CHEQUE NÃO À ORDEM
PREENCHIMENTO
ENDOSSO
CESSÃO DE CRÉDITOS
Sumário

I - Os cheques “não à ordem” não são susceptíveis de transmissão por endosso, pelo que a transferência dos direitos a ele inerentes apenas se pode operar pela forma e com os efeitos de uma cessão de créditos ordinária.
II - Enquanto cessão de créditos ordinária, a sua eficácia, em relação ao devedor, depende da notificação que lhe seja feita ou do conhecimento que venha a ter por outro meio, sendo bastante, para este efeito, a notificação judicial avulsa e a citação para a acção.
III - Os cheques podem ser completados em data posterior à da sua emissão, desde que haja acordo quanto ao seu preenchimento, o qual não se presume.

Texto Integral

APELAÇÃO Nº 7/11.2TBAMT.P1
Tribunal Judicial de Amarante
1ª Juízo

ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

B…, LDA, propôs a presente ação declarativa contra C…, pedindo que fosse este Réu condenado a pagar-lhe a quantia de 6.524,00€ (seis mil quinhentos e vinte e quatro Euros), inscrita em cheque por aquele emitido a favor da sociedade D…, Lda, e por esta endossado e entregue à agora Autora. Peticiona ainda juros desde 18/08/2010 até efetivo e integral pagamento.
Alegou, para tanto que, com o endosso e entrega do referido cheque, a referida D…, Lda lhe cedeu o crédito que detinha sobre o agora Réu, como forma de pagamento dos fornecimentos efetuados pela Autora.
Tendo notificado o réu para proceder ao pagamento do cheque, este teria recusado, e daí a presente ação.

O Réu contestou excecionando:
- O facto de o cheque não ter sido preenchido por si, que se limitou a assiná-lo;
- O facto de tal cheque ter sido por ele entregue à D…, Lda como garantia de pagamento de um fornecimento que não se chegou a realizar, inexistindo por isso qualquer crédito que pudesse ser cedido;
- que não sendo assim, e por essa razão, devedor de qualquer quantia à referida D…, Lda , também não era devedor da B…, Lda, aqui autora, com quem não tinha tido qualquer relação comercial.
Quanto ao mais defende-se por impugnação, e no final concluiu pugnando pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.

A Autora ainda veio responder às exceções aduzidas, mantendo o alegado na petição.

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Prosseguiram os autos a sua tramitação normal, foi realizada perícia à escrita, e produzida prova testemunhal, no seguimento do que, decidida a matéria de facto controvertida, foi proferida sentença na qual a Sra. Juíza a quo, equacionando a questão a decidir como sendo a de saber se se operou de forma válida, a cessão de créditos a favor da A do credito do montante de € 6.524,00, aderiu à jurisprudência do Ac. do STJ de 9 de Novembro de 2000, (Relator Conselheiro Quirino Soares) para concluir que a invocada cessão de créditos, não produz qualquer efeito em relação ao R, uma vez que o A não notificou o devedor da cessão de créditos invocada, não tendo alegado que esta a aceitou, e por outro lado, quer a citação para a presente ação, quer a notificação judicial avulsa efetuada nos termos do doc. junto aos autos a fls. 9 a 12, não configuram a notificação ou comunicação –declaração receptícia, necessária á oponibilidade da cessão ao devedor nos termos previstos no artº art.º 583.º n.º 1 do CC.
Com este fundamento julgou a ação improcedente e absolveu o R C… do pagamento da quantia peticionada.
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Inconformada com esta decisão dela vem recorrer agora a Autora B…, LDA, formulando em síntese das suas alegações de recurso, as seguintes CONCLUSÕES:
1- Face à notificação judicial avulsa constante de fls. 9 a 12 ao teor da mesma, e à provada notificação do réu operada em 20 de dezembro de 2010 - alínea G) dos factos provados - este foi notificado da cessão do crédito em causa nos autos, tendo sido cumprida integralmente a exigência e a pretensão legal prevista no art.° 583.° n? 1 do CC.
2- Por via da referida notificação a cessão do crédito é oponível ao devedor e aquando da interposição da ação já era portador do direito creditício junto do réu. devendo a sentença ser substituída por outra que considere oponível ao devedor a cessão e por via disso este seja condenado ao pagamento do valor peticionado.
3- Acresce ainda a necessidade de tomada de posição relativamente à posição da Sentença recorrida que considerou como não susceptível de preencher o requisito da notificação do devedor da cessão de crédito previsto no art. 583.° n.º 1 do CC a citação para a ação, defendendo-se que esta é suficiente para o cumprimento daquele dispositivo legal, atenta a circunstância de naquela data o devedor tomar integral conhecimento da cessão do crédito, passando a ser-lhe oponível;
4- Também pelo entendimento ora exposto deve a sentença recorrida ser substituída por outra que considere o Reu devidamente notificado da cessão de crédito por via da citação para a ação, condenando-o ao pagamento do valor peticionado.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente ser revogada a sentença sub judice e substituída por outra que julgue o presente recurso procedente e condene o Réu ao pagamento do peticionado na ação, promovendo-se a realização da justiça.
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Não houve contra-alegações.
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Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, haverá de considerar-se que a questão que no mesmo é submetida à nossa apreciação se reconduz a saber se a notificação judicial avulsa do réu operada em 20 de dezembro de 2010, é suficiente para ter-se o mesmo como notificado da cessão para efeitos do disposto no artº 583º, nº1, do CC, sendo igualmente meio idóneo para cumprir esse requisito a citação do mesmo réu para a presente ação.

