RESPONSABILIDADE CIVIL
DEVER DE CONSERVAÇÃO E MANUTENÇÃO DE EDIFÍCIO
PRESUNÇÃO
RESPONSABILIDADE
Sumário

I - A presunção prevista no art. 493º, nº 1 do Cód. Civil, onde se fala em “coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar”, reporta-se às actividades perigosas em geral”.
II - No caso de uma junta de dilatação de um edifício, por onde ocorreram infiltrações de água da chuva, não está em causa o dever de vigiar, mas sim o dever de manutenção e conservação, sendo que à violação deste dever se refere a presunção contida no art. 492º do Cód. Civil.
III - Para que haja lugar à aplicação da presunção prevista no art. 492º do Cód. Civil torna-se necessário ao lesado provar que os danos provocados pelo edifício provieram de defeito na sua conservação.

Texto Integral

Proc. nº 4319/10.4 TBVFR.P1
Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira – 4º Juízo Cível
Apelação
Recorrente: “B… – Companhia de Seguros, S.A.”
Recorrido: “C…, S.A.”
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Pinto dos Santos

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
A autora “B…, Companhia de Seguros, S.A.”, com sede na Rua …, n.º .., ….-… Lisboa, instaurou a presente a acção declarativa comum, sob a forma sumária, contra Condomínio do C…, S.A. (devido a extinção, por fusão, da D…, S.A.) do …, Santa Maria da Feira, com sede na Rua …, …, piso ..º, …, ….-… Lisboa, figurando, ainda, na mesma, como interveniente principal/ré “E…, S.A.” – Sucursal Portugal, com sede na …, n.º … – ., ….-… Lisboa.
Pede a autora que a presente acção seja julgada procedente por provada e, em consequência, que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de 5.410,10€, acrescida de juros vincendos, à taxa legal, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alega, para o efeito e em síntese, o seguinte:
- A sociedade “F…, S.A.”, com sede na …, n.º …, no Porto, NIPC ………, foi incorporada, por fusão, na “B… – Companhia de Seguros, S.A.”, por escritura pública de fusão, aumento de capital e alteração parcial do contrato de sociedade outorgada no dia 31 de Dezembro de 2009, lavrada de fls. 50 a 58 do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º 80-B, do Cartório Notarial de G…, sendo que os factos titulados pela escritura em causa foram objecto de registo promovido no dia 31 de Dezembro de 2009;
- A autora é uma sociedade que se dedica à actividade seguradora;
- No exercício da sua actividade, a autora, à data “F…, S.A.”, e a sociedade
“H…, Lda.”, assinaram um escrito designado de Multi-Riscos/estabelecimentos, apólice n.º 33/……;
- Especificamente estavam cobertos os riscos de danos causados por água no recheio do estabelecimento comercial da segurada sito no centro comercial D…, em Santa Maria da Feira;
- No dia 30 de Maio de 2008, a autora foi informada que no estabelecimento seguro tinham existido infiltrações de água, tendo tal sinistro sido participado à autora, no âmbito da apólice mencionada;
- Uma vez que os produtos armazenados eram de venda rotativa, a segurada não se deslocava diariamente à arrecadação;
- As infiltrações de água da chuva ocorreram na arrecadação do estabelecimento segurado pela junta de dilatação/retracção contígua ao local;
- A água penetrou pela junta de dilatação para o interior da arrecadação em causa e escorreu pela parede, inundando-o;
- Cabia à ré, na qualidade de administração do condomínio, a manutenção das juntas de dilatação/retracção, ao que esta não procedia, tendo a infiltração ocorrido devido a tal falta de manutenção;
- Após o sinistro, a ré procedeu à injecção de silicone em locais específicos das juntas que impediram a entrada de água em situações futuras;
- Após a verificação da existência de água na arrecadação, a sociedade “H…, Lda.”, através dos seus funcionários, alterou a forma como armazenava a mercadoria no interior da mesma;
- Devido à inundação, ficaram estragadas as mercadorias e o móvel coluna mencionados no documento de fls. 24-26, estragos cujo valor a autora computou em 5.295,10€.
