CHEQUE
REVOGAÇÃO
NÃO PAGAMENTO PELO BANCO SACADO
INDEMNIZAÇÃO AO PORTADOR DO CHEQUE
Sumário

I – Mantém-se actual a doutrina do Ac.Jurispª 4/2008 de 28/2/2008, no sentido de que uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artº 29º LUC, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1ª parte do artº 32º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque.
II – A relevância negativa da causa virtual pressupõe que a causa real fundou efectivamente a obrigação de indemnizar e cabe ser ponderada no domínio da extensão do dano.
III – O prejuízo causado pela conduta do Banco Réu, com a recusa de pagamento do cheque, no prazo de apresentação, por força de revogação, considerada a causalidade adequada entre eventos, é tão só o da inutilização do exercício do direito cartular, embora, nada mais se provando, se possa igualmente considerar a perda patrimonial resultante do não pagamento.
IV – Vindo porém provado que a conta sobre a qual o cheque foi emitido não possuía fundos suficientes para o pagamento do valor do cheque, o dano do não pagamento não resulta adequadamente da recusa de pagamento por revogação do cliente/sacador.
V – O portador, mesmo que impedido de apresentar o cheque a pagamento para lá do prazo do artº 29º LUC, não está impedido de utilizar o cheque revogado como título executivo.

Texto Integral

● Rec. 197-11.4TBAMT.P2. Relator – Vieira e Cunha. Decisão de 1ª instância – 19/4/2013.
Adjuntos – Des. Maria Eiró e Des. João Proença Costa.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Súmula do Processo
Recurso de apelação interposto na acção com processo declarativo e forma sumária nº197/11.4TBAMT, do 3º Juízo da Comarca de Amarante.
Autora – B…, Ldª.
Réu – C…, S.A.

Pedido
Que o Réu seja condenado a pagar à Autora a quantia de € 9.756,03, das seguintes proveniências:
a) A quantia de € 8.700 por danos patrimoniais;
b) A quantia de € 1.039,23, a título de juros de mora vencidos, à taxa legal dos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, desde a data da apresentação a pagamento do cheque até à data da propositura da acção;
c) A quantia de € 15, a título de despesas bancárias de devolução do cheque, acrescida de juros de mora à taxa legal referida em b), desde 24/7/2009, até à data da propositura da acção;
d) A quantia referente aos juros de mora à taxa legal já referida, e sobre as quantias referidas em a) e c), desde a citação e até integral pagamento.
Tese da Autora
Para pagamento de serviços prestados pela Autora, uma sua cliente preencheu, assinou e entregou à Autora um cheque sacado sobre o Banco Réu, no valor de € 8.700.
Apresentado a pagamento dentro do prazo legal, tal cheque foi devolvido pelo Serviço de Compensação do Banco de Portugal, com a indicação “cheque revogado por falta ou vício da vontade”.
Tal ocorreu por via de uma ordem de revogação dada ao Banco Réu pela sacadora dos cheques; tal recusa de pagamento é ilegítima.
O Réu passou a incorrer em responsabilidade civil extracontratual para com a Autora, correspondendo o valor do pedido ao valor do cheque em causa e demais perdas patrimoniais.
Tese do Réu
Não é devedor da Autora, por com ela não ter qualquer relação comercial. Limitou-se a cumprir uma ordem da cliente.
À data da apresentação do cheque a pagamento, a conta não tinha fundos suficientes para que o dito pagamento fosse efectuado.

Sentença Recorrida
A Mmª Juiz “a quo”, por força da procedência da substancial tese da Autora, julgou a acção parcialmente procedente e condenou o Réu a pagar à autora o capital de € 8.700 euros inscrito no cheque, e € 15 euros de despesas bancárias, acrescido de juros legais desde a data de apresentação do cheque a pagamento (23/07/2009), até efectivo pagamento.
Foi absolvido o réu do restante pedido.

Conclusões do Recurso de Apelação:
I) A douta sentença de que se recorre infringiu o preceito do art. 32º da Lei Uniforme sobre Cheques (LUCH). Com efeito, ao entender, como entendeu, que ao Banco Recorrente não bastava tomar como fundamento da recusa do pagamento do cheque, que lhe foi apresentado pela autora B… dentro do prazo estabelecido no artigo 29º da LUCH, a ordem de revogação provinda do sacador dele, cometeu uma violação do disposto na primeira parte do art. 32º da mesma Lei, fazendo, a mesma sentença recorrida, errada interpretação do comando ínsito em tal preceito. É que o preceito em apreço, o art. 32º da LUCH, mais precisamente a sua primeira parte, pois é esse comando que está em causa, significa, verdadeiramente, que o banqueiro não está obrigado a acatar a ordem de revogação, embora a possa observar, sendo certo que nunca está obrigado, face ao portador do cheque a realizar-lhe o pagamento. E faz-se esta afirmação em conformidade com o juízo, o juízo certo, diga-se desde já, da jurisprudência e da doutrina, até há não muito tempo, dominantes entre nós e que, apesar de agora diminuída no seu caudal primeiramente imenso, ainda subsiste e resiste.
