FURTO
IN DUBIO PRO REO
Sumário

I – Para a condenação em processo penal exige-se um juízo de certeza para além de toda a dúvida razoável e não de mera probabilidade.
II – O facto de o arguido ter na sua posse o objeto furtado e de ter procedido à venda do mesmo pouco tempo depois da prática do furto não é suficiente como indício seguro e inequívoco, capaz de fundar um juízo de certeza para além de toda a dúvida razoável e não de mera probabilidade, de que foi ele o autor do furto.

Texto Integral

Proc. nº 2020/10.8PBMTS.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – B….. veio interpor recurso da douta sentença do 1º Juízo Criminal de Matosinhos que o condenou, pela prática de um crime de furto, p. e p. pelos artigos 203º e 204º, nº 1, f), e nº 4, do Código Penal, na pena de nove meses de prisão, suspensa na sue execução pelo período de um ano, com regime de prova e na condição de pagar ao demandante C….. a quantia de quinze euros no prazo de onze meses, e que o condenou a pagar a este tal quantia.

Da motivação do recurso constam as seguintes conclusões:
1) Nos presentes autos, foi o arguido condenado como autor material na forma consumada, da prática de um crime de furto p. e p pelo artigo 203º nº 1 do Código Penal, com referência ao 204º nº 1 Alínea f) e nº 4 do Cód Penal.
2) Contudo, não pode o arguido, porque não praticou o crime descrito na acusação, bem como na sentença do tribunal a quo, conformar-se com tal decisão, pelo que se impõe uma decisão diversa.
3) No período compreendido entre as 00 horas do dia 27 e as 10 horas do dia 28 de Abril de 2010, o arguido dirigiu-se à garagem do prédio situado na Rua …, nº …, Matosinhos, onde reside o queixoso C........
4) Ai chegado, entrou na referida garagem e abeirou-se da bicicleta marca team, de cor de laranja, com a valor de 70,00 €, pertencente ao C......., que se encontrava no lugar da fracção do 1º andar, pegou nela e abandonou o local.
5) Na posse do referido velocípede, no mesmo dia 28.04.2010, o arguido dirigiu-se à loja de artigos usados “ Porto Alternativo” sita na Rua ….., …, Matosinhos, onde vendeu à funcionaria da loja D….., pelo preço de 15,00€ e, local onde a mesma veio a ser recuperada pelo seu proprietário, que pagou 15,00 € pela recuperação.
6) O arguido agiu voluntária e conscientemente, com o propósito de se apoderar e fazer seu, contra a vontade do seu proprietário, coisa, que lhe não pertencia.
7) Ora, a fundamentação de facto bem como a respectiva apreciação do depoimento produzido em sede de audiência pelo tribunal a quo, não reflectem de todo o que foi reproduzido pela testemunha da acusação, uma vez que a única testemunha da acusação não presenciou quer o furto, quer a venda, não sendo portanto capaz, de descrever uma coisa que não presenciou e também não ser capaz de descrever ao pormenor e com isenção suficiente e relevante o modo como o objecto foi vendido.
8) O tribunal alicerçou-se apenas nas declarações prestadas pelo ofendido, e nos documentos juntos aos autos.
9) Atentando naquele depoimento, podemos constatar que o ofendido nada presenciou no que tange ao furto e que relativamente à venda revelou total desconhecimento desse facto.
10) Assim, o tribunal alicerçou-se apenas nas declarações prestadas pela testemunha da acusação, fazendo tábua rasa do princípio do in dúbio pró réu.
11) A acusação não fez qualquer prova do furto, e de que os bens furtados estavam na posse do arguido, por qualquer outra razão que não fosse o furto, não sendo sobre o arguido que recai esse ónus.
12) Não podemos aceitar, que tenha que ser o arguido a produzir prova no sentido de justificar a posse da bicicleta, pois tal prova onera a acusação.
13) E em abono desta orientação cita-se, o Acórdão da Relação de Guimarães de 19 de Janeiro, processo nº 2025/08-2, relatado pelo Sr Desembargador Cruz Bucho, disponível em www.dgsi.pt. “ Não é sobre o arguido que recai o ónus da prova que os bens furtados estavam no sua posse por outro motivo que não a autoria do furto, é sobre a acusação”.
14) O facto de o arguido não ter invocado a razão porque detêm as coisas, não permite concluir com certeza que teria sido o mesmo o autor da prática do furto.
15) A circunstância de o objecto furtado, ter estado após o furto, na posse do arguido, pode ter ficado a dever-se a uma multiplicidade de factores, que não o furto.
16) Ora, como se refere no Ac supra referido “ O simples facto de o arguido ter tido em seu poder um objecto roubado não permite sem mais, concluir que o arguido foi o autor do roubo já que esta dedução/indução não se ajusta nem às regras da lógica nem aos princípios da experiência.”
