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PRÁTICA DE ATO PROCESSUAL FORA DE PRAZO
MULTA
CARÊNCIA ECONÓMICA
Sumário
I – O disposto no art. 145º, nº 8, do CPC, tem aplicação no processo penal. II – Encontra-se em situação de manifesta carência económica para pagar a multa quem está preso e não dispõe de rendimentos para proceder à respetiva liquidação.
Texto Integral
Processo n.º 401/07.3GBBAO-B.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Baião
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I - Relatório.
B… recorreu do despacho proferido no processo em epígrafe que indeferiu o seu pedido de dispensa do pagamento da multa devida por ter interposto recurso do acórdão que procedeu ao cúmulo jurídico das penas em que fora condenado no terceiro dia após a verificação do prazo, pedindo que o mesmo seja revogado e o recorrente admitido a praticar o acto em causa, concluindo a motivação com as seguintes conclusões:
1 - O arguido interpôs recurso do douto acórdão, que procedeu ao cúmulo jurídico de penas, tendo dado entrada, via fax, no terceiro dia de multa.
2 - O ora recorrente invocou não ter qualquer possibilidade monetária de poder efectuar o pagamento da referida multa, resultante do longo período de reclusão já sofrido.
3 - As questões essenciais que aqui se colocam são as de se saber se o art.º 145.º, n.º 8 do Código de Processo Civil tem aplicabilidade em sede de Processo Penal, com a introdução do art.º 107.º-A deste diploma e se se encontra provada a alegada insuficiência económica.
4 - A nova redacção legislativa que entrou em vigor, nesta matéria, veio essencialmente tipificar os montantes devidos no caso da prática de actos em período de multa — art.º 107.º-A do Código de Processo Penal.
5 - O legislador, na redacção do n.º 8 do art.º 145.º, estabeleceu uma cláusula geral (a expressão “designadamente’) para a redução ou dispensa da multa devida, para os casos de manifesta carência económica.
6 - O legislador não poderia nunca ter em mente a não aplicação do art.º 145.º, n.º 8 do Código de Processo Civil, ao âmbito do processo penal, pois que bem sabia ser tal alteração legislativa claramente inconstitucional.
7 - O legislador, no art.º 107.º-A do Código de Processo Penal, ao fazer referência expressa ao n.os 5 a 7 do art.º 145.º do Código de Processo Civil, não está a afastar a aplicabilidade do n.º 8 ao processo penal.
8 - A preocupação do legislador foi sim regulamentar as novas formas e montantes de pagamento, introduzidas com a alteração legislativa, mas mantendo intacto o n.º 5 do art.º 107.º do mesmo diploma.
9 - Pois que, os Tribunais Portugueses, não obstante não existir tal remissão expressa, sempre aplicaram, no âmbito do processo penal, a dispensa do pagamento da multa, prevista na redacção anterior do n.º 7 (actual n.º 8) do art.º 145.º do Código de Processo Civil.
10 - A norma do art.º 145.º, n.º 8 do Código de Processo Civil, harmoniza-se, perfeitamente, com a legislação processual penal (art.os 4.º e 107.º, n.º 5 do Código de Processo Penal), pelo que, e em consequência, deverá o Tribunal optar pela aplicação do art.º 145.º, n.º 8 do Código de Processo Civil, às situações do domínio processual penal, por referência aos art.os 4.º e 107.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, sempre que se verifique o requisito da manifesta carência económica.
Por outro lado,
11 - O Recorrente fundamentou, de forma clara que, actualmente, não tem qualquer bem ou rendimento, sendo a sua manifesta carência económica decorrente do longo período de reclusão já sofrido, conforme consta dos factos provados do douto acórdão cumulatório.
12 - O arguido fundamentou devidamente a sua pretensão, pois estabelece o art.º 145.º, n.º 8 do CPC: “O juiz pode determinar a (...) dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica (...)“.
13 - Finalmente, e adaptando os factos à norma, concluiu-se que estando o arguido preso há vários anos e não tendo quaisquer meios de sobrevivência, seria de aplicar ao caso concreto a norma supra citada, pois que esta se refere em concreto às condições económicas e não a qualquer outro tipo de considerações.