II) Mas os postulados desta corrente de entendimento, suscitam o levantamento da seguinte questão: mas se é assim, qual é o exacto significado da primeira parte do art. 32º da LUCH? Ou seja, qual o sentido da afirmação literal do preceito de que “a revogação só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação”? Responde, entre outros, o Prof. Germano Marques da Silva, em lição que se subscreve: “o que o art. 32º da Luch significa é que não obstante a revogação, o cheque continua a valer como tal “ (cfr. “Proibição do Cheque”, Separata do II volume de “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Raul Ventura”, pgs. 87). Mais desenvolvidamente, mas em sentido por inteiro coincidente, escreveu o Dr. Filinto Elísio (cfr. revista “O Direito”, ano 100º, pgs. 500): “O que o artigo 32º quer dizer é que, mau grado a revogação, o cheque continua a ser cheque como título, isto é a revogação não anula o cheque e o portador pode protestá-lo, pode accionar os co-obrigados, numa palavra continua a beneficiar de todas as potencialidades jurídicas inerentes ao cheque, mas não passará a ter mais uma – que nunca teve -, transformar o sacado em mais um co-obrigado que nunca foi”.
III) A sentença de que se recorre infringiu, além disso, o art. 40º da LUCH, na medida em que desconsiderou, ignorou, completamente, o comando de tal preceito decorrente, segundo o qual, em caso de recusa de pagamento de um cheque, apresentado em tempo útil, o portador, cumprido que seja o pressuposto de a recusa ter sido comprovada segundo um dos modos indicados no mesmo preceito legal, só pode exercer os seus direitos de acção contra os endossantes, o sacador e outros, eventuais, co-obrigados. Ora, é manifesto que o Banco Recorrente não é obrigado cambiário relativamente e por força da emissão do cheque a que respeita o presente processo. Aliás, é ponto assente que o banco da situação duma qualquer conta sacada não é um obrigado cambiário num cheque sacado com utilização de impressos de cheques retirados de módulos por si fornecidos a um seu cliente e relativos a tal conta.
IV) Depois, a sentença recorrida desrespeitou mais os arts. 1º, nº 2, e 3º da LUCH, normas onde se arvora em elemento essencial do cheque o mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada, sendo que, mormente na primeira das normas indicadas, avulta até a letra da lei onde “o termo mandato está empregado com o significado normal de ordem de pagamento” – cfr. Abel Delgado, “Lei Uniforme sobre Cheques”, 5ª, pgs. 21. Conforme se declarou no recente acórdão para fixação de jurisprudência nº 9/2013 do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de Março de 2013, publicado no Diário da República, I série, de 24 de Abril de 2013: “O cheque encerra uma ordem de pagamento dada a uma entidade bancária. Constitui-se pois como um contrato de mandato, ou de prestação de serviços sob a forma de mandato sui generis …. Na base da emissão do cheque, conforme se dispõe na primeira parte do art. 3º da LUCH, acima transcrito, surpreendem-se duas relações jurídicas distintas, ambas estabelecidas entre o emitente (sacador) e determinado Banco (sacado): a relação de provisão e a convenção ou contrato de cheque “. E a convenção ou contrato de cheque mais não é do que um verdadeiro contrato de mandato, razão pela qual, o banco sacado persiste no processo originado na emissão de certo cheque sob o mando do respectivo emitente que é, no caso, mandante do mesmo banco.
V) A sentença recorrida, vista a qualificação que atrás foi afirmada do contrato de cheque como sendo um contrato de prestação de serviços na modalidade de mandato, qualificação que, como ficou mencionado, colheu consagração, nomeadamente, do texto do recente acórdão de fixação de jurisprudência nº 9/2013 do Supremo Tribunal de Justiça, ao decidir que o Banco aqui Recorrente não estava obrigado a cumprir e a acolher a ordem de revogação do cheque proveniente do seu cliente sacador dele, infringiu mais a disciplina dos preceitos conjugados dos arts. 1157º e 1170º ambos do Código Civil. E nem se diga que o nº 2 do art. 1170º reduz a licitude da revogação do mandato às situações de verificação de justa causa – no caso presente, a sociedade sacadora do cheque, a D…, invocou essa justa causa, não competindo nunca ao banco a tarefa de indagar da verdade dessa invocação (cfr. no sentido do última afirmação, Germano Marques da Silva, “A Proibição de Pagamento do Cheque”, volume II dos “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Raul Ventura”, pgs. 98; também José Maria Pires, “O Cheque”, pgs. 150).
VI) AINDA QUE SE ADMITA, PORÉM SEM CONCEDER, que “uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29º da LUCH, com fundamento em ordem de revogação comete violação do disposto na primeira parte do artigo 32º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos artigos 14º, segunda parte, do Decreto nº 13 004 e 483º do Código Civil” (AUJ nº 4/2008, DR, 1ª, pgs. 2069), sempre terá de declarar-se que a configuração completa e integral da matéria de facto submetida ao presente juízo desse Venerando Tribunal da Relação imporá a revogação da sentença recorrida e sua substituição por decisão que absolva o Banco Recorrente do pedido.