17) A conclusão de que foi o arguido a furtar/vender a bicicleta baseia-se numa apreciação da prova totalmente arbitrária, e não em prova segura.
18) A livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas como uma valoração racional e critica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permitam objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão.
19) O facto de o arguido se remeter ao silêncio, e não explicar a razão de ter na sua posse o objecto furtado, não permite ao tribunal que conjuntamente com os restantes elementos de prova (que no entender de defesa não chegam) retirar as suas ilações dentro do estrito princípio da livre apreciação da prova à luz das regras da experiência, e assim condenar o arguido. Pois o ofendido ouvido explicou ao tribunal que a garagem foi assaltada, sem saber por quem e que mais tarde viu a bicicleta à venda, sem nada se apurar acerca do modo como a bicicleta foi vendida.
20) Tais factos não permitem fazer a ligação segura da posse com o furto.
21) Ora o Se Juiz a quo baseando-se, nas regras da experiência entendeu que a posse da bicicleta faz concluir sem mais, a prática do furto pelo arguido, já que depois de subtraída foi vendida “alguém” nas palavras do Sr. Juiz a quo.
22) A posse da bicicleta, por si só, não é suficiente como indício seguro e inequívoco, capaz de fundar um juízo de certeza, para além de toda a dúvida razoável, que não de mera probabilidade, de que foi o arguido o autor do furto.
23) Não pode deixar de ser razoável a dúvida de que tenha sido o arguido, o autor do furto, pois dos autos não existe qualquer prova inequívoca nesse sentido.
24) Na verdade, não nos podemos esquecer que, pese embora até o tempo que mediou entre o furto e a entrega da bicicleta, tal é bastante para que tenha sido roubada, furtada, abandonada ou cedida, razão porque não existe cabal prova do furto por bando do arguido.
25) Não, tendo sido feita qualquer prova, quer do furto, quer das razões por o arguido se encontrar na posse da bicicleta, não podemos dizer que não seja razoável a dúvida de que tenha sido o arguido o autor do crime, pois que as regras da vida também ensinam que o arguido poderia ter entrada na posse da bicicleta por a ter recebido de 3º sem qualquer participação no furto.
26) A dúvida que a esse respeito se suscita não pode prejudicar o arguido, mas deve beneficiá-lo.
27) A posse/venda da bicicleta não pode ser entendida como indício da prática do crime de furto, pelo qual o arguido foi condenado.
28) A eficácia da prova indiciária deve estar dependente da verificação de certos requisitos, sob pena de, não ser possível condenar o arguido, por clara violação do princípio da presunção da inocência.
29) A posse/venda da bicicleta não pode ser considerado como indício suficiente para a condenação do arguido.
30) Os indícios (o que não se concebe) não são graves precisos e concordantes que permitam concluir com segurança ter sido o arguido o autor do crime.
31) A posse/venda da bicicleta por bando do arguido não tem capacidade de persuasão suficiente, e não possuí persuasão suficiente, de não ser susceptíveis de diversas interpretações, ou bem ainda que os indícios sejam todos concordantes quando convergem todos para a mesma direcção, no sentido de se poder condenar o arguido.
32) Assim a posse, como indício (o que não se concebe!) não se encontra impregnado de elementos positivos de credibilidade que sejam suficientes para dar base a uma decisão condenatória.
33) A posse, não se encontra prenhe de indícios múltiplos concatenados e impregnados de elementos positivos de credibilidade que sejam suficientes para dar base a uma decisão condenatório, pois a posse da bicicleta, não reveste a natureza de indicio grave, preciso e concordante, de molde a permitir inferir pela participação do arguido recorrente como autor da crime de furto.
34) A factualidade dada como provada não encontra suporte na prova produzida em audiência de discussão e julgamento, não decorrendo da mesma a prática de qualquer acto, pelo recorrente, subsumível ao tipo legal de crime pelo qual foi condenado.
35) Não existe prova cabal que permita ao tribunal, pelo menos sem qualquer sombra de dúvida, condenar o recorrente, pelo que se impõe a sua absolvição.
36) Com efeito, o depoimento testemunhal não foi de molde a ultrapassar estas dúvidas, razão pela qual tais factos deveriam ter sido considerados como não provados, tudo isto, mais não seja em obediência ao princípio basilar do in dúbio pró réu.»