- A autora, no âmbito da apólice mencionada, entregou à sociedade “H…, Lda.”, em 24 de Outubro de 2008, a quantia global de 5.170,10€, após dedução, ao valor dos estragos, do montante de 125,00€, relativo a franquia contratual.
- A autora entregou à sociedade “I…, Lda.”, o montante de 240,00€ relativo a peritagem para avaliação e regulação dos prejuízos resultantes da inundação mencionada.
Regularmente citada, a ré veio apresentar contestação, pugnando pela improcedência da presente acção, sustentando, em síntese que, apesar da existência da mencionada junta de dilatação, não se provou o nexo entre a mesma e a inundação alegadamente existente, nem entre esta inundação e os danos invocados, nem, por fim, se demonstrou que a inundação existente tivesse intensidade e fosse apta a causar os danos invocados, sendo que os produtos eram armazenados de forma espalhada pelo chão, sem que fossem salvaguardados, comprometendo-se, assim, o seu estado, atenta a natureza dos mesmos.
Suscitou ainda esta ré a intervenção da Companhia de Seguros “E…, S.A. – Sucursal Portugal”, invocando para o efeito a existência de um seguro de responsabilidade civil realizado com tal companhia que cobre os danos em causa, respondendo a ré, apenas, até ao valor de 5.000,00€, valor da franquia convencionada com tal seguradora.
A autora apresentou resposta, tendo com base no contrato de seguro invocado pela ré peticionado a intervenção principal provocada de “E…, S.A. – Sucursal Portugal”.
A fls. 151-152, foi admitida a intervenção principal provocada de “E…, S.A. – Sucursal Portugal”, a qual apresentou a sua contestação, pugnando pela improcedência da presente acção.
Foi proferido despacho saneador e dispensada a selecção da matéria de facto.
Procedeu-se depois à audiência de julgamento, com observância das formalidades legais, após o que se fixou a matéria de facto, sem que tenha havido qualquer reclamação.
Proferiu-se sentença que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu as rés “C…, SA” e “E…, SA” do pedido formulado.
Inconformada com o decidido, a autora interpôs recurso de apelação, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
I – A douta sentença recorrida deverá necessariamente ser revogada.
II – A sentença em apreço violou o disposto no artigo 493º, nº 1 do Código Civil.
III – Da prova produzida resultou que “as infiltrações de água da chuva ocorreram na arrecadação do estabelecimento mencionado em VI. pela junta de dilatação/retracção contígua ao local”, “tendo a água penetrado pela junta de dilatação para o interior da arrecadação em causa e escorrido pela parede, inundando-o”.
IV – Ficou, igualmente, demonstrado que era a ré “C…, SA”, na qualidade de administração do condomínio, a quem cabia a manutenção das juntas de dilatação/retracção.
V – À presente situação é aplicável o disposto no nº 1 do art. 493º do Código Civil.
VI – De acordo com o disposto no artigo 483º, nº 1 do Código Civil “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
VII – Os pressupostos da responsabilidade civil são o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade.
VIII – “In casu”, o facto consiste na infiltração de água na arrecadação do estabelecimento pela junta de dilatação/retracção contígua ao local.
IX – A ilicitude por seu lado afere-se pela lesão de um direito de outrem – mormente na vertente propriedade integrada num património, em virtude de uma falta de cuidado que, a ser cumprida, seria susceptível de inviabilizar a criação de uma indemnização.
X – O resultado verificado – ficaram estragadas várias mercadorias e o móvel da coluna – é imputável, de forma directa e adequada, à infiltração de água que se ficou a dever à junta de dilatação/retracção, pelo que penetrando para o interior da arrecadação e escorrido pela parede, a água provocou a inundação da mesma. Face às regras físicas que explicam o comportamento das massas de água, tal resultado afigura-se normal e previsível.