VII) Ressalta sobremaneira entre a matéria provada, facto da maior relevância na emissão duma decisão certa sobre a lide que se submete à apreciação e ao julgamento desse Venerando Tribunal da Relação. Efectivamente, no elenco dos Factos Provados, mais precisamente do conjunto dos Factos Assentes por Acordo das Partes ou por Documento, destaca-se a respectiva alínea D), donde resulta que ficou assente e provado que “À data de apresentação a pagamento, em 23/07/2009, a conta nº ……….. sobre a qual foi sacado o cheque referido em A não tinha fundos suficientes para a realização do pagamento”, sendo que a referenciada alínea A é do seguinte texto: “Teor do cheque de fls. 9 emitido em 23/07/2009, à ordem da autora “B…, Ldª”, no valor de € 8.700, em que figura como sacado o réu “C…, S.A.” e como sacadora “D…, Ldª”. Mas se é assim, como de facto é, se à data da apresentação do cheque em causa nestes autos a pagamento, a conta sacada não tinha fundos bastantes para o efeito do pagamento, então há-de dizer-se que o acto do Banco Recorrente, do banco sacado, consistente no não pagamento desse cheque, não padece de qualquer ilicitude. É que os bancos só estão obrigados a pagar os cheques sobre si emitidos desde que a conta sacada tenha provisão e fundos bastantes para o efeito. Decorre este princípio do preceituado no art. 3º da LUCH: “O cheque é sacado sobre um banqueiro que tenha fundos à disposição do sacador e em harmonia com uma convenção expressa ou tácita, segundo a qual o sacador tem o direito de dispor desses fundos por meio de cheque”. O art. 32º da LUCH tem de ser interpretado em conjugação com o preceituado no art. 3º da mesma Lei. Por isso, mesmo aquelas decisões jurisprudenciais e os autores que defendem a existência duma espécie de dever legal de pagamento de cheques contida na primeira parte do art. 32º da LUCH, que quando posta em referência ao art. 483º do Código Civil redundaria no surgimento da obrigação de indemnizar por responsabilidade civil do banco que recusa o pagamento do cheque, são concordes em que tal dever legal de pagamento só surgirá nos casos e nas situações em que, à data da apresentação do cheque a pagamento, a conta sacada tenha fundos bastantes disponíveis para o efeito (assim, o acórdão do STJ de 12/10/2010,CJ, Acórdãos do STJ, ano XVIII, 3, pgs. 129; e também, Alberto Luís, ROA, 59º, pgs. 898 e 902, A. Palma Carlos, ROA, 6º, pgs. 447 e 442, Paulo Olavo Cunha, “Cheque e Convenção do Cheque”, pgs. 621). Pelas razões discriminadas, a sentença recorrida fez errada aplicação e infringiu as disposições do art. 483º do Código Civil, e doa arts. 3º e 32º da LUCH.
VIII) Em direito português vigente são excepcionais e muito pontuais as situações - são duas situações apenas -, em que a lei comina que os bancos sejam obrigados a pagar cheques sacados sobre contas de clientes seus, com recurso e utilização de cheques retirados de módulos por si fornecidos, apesar dessas contas não terem fundos suficientes para suportar o pagamento. Tais situações estão reduzidas e confinadas às previsões específicas e concretas dos arts. 8º, nº 1, e 9º, nº 1, do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro, que, patentemente, não têm qualquer atinência com o caso a que respeita o presente processo.
IX) Impõe-se acrescentar que a sentença recorrida é censurável e deve ser revogada ainda por outro motivo inultrapassável: ao condenar o Banco Recorrente a pagar à B…, quer dizer à Autora, a título de indemnização cível, a quantia de € 8.700,00, também ofendeu e infringiu as normas dos arts. 562º e 566º, nº 2, ambos do Código Civil. Releva agora a circunstância de facto julgada em definitivo como provada que a conta sacada não tinha provisão, não continha fundos suficientes para a realização do pagamento, na data em que ele foi apresentado a pagamento. Ou seja, a autora tinha na sua posse, detenção e propriedade um cheque que, sendo na sua origem e em abstracto uma ordem de pagamento subscrita pelo respectivo sacador, nunca poderia por si só viabilizar o pagamento e o consequente enriquecimento e acréscimo do património do seu tomador e beneficiário, no caso a B…, com a quantia inscrita nele, inscrita no cheque, como seu montante, pelo facto de não haver provisão para tanto. A observância do falado nº 2 do art. 566º do Código Civil determina e obriga a que, ainda que se verificassem os primeiros pressupostos para fundamentar a condenação do Banco Recorrente a pagar uma indemnização à B…, tais pressupostos iniciais perderiam eficácia e relevância enquanto pressupostos da obrigação de indemnizar por responsabilidade civil, na medida em que a situação patrimonial do lesado nunca poderia justa e validamente integrar o valor inscrito como sendo o da quantia determinada no cheque (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 20 de Junho de 2012 (in CJ, ano XXXVII, 3, pgs. 30 e segs., especialmente a pgs. 35 e 36).
