondente.»
(…)
«À integração do tipo objectivo de ilícito do abuso de confiança é finalmente necessário que a apropriação seja ilegítima. (…) no abuso de confiança do que se trata (…) é de que a apropriação não deve ter-se por ilegítima sempre que ela não acarrete uma contradição com o ordenamento jurídico geral da propriedade, máxime, porque o agente detém sobre o desapropriado uma pretensão jurídico-civilmente válida, já vencida e incondicional (…).»
Quanto ao tipo subjectivo de ilícito, «trata-se, evidentemente, de um tipo legal doloso. Assim, o agente terá de ter conhecimento da factualidade típica, nomeadamente ter consciência de que se trata de bem alheio de que tem a posse em razão das suas funções (…no entanto, em relação a estes conceitos, basta ter o “conhecimento paralelo na esfera do leigo”), sob pena de se excluir o elemento intelectual do dolo (cf. art. 16º-1) e terá ainda de ter a consciência e vontade de fazer seu o bem para seu próprio benefício ou de terceiro (assim é evidente que a intenção de restituir exclui o dolo de apropriação) ou de o onerar (n.º2);»
Sufragando a doutrina exposta temos que para que se verifique o crime de peculato de dinheiro, do n.º1, do artigo 375º do CP, torna-se necessário:
- Que o agente seja um funcionário para efeitos do artigo 386º do CP e que este tenha a posse do bem (dinheiro) em razão das suas funções;
- Uma vez que a conduta punida consiste na apropriação ilegítima, que a apropriação, isto é, a intenção do agente (que tinha apenas a posse do dinheiro) em comportar-se como se fosse proprietário do dinheiro se revele por actos objectivamente idóneos e concludentes que traduzam a “inversão do título de posse ou detenção”; isto é, actos que revelem uma disposição do dinheiro de forma injustificada ou uma não restituição no tempo e sob a forma juridicamente devidos.
- Que o agente tenha actuado com consciência de que se trata de bem alheio (dinheiro), de que tem a posse em razão das suas funções e que tenha consciência e vontade de fazer seu o bem para seu próprio benefício ou de terceiro.
Ora, como resulta dos factos provados a arguida era agente de execução nomeada nos autos de acção executiva decorrentes da acção n.º 156/04.3TBVLP [portanto, funcionária para efeitos do artigo 386º, n.º1 al. c) pois que (temporariamente) participava no desempenho de uma actividade compreendida na função jurisdicional], nesses autos foi ordenado o pagamento das quantias depositadas nos autos à exequente por despacho de 12 de Fevereiro de 2009 que foi notificado às partes em 15 de Abril de 2009. A mandatária da exequente enviou à agente de execução o NIB das representantes da autora (também exequente) para que o depósito fosse efectuado. A agente de execução, ora arguida, procedeu à notificação da I…, para que o pagamento fosse feito. A I… informou que, por se tratar de um depósito autónomo, tal quantia teria que ser creditada em nome do Instituto de Gestão Financeira Patrimonial e de Infra-estruturas da Justiça.
No dia 28 de Abril de 2009, a arguida notificou aquele instituto para que procedesse à transferência da quantia de €26.595,50 para a sua conta com o NIB ………………… do J…, o que veio a acontecer no dia 14 de Agosto de 2009 tendo ficado a quantia disponível em 01 de Setembro de 2009. [A arguida passa a ter a posse do dinheiro em razão das suas funções de agente de execução].
A mandatária das ofendidas F… e G… foi contactando o escritório da arguida, no sentido de saber qual a data da transferência da supra referida quantia para que as suas clientes, obtendo como resposta que o pagamento ainda não tivera lugar.
Depois de contactada a arguida, esta apenas em 22 de Janeiro de 2010, depositou na conta das exequentes a quantia de €5.000,00.
A arguida procedeu ao pagamento da quantia remanescente no dia 5 de Abril de 2010.
Destes últimos factos decorre que a arguida que, pela sua qualidade de agente de execução tinha disponível na sua conta a quantia de 26.595,00€, desde 1.09.2009, foi informando a mandatária das ofendidas (representantes da autora e exequente) que o pagamento ainda não tivera lugar e, apenas em 22 de Janeiro de 2010, depositou na conta das exequentes a quantia de 5.000,00€, depois de contactada para o efeito, e procedeu ao pagamento da quantia remanescente no dia 5 de Abril de 2010.
Ora, todo o comportamento da arguida demonstra a sua intenção de comportar-se como proprietária do dinheiro, não só porque esteve na posse do dinheiro mais de quatro meses, informando a mandatária das ofendidas de que a transferência ainda não tivera lugar, mas também porque, não obstante na posse do NIB das ofendidas, não procedeu à transferência da quantia recebida para a conta delas, não o fazendo, portanto, no tempo devido, mas também porque o pagamento não foi efectuado na forma devida, isto é de uma só vez.