XI – O artigo 1421º, nº 1 do CC enumera as partes comuns de um edifício, acrescentando o artigo 1424º do mesmo Código que os encargos atinentes à conservação das partes comuns são pagos pelos condóminos, sendo certo que cabe ao administrador do condomínio, nos termos da 2ª parte do disposto no artigo 1436º, al. d), efectuar as “despesas comuns”.
XII – Estas despesas comuns são, também, as que decorrem do dever de vigilância e conservação das coisas comuns.
XIII – Nos presentes autos, a culpa decorre da violação de um dever de vigilância que impende sobre o detentor de qualquer coisa móvel ou imóvel. “A particular responsabilidade pelos danos causados pelas coisas funda-se no perigo que essas coisas representam, como causa de danos, para terceiros, ou antes, no risco que a ausência de vigilância a respeito delas faz correr a terceiros” (cfr. Vaz Serra in BMJ, nº 85, p. 372-373).
XIV – No caso, a presunção de culpa funda-se na ausência da tomada de medidas adequadas a evitar a infiltração de água pela junta de dilatação/retracção, permitindo a inundação da arrecadação do estabelecimento mencionado em VI.
XV – É a responsável pela conservação – ré “C…” – que deve genericamente demonstrar que não foi por culpa sua que ocorreu a inundação do estabelecimento – nomeadamente pela prova da ausência de defeitos de conservação e manutenção ou que os danos continuariam a verificar-se, ainda que não houvesse culpa sua.
XVI – Era sobre a ré “C…” que recaía o ónus de provar que a inundação não se deu por falta de conservação/manutenção.
XVII – A autora, honrando os compromissos por si assumidos no âmbito da apólice nº 33/…… e, em consequência do sinistro, procedeu ao pagamento da quantia global de €5.170,10 à sua segurada, já deduzido o valor de €125,00 a título de franquia contratualmente estipulada.
XVIII – A autora despendeu, ainda, a quantia de €240,00 na regularização do sinistro.
XIX – A ré “C…” não logrou demonstrar a existência de caso fortuito ou de força maior, culpa do lesado ou de terceiros, nem que não houve culpa sua ou que mesmo que tivesse adoptado a diligência devida o evento danoso ainda assim teria ocorrido.
XX – Nesta conformidade, deverá a douta sentença recorrida ser revogada e, em consequência, substituída por outra que faça a correcta aplicação do direito, nomeadamente pela condenação da ré “C…” no pedido.
A ré “C…, SA” apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre então apreciar e decidir.

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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 684º, nº 3 e 685º - A, nº 1 do Cód. do Proc. Civil de 1961, na redacção decorrente do Dec. Lei nº 303/2007, de 24.8 [que é a aplicável ao presente recurso] e que correspondem aos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Novo Código do Proc. Civil.
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A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se ao caso “sub judice” é aplicável a presunção prevista no art. 493º, nº 1 do Cód. Civil e se era sobre a ré que recaía o ónus de provar que a inundação ocorrida não se deu por falta de conservação ou manutenção.
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OS FACTOS
É a seguinte a matéria de facto dada como provada pela 1ª Instância:
I. A Sociedade “F…, S.A.”, com sede na …, n.º …, no Porto, NIPC ………, foi incorporada, por fusão, na “B… – Companhia de Seguros, S.A.”, por escritura pública de fusão, aumento de capital e alteração parcial do contrato de sociedade outorgada no dia 31 de Dezembro de 2009, lavrada de fls. 50 a 58 do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º 80-B, do Cartório Notarial de G… (artigo 1.º, da PI).
II. Os factos titulados pela escritura mencionada em I. foram objecto de registo promovido no dia 31 de Dezembro de 2009 (artigo 2.º, da PI).
III. A Autora é uma sociedade que se dedica à actividade seguradora (artigo 4.º, da PI).
IV. No exercício da sua actividade, a Autora, à data “F…, S.A.”, e a sociedade “H…, Lda.”, assinaram um escrito designado de Multi-Riscos/estabelecimentos, apólice n.º 33/……, cujas condições particulares constam de fls. 12-13 e as condições gerais e especiais de fls. 216-254, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (artigo 5.º, da PI).