X) Há-de atentar-se, enfim, que manter intocada a sentença recorrida seria consagrar a seguinte situação absurda: o cheque nunca seria pago, ainda que o Banco Recorrente não tivesse dado sequência e acatado a ordem de revogação dele transmitida pelo seu cliente sacador, uma vez que a conta sacada não tinha provisão, não tinha fundos suficientes para tanto, sem que o Banco incorresse em qualquer obrigação de indemnizar o portador e apresentante dele. No caso dos autos, o Banco Recorrente praticou o mesmo acto de recusar o pagamento do cheque, do cheque que nunca seria pago por não ter provisão, e a sentença recorrida condena o Banco a indemnizar o portador numa importância igual ao do valor de tal cheque, porque ele, o Banco, se fundamentou para recusar o pagamento, não na falta de provisão, mas antes da ocorrência da revogação, aliás com invocação de justa causa. Não pode ser. Manter a sentença recorrida seria consagrar uma nova hipótese de pagamento pelo banco da conta sacada, de cheques sem provisão na data da apresentação a pagamento, sem que nada na lei vigente o autorize ou determine.
XI) Note-se, a final, que, ainda que se defenda a vigência do 2º período do art. 14º do Decreto nº 13 004 de 27/1/1927, as conclusões expostas que implicam a revogação da sentença recorrida não são postas em causa, porquanto, mesmo na tese que assume tal defesa, aquele preceito respeita sempre e só ao domínio da obrigação cível de indemnizar pela prática de acto ilícito, obrigação que sempre terá, necessariamente, como pressupostos os indicados no art. 483º do Código Civil e por medida o quantum eventualmente resultante da observância indispensável e da aplicação impositiva do nº 2 do art. 566º do mesmo Código.

Nas doutas contra-alegações, a Autora sustenta o bem fundado e a confirmação da sentença recorrida.

Factos Apurados
Teor do cheque de fls. 9 emitido em 23/07/2009, à ordem da autora “B…, Lda.”, no valor de €8.700, em que figura como sacado o réu “C…, S. A.” e como sacadora “D…, Lda.” (A).
O cheque referido em A foi devolvido na Compensação em 24/07/2009 com a menção de cheque revogado por falta/vício de vontade (B).
A “D…, Lda.”foi declarada insolvente (C).
À data da apresentação a pagamento, em 23/07/2009, a conta n.º ……….. sobre a qual foi sacado o cheque referido em A não tinha fundos suficientes para a realização do pagamento (D).
O montante inserto no cheque foi reclamado pela autora no processo de insolvência e foi-lhe reconhecido como crédito comum (E).
A autora forneceu à “D…”acessórios e peças auto e inerentes serviços a pedido desta, tendo recebido como contrapartida o cheque referido em A (1º).
O fornecimento referido em 1 não foi objecto de reclamação pela D… (2º).
E o réu aceitou a revogação da ordem de pagamento do cheque referida em B, sem indagar se existia fundamento junto da autora (3º).
Ficando a autora sem receber a quantia de € 8.700 euros referida em A (4º).
A autora despendeu € 15 com a devolução do cheque referido em A (5º).

Fundamentos
A pretensão do Apelante ancora-se unicamente no questionar do bem fundado da decisão impugnada. Designadamente, procurará averiguar-se se a ordem de revogação do cheque, dada pelo cliente sacador, ao Banco sacado, não transforma o Banco em obrigado cambiário e se, de todo o modo, não pode o Banco responder porque a conta não se encontrava provisionada, na altura em que o cheque foi apresentado na Compensação.
A questão passará igualmente por referência às normas legais e à jurisprudência invocadas nas doutas alegações de recurso (bem como nas doutas contra-alegações), acrescendo a douta sentença recorrida.
Vejamos então.

I
A matéria em causa tem sido abundantemente debatida na doutrina e na jurisprudência, de forma que, perdoe-se-nos a imagem, nos arriscamos a “chover no molhado”; acresce que as doutas alegações de recurso, as doutas contra-alegações, a douta sentença recorrida colocam a questão no plano em que usualmente vem sendo colocada pela doutrina em geral, dos vários ângulos de análise, pelo que pouco temos a acrescentar, àquilo que se mostra expendido.
Como nos dá nota o Consº Abel P. Delgado, Lei Uniforme, 3ª ed., artº 32º, a doutrina entendia tradicionalmente que “o portador de um cheque não tinha direito de acção, nem cambiária, nem de responsabilidade civil por facto ilícito contra o sacado que, obedecendo a recomendações posteriores do sacador, o não paga no prazo da apresentação” (ut S.T.J. 22/10/1943 Bol.3º/409).