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se a prova produzida permite considerar provado (à luz do princípio in dubio pro reo) que foi o arguido o autor do furto em questão (designadamente porque nenhuma testemunha o viu praticar os factos e a prova assenta apenas na circunstância de ele ter procedido à venda do objecto furtado).

III – Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:

«(…)
II Fundamentação.
i. Factos provados.
Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão da causa e com exclusão de conclusões e conceitos jurídicos, os seguintes factos:

a) No período compreendido entre as 00 horas do dia 27 e as 10 horas do dia 28 de Abril de 2010, o arguido dirigiu-se à garagem do prédio situado na Rua …. nº …, Matosinhos, onde reside o queixoso C……
b) Aí chegado, entrou na referida garagem e abeirou-se da bicicleta marca Team, de cor laranja, com o valor de 70,00€, pertencente ao C......., que se encontrava no lugar da fracção do 1º andar, pegou nela e abandonou o local.
c) Na posse do referido velocípede, no mesmo dia 28.04.2010, o arguido dirigiu-se à loja de artigos usados “E…..”sito na Rua …., …. Matosinhos, onde a vendeu à funcionária da loja D….., pelo preço de 15,00€, local onde a mesma veio a ser recuperada pelo seu proprietário, que pagou € 15,00 para essa recuperação.
d) O arguido agiu voluntária e conscientemente, com o propósito de se apoderar e fazer seu, contra a vontade do seu proprietário, coisa que lhe não pertencia.
e) O arguido sabia que a sua conduta era reprovável e punida por lei.
Outros factos provados
f) Quanto ao arguido:
a. O arguido frequentou o sistema de ensino até aos 15 anos, tendo concluído o 6º ano de escolaridade;
b. Frequentou dois cursos profissionais, que não concluiu;
c. Iniciou a vida profissional aos 17/18 anos, no setor da restauração;
d. Iniciou consumo de haxixe aos 15 anos, sendo que, passado um ano, iniciou o consumo de cocaína e heroína;
e. Aos 23 anos, foi viver para Espanha, onde trabalhou durante 5 anos, auferindo 1.200,00 mensais;
f. Depois regressou a Portugal, executando biscates na construção civil, tendo constituído relação de facto com a companheira.
g. E reincide no consumo de estupefacientes;
h. O arguido encontra-se preso desde 31.03.2011, a cumprir pena única de 2 anos e 9 meses, pelo crime de tráfico de menor gravidade;
i. No EP, sofreu três sanções disciplinares, por posse de telemóvel, bateria e cartão de activação.
j. sofreu as condenações crime constantes do CRC de fls. 156 e ss, que aqui se dá por reproduzido, traduzidas, em síntese:
i. numa condenação pelo crime de roubo, por decisão transitada em 20.09.2010, por factos de 2004, em pena de prisão suspensa, já extinta;
ii. numa condenação pelo crime de tráfico de menor gravidade, por decisão transitada em 2012, por factos de 2011, em pena de prisão efetiva;
iii. numa condenação pelo crime de tráfico de menor gravidade, por decisão transitada em 2012, por factos de 2009, em pena de prisão efetiva.
*
Factos não provados.
Não se provaram os seguintes factos relevantes:

a) O arguido, para entrar na garagem, rebentou o portão de acesso.
*
Motivação de facto.
Als. a) a e) dos factos provados:
Os factos provados resultaram da conjugação do depoimento absolutamente credível e convincente do demandante C....... (o proprietário da bicicleta) com o auto de notícia de fls. 11 (quanto ao local onde foi encontrada e recuperada a bicicleta) e com os recibos de fls. 12 e 13, o qual retrata a venda da bicicleta efetuada pelo arguido – pois tem a sua assinatura e Bilhete de Identidade – no estabelecimento referido nos factos provados e no dia do assalto e a sua recuperação pelo demandante, sem que tenha sido produzida qualquer prova que pudesse abalar a convicção do tribunal assim formada.
Na verdade, quanto ao “furto” e características do objecto nos termos provados, o depoimento do demandante foi suficiente para convencer o tribunal.
Quanto à identificação do autor do “furto” como sendo o arguido, tal resultou do facto de a bicicleta, depois de subtraída e logo de seguida, ter sido vendida num estabelecimento por alguém que apresentou o BI do arguido e assinou com a sua assinatura, como resulta do recibo de fls. 12 – que foi explicitado pelo demandante quanto à sua razão de ser e consta do auto de fls. 11 - concluindo o tribunal que, salvo hipótese fora do normal e que não foi sequer invocada, foi necessariamente o arguido que assim atuou. Nesta parte, importa notar que não foi produzida qualquer prova capaz de abalar a lógica que decorre dos juízos de experiência comum, sendo quem nem mesmo o arguido o fez, recusando-se legitimamente a prestar declarações. E, se é verdade que o silêncio do arguido não o pode prejudicar, também o é que não o pode favorecer, pelo menos ao ponto de o tribunal, depois de produzida prova concludente, ter de cogitar hipóteses, porventura algumas delas absurdas, no sentido de obter a absolvição do arguido.
Al. f) dos factos provados:
Resultou do relatório social de fls. 165 e ss. e do CRC de fls. 156 e ss.

O facto não provado deveu-se à total ausência de prova nesse sentido.
(…)»