Como ponto prévio deve começar por referir-se que, se bem que a Sra. Juíza haja de facto equacionado a questão a decidir como sendo a de saber se se operou de forma válida, a notificação ao Réu, da cessão de créditos a favor da A do credito do montante de € 6.524,00, não era no entanto, essa a questão que se suscitava nos autos. Ou seja, a questão da ausência de notificação ao Réu da cessão de créditos a favor da A não foi em momento algum invocada pelas partes, nomeadamente pelo réu.
As questões suscitadas na ação, em face do alegado e da contestação deduzida eram antes de mais, a do alegado preenchimento abusivo do cheque, e da sua oponibilidade à autora, e a alegada inexistência do crédito do cedente, e a sua implicação na posição da autora cessionária.
Não sendo a ausência de notificação da cessão ao devedor, matéria de conhecimento oficioso, ao debruçar-se sobre essa matéria a Sra. Juíza incorreu em excesso de pronúncia - artº 660º, nº2, parte final, do CPC (na versão anterior às alterações decorrentes da Lei 41/2013) [1].
No entanto, não só a nulidade correspondente - artº 668º, nº1, al. d), do CPC - não foi arguida, como a Autora vem agora suscitar a apreciação dessa questão através do recurso que interpôs.
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Isto dito, a matéria de facto a considerar é aquela que foi tida como assente na sentença recorrida, uma vez que a mesma não foi, nessa parte, impugnada.
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I - Relativamente à questão suscitada no recurso, importa reter que a cessão de créditos opera por via de uma convenção contratual entre o credor e um terceiro. Para que a cessão de créditos se efetive não é por isso necessária a intervenção do devedor. Nesse sentido o Prof. A. Varela definia a cessão de créditos[2] como "o contrato pelo qual o credor transmite a terceiros independentemente do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito - artº 577º do CC"
No entanto, a eficácia da cessão em relação ao devedor, depende da notificação que lhe seja feita da mesma, ou do conhecimento que da mesma o devedor venha a ter por outro meio, ou ainda, da aceitação dessa cessão pelo devedor. É o que decorre do disposto no nº 1 e 2 do artº 583º, do CC.

No caso dos autos está em causa um cheque emitido e assinado pelo ora Réu à sociedade D…, Lda e que esta endossou e entregou à autora para pagamento da factura supra referida e do valor de 200,00€ (duzentos Euros) e para amortizar a dívida anterior da D….
Se estivéssemos perante um endosso normal, bastaria esse facto para operar a transmissão do crédito correspondente. Feita a declaração de endosso e entregue o título, a transferência dos direitos a ele inerentes é desde logo eficaz, mesmo em relação a terceiros.
No caso do cheque em a que se referem os autos isso não se verifica uma vez que se trata de um cheque com cláusula "não à ordem", o qual, em conformidade com o disposto no artº 14º da LUC, não é suscetível de transmissão por endosso, só o podendo ser pela forma e com os efeitos de uma cessão de créditos ordinária.