Arestos mais recentes o disseram também: S.T.J. 20/12/77 Bol. 272/217 e S.T.J. 10/5/89 Bol.387/598; Ac.R.P. 5/4/90 Col.II/227.
Segundo a doutrina citada, é certo que o artº 32º LUCh dispõe que a revogação do cheque só produz efeitos depois de findo o prazo de apresentação.
Este prazo de apresentação é o prazo de 8 dias, do artº 29º LUCh, e é necessário desde logo afirmar que, no caso destes presentes autos, o invocado cheque de que a Autora era portadora foi apresentado a pagamento nesse prazo e que a recusa de pagamento pelo Banco ao portador/Autora se ficou a dever a uma ordem de revogação dos cheques dada pelo sacador (cliente do Réu) ao próprio Réu (o Banco sacado).
Usualmente, desta forma, fazia-se uma leitura restritiva do preceito, nas relações portador/sacado – o valor do preceito seria limitado, pois que, como o sacado não está obrigado em face do portador a efectuar o pagamento, ele é livre de se conformar ou não com a ordem de revogação, mesmo durante o prazo de apresentação do cheque.
Assim, se o sacado pode pagar o cheque, por via do disposto no artº 32º, nada o obriga a fazê-lo, já que pode observar a ordem de revogação, neste sentido: seria ilógico pensar que o Banco, podendo, em geral, recusar o pagamento, venha a perder tal possibilidade quando a recusa corresponder aos interesses do seu cliente.
Esta doutrina ainda recentemente havia sido defendida, v.g., pelos Prof. Ferrer Correia e Dr. António Caeiro, R.D.E., nº2/1987/466, ancorados em Baumbach-Hefermehl ou em doutrina italiana.
Chamava-se ainda à discussão o disposto no artº 14º Dec. nº 13004, de 12/1/1927, segundo o qual, após a emissão do cheque e respectiva entrega, “a revogação do mandato de pagamento, conferido por via do cheque ao sacador, só obriga este depois de findo o competente prazo de apresentação; no decurso do mesmo prazo, o sacado não pode, sob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com fundamento na referida revogação”.
Todavia, a jurisprudência e a doutrina tradicionais entendiam este artº 14º revogado pelo artº 32º LUCh, na estrita medida em que este último normativo, no respectivo § 2º, não impunha ao sacado a obrigação de pagar o cheque no decurso do prazo de apresentação. A interpretação atingia o elemento histórico, bem como a discussão travada na Conferência de Genebra, entre o delegado português, Caeiro da Mata, e as objecções que lhe foram colocadas – entre estas avultava a de que “o princípio da irrevogabilidade do cheque só poderia admitir-se juridicamente se se reconhecesse ao portador uma acção directa contra o sacado, como acontecia no direito francês, mas seria ilógico adoptá-lo nos sistemas cuja única base jurídica e económica consistia no direito de regresso do portador contra o sacador, como era o caso do direito alemão e como veio a ser a orientação que prevaleceu na Lei Uniforme sobre Cheques” (neste sentido, pronunciavam-se os Prof. Ferrer Correia e Dr. António Caeiro, op. e loc. cits., ainda os Profs. Ferrer Correia e Almeno de Sá, Colectânea, 1990, I/40 a 56, e, antes destes, também o Dr. Filinto Elísio, A Revogação do Cheque, O Direito, 100º/(1968)/450).
II
Esta exposta doutrina era porém já contraditada pelo Prof. Palma Carlos, R.O.A., 6º/439ss.
E foi, mais tarde, repristinada no Ac.R.P. 24/4/90 Col.II/238 (relatado pelo Consº Araújo Ribeiro), na medida em que aí se considerou que sempre restaria para a responsabilização do Banco o disposto no artº 483º nº1 C.Civ., isto é, se se considerar que existe uma revogação em contrário do disposto no artº 32º LUC, isto é, dentro do prazo de apresentação, então está-se a violar ilicitamente o direito do portador.
Assim, “se admitirmos que o Banco deixe impunemente de pagar o cheque revogado, estaremos a permitir que a revogação produza o seu efeito directo, ou seja, que a ordem de pagamento deixe de ser cumprida”.
Deixar-se-ia entrar pela janela o que não se deixou entrar pela porta, perdoe-se a expressão, isto é, a revogação não poderia produzir efeito antes de findar o prazo de apresentação a pagamento; todavia, podendo o Banco deixar de pagar o cheque, na realidade a revogação podia produzir todos os seus efeitos ainda antes de expirar a data de apresentação a pagamento.
Este aresto reportou-se expressamente à responsabilidade do Banco pela via aquiliana do artº 483º nº1 C.Civ.
Note-se que esta mesma 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto também assim se pronunciou no Ac.R.P. 18/5/99 Bol.487/364 (relator: Cândido Lemos).