V. Especificamente constam das condições particulares mencionadas em IV., sob o item “Local de Risco”, as expressões “Centro Com D…” e “Santa Maria da Feira, e, sob o item “Franquias – Riscos da Cobertura Base”, entre outras, as expressões “Danos por Água” e “Euro 125,00” (artigo 6.º, da PI).
VI. No dia 30 de Maio de 2008, a Autora foi informada que no estabelecimento da sociedade mencionada em IV. tinham existido infiltrações de água (artigo 7.º, 1.ª parte, da PI).
VII. O facto mencionado em VI. foi participado à autora, no âmbito da apólice mencionada em IV., através de escrito designado de “participação de sinistro” junta a fls. 14 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (artigo 7.º, 2.ª parte, da PI).
VIII. A sociedade “H…, Lda.”, através dos seus funcionários, não se deslocava diariamente à arrecadação (artigo 8.º, 2.ª parte, da PI).
IX. As infiltrações de água da chuva ocorreram na arrecadação do estabelecimento mencionado em VI. pela junta de dilatação/retracção contígua ao local (artigo 9.º, da PI).
X. Tendo a água penetrado pela junta de dilatação para o interior da arrecadação em causa e escorrido pela parede, inundando-o (artigo 10.º, da PI).
XI. Cabia à Ré C…, S.A., na qualidade de administração do condomínio, a manutenção das juntas de dilatação/retracção (artigo 12.º, 1.ª parte, da PI).
XII. Após a verificação da existência de água na arrecadação a sociedade “H…, Lda.”, através dos seus funcionários, alterou a forma como armazenava a mercadoria no interior da mesma, acondicionando-a sobre paletes (fixação explicativa da alegação constante do artigo 19.º, da PI).
XIII. Devido à inundação mencionada em X, ficaram estragadas as mercadorias e o móvel coluna mencionados no documento de fls. 24-26, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (artigo 20.º, da PI).
XIV. Estragos cujo valor a Autora computou em €5.295,10 (artigo 21.º, da PI).
XV. A Autora, no âmbito da apólice mencionada em IV, entregou à sociedade “H…, Lda.”, em 24 de Outubro de 2008, a quantia global de €5.170,10, após dedução, ao valor dos estragos, do montante de €125,00, relativo a franquia contratual (artigo 22.º, da PI).
XVI. A Autora entregou à sociedade “I…, Lda.”, o montante de €240,00 relativo a peritagem para avaliação e regulação dos prejuízos resultantes da inundação mencionada em X. (artigos 13.º, 14.º e 23.º, da PI).
XVII. A Sociedade “D…, S.A.”, foi incorporada, por fusão, na Sociedade “C…, S.A.”, em 1/06/2009 (questão prévia, da Contestação da Ré “C…, S.A.”).
XVIII. No exercício da sua actividade, a Sociedade “J….., S.A.”, o qual integra a Ré, e a Companhia de Seguros actualmente designada de “E…, S.A. – Sucursal Portugal”, assinaram um escrito designado de “Seguro de Responsabilidade Civil Geral”, apólice n.º A0……., cujas condições particulares constam de fls. 122-127 e de fls. 140, as condições gerais de fls. 128-133 e as condições especiais de fls. 134-139, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (artigo 1.º, da Contestação da Ré “C…, S.A.” e artigo 1.º, da Contestação da Ré “E…, S.A. – Sucursal Portugal”).
XIX. Especificamente constam das condições particulares mencionadas em VIII., sob o item “Objecto seguro”, a expressão “Responsabilidade Civil Geral Extracontratual do Segurado emergente da sua actividade comercial e/ou industrial e dos seus produtos”, sob o item “Capital seguro por sinistro e ano”, a expressão “€2.500.000,00 (Dois milhões e quinhentos mil euros)” e sob o item “Franquias por sinistro”, a expressão “€5.000,00 (cinco mil euros) em todo e qualquer sinistro excepto nos Estados Unidos da América/Canadá em que a franquia aplicável é de €25.000,00 (Vinte e cinco mil euros)” (artigo 2.º, da Contestação da Ré “C…, S.A.” e artigos 2.º e 3.º, da Contestação da Ré “E…, S.A. – Sucursal Portugal”).