Entendemos, assim, provado o elemento apropriação do dinheiro (em relação à quantia de 26.595,00€), ilegítima, visto que a arguida não tinha «qualquer pretensão jurídico-civilmente válida, já vencida e incondicional».
E se assim é em relação à quantia de 26,595,00€, por maioria de razão é em relação à quantia de 4.271,40€ que a arguida, na qualidade de agente de execução, nunca devolveu ao executado C…, não obstante para tanto notificada, por duas vezes, após despacho de 28.09.2010, e após despacho de 27 de Janeiro de 2011.
Temos também por verificado o elemento subjectivo, visto que se provou que o executado C… nunca recebeu a quantia indevidamente penhorada pela arguida, tendo a mesma de forma ilícita integrado tal quantia no seu património e, por sua vez, pela arguida nunca foi instaurada a adequada execução a favor de K… para cobrança da quantia que lhe era devida pelo executado; E que a arguida, no cumprimento das suas funções de agente de execução, integrava de forma regular e continua, montantes em dinheiro na sua conta bancária resultante das penhoras efectuadas aos executados, valores que a mesma deveria, posteriormente, entregar às exequentes e no último caso ao executado, a quem eram destinadas; e ainda que a arguida agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, com o propósito firme de integrar directamente no seu património, como efectivamente aconteceu, as referidas quantias recebidas por depósitos bancários, no montante total de €30.866,90, não obstante saber que as mesmas não lhe pertenciam e que depois de as receber, em virtude da sua função de agente de execução, teria que as devolver a quem eram devidas e a quem legitimamente pertenciam, o que apenas veio a acontecer em relação à quantia devida na acção executiva a que se reporta o processo n.º 156/04.3TBVLP em 22 de Janeiro de 2010 (no montante de €5.000,00) e 5 de Abril de 2010 (o remanescente). A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei. Não há dúvidas que se encontra preenchido o elemento subjectivo do crime em causa.
Assim sendo, estão preenchidos os elementos típicos do crime de peculato, pelo que improcede a questão posta no recurso da recorrente arguida.

B. Averiguar se os factos configuram a prática de um crime continuado de peculato ou antes a prática de dois crimes (recurso do MºPº).E efeitos quanto à medida da pena.
Sustenta o MP, na veste de recorrente, que se verificam dois crimes de peculato não um crime continuado de peculato, em relação a todas as condutas apuradas, como é sustentado na sentença sob recurso, essencialmente com os argumentos:
- «a pluralidade de vítimas deve ser ponderada em todos os crimes que protegem bens jurídicos não supra-individuais, como são os bens de carácter patrimonial»;
- «A execução de forma essencialmente homogénea supõe a similitude do modus operandi do agente e, designadamente, dos meios utilizados na prática do crime - embora a conta bancária, pertencente à arguida B…, para a qual foram transferidas as quantias acima referidas, seja a mesma, e as quantias referidas tenham sido transferidas em datas relativamente próximas, a verdade é que estamos no âmbito de dois processos executivos absolutamente distintos, com diferentes exequentes e executados, as quantias transferidas tiveram origem em contas bancárias perfeitamente autónomas e dissemelhantes e as mesmas tiveram um destino particular».
Vejamos.
O MP na acusação de fls. 706 a 714 (3º. volume) imputou à arguida um crime de abuso de confiança, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 26º, 30º, n.º2 e 205º, n.º1 e nº4 al. b) todos do CP.
Entretanto o tribunal a quo em 19.12.2012, procedeu à comunicação de alteração não substancial de factos, e de alteração jurídica dos mesmos, nomeadamente entendendo que a conduta da arguida é subsumível ao crime de peculato, previsto e punido pelo art. 375º, n.º1, com referência ao artigo 386º, n.º 1 al. c), ambos do Código Penal, na sua forma continuada, de acordo com o n.º2 do artigo 30º do CP, e não um crime de abuso de confiança, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 26º, 30º, n.º2 e 205º, n.º1 e 4 al. b) e n.º5, todos do CP, como vem imputado na acusação, sendo que nessa altura, o MP nada opôs ou requereu quanto “à forma continuada do crime”.
Ora, a posição do MP, junto do tribunal a quo, no presente processo, é reveladora de posições de sinal contrário sobre a mesma questão de direito, qual seja a da “forma continuada” do crime praticado ou imputado à arguida. Desta última posição processual (a esgrimida em recurso) resulta uma maior culpabilidade da arguida (veja-se que o MP, recorrente, com a sua nova posição agora assumida, contrária àquela que sufragou na acusação, pretende uma condenação da arguida por dois crimes de peculato e uma pena mais elevada do que a aplicada pelo tribunal a quo, em razão dessa nova incriminação), estando-lhe nesta circunstância vedada esta tomada de posição pois tal não se coaduna com o estrito dever de lealdade e de fair play do seu comportamento processual que resultam para ele do facto de lhe competir zelar pela observância da legalidade democrática, e de ser titular da promoção penal e da realização da pretensão punitiva do Estado, aliado ao dever de legalidade e de objectividade a que se encontra vinculado.