Todavia, o Ac.Jurispª S.T.J. 4/2000 de 19/1/00,in D.R. Iªs.-A de 17/2/00, das secções criminais do S.T.J., veio esclarecer a questão noutros termos, designadamente porque veio sustentar o pleno vigor do disposto no artº 14º Dec. nº 13004, de 12/1/1927.
Pela respectiva importância no debate a partir daí travado, transcrevemos parte dessa decisão:
“É certo que a LUC assenta na concepção germânica de que sendo o portador e o sacado estranhos, em relação, respectivamente, ao contrato de cheque e à relação cambiária, o primeiro não tem qualquer acção directa contra o segundo com base naquele contrato ou nesta relação. Mas, não é menos certo, a acção de perdas e danos a que alude o preceito em análise não tem como fundamento a violação do contrato de cheque nem o incumprimento de qualquer obrigação cambiária do sacado… Logo, a referida acção não colide em nada com o princípio de que o sacado não responde perante o portador, nem como obrigado cambiário, nem por incumprimento do contrato de cheque. De qualquer modo, diz-se, “tal solução é contrária aos princípios fundamentais da LUC”. Não sendo aquele a que acabámos de nos referir, talvez se esteja apelando ao princípio da irrevogabilidade do cheque, durante o período da apresentação. Todavia, sendo inquestionável que a consagração de tal princípio no artº 32º LUC se destina, exclusivamente, à protecção do portador, não se vê em que é que uma norma que reforça essa protecção pode contrariar aquele princípio”.
E, adiante, escreve-se ainda: “a solução da 2ª parte do corpo do citado artº 14º não é imposta pelo regime geral do cheque (porque, repete-se, de acordo com este não há entre portador e sacado uma relação jurídica prévia respeitante ao cheque), mas sim pelos princípios de direito comum, mais concretamente da responsabilidade civil extracontratual. Sendo uma solução de direito comum para uma questão de direito comum, a norma daquele segmento normativo, materialmente, é, também ela, de direito comum, logo a sua vigência só poderia ser afectada pela entrada em vigor da LUC se esta passasse a considerar lícita e eficaz a revogação do cheque, no prazo da apresentação, ou se, continuando a ferir essa ineficácia, a questão da sanção do sacado – por se conformar com ela – fosse contemplada na própria LUC ou no anexo II. Ora, por um lado, o artº 32º da LUC diz fundamentalmente o mesmo que a 1ª parte do corpo do artº 14º Dec. nº 13004, e, por outro lado, nenhuma disposição da LUC e do anexo II se refere a tal matéria. O que naturalmente não acontece por acaso. Na verdade, foi visível a preocupação da Convenção em não ultrapassar os limites estritos do direito do cheque ou, noutra perspectiva, em não invadir competências do direito comum ou de outra legislação especial. Em suma, tratando-se de uma norma materialmente do direito comum – responsabilidade civil extracontratual – sobre matéria que a Convenção se absteve de tratar, precisamente para a deixar sob império exclusivo do direito comum, a 2ª parte do corpo do artº 14º Dec. nº 13004 não resultou revogada por efeito da entrada em vigor da LUC”.
Bem elucidativo este pedaço doutrinário, que o Ac.Jurispª S.T.J. 4/2008 de 28/2/2008, in D.R. Iªs., nº 67, de 4/4/08, desenvolve, em idêntico trajecto.
Como é sabido, e resulta da fundamentação da douta sentença recorrida, este acórdão aplica-se ao caso dos autos, pois que estabeleceu doutrina neste sentido: “Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artº 29º LUC, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1ª parte do artº 32º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos artºs 14º 2ª parte Dec. nº 13004 e 483º nº1 C.Civ.”.
Note-se que, quando falamos em revogação de cheques, temos em mente “proibir o seu pagamento, dá-lo como não emitido e, se a declaração for eficaz, anulá-lo como título” – cf. Prof. Palma Carlos, op. e loc. cits., cit. in Ac.R.L. 17/12/92 Col.V/150.
Diferente é a previsão do § único do artº 14º Dec. nº 13004 de 12/1/1927 – “se porém o sacador ou o portador tiver avisado o sacado de que o cheque se perdeu, ou se encontra na posse de terceiro em consequência de um facto fraudulento, o sacado só pode pagar o cheque ao seu detentor se este provar que o adquiriu por meios legítimos”.
Na hipótese dos autos, encontramo-nos perante aquela primeira figura da revogação, ainda que motivada, v.g., “por falta/vício na formação da vontade”.
Daí a ilicitude e a culpa na actuação provada do Réu, requisitos da responsabilidade civil extracontratual.
Esta doutrina é pacífica nos tribunais desde o acórdão de fixação de jurisprudência de 2000 - a título meramente exemplificativo, em livro, citamos os Ac.S.T.J. 5/7/01 Col.II/146 (relatado pelo Consº Reis Figueira), Ac.S.T.J. 12/10/2010 Col.III/124 (relatado pelo Consº Hélder Roque), Ac.R.C. 26/11/00 Col.V/24 (relatado pelo Consº Garcia Calejo), Ac.R.P. 16/3/06 Col.II/165 (relatado pelo Consº Gonçalo Silvano), Ac.R.C. 17/11/09 Col.V/15 (relatado pelo Desemb. Carlos Querido) ou Ac.R.L. 9/11/2010 Col.V/85 (relatado pelo Desemb. Peter Brighton).