14 - Tal como já se decidiu no Acórdão da 3 Secção do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 21 de Dezembro de 2011, no âmbito do Recurso Penal n.º 2027/10.5PPPRT.S1, a resposta para esta questão está no art.º 107.º do Código de Processo penal e não no art.º 107.º-A do mesmo diploma:
«Ora, no artigo anterior, o 107.º, sob a epígrafe de renúncia ao decurso e prática de acto fora de prazo, dispõe-se no n.º 5 que independentemente do justo impedimento, pode o acto ser praticado no prazo, nos termos e com as mesmas consequências que em processo civil, com as necessárias adaptações.
Deste modo, limitando-se o art.º 107.º-A, como o respectivo proémio o diz, a regular a sanção pela prática extemporânea de actos processuais, é inquestionável que ao ali aludir-se, apenas, aos n.os 5 a 7 do art.º 145.º do Código de Processo Civil, não se está a excluir a aplicação do n.º 8 daquele artigo no processo penal, o qual respeita à redução ou dispensa de multa, tanto mais que o legislador teve o cuidado de iniciar o texto do artigo com a expressão sem prejuízo do disposto no artigo anterior, artigo que, como se vê do respectivo texto, estabelece que independentemente do justo impedimento, pode o acto ser praticado no prazo, nos termos e com as mesmas consequências que em processo civil, ou seja, de acordo com o regime aplicável em processo civil.
Há que concluir, pois, ao contrário do decidido no despacho impugnado, que o n.º 8 do artigo 145.º do Código de Processo Civil é aplicável em processo penal.»
Face ao supra exposto, violou-se o disposto nos art.os 4.º, 107.º e 107.º-A do Código de Processo Penal e 145.º, n.º 8 do Código de Processo Civil.
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando para que se negue provimento e se mantenha a douta sentença recorrida, para tanto alinhando as seguintes razões:
Vem o arguido B… recorrer do despacho proferido a 16/08/2013, que indeferiu a dispensa de pagamento da multa pela apresentação das alegações de recurso no 30 dia útil subsequente ao termo do prazo, por considerar que o disposto no artigo 145.º, n.º 8 do CPC (actual artigo 139.º, n.º 8) não tem aplicação ao processo penal.
Não se conformando com a douta decisão, o arguido dela interpôs recurso.
É nosso entendimento que assiste razão ao arguido.
Vejamos:
Dispõe o artigo 145.º, n.º 8 CPC (actual artigo 139.º, n.º 8) que “O juiz pode excepcionalmente determinar a redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respectivo montante se revele manifestamente desproporcionado, designadamente nas acções que não importem a constituição de mandatário e o acto tenha sido directamente praticado pela parte”
Por sua vez o artigo 107.º, n.º 5 CPP refere que “Independentemente do justo impedimento, pode o acto ser praticado no prazo, nos termos e com as mesmas consequências que em processo civil, com as necessárias adaptações.”
No artigo 107.º-A do CPP, sob a epígrafe “Sanção pela prática extemporânea de actos processuais”, pode ler-se: “Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, à prática extemporânea de actos processuais penais aplica-se o disposto nos n.os 5 a 7 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, com as seguintes alterações:
a) Se o acto for praticado no 1.º dia útil, a multa é equivalente a 0,5 UC;
b) Se o acto for praticado no 2.º dia útil, a multa é equivalente a 1 UC;
c) Se o acto for praticado no 3.º dia útil, a multa é equivalente a 2 UC;”
A questão, em concreto, a apreciar é se ao se fazer a alusão, no artigo 107.º- A, à aplicação do disposto nos n.os 5 e 7 do artigo 145.º CPC aos actos processuais penais, se está a excluir a aplicação a esses actos do disposto no n.º 8 daquela norma. Entendemos que não.
De facto, o legislador iniciou o artigo 107.º-A com a expressão “sem prejuízo do disposto no artigo anterior”, artigo este (107.º CPP) que, como decorre do respectivo texto, determina a aplicação ao processo penal do regime aplicável ao processo civil.
Portanto, é nosso entendimento que a alteração legislativa que introduziu a artigo 107.º-A no CPP, apenas teve como objectivo regular as multas aplicáveis à prática de actos extemporâneos em processo penal, mantendo, contudo, inalterado o constante do disposto no artigo 107.º do mesmo diploma.
Aliás, não poderia ser outra a intenção do legislador, considerando-se impensável que se pretendesse uma aplicação exclusiva de tal faculdade aos processos de natureza cível, em detrimento dos processos de natureza penal, sob pena de tal norma padecer de inconstitucionalidade.