XX. Antes do momento referido em XII, o armazenamento das mercadorias era realizado por assentamento no chão da arrecadação (artigo 14.º, da Contestação da Ré “C…, S.A.”)
XXI. Relativamente à loja n.º 12/13, a Sociedade “D…, S.A.”, actualmente Sociedade “C…, S.A.” e a Sociedade “K…, S.A.”, outorgaram escrito designado de “Contrato de Licença de Utilização de Loja em Centro Comercial”, cujo teor consta de fls. 262-279 e aqui se dá por integralmente reproduzido (teor do documento de fls. 262-279).
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O DIREITO
A presente acção que foi interposta pela autora “C… – Companhia de Seguros, SA” destina-se a apurar, por via da sub-rogação, da responsabilidade nos danos ocorridos na arrecadação do estabelecimento da sociedade “H…, Lda.” e que resultaram de infiltrações de água aí verificadas.
Com efeito, no art. 441º do Cód. Comercial[1] estatui-se que “o segurador que pagou a deterioração ou a perda dos objectos segurados fica sub-rogado em todos os direitos do segurado contra terceiro causador do sinistro, respondendo o segurado por todo o acto que possa prejudicar esses direitos.”
Estamos, pois, perante uma situação de sub-rogação legal cujos requisitos são:
a) O pagamento da indemnização pela seguradora ao abrigo de um contrato de seguro;
b) A existência de um direito de crédito do segurado contra o causador/responsável civil pelo do sinistro.
A sub-rogação, enquanto forma de transmissão das obrigações, atribui ao sub-rogado o mesmo direito do credor, constando do preceituado no nº 1 do artigo 593º do Código Civil que, “o sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam”.
Daqui decorre que o direito do sub-rogado se funda no acto do cumprimento, aferindo-se esse direito, pelo direito do primitivo credor. O sub-rogado fica assim investido na posição antes atribuída ao credor da relação obrigacional.
Sucede que a autora demonstrou ter pago à sua segurada o valor correspondente aos estragos por esta sofridos em consequência das infiltrações ocorridas no seu estabelecimento (cfr. XV), pelo que ficou sub-rogada no direito da lesada a obter da lesante o montante já pago.
Na petição inicial a autora fundou a sua pretensão na presunção de culpa prevista no art. 493º, nº 1 do Cód. Civil, no qual se estabelece que «quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.»
Porém, na sentença recorrida apreciou-se o caso “sub judice” reportando-o à presunção de culpa a que se refere o art. 492º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil e concluiu-se pelo não funcionamento de tal presunção, tendo-se absolvido a ré.
Nas suas alegações de recurso, a autora/recorrente volta a pronunciar-se pela aplicabilidade “in casu” do disposto no art. 493º, nº 1 do Cód. Civil, mas não lhe assiste razão.
Dispõe o seguinte o art. 492º do Cód. Civil:
«1. O proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação, responde pelos danos causados, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos.
2. A pessoa obrigada, por lei ou negócio jurídico, a conservar o edifício ou obra responde, em lugar do proprietário ou possuidor, quando os danos forem devidos exclusivamente a defeito de conservação.»
A junta de dilatação/retracção contígua ao local onde se encontra instalada a arrecadação do estabelecimento comercial da “H…, Lda”, por onde se verificaram as infiltrações que vieram a originar a inundação desse espaço, faz parte integrante do imóvel, pelo que numa primeira leitura pareceria haver fundamento para a aplicação da presunção prevista no art. 493º, nº 1 do Cód. Civil.
Só que no art. 493º não se alude apenas a coisa móvel ou imóvel, mas sim a “coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar”, donde se deverá concluir que, com este preceito e presunção nele prevista – tanto com o nº 2 que se refere a actividades perigosas por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, como com o nº 1 – são as actividades perigosas em geral.