Por fim, se é certo que os acórdãos de fixação de jurisprudência do S.T.J. não possuem a anterior natureza injuntiva dos assentos, não menos verdade é que a jurisprudência também fixou que:
“Para que a doutrina fixada por um acórdão uniformizador de jurisprudência possa ser alterada, impõe-se que, em concreto, os argumentos invocados para o efeito sejam novos e ponderosos, isto é, que não tenham sido considerados pelo acórdão uniformizador e que criem um desequilíbrio na avaliação do peso dos argumentos a favor do reexame e da alteração da doutrina ali fixada” (ut S.T.J. 20/4/05 Col.II/181).
III
Questão diversa é aquela que se reporta à inexistência de provisão na conta bancária sobre a qual foi o cheque emitido e não pago (por revogado, no prazo da apresentação – artº 32º LUC), inexistência de provisão essa que em todo o caso impedisse que a Autora viesse a receber o montante titulado pelo cheque.
A jurisprudência mostra-se dividida, desde logo no nosso mais Alto Tribunal, como se pode conferir – a favor da irrelevância da falta de provisão na conta para a indemnização a cargo do Banco:
- S.T.J. 8/5/2013, in www.dgsi.pt, pº 1122/10.5TVLSB.L1.S1, relatado pelo Consº Álvaro Rodrigues;
- S.T.J. 21/3/13, in www.dgsi.pt, pº 4591/06.4TBVNG.P1.S1, e S.T.J. 10/5/12, in www.dgsi.pt, pº 272/08.2TVPRT.P3.S1, ambos relatados pelo Consº Oliveira Vasconcelos.
Em sentido contrário, eximindo da responsabilidade indemnizatória a entidade bancária, caso a conta não se encontrasse provisionada:
- S.T.J. 21/3/2013, in www.dgsi.pt, pº 685/10.0TVPRT.P1.S1, relatado pelo Consº Abrantes Geraldes (também in Col.Jur. I/172);
- S.T.J. 18/12/2012, in www.dgsi.pt, pº 5445/09.8TBLRA.C1.S1, relatado pelo Consº Paulo Sá.
Outros arestos colocaram ênfase na questão do ónus de prova do “prejuízo”, e salientamos ex abundanti: S.T.J. 2/2/2010, in www.dgsi.pt, pº 1614/05.8TJNF.S2 (relator: Consº Sebastião Povoas, colocando o ónus de que o prejuízo se verificaria, mesmo no caso de falta de provisão da conta, a cargo daquele que invoca o prejuízo); e, desta Relação do Porto, Ac.R.P. 28/3/2011, in www.dgsi.pt, pº 8630/08.6TBVNG.P1, relatado pelo Desemb. Mendes Coelho, e Ac.R.P. 4/1/2011, in www.dgsi.pt, pº 4348/08.8TBSTS.P2, relatado pelo Desemb. Pinto dos Santos (colocando a cargo do Banco sacado o ónus de prova de que o prejuízo se não verificaria, fosse pela falta de provisão, fosse até por outros fundamentos, designadamente pela inexistência de provisão na conta em momento posterior ao da apresentação a pagamento ou por não ter sido convencionado com o cliente a possibilidade de descoberto).
A questão encontra-se escalpelizada e sobejamente discutida.
À semelhança do Ac.S.T.J. 21/3/2013 cit., nota 3, entendemos, com o merecido e devido respeito, que a questão não é adequadamente colocada em sede de relevância positiva ou negativa da causa virtual (na medida em que, respectivamente, a causa virtual confirmasse ou afastasse a responsabilidade pela indemnização) – como refere o Prof. Pereira Coelho, em O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil, pgs. 19 e 56, entre outras, essa problemática só se colocaria numa situação em que se configurasse um facto que provocou um dano, o qual seria causado por outro facto, se aquele não tivesse lugar, ou seja, se a causa real do dano funda efectivamente a obrigação de indemnizar; ora, a mera devolução do cheque com fundamento em revogação ilegítima, por si, não configura qualquer dano efectivo, dependendo este inteiramente do facto de a conta sacada se encontrar devidamente provisionada.
Portanto, a questão da relevância negativa da causa virtual (única verdadeiramente importante para que o agente possa eximir-se à responsabilidade) assume importância não no domínio do nexo causal, mas antes no capítulo da extensão do dano a indemnizar, como refere o Prof. Antunes Varela, Obrigações, 1º, 3ª ed., pg. 796, cit. in Ac.R.P. 28/3/2011 supra,
De todo o modo, e quer se considere, ou não, a abordagem da matéria pelo ângulo da relevância da “causa virtual”, não há dúvida que a questão do apuramento dos danos parte de um juízo prévio de possibilidade de imputação do resultado ao agente, isto é, o de saber se a conduta do agente é suficiente para consubstanciar a causa do dano (cf. Ac.S.T.J. cit., louvando-se em Drª Adelaide Menezes Leitão, Normas de Protecção e Danos Puramente Patrimoniais, pgs. 713 e 716).