Isto dito, resta concluir que não restam dúvidas, salvo melhor opinião, que o constante no artigo 145.º, n.º 8 CPC (actual artigo 139.º, n.º 8) tem aplicação ao processo penal. Por outro lado, o arguido em causa, tal como decorre dos autos, nomeadamente do acórdão já proferido, encontra-se em reclusão há já um longo período de tempo, não tendo qualquer bem ou rendimento, pelo que se considera estar demonstrada a carência económica de que padece.
Nesta Relação, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o seu visto.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.
***
II - Fundamentação. 1. O despacho recorrido.
Requerimento 283735, de 16.8.2013
Pretende o arguido B… a dispensa do pagamento da multa a que alude o art.º 145°, n.º 5, do CPC. alegando para o efeito não dispor de condições económicas que lhe permitam pagar a multa pela apresentação das alegações de recurso no terceiro dia útil subsequente ao termo do prazo.
E convoca para o efeito o disposto no art.º 145.º, n.º 8, do CPC.
Vejamos.
De acordo com o n.º 8 do art.º 145° do CPC, o juiz pode excepcionalmente determinar a redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica (.,.).
Por outro lado, decorre do art.º 107.º-A do CPP que a prática extemporânea de actos processuais penais se aplica o disposto nos números 5 a 7 do artigo 145.º do CPC, com as alterações que Indica de seguida (relativas aos montantes das multas).
Tal significa que apenas são aplicáveis as normas contidas nos números 5 a 7 do art.º 145.º do CPC e não a norma contida no n.º 8.
Pelo exposto, não sendo nos presentes autos e caso aplicável o preceito invocado, o qual permitiria a ponderação da dispensa do pagamento da multa pela apresentação das alegações de recurso ao 3.º dia útil subsequente ao termo do prazo, indefiro o requerido, pelo que devera o arguido, para tornar valido o requerimento apresentado com a referência 283734, proceder ao imediato pagamento da multa a que alude o art.º 107.º-A, al. c) do CPP.
Notifique.
***
2. Poderes de cognição desta Relação e objecto do recurso.
2.1. O âmbito do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente que culminam as suas motivações e é por elas delimitado.[1] Às quais acrescem as questões que são de conhecimento oficioso desta Relação enquanto Tribunal de recurso, como no caso dos vícios ou nulidades insanáveis a que se reporta o art.º 119.º do Código de Processo Penal. Tendo isso em conta e uma vez que se não detecta qualquer dessas nulidades no douto despacho recorrido de entre os que se devesse conhecer ex officio, diremos que as questões a apreciar neste recurso são as seguintes:
1.ª O art.º 145.º, n.º 8 do Código de Processo Civil tem aplicação no processo penal?
2.ª Tendo, devia o recorrente ser isento do pagamento de multa por ter interposto recurso do acórdão cumulatório no terceiro dia subsequente à verificação do prazo normal?
***
2.2. Vejamos então as questões atrás enunciadas, começando, naturalmente, pela primeira delas.
Diz-nos o art.º 107.º, n.º 5 do Código de Processo Penal que «independentemente do justo impedimento, pode o acto ser praticado no prazo, nos termos e com as mesmas consequências que em processo civil, com as necessárias adaptações.»
Por sua vez, o art.º 107.º-A daquele diploma refere que, «sem prejuízo do disposto no artigo anterior, à prática extemporânea de actos processuais penais aplica-se o disposto nos n.os 5 a 7 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, com as seguintes alterações: a) Se o acto for praticado no 1.º dia, a multa é equivalente a 0,5 UC; b) Se o acto for praticado no 2.º dia, a multa é equivalente a 1 UC; c) Se o acto for praticado no 3.º dia, a multa é equivalente a 2 UC.»
Finalmente, estabelece o art.º 145.º, n.º 8 do Código de Processo Civil que «o juiz pode excepcionalmente determinar a redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respectivo montante se revele manifestamente desproporcionado, designadamente nas acções que não importem a constituição de mandatário e o acto tenha sido praticado directamente pela parte.»
Este último normativo foi introduzida no processo civil português pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, então no n.º 7 daquele preceito e aí foi mantido pela reforma processual civil subsequentemente introduzida pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, passando àquela sistemática com o Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro e ao art.º 139.º, n.º 8 por via da Lei n.º 41/2013, de 26/06.
Por seu turno, o n.º 5 do art.º 107.º do Código de Processo Penal foi fruto da reforma processual penal levada a cabo pelo Decreto-Lei n.º 317/95, de 28 de Novembro e essa norma foi sendo sempre mantida pelas reformas processuais penais posteriormente levadas a cabo.