E é essa a situação que se verifica nos autos, e que de resto foi invocada pela autora. E por isso, e em função do acima referido, a eficácia, em relação ao devedor, da cessão de créditos operada pelo endosso do referido cheque, estava dependente, como se viu, da notificação dessa cessão ao devedor, ou do conhecimento que este dela tivesse por qualquer outra via, nos termos e em conformidade com o disposto no já referido artº 583º do CC.
E foi em função do disposto neste normativo, que a Sra. Juíza a quo concluiu que a cessão de créditos efetuada não era eficaz em relação ao Réu porquanto a Autora, não tendo alegado que o Réu aceitou a cessão, também não notificou este réu da cessão efetuada, considerando a Sra. Juíza a quo que não tinha essa virtualidade, nem a notificação judicial avulsa, nem a citação para a ação.
Ao assim argumentar a Sra. Juíza a quo limita-se a aderir no essencial à jurisprudência do acordo do STJ de 09-11-2000, Rec. 2611/2000 (Quirino Soares).
Crê-se no entanto que a posição defendida no referido aresto não só não é maioritária[3] (ao contrário do que se sustenta na sentença recorrida) como não se afigura, com o devido respeito, como a mais acertada.
Desde logo a cessão de créditos é válida - como vimos - independente da notificação ao devedor.
Por outro lado o que decorre do artº 583º do CC é que a eficácia da cessão em relação ao devedor fica dependente - para além da situação da aceitação - do conhecimento desta pelo devedor. Ora esse conhecimento pode advir-lhe, não só pela notificação, como por qualquer outro meio [4] - cfr. nº 2 do referido artº 583º do CC.
Ora, com a notificação judicial avulsa efetuada ao Réu, este toma conhecimento da cessão de créditos efetuada pela credora inicial, a D…, Lda, à agora autora.
Mas mesmo que assim não fosse teria tomado conhecimento da cessão através da citação para a ação.
Uma e outra são meios idóneos a levar ao Réu o conhecimento da cessão efetuada.
Se tivermos em conta que o que releva é o conhecimento que o devedor tenha da cessão de créditos que haja sido efetuada, do ponto de vista da eficácia da mesma em relação a ele, irreleva que esse conhecimento lhe advenha da notificação, da citação para a ação, ou ainda de notificação judicial avulsa a exigir o pagamento.
Improcedem por isso os argumentos adiantados na sentença recorrida para ter com ineficaz a cessão em relação ao devedor a cessão de créditos.

II - Aqui chegados somos confrontados com as questões que são efetivamente suscitadas na ação, e de que a Sra. Juíza não conheceu, em função da posição assumida sobre o que estaria em causa na ação.

Referimo-nos, como anteriormente se deixou salientado, à oponibilidade à autora, adquirente do cheque, por cessão ordinária de créditos, do preenchimento abusivo do cheque, e à alegada inexistência do crédito do cedente, e a sua implicação na posição da autora cessionária.
Cabe a este tribunal da Relação proferir decisão sobre tais questões, sobre as quais as partes se pronunciaram já nos respetivos articulados, atendendo ao disposto no artº 665º, nº2, do NCPC.

A este respeito vimos já que o cheque ………., sacado sobre o E…, no valor de 6.524,00€ (seis mil quinhentos e vinte e quatro Euros), foi entregue pela D…, Lda , à autora B…, Lda, para pagamento da factura supra referida e do valor de 200,00€ (duzentos Euros) para amortizar a dívida anterior da D… (F)