Além de que ‘o vínculo existente entre exigência de legalidade, e objectividade, da actuação do Ministério Público e a natureza monocrática, una e indivisível desta magistratura, obriga a considerar a posição de cada representante do Ministério Público em processo penal – feita na sede e nos termos legais e no exercício de competência própria – como a aposição definitiva do Ministério Público’.
Em face do exposto, entendemos que, nos termos do Ac.FJ no 2/2011, o Ministério Público não tem interesse em agir no caso concreto, já que o seu recurso versa sobre decisão concordante com a sua posição anteriormente assumida.
Todavia, porque está em causa um problema de qualificação jurídica dos factos, que temos o dever de oficiosamente dilucidar, dele passamos a conhecer.
Dispõe o artigo 30º, nº 2, do Código Penal, na redacção vigente à data dos factos aqui em questão: “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.”
São, assim, requisitos do crime continuado (como vem sendo unanimemente afirmado pela jurisprudência):
1º- os actos constitutivos do comportamento se dirijam contra o mesmo bem jurídico;
2º- os actos constitutivos do comportamento violem a mesma lei penal;
3º- homogeneidade do comportamento total e um mínimo de conexão espacial e temporal entre os vários actos;
4º- e um dolo continuado (resolução que se renova).
A atenuação da culpa do agente, que resulta de uma conformação especial do momento exterior da conduta, está, assim, sempre condicionada pela circunstância de esta ter efectivamente concorrido para o determinar à resolução de renovar a prática do mesmo crime - vide Eduardo Correia, Direito Criminal (com a colaboração de J. Figueiredo Dias), II vol., Coimbra, pp. 208-219.
O fundamento do crime continuado (art. 30º, nº 2, do CP), que pressupõe uma pluralidade de resoluções tomadas, encontra-se na considerável diminuição da culpa do agente devido ao carácter exógeno da conduta que lhe cria uma especial solicitação para o crime.
Da materialidade apurada, resulta que cada um dos crimes em questão foi cometido em execução de resoluções distintas, as quais foram sendo tomadas em diferentes ocasiões, não havendo desfasamento temporal entre elas (já que as quantias em causa acedem á conta da arguida em Agosto de 2009), sendo certo que ao contrário do que argumenta o MP nunca a pluralidade de vítimas, quando não estejam em causa, bens jurídicos eminentemente pessoais, como é o caso, foi critério impeditivo da aglutinação num crime continuado da realização plúrima do mesmo tipo de crime, verificados os demais requisitos do crime continuado.
Com efeito, atenta a matéria de facto provada, as condutas da arguida são muito próximas no tempo, lesam o mesmo bem jurídico, há homogeneidade na actuação da arguida, já que recebeu na sua conta bancária (em Agosto de 2009) as duas quantias referentes a dois processos executivos, com distintos ofendidos, as fez suas precisamente através da mesma actuação, isto é, usando a circunstância de ser agente de execução nos dois processos a que se destinavam as ditas quantias e a circunstância de essas quantias estarem à sua disposição, numa conta bancária própria - a conta com o NIB ………………… do J… titulada pela arguida - (o que na altura era permitido e foi posteriormente afastado através das contas específicas, ou “contas-clientes”, através do aditamento à Portaria nº 331-B/2009, de 30.04, dos artigos 2.º-A e 26.º-A, 26.º-B e 26.º-C pela Portaria n.º 308/2011, de 21.12), facilitando a movimentação dos fundos nela depositados, sem necessidade de uso de qualquer outro subterfúgio fraudulento.
Pode, assim, concluir-se do circunstancialismo fáctico apurado que existiu “uma relação que de fora e de maneira considerável facilitou a repetição da actividade criminosa”, tornando cada vez menos exigível à arguida que se comportasse de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito – Assim, Eduardo Correia, ob. cit., e, também, Unidade e Pluralidade de Infracções e Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, pp. 245-291 -, dessa forma sendo arrastada para a prática dos dois crimes cometidos, de forma homogénea, realizando repetidamente o mesmo tipo de crime, que protege o mesmo bem jurídico.
Por isso, entendemos que pode falar-se em um único crime continuado.
Mantém-se assim, a sentença sob escrutínio, improcedendo o recurso da arguida e rejeitando-se o recurso do MP.
*
*
III- Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes da segunda secção deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pela recorrente, e rejeitar o recurso interposto pelo MP, mantendo-se a decisão recorrida.
*
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4Uc.
*
Processado em computador e revisto pela relatora – artigo 94º, n.º 2, do CP.P.

Porto, 26 de Junho de 2013.
Maria Dolores da Silva e Sousa
Maria de Fátima Cerveira da Cunha Lopes Furtado