Entretanto, o Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro adicionou ao Código de Processo Penal o seu actual art.º 107.º-A e dele fez constar que «sem prejuízo do disposto no artigo anterior, à prática extemporânea de actos processuais penais aplica-se o disposto nos n.os 5 a 7 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, com as seguintes alterações: a) Se o acto for praticado no 1.º dia, a multa é equivalente a 0,5 UC; b) Se o acto for praticado no 2.º dia, a multa é equivalente a 1 UC; c) Se o acto for praticado no 3.º dia, a multa é equivalente a 2 UC.»
Considerando aqui o quadro normativo vigente a partir de 03-12-1995[2] até 31-12-2003,[3] o que podemos dizer é que se afigurava pacífico o entendimento segundo o qual se aplicava ao processo penal a possibilidade conferida ao juiz de reduzir ou dispensar a multa decorrente da prática de actos processuais num dos três dias subsequentes à verificação do prazo normal nos exactos termos em que o poderia fazer o juiz no processo civil, pois que isso resultava, expressis verbis, da remissão do art.º 107.º, n.º 5 do Código de Processo Penal para o regime do processo civil e esse era o previsto pelo art.º 145.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.[4] E o mesmo se deve dizer a partir daí e até 30-08-2008,[5] uma vez que a única alteração ocorrida entretanto foi a renumeração do n.º 7 para n.º 8 do art.º 145.º do Código de Processo Civil, mantendo-se o seu texto incólume.[6]
A questão que se coloca no recurso só tem razão de ser, portanto, a partir da introdução do art.º 107.º-A no Código de Processo Penal, pois que nesse normativo se veio a determinar a aplicação do disposto nos n.os 5 a 7 do artigo 145.º do Código de Processo Civil à prática extemporânea de actos processuais penais. E ainda assim porque nada ali se disse sobre a aplicação ao caso do n.º 8, devendo pois entender-se que a remissão seria restrita aos n.os 5 a 7 deste preceito legal.
Porém, a questão não pode ser vista de forma tão singela. É que o art.º 107.º, n.º 5 do Código de Processo Penal vigora e estatui que «independentemente do justo impedimento, pode o acto ser praticado no prazo, nos termos e com as mesmas consequências que em processo civil, com as necessárias adaptações.» Ora, se uma das consequências da prática do acto processual num dos três dias subsequentes à verificação do prazo normal no âmbito do processo civil é o pagamento de multa mas também o juiz poder reduzir ou dispensar o seu pagamento a quem o praticou, não vemos como conciliar a sua não aplicação ao processo penal com o teor daquele normativo.
Por outro lado, o art.º 107.º-A do Código de Processo Penal ressalva, no seu corpo, que o regime nele estabelecido é feito «sem prejuízo do disposto no artigo anterior …». Ou seja, que o nele disposto se aplica sem prejuízo da aplicação do art.º 107.º, n.º 5 do Código de Processo Penal e, por conseguinte, que «independentemente do justo impedimento, pode o acto ser praticado no prazo, nos termos e com as mesmas consequências que em processo civil, com as necessárias adaptações.»
Acresce a esta ordem de razões a circunstância do art.º 107.º-A do Código de Processo Penal se limitar a estabelecer para o processo penal quantitativos diferentes do processo civil para a prática do acto no primeiro, no segundo e no terceiro dia subsequentes à verificação do prazo normal e nada mais. E ainda assim para valores inferiores, note-se, pelo que é evidente a conclusão de que com isso a lei visou tornar menos onerosa a prática do acto no processo penal e, portanto, facilitando-a. Pelo que seria contraditório supor a partir daí que se procurou construir um regime próprio e diferenciado do processo civil. A tal visão das coisas se opõe, desde logo, a letra da lei, que pelo contrário sempre se preocupou em manter para o processo penal o regime do processo civil, daquele remetendo para este. A omissão do n.º 8 na remissão feita no art.º 107.º-A para o art.º 145.º do Código de Processo Civil, limitando-a aos n.os 5 a 7 desse artigo, só pode ter uma origem: a ligeireza com que hoje em dia se legisla, esquecendo-se, amiúde, que a alteração de uma norma tem consequências para além daquelas que uma visão míope permite ver. De resto, como lembram o recorrente e o Ministério Público no Tribunal recorrido, seria insustentável, no quadro constitucional,[7] que só em processo civil poderiam os interessados ver reduzido ou dispensado do pagamento de multa por apresentação tardia em juízo de peças processuais.