Daí que Antunes Varela e Pires de Lima (in “Código Civil Anotado”, 4ª ed., pág. 495) ao darem exemplos de situações susceptíveis de fazer funcionar a previsão do nº 1 do dito art. 493º refiram a caldeira, o paiol, o depósito de combustível ou de artigos de pirotecnia, as armas, as substâncias radioactivas ou insalubres, os instrumentos cortantes.
Ora, se nos reportamos a um edifício onde funciona um centro comercial e às partes que o compõem, onde se inclui uma junta de dilatação/retracção, não se deverá falar em dever de vigiar, mas sim em dever de manutenção e conservação.
Acontece que é precisamente à violação deste dever de conservação, bem como ao vício de construção, que se refere a presunção contida no art. 492º, nº 1 do Cód. Civil.
No caso presente, ficou provado que as infiltrações de água da chuva ocorridas na arrecadação do estabelecimento comercial da “H…, Lda”e das quais resultou a sua inundação e o consequente estrago de mercadorias e do móvel coluna tiveram a sua origem na junta de dilatação/retracção contígua ao local, que, fazendo parte da respectiva estrutura, constitui parte comum do edifício cuja administração cabe à ré – cfr. art. 1421º, nº 1, al. a) do Cód. Civil.[2]
Por conseguinte, era sobre a ré que recaía o dever de conservação da estrutura do edifício e mais concretamente daquela junta de dilatação/retracção, de tal modo que para a solução deste litígio teremos que convocar a presunção do art. 492º do Cód. Civil como se entendeu na sentença recorrida e não a prevista no art. 493º do mesmo diploma, como sustenta a recorrente.
Para que funcione a presunção de culpa do art. 492º do Cód. Civil torna-se necessário provar que o sinistro decorre de vício de construção ou de defeito de conservação.
A simples verificação desse sinistro não significa, desde logo, que há conservação inadequada.
A presunção apenas dispensa a prova do facto presumido – a culpa -, mas já não a do facto base que é, no caso que agora nos ocupa, o vício de construção ou o defeito de conservação.
Como tal, o lesado só está dispensado de provar a culpa, mas não de provar o vício de construção ou o defeito de conservação.
Porém, esta questão não se tem mostrado inteiramente pacífica nem na doutrina nem na jurisprudência.
Antunes Varela (in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 4ª ed., pág. 518) pronuncia-se claramente no sentido de que se impõe ao lesado a prova do vício de construção ou do defeito de conservação, salientando que o art. 492º consagra uma presunção de culpa, mas não a responsabilidade objectiva, e o seu entendimento tem sido seguido pela maioria da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.[3]
Escreveu que “o proprietário ou possuidor não responde pelos riscos ou pelo perigo especial provenientes do edifício, mas só por ter culposamente deixado de observar os cuidados de construção e de conservação exigíveis para prever e prevenir o dano.”
Sobre a mesma questão escreveu, por seu turno, Vaz Serra (in BMJ, nº 88, págs. 27/8), que é, sublinhe-se, o autor dos trabalhos preparatórios que resultaram no actual texto do art. 492º:
“Pode dizer-se que, servindo a casa ou outra construção para satisfação de necessidades do seu proprietário, este deve, como contrapartida, suportar as desvantagens correspondentes e, entre elas, os danos que a casa ou outra construção causar. Mas este princípio não pode exagerar-se, só sendo aplicável onde um especial perigo inerente a coisas ou actividades de alguém aconselhe a afastar a regra geral da culpa como requisito da responsabilidade Se tal princípio fosse em absoluto verdadeiro, instaurar-se-ia a regra da responsabilidade objectiva.
Parece, pois, não dever aceitar-se a responsabilidade objectiva do proprietário.
