GERENTE
Sumário

I - Decretada a absolvisão do pedido, não são obrigatórias para as partes as recomendações constantes da fundamentação da sentença e referentes a esse pedido.
II - São diferentes as figuras de gerente de sociedade comercial e de gerente de estabelecimento comercial: o primeiro é titular de um orgão social, eleito pelos sócios ou nomeado no facto, com poderes de administração e de representação da sociedade, enquanto o segundo é uma pessoa ligada a esta por um vínculo contratual laboral, cuja possibilidade de prática de actos comerciais em nome da sociedade depende dos termos do contrato ou da extensão de eventual mandato.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1.1 (A) propôs contra Taverna Zero - Snak-bar, Lda, melhor identificado nos autos, acção declarativa com processo comum ordinário, pedindo a declaração de nulidade das deliberações tomadas na Assembleia Geral Extraordinária da Ré realizada em 85/09/01.
A R. tem um capital social de 100000 escudos, dividido em três quotas, uma de 50000 escudos pertencente a (B)outra de 30000 escudos pertencente ao A. e outra de 20000 escudos pertencente ao dito (B), por a haver adquirido a (y)
Em 85/09/05 realizou-se uma Assembleia Geral Extraordinária com a seguinte ordem de trabalho:
1 - Apreciação da actuação da sociedade; 2 - Pagamento ao sócio (B) dos suprimentos que este tem na sociedade; 3 - Remunerações da gerência.
Nessa Assembleia foi aprovado, com os votos a favor do (B), deliberação que determina o pagamento dos alegados suprimentos deste à sociedade.
Tal deliberação é nula, pois contraria o pacto social quando este atribui à Assembleia Geral competência para deliberar, mediante condições a estabelecer, quanto à admissão de suprimentos, sendo que não houve qualquer deliberação a admiti-los.
Por outro lado o sócio (B) votou sobre assuntos que lhe diziam directamente respeito.
Quanto ao ponto 3 da Ordem de Trabalhos não foi discutido nem votado, sendo que, sob aquela designação, o sócio (B), aprovou, apenas com os seus votos, nomeando(C) para gerente da sociedade, com remuneração mensal da gerência não inferior a 40000 escudos por mês.
O sentido de tal deliberação é o de destituir os actuais gerentes, nomeando em sua substituição a referida (C)
Tal deliberação também é nula porque recai sobre objecto estranho à ordem de trabalhos e importa a modificação do pacto social sem os exigidos
3/4 dos votos.
De acordo com o pacto social quer a destituição de gerentes quer a nomeação do novo gerente importa a alteração do mesmo pacto, pelo que carece de 3/4 dos votos correspondentes ao capital social.
Também o A. não consentiu na sua destituição, sendo certo que o pacto lhe atribui direitos especiais, como seja a sua nomeação como sócio gerente e a suficiência da sua assinatura para obrigar a sociedade.
Por outro lado, sempre as deliberações tomadas constituiram um manifesto abuso do direito por parte do sócio que as votou em patente prejuízo quer da sociedade quer do A..
1.2 - A Ré contestou alegando não serem nulas as deliberações.
Quanto aos suprimentos, uma vez que o capital social não permitia por si só proceder às obras, compra de material, pagamento do trespasse, aquisição de mercadorias e constituição do fundo de maneio, destinados à abertura do estabelecimento, o sócio Vitor emprestou o dinheiro necessário, antes mesmo da escritura, e que veio logo a ser escriturado como passivo, sendo que todos os sócios, desde sempre, aprovaram o balanço e contas.
Quanto á outra deliberação a mesma não configura nem a nomeação do gerente nem a destituição dos actuais gerentes mas sim e apenas a criação de um lugar de gerente não sócio para o estabelecimento social.
Conclui pela improcedência da acção.
1.3 - Proferido despacho saneador e fixados a especificação e o questionário, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento.
A final veio a ser proferida sentença que julgou a acção apenas parcialmente procedente, anulando a deliberação que nomeou gerente não sócio do estabelecimento (C)
Não se conformando com a decisão, dela apelou a
Ré que, nas suas alegações concluíu:
- Ao apreciar um pedido de anulação de deliberação social o Tribunal deverá somente pronunciar-se sobre a anulação ou não da mesma, não podendo fixar na sentença uma obrigação de as partes recorrerem a Tribunal para matéria da sua livre disponibilidade;
- O estabelecimento não se confunde com a sociedade sua proprietária, nem os gerentes das lojas são gerentes das sociedades.
Não houve contra-alegações.
2 - Corridos os vistos legais, cumpre decidir, já que se mantem a nulidade da instância e nada obsta ao conhecimento de merito.