IV – Cumpre decidir.
Nos termos do artigo 410º, nº 2, c), do Código de Processo Penal, o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o erro notório de apreciação da prova.
Embora não invoque explicitamente esta norma, o recorrente alega que a prova produzida, tal como resulta do próprio texto da douta sentença recorrida não permite considerar que foi ele o autor do furto por que veio a ser condenado.
A douta sentença recorrida baseia-se, para concluir que foi o arguido e recorrente o autor desse furto, no facto de ele ter procedido à venda da bicicleta furtada pouco tempo depois da prática do mesmo, e de ele (que em audiência exerceu o seu direito ao silêncio) não ter dado qualquer explicação para ter na sua posse tal bicicleta.
Vejamos.
É verdade que a prova dos factos em processo penal não tem de ser direta, pode ser indireta. Como se refere, entre outros no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de maio de 2010, proc. nº 86/06.0GBPRD.P1.S1, relatado por Soares Ramos (sum. in www. dgsi.pt): «Encontra-se universalmente consagrado o entendimento, desde logo quanto à prova dos factos integradores do crime, de que a realidade das coisas nem sempre tem de ser directa e imediatamente percepcionada, sob pena de se promover a frustração da própria administração da justiça. Deve procurar-se aceder, pela via do raciocínio lógico e da adopção de uma adequada coordenação de dados, sob o domínio de cauteloso método indutivo, a tudo quanto decorra, à luz das regras da experiência comum, categoricamente, do conjunto anterior circunstancial. Pois que, sendo admissíveis, em processo penal, “… as provas que não foram proibidas pela lei” (cf. art. 125.º do CPP), nelas se devem ter por incluídas as presunções judiciais (cf. art. 349.º do CC). As presunções judiciais consistem em procedimento típico de prova indirecta, mediante o qual o julgador adquire a percepção de um facto diverso daquele que é objecto directo imediato de prova, sendo exactamente através deste que, uma vez determinado usando do seu raciocínio e das máximas da experiência de vida, sem contrariar o princípio da livre apreciação da prova, intenta formar a sua convicção sobre o facto desconhecido (acessória ou sequencialmente objecto de prova).»
Importa, porém, não olvidar um princípio estruturante do processo penal: o de que para a condenação se exige um juízo de certeza e não de mera probabilidade. Na ausência desse juízo de certeza (segundo a fórmula tradicional, para além de toda a dúvida razoável), vale o princípio de presunção de inocência do arguido (artigo 32º, nº 2, da Constituição) e a regra, seu corolário, in dubio pro reo.
A questão reside, então, em saber se o facto o arguido ter na sua posse o objeto furtado, e ter procedido venda do mesmo, pouco tempo depois da prática do furto é suficiente como indício seguro e inequívoco, capaz de fundar um juízo de certeza para além de toda a dúvida razoável, e não de mera probabilidade, de que foi ele o autor do furto. E parece-nos que não.
É muito provável (dizem-no as regras da experiência) que tenha sido o arguido o autor do furto.
Mas é razoável, por um lado, a dúvida de que possa ter sido outro o autor do furto e que o objeto deste possa ter vindo posteriormente a entrar na posse do arguido (eventualmente até através da prática de crimes de receptação). Mesmo que pouco provável, não podemos dizer que está, razoavelmente, de todo afastada essa hipótese. O lapso de tempo que mediou entre a data da prática do furto e a data da venda do objecto furtado não é tão curto que torne de todo improvável tal hipótese (sem que isso represente, na expressão da sentença recorrida, «cogitar hipóteses porventura absurdas»).
Invoca a douta sentença recorrida (secundada pelo Ministério Público) o facto de o arguido, que não prestou declarações em audiência, não ter dado qualquer explicação para ter na sua posse o objecto furtado; se não tivesse sido ele o autor dos furtos, teria dado essa explicação. O direito do arguido ao silêncio não o pode prejudicar, mas também não o pode beneficiar.
Salvo o devido respeito, não nos parece, aceitável esta argumentação.
Desde logo, porque faz recair sobre o arguido um ónus de prova, contra a regra do princípio in dubio pro reo. Não é sobre o arguido que recai o ónus de provar que os bens furtados estavam na sua posse por outro motivo que não a autoria dos furtos, é sobre a acusação que recai o ónus de provar o contrário. A dúvida que a esse respeito se suscita não pode prejudicar o arguido, deve beneficiá-lo.
Por outro lado, o raciocínio em causa efectivamente contradiz o direito de o arguido não prestar declarações. Este direito decorre do princípio de que o arguido é um sujeito processual, mais do que objecto de prova, e da regra de não obrigatoriedade de auto-incriminação (nemo tenetur se ipse acusare). Implica que o silêncio do arguido não pode ser valorado contra si, como indício de culpabilidade. E da mesma forma que não pode concluir-se, simplesmente, do silêncio do arguido que seria ele o autor do furto (alegando que se fosse inocente, teria certamente prestado declarações, pois “quem não deve, não teme”), também não pode desse silêncio concluir-se que seria ele o autor dos furto por não ter apresentado qualquer justificação para o facto de ter na sua posse o objecto furtado (alegando que se não fosse ele o autor dos furtos, teria dado essa justificação).
Sobre uma situação semelhante à que está agora em apreço, pronunciou-se o acórdão da Relação de Guimarães de 19 de janeiro de 2009, processo nº 2025/08-2, relatado por Cruz Bucho, in www.dgsi.pt. Aí se afirma: «A simples detenção dos objectos furtados por parte do arguido, desacompanhada de qualquer outro indício, não permite induzir a forma como as coisas furtadas foram por ele obtidas, nem que ele as obteve nas condições requeridas pelo artigo 203º do Código Penal.
A experiência ensina que o arguido sempre poderia ter entrado na posse das coisas furtadas por as ter recebido de um terceiro sem ter tido qualquer participação no furto.
Neste caso, como a jurisprudência espanhola vem reiteradamente afirmando, a autoria do furto não é mais do que uma das várias hipóteses possíveis a qual, para além de ser a mais prejudicial para o arguido, carece da segurança exigida pela observância do princípio in dubio pro reo.».
Neste sentido, e em situações semelhantes, podem ver-se, igualmente, entre outros, os acórdãos desta Relação de 11 de janeito de 2012, proc. nº 136/06.4, e de 16 de janeiro de 2013, proc. nº 4/02.9, relatados por Pedro Vaz Pato e acessíveis in www.dgsi.pt.
Deste modo, porque devemos considerar que, à luz do princípio in dubio pro reo, estamos perante erro notório de apreciação da prova e a prova produzida não permite a condenação do arguido, impõe-se dar provimento ao recurso e absolver o arguido do crime por que vinha acusado, assim como do pedido de indemnização civil contra ele formulado.

Não há lugar a condenação em custas (artigo 513º, nº 1, do Código de Processo Penal, a contrario).

V – Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido B……, absolvendo este do crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, com referência ao artigo 204º, nº 1, f), e nº 4, ambos do Código Penal, por que vinha acusado, e do pedido de indemnização civil contra ele formulado.

Notifique.

Porto, 23-10-2013

(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Maria Godinho Vaz Pato
Eduarda Maria de Pinto e Lobo