Assim e concluindo a apreciação desta primeira questão diremos que o art.º 145.º, n.º 8 do Código de Processo Civil tem aplicação no processo penal.[8]
2.3. Assim sendo, apreciemos agora a segunda das questões atrás enunciadas, a qual consiste em saber se o recorrente devia ser isento do pagamento de multa por ter interposto recurso do acórdão cumulatório no terceiro dia subsequente à verificação do prazo normal.
Para tanto fundamenta a sua pretensão na circunstância de não ter quaisquer bens ou rendimentos que lhe permitam pagar a multa pois que se encontra em reclusão, por longo período, conforme consta dos factos provados no acórdão cumulatório.
A este respeito, vimos já que o art.º 145.º, n.º 8 do Código de Processo Civil estabelece que «o juiz pode excepcionalmente determinar a redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respectivo montante se revele manifestamente desproporcionado, designadamente nas acções que não importem a constituição de mandatário e o acto tenha sido praticado directamente pela parte.»
Destarte, são duas as causas para deferimento da redução ou dispensa do pagamento daquela multa: a primeira, que a manifesta carência económica e, a segunda, que o respectivo montante se revele manifestamente desproporcionado. E porque é na primeira que o recorrente entronca a sua pretensão recursiva também será sobre ela que nos debruçaremos.
A este propósito, a jurisprudência tem enfatizado que é ao interessado que peça a redução ou dispensa com fundamento em manifesta insuficiência económica cabe o ónus da alegação e prova dos factos integradores dessa situação, sendo que a circunstância de beneficiar de apoio judiciário não o dispensa de tal, bem como a circunstância de haver sido declarado falido não significa necessariamente que não possa obter rendimentos, desde logo pelo seu trabalho.[9] O que bem se compreende atendendo ao disposto no art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil.
Por outro lado, tem a jurisprudência tendido para considerar que «a multa do art.º 145.º, n.os 5 e 6, do CPC, tem um efeito marcadamente sancionatório, responsabilizando a parte pela sua negligência, pelo seu atraso» e, por via disso, que «a dispensa de multa do n.º 7 do art.º 145.º do CPC não pode resultar apenas de haver ser conferido apoio judiciário ao infractor e de este se limitar a alegar uma comprovada e manifesta insuficiência económica para o efeito».[10] É que se assim fosse, «a dispensa ou redução, sem mais, do pagamento dessa multa em todos os casos de carência económica descaracterizá-la-ia na sua função desmotivadora da prática dos comportamentos que pretendem evitar»,[11] pelo que «uma tal interpretação redundaria num alargamento injustificado dos prazos estabelecidos para quem se encontrasse numa situação de carência económica.»[12] Daí que se imponha o entendimento de «… que, para além da verificação da carência económica, se atenda também à natureza do acto e ao motivo pelo qual não foi respeitado o prazo inicial estabelecido e, no caso do n.º 6, à razão pela qual o requerimento não foi apresentado em simultâneo com a prática do acto. Aplicando, pois, os critérios supra explicitados, não é de acolher a pretensão no sentido da dispensa do pagamento daquela multa se o requerente se limitou a alegar que se encontrava preso e que, por esse motivo, não podia auferir rendimentos provenientes do trabalho, não tendo invocado qualquer razão para o não acatamento do prazo do recurso que pretendia interpor.»[13]
Salvaguardando o devido respeito, cremos que esta interpretação, restritiva, não nos parece a melhor.
Com efeito, o ênfase da interpretação não deve ser posto apenas no carácter sancionatório da norma, pois que desse modo mal se compreenderia a permissão da prática do acto a quem tenha rendimentos suficientes para pagar a multa e nenhuma razão válida para o não ter praticado em tempo[14] e fosse negado a quem não tenha uma coisa e outra. É que, fosse esse o caso e a única diferença entre as duas situações seria apenas de força económica dos cidadãos relapsos, permitindo-se a prática do acto a quem dispusesse desse tipo de meios e negando-se a quem os não tivesse, quando, do nosso ponto de vista, a ratio legis da norma é precisamente o contrário disso: a todos permitir o exercício tardio do acto, quer disponham ou não de meios económicos para tal. Ou seja, o enfoque deve ser colocado na garantia da igualdade entre os cidadãos no acesso à justiça e não na causa que determinou o incumprimento do prazo.