Ora, é consensual que o regime da responsabilidade civil patrimonial possui uma função puramente reparadora, o que é confirmado pela forma de quantificação dos prejuízos a que alude o disposto nos artºs 562º, 563º e 566º nº2 CCiv, através da consabida “teoria da diferença”.
Neste sentido, aquilo que resulta provado e é relevante é o facto de a conta bancária sobre a qual foi sacado o cheque invocado nos autos não possuir, à data da apresentação do cheque a pagamento, fundos suficientes para esse pagamento.
Ou seja, da conduta do Banco Réu não resultou qualquer prejuízo patrimonial para a Autora, porque, mesmo em face de um comportamento lícito do referido Réu, ou seja, mesmo em face da apresentação do cheque a pagamento sem recusa por revogação, mesmo assim o cheque invocado nos autos não obteria pagamento, porque de todo o modo a conta sacada não se encontrava provisionada para tanto.
Ou seja ainda, o prejuízo causado pela conduta do Banco Réu, considerada a causalidade adequada ou até normativa entre eventos, é tão só o da inutilização do exercício do direito cartular, como adequadamente se entendeu no Ac.R.C. 20/6/2012 Col.III/35, relatado pelo Desemb. Barateiro Martins.
Outros danos porém usualmente se invocam como consequência directa da conduta do Banco:
- o dano da impossibilidade de reutilização do cheque para nova apresentação a pagamento (o dano da inutilização do direito cartular, propriamente dito) – salvo o devido respeito, este argumento colide com o mero facto de a revogação do cheque produzir efeitos depois de findo o prazo de apresentação para pagamento, como decorre do aludido artº 32º 1º§ LUC, ou seja, o argumento olvida que, depois de passado esse prazo, a revogação do cheque é válida no confronto com o portador;
- outros danos ainda, como, v.g., a impossibilidade de notificação do sacador para regularizar a situação dentro dos 30 dias referidos no artº 1º D-L nº 316/97 e a comunicação ao Banco de Portugal, enquanto meios de pressão sobre o devedor; a impossibilidade de utilização do cheque como título executivo – artº 46º nº1 al.c) CPCiv.
Quanto a esta falada impossibilidade de considerar o “cheque revogado” como verdadeiro título executivo, tal não se nos afigura corresponder à lei e à prática vigentes nos tribunais – não só a letra do citado artº 46º nº1 al.c) não exclui essa possibilidade, como vem sendo entendido que a revogação do cheque opera apenas nas relações entre sacador e sacado (entre o Banco e o seu cliente), não afectando a posição do beneficiário da ordem de pagamento ou a força executiva do cheque (a ordem de revogação é de considerar, pois, em face do portador do cheque, uma res inter alios – por todos, cf. Ac.S.T.J. 20/11/03 Col.III/156, relatado pelo Consº Salvador da Costa).
Os demais danos, designadamente aqueles que se relacionem com formas de pressão sobre o devedor, encontram uma concretização patrimonial tão longínqua que nem sequer devem conduzir à ponderação de um dano de perda de chance.
Pelo acervo de razões expostas, somos de entendimento que o sentido decisório de 1ª instância não se pode manter, assim logrando inteira procedência as razões das doutas alegações de recurso.

Resumindo a fundamentação:
I – Mantém-se actual a doutrina do Ac.Jurispª 4/2008 de 28/2/2008, no sentido de que uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artº 29º LUC, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1ª parte do artº 32º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque.
II – A relevância negativa da causa virtual pressupõe que a causa real fundou efectivamente a obrigação de indemnizar e cabe ser ponderada no domínio da extensão do dano.
III – O prejuízo causado pela conduta do Banco Réu, com a recusa de pagamento do cheque, no prazo de apresentação, por força de revogação, considerada a causalidade adequada entre eventos, é tão só o da inutilização do exercício do direito cartular, embora, nada mais se provando, se possa igualmente considerar a perda patrimonial resultante do não pagamento.
IV – Vindo porém provado que a conta sobre a qual o cheque foi emitido não possuía fundos suficientes para o pagamento do valor do cheque, o dano do não pagamento não resulta adequadamente da recusa de pagamento por revogação do cliente/sacador.
V – O portador, mesmo que impedido de apresentar o cheque a pagamento para lá do prazo do artº 29º LUC, não está impedido de utilizar o cheque revogado como título executivo.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, acorda-se neste Tribunal da Relação:
Julgar o recurso procedente, por provado, e, em consequência, revogar a douta sentença recorrida, absolvendo agora o Réu do pedido.
Custas pela Apelada.

Porto, 12/XI/2103
Vieira e Cunha
Maria Eiró
João Proença