Estão provados os seguintes factos:
2.1 - O A. é sócio da R., na qual têm uma quota no valor de 30000 escudos, num capital social de 100000 escudos, equivalente portanto a 30% - doc. n. 1 que aqui se reproduz.
2.2 - Em 5 de Agosto de 1985, foi o A. regularmente convocado para uma Assembleia Geral Extraordinária com a seguinte ordem de trabalhos: 1 - Apreciação da actuação da Sociedade; 2 - Pagamento ao sócio (B) de Jesus Roneberg dos suprimentos que este tem na Sociedade; 3 - Remuneração da gerência.
2.3 - Desta Assembleia Geral Extraordinária surgem as deliberações - acta n. 5 do respectivo livro de actas da Assembleia Geral, cuja anulação se requer - doc. de fls. 8 e 9 que aqui se reproduz.
2.4 - Aberta a sessão, foi declarado pelo sócio (B)ter-lhe o sócio (Y) cedido a sua quota na sociedade, no valor de 20000 escudos, ficando ele, (B) a deter na sociedade duas quotas, uma no valor de 50000 escudos e outra no valor de 20000 escudos, o que equivale a 70% do capital social;
2.5 - Daquela cessão exibiu o sócio (B) certidão da escritura, outorgada em 20 de Maio de 1985;
2.6 - De acordo com a ordem de trabalhos da Assembleia Geral Extraordinária foi, ainda, aprovada, apenas com os votos do sócio (B)a deliberação que determina o pagamento de alegados suprimentos deste à Sociedade.
2.7 - Nenhuma Assembleia Geral deliberou as condições em que os sócios podiam fazer suprimentos à Sociedade.
2.8 - O sócio (B) votou sobre os assuntos constantes da acta n. 5 de 1 de Setembro de 1985, referente à Assembleia Geral Extraordinária da Ré, convocada em 5 de Agosto de 1985.
2.9 - O ponto três da ordem de trabalho versava sobre "Remuneração da Gerência".
2.10 - O sócio gerente (B) propôs, face
à falta de operacionalidade e disponibilidade por parte dos sócios gerentes, a criação de um lugar de gerente não sócio na pessoa da colaboradora eventual Sra. D. Isabel Maria Tavares de Freitas mediante uma remuneração mensal não inferior a 40000 escudos com a possibilidade de ser actualizada até vinte por cento anualmente caso não haja deliberação por parte dos sócios em sentido contrário.
2.11 - Na acta não há qualquer deliberação quanto à alteração da ordem de trabalhos.
2.12 - O A. votou contra a proposta referida na resposta constante de 2.1.10.
2.13 - O capital social da sociedade não permitia só por si proceder às obras, compra do material, pagamento do trespasse, aquisição de mercadorias e constituição do fundo de maneio necessário à abertura e funcionamento do estabelecimento comercial onde a mesma está sediada.
2.14 - O sócio (B) pagou parte das facturas referentes a fornecimentos de material e aquisição de mercadorias necessárias para a abertura e funcionamento do estabelecimento comercial sendo tais créditos escriturados no passivo da Ré nas contas referentes ao exercício no primeiro ano de actividade.
2.15 - Este procedimento teve o acordo de todos os sócios que sempre têm aprovado o balanço e contas.
2.16 - As vendas têm aumentado significativamente.
3.1 - Duas questões são, pois, postas no presente recurso: a de saber se os considerandos da sentença obrigam as partes, quando a decisão foi pura e simplesmente de improcedência do pedido; se a deliberação que nomeia um gerente de estabelecimento comercial altera o pacto social ou destitui os gerentes da sociedade nomeados no mesmo pacto.
3.2 - Quanto à primeira questão, a mesma pode equacionar-se esquematicamente do seguinte modo: a) o A. pediu a declaração de nulidade da deliberação que ordenou o pagamento de suprimentos feitos por um dos sócios; b) A sentença não declarou tal nulidade, considerando válida a deliberação em causa; c) Contudo, nos considerandos, exprimiu a opinião que haveria que pedir a fixação judicial de prazo para exigir o pagamento desses suprimentos.
Ora, o requerimento do recorrente formulado ao abrigo do art. 670 do CPC, o Mmo. Juiz "a quo" reconheceu que "Foi ao nível de recomendação e de alerta que se fez constar da sentença a frase que determinou as dúvidas da sociedade ré e que agora ficaram esclarecidas".
Por outras palavras expressamente se reconhece tratar-se de uma mera recomendação e não de uma decisão obrigatória para as partes. Estas poderão segui-la ou não, sujeitando-se, caso o não o façam, às consequências a definir em processo próprio.