Mas também a orientação do nosso Código (de Seabra) não se afigura de manter. O proprietário não deve responder apenas quando se prove a sua culpa. Parece dever haver, pelo menos, uma presunção de culpa, com o que se dispensará a vítima de provar a culpa dele. Por um lado, esse ónus seria demasiado, pois ele poderia ter grande dificuldade em demonstrar que o proprietário teve culpa, isto é, não adoptou as cautelas necessárias e devidas para conjurar o perigo; por outro lado, o proprietário conhecendo ou devendo conhecer melhor a coisa e o que fez, melhor pode também fornecer a prova respeitante à sua própria culpa”.
Seguindo esta linha argumentativa é de concluir que o art. 492º do Cód. Civil não consagra uma situação de responsabilidade objectiva, mas sim uma mera presunção de culpa, sendo que na previsão do preceito está uma perigosidade não tanto da actividade ou do meio, mas antes da anomalia, não se mostrando suficiente dizer que o próprio evento demonstra o vício de construção ou o defeito de conservação.
Divergindo deste entendimento, que, como já se referiu, se revela maioritário na jurisprudência, Menezes Leitão veio defender, sobre a questão que aqui se aprecia, uma outra posição.
Escreveu o seguinte (in “Direito das Obrigações”, vol. I, 7ª ed., pág. 327):
“A posição de alguma doutrina seguida unanimemente pela jurisprudência é a de que a aplicação desta presunção de culpa depende da prova de que existia um vício de construção ou um defeito de conservação no edifício ou obra que ruiu, prova essa que, de acordo com as regras gerais, deveria ser realizada pelo lesado.
Discordamos, no entanto, salvo o devido respeito, dessa orientação, uma vez que fazer recair esta prova sobre o lesado equivale a retirar grande parte do alcance à presunção de culpa. Salvo no caso de fenómenos extraordinários, como os terramotos, a ruína de um edifício ou obra é um facto que indicia só por si o incumprimento de deveres relativos à construção ou conservação dos edifícios, não se justificando por isso que recaia sobre o lesado o ónus suplementar de demonstrar a forma como ocorreu esse incumprimento. É antes o responsável pela construção ou conservação que deve genericamente demonstrar que não foi por culpa sua que ocorreu a ruína do edifício ou obra – nomeadamente pela prova da ausência de vícios de construção ou defeitos de conservação – ou que os danos continuariam a verificar-se, ainda que não houvesse culpa sua.”
Na sequência desta orientação surgiu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.4.2008 (p. 08A867, disponível in www.dgsi.pt), onde se entendeu que ao lesado apenas é exigível a prova do evento – que neste caso é a inundação da arrecadação do estabelecimento comercial da “H…, Lda.” com origem em infiltrações de água da chuva através da junta de dilatação/retracção contígua ao local –, havendo que concluir pela culpa presumida, reportada a vício de construção ou a defeito de conservação, caso não se demonstre a ocorrência de caso fortuito ou de força maior ou de culpa do lesado e desde que o responsável não tenha feito a prova de que não houve culpa sua.[4]
Não concordamos, porém, com este entendimento, que se distancia, a nosso ver, notoriamente daquele que é o concreto texto do art. 492º do Cód. Civil, do qual resulta, tal como afirma Antunes Varela em passo já acima referenciado, que a presunção prevista neste preceito só poderá funcionar caso os danos provocados pelo edifício provenham, comprovadamente, de vício de construção ou de defeito de conservação.
Seguir posição diversa significaria o alargamento do âmbito da presunção prevista no referido art. 492º, sem o devido apoio na letra da lei.
Era pois ao lesado, em cuja posição se encontra sub-rogada a autora, que incumbia provar que a inundação ocorrida na arrecadação do seu estabelecimento comercial que teve a sua origem em infiltrações de água da chuva provenientes da junta de dilatação/retracção aí existente, se ficou a dever a falta de conservação que cabia à ré (cfr. também art. 342º, nº 1 do Cód. Civil).