Em suma, o que nos parece é que tem direito a obter a redução ou a dispensa do pagamento da multa quem se encontrar na situação de manifesta carência económica para a pagar;[15] sendo que se encontra na situação de manifesta carência económica para pagar a multa quem se encontrar preso e não dispuser de rendimentos para isso.[16] E o recorrente estará nessa situação, conforme se vê do acórdão cumulatório e se aceita, de resto, na resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público junto da instância recorrida. Pelo que e em conclusão diremos que o recurso deve proceder e, por via disso, se deverá revogar o despacho recorrido e determinar-se que seja substituído por outro que pressuponha a aplicação do art.º 145.º, n.º 8 do Código de Processo Civil na decisão a proferir a propósito da admissibilidade do recurso interposto do acórdão que procedeu ao cúmulo das penas em que o recorrente foi condenado.
***
III - Decisão.
Termos em que se concede provimento ao recurso e, em consequência, se revoga o despacho recorrido e se determina que seja substituído por outro que pressuponha a aplicação do art.º 145.º, n.º 8 do Código de Processo Civil na decisão a proferir a proferir a propósito da admissibilidade do recurso interposto do acórdão que procedeu ao cúmulo das penas em que o recorrente foi condenado.
Sem custas (art.º 513.º, n.º 1, a contrario sensu, do Código de Processo Penal).
*
Porto, 23-10-2013.
Alves Duarte
Castela Rio
______________
[1] Art.º 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal. Na linha, aliás, do que desde há muito ensinou o Prof. Alberto dos Reis, no Código de Processo Civil, Anotado, volume V, reimpressão, Coimbra, 1984, página 359: «Para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação.»
[2] Data da entrada em vigor da reforma penal introduzida pelo Decreto-Lei n.º 317/95, de 28 de Novembro.
[3] Pois que, por força do disposto no art.º 16.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, a reforma processual civil por ele introduzida entrou em no dia 01-01-2004.
[4] Nesse sentido decidiu, por exemplo, o acórdão da Relação de Lisboa de 21-11-2001, no processo n.º 9359/01 - 3.ª Secção, publicado em http://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_busca_processo.php?buscaprocesso=9359/01&codseccao=3.
[5] Dado que a reforma processual penal que introduziu o art.º 107.º-A entrou em vigor a 01-09-2008, ex vi do art.º 26.º do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro.
[6] Assim o decidiu o acórdão da Relação de Lisboa, de 08-06-2005, no processo n.º 2577/05 - 3.ª Secção, publicado em http://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_mostra_doc.php?codarea=57&nid=3005.
[7] Resultante, designadamente, dos art.os 13.º, n.os 1 e 2 e 20.º, n.º 1 da Constituição da República.
[8] O recorrente citou em apoio da sua tese, que também é a nossa, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que teria sido proferido em 21-12-2011 no processo n.º 2027/10.5PPPRT.P1, o qual procurámos e encontrámos em http://www.dgsi.pt, mas datado de 16-11-2011 e tendo por objecto questões completamente alheias às do que ora nos ocupa.
[9] Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 197/2006, de 16-03-2006, no processo n.º 725/05, publicado em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060197.html e da Relação de Lisboa, de 07-04-2011, no processo n.º 174-L/2000.L1-2, publicado em http://www.dgsi.pt.
[10] Acórdão da Relação de Coimbra, de 10-03-2005, no processo n.º 4171/04, publicado em http://www.dgsi.pt.
[11] Acórdão da Relação de Lisboa, de 08-06-2005, no processo n.º 2577/05 - 3.ª Secção, publicado em http://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_mostra_doc.php?codarea=57&nid=3005.
[12] Idem.
[13] Ibidem.
[14] Note-se que para esses casos existe a situação de justo impedimento, então previsto no art.º 146.º do Código de Processo Civil, de que todos, ricos e pobres, podem beneficiar.
[15] É certo que também noutro caso, qual seja o do montante da multa se mostrar desproporcionado, sendo que aqui já faz sentido a comparação a estabelecer com a gravidade da prática do acto fora de tempo, o que pode ser feito tendo em conta a relevância do acto e a culpa da parte, podendo isso obter-se com base em factos revelados pela marcha processual e pelo regime legal de cálculo da multa, conforme lembrou o acórdão da Relação de Lisboa, de 07-04-2011, no processo n.º 174-L/2000.L1-2, publicado em http://www.dgsi.pt.
[16] Acórdão da Relação de Lisboa de 21-11-2001, no processo n.º 9359/01 - 3.ª Secção, publicado em http://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_busca_processo.php?buscaprocesso=9359/01&codseccao=3.