E, efectivamente, se na parte decisória tivesse ficado a constar que o credor dos suprimentos deveria pedir a fixação judicial de prazo para o seu pagamento, a sentença seria nula por força do disposto nos artigos 661 e 668 n. 1 e) do CPC.
Por outro lado, é também ponto assente que a eficácia do caso julgado apenas abrange a decisão contida na parte final da sentença" ... ou seja, a resposta injuntiva do Tribunal à pretensão do autor ou do réu, concretizada no pedido ou na reconvenção e limitada através da respectiva causa de pedir" - A. Varela, Manual de Processo Civil, pag. 714; artigos 498, 96 e 659 n. 2 in fine do CPC.
Poder-se-ia dizer que interessa saber-se dos fundamentos da decisão para se determinar o seu alcance e, consequentemente, o limite objectivo do caso julgado. No entanto, como no caso sub-judice o A. pedia a declaração de nulidade da deliberação e esta foi considerada válida e a acção, nessa parte, improcedente, o alcance e sentido da decisão
é perfeitamente claro, sem necessidade de recurso ao seu fundamento.
O Mmo. Juiz "a quo" extravasou, dir-se-à, aquilo que lhe era pedido. Fá-lo no entanto, ao nível da mera recomendação, nunca ao nível da decisão, e só neste ultimo caso é que a sentença poderia merecer censura.
3.3 - A sentença recorrida decretou a nulidade da deliberação que nomeou um gerente não sócio para Estabelecimento Social por considerar que a mesma violou o disposto no artigo 41 da LSPQ, que exige uma maioria de três quartas partes dos votos correspondentes ao capital social para as deliberações que alterem o pacto social.
E considerou que tal maioria era exigível porque a citada deliberação retirou aos sócios gerentes, nomeados no pacto, a gestão da sociedade, entregando-a a uma pessoa não sócia.
Não é, contudo, este o sentido que ressalta dos termos em que ficou redigida a deliberação em causa. De modo algum se infere ter sido retirada aos sócios a gerência da sociedade e também não pode dizer-se que se tenha nomeado um novo gerente, como integrando o orgão social de gerência.
O que a deliberação diz é que se nomeia um gerente não sócio para o Estabelecimento Social, o que é diferente de dizer-se que se nomeava um gerente para a Sociedade.
Ora, de acordo com o critério expresso no n. 1 do artigo 238 do CC -" nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso"
- não se pode de modo algum interpretar a citada deliberação como destituido os gerentes da sociedade e nomeando um outro.
São, na verdade, entidades diferentes os gerentes como orgãos sociais e os chamados gerentes de establecimentos comerciais. Os primeiros são titulares de um órgão da pessoa colectiva, eleitos pelos sócios ou nomeados no pacto social, com poderes para administrar a sociedade e representá-la perante terceiros; os segundos ou são uma espécie de mandatários com poderes para a prática de actos de comércio em nome de outra pessoa (artigo 248 e seguintes do CC) ou então profissionais que organizam e dirigem um estabelecimento comercial por conta do comerciante, com poderes menos amplos de representação.
No primeiro caso estamos em presença de um orgão social; em segundo ressalta a relação contratual laboral entre a sociedade e o gerente do estabelecimento - Ver Brito Correia Direito Comercial, pag. 198 e 199; Ac. RL de 08/03/90, Col., ano XV, T2, pag. 123.
Assim, a deliberação em causa apenas nomeou um gerente para o estabelecimento - entendido este em sentido restrito de local onde se exerce o comércio (artigos 95 n. 2 e 263 único do CC - , isto é, apenas "contratou" um empregado a quem fixou inclusivé a remuneração mensal, e não nomeou nenhum titular do orgão social gerência.
Tal deliberação, por conseguinte, não alterou o pacto social nem destituiu gerentes, sendo perfeitamente válida - artigo 39 da LSPQ.
4 - Assim, e em conclusão:
4.1 - Decretada a absolvição do pedido não são obrigatórias para as partes as recomendações constantes da fundamentação da sentença e referentes a esse pedido.
4.2 - São diferentes as figuras de gerente de sociedade comercial e de gerente de estabelecimento comercial. O primeiro é titular de um orgão social eleito pelossócios ou nomeado no pacto, com poderes de administração e de representação da sociedade; o segundo é uma pessoa ligada à sociedade por um vínculo contratual laboral, cuja possibilidade da prática de actos comerciais em nome da sociedade depende dos termos do contrato ou da extensão do eventual mandato.
5 - Pelo exposto acorda-se neste Tribunal em conceder provimento ao recurso, absolvendo-se a Ré da totalidade do pedido.
Custas pelo apelado.
Lisboa, 31 de Janeiro de 1991