E uma vez tendo-se demonstrado que os estragos ocorridos radicavam nessa falta de conservação então sim funcionaria a referida presunção de culpa, de tal forma que para se eximir à responsabilidade a ré sempre teria de provar que não houve culpa sua ou que, mesmo com a diligência devida, os danos não teriam sido evitados (cfr. também art. 350º, nº 2 do Cód. Civil).
Regressando ao caso concreto, há então que apurar se da factualidade considerada como assente é possível extrair a conclusão de que a inundação ocorrida foi provocada pela falta de manutenção da junta de dilatação/retracção.
Acontece que a nossa resposta, à semelhança do que se entendeu na sentença recorrida, terá que ser negativa. Com efeito, se é certo ter-se provado que existiram infiltrações de água das chuvas na arrecadação do estabelecimento comercial da “H…, Lda” pela junta de dilatação/retracção contígua a esse local, que levaram à sua inundação e que à ré “C…, SA” competia a administração do condomínio e consequentemente a manutenção dessas juntas (cfr. VI, IX, X e XI), também é certo não se ter demonstrado que essas infiltrações tivessem como origem a falta de conservação das referidas juntas.
É que de nenhum concreto ponto da factualidade assente resulta que da parte da ré tenha havido defeito de conservação, e para que a presunção prevista no art. 492º do Cód. Civil pudesse funcionar sempre seria necessário que a autora/recorrente lograsse provar factos dos quais decorresse que a ré não procedia à manutenção das juntas de dilatação/retracção e que as infiltrações ocorreram devido a essa falta de manutenção.
Ora, tal prova não foi feita, como, de resto, flui dos factos dados como não provados sob as alíneas b) e c).[5]
Neste contexto, há que concluir em sentido idêntico ao da 1ª Instância e, em consequência, manter o que por esta foi decidido e julgar improcedente o recurso interposto pela autora.
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Sintetizando:
- A presunção prevista no art. 493º, nº 1 do Cód. Civil, onde se fala em “coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar”, reporta-se às actividades perigosas em geral”.
- No caso de uma junta de dilatação de um edifício, por onde ocorreram infiltrações de água da chuva, não está em causa o dever de vigiar, mas sim o dever de manutenção e conservação, sendo que à violação deste dever se refere a presunção contida no art. 492º do Cód. Civil.
- Para que haja lugar à aplicação da presunção prevista no art. 492º do Cód. Civil torna-se necessário ao lesado provar que os danos provocados pelo edifício provieram de defeito na sua conservação.
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso interposto pela autora “B… – Companhia de Seguros, SA”, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da autora/recorrente.

Porto, 15.10.2013
Rodrigues Pires
Márcia Portela
M. Pinto dos Santos
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[1] Este preceito é ainda aplicável ao caso “sub judice”, porquanto a Nova Lei do Contrato de Seguro (Dec. Lei nº 72/2008, de 16.4), que revogou os arts. 425º a 462º do Cód. Comercial, apenas entrou em vigor em 1.1.2009, sendo que o sinistro destes autos ocorreu em 2008.
[2] Uma junta de dilatação pode ser definida como sendo uma separação entre duas partes de uma estrutura, permitindo assim que ambos os elementos possam movimentar-se (retracção e contracção), sem que haja transmissão de esforço entre eles (in www.sotecnisol.pt/engenharia).
[3] Cfr., por ex., Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6.2.1996, p. 088120, de 12.5.2005, p. 05B932, de 10.1.2006, p. 05A3241 e de 11.11.2010, p. 7848/05.8 TBCSC.L1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt. Em idêntico sentido cfr. também Ac. Rel. Porto de 22.11.2001, p. 0131679, disponível in www.dgsi.pt.
[4] Entendimento semelhante foi adoptado no Acórdão da Relação do Porto de 14.5.2009, p. 3536/05.3 TBGDM.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[5] Nestas duas alíneas deu-se como não provado que a ré C…, SA não procedia à manutenção das juntas de dilatação/retracção mencionadas em XI [al. b)] e que a infiltração mencionada em VI, IX e X ocorreu devido à falta de manutenção das juntas de dilatação/retracção [al. c)].