Relativamente a tal cheque está ainda provado que apenas foi assinado pelo Réu, não tendo sido preenchido pelo mesmo (J).
Provado que foi entregue à D…, constando do mesmo apenas a assinatura do sacador (réu), e que foi entregue por aquela, à autora nos autos, no âmbito das relações comerciais entre ambas, haverá que questionar se houve algum acordo entre o sacador (ora réu) e o tomador (a referida D…) relativamente ao preenchimento de tal cheque. Com efeito, e como decorre do disposto da leitura dos artigos 1.º, e 2.º da Lei Uniforme sobre Cheques a falta dos requisitos enumerados no artigo 1º daquela LUC, implica que o título não produza efeitos enquanto cheque. Um título nessas condições vale apenas como documento com força probatória relativamente à obrigação em que se constituiu o sacador - V. Serra , in BMJ 60º - págs. 86.
O artº 13º da LUC prevê no entanto a possibilidade de se emitirem cheques aos quais faltem os aludidos requisitos, para serem completados em data posterior à da sua emissão, contanto que haja acordo quanto ao seu preenchimento. A existência desse acordo no entanto não se presume - como se menciona no Assento 1/93 Publicado no DR I-A, n.º 7/93, de 9.01.1993, hoje com valor de Acórdão de Uniformização de Jurisprudência. Como ali e refere "Só é válido o cheque entregue em branco desde que seja completado nos termos dos acordos realizados; nada na lei permite fazer presumir que a simples entrega do cheque contém em si a anuência para o seu preenchimento".
No caso dos autos, provado que o cheque foi entregue apenas com a assinatura do ora réu, e inexistindo elementos para ter como adquirido que este deu a sua anuência ao preenchimento de tal cheque, não pode considerar-se que o cheque em causa incorporasse qualquer crédito suscetível de ser transmitido através de cessão de créditos, não incorporando qualquer ordem de pagamento pela qual o réu, enquanto sacador se tivesse responsabilizado perante a referida D….
Consequentemente a transmissão do referido cheque para a autora não implicou a transferência de qualquer crédito.
Assim que, muito embora por fundamentos diversos dos da sentença recorrida, deve manter-se a improcedência da ação e a absolvição do réu do pedido, confirmando-se nessa parte a sentença recorrida.

TERMOS EM QUE ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO em julgar improcedente o recurso, e, ainda que por fundamentos não coincidentes com os da sentença recorrida, confirmar a decisão que da mesma consta.

Custas pela recorrente.

Sumariando - artº 663º, nº7, do NCPC:
I - O endosso dos cheques bastará normalmente para operar a transmissão do crédito correspondente. Feita a declaração de endosso e entregue o título, a transferência dos direitos a ele inerentes é desde logo eficaz, mesmo em relação a terceiros.
No entanto, no caso dos cheques com cláusula "não à ordem", atento o disposto no artº 14º da LUC, os mesmos não são suscetíveis de transmissão por endosso, pelo que a transferência dos direitos a ele inerentes apenas se pode operar pela forma e com os efeitos de uma cessão de créditos ordinária.
II - Enquanto cessão de créditos ordinária, a sua eficácia em relação ao devedor, depende da notificação que lhe seja feita da mesma, ou do conhecimento dessa cessão - ou da sua aceitação - que o devedor venha a ter por outro meio. É o que decorre do disposto no nº 1 e 2 do artº 583º, do CC. Em última análise o que releva é, em qualquer caso, o conhecimento. E para esse efeito quer a notificação judicial avulsa, quer a citação para a ação são meios idóneos a levar ao Réu o conhecimento da cessão efetuada.
III - O artº 13º da LUC prevê a possibilidade de os cheques aos quais faltem os requisitos aludidos no artigo 1º daquela LUC, possam ser completados em data posterior à da sua emissão, contanto que haja acordo quanto ao seu preenchimento. A existência desse acordo no entanto não se presume - como se menciona no Assento 1/93 Publicado no DR I-A, n.º 7/93, de 9.01.1993, hoje com valor de Acórdão de Uniformização de Jurisprudência.
IV - No caso dos autos, provado que o cheque foi entregue apenas com a assinatura do ora réu, e inexistindo elementos para ter como adquirido que este deu a sua anuência ao preenchimento de tal cheque, não podendo considerar-se que o cheque em causa incorporasse qualquer crédito suscetível de ser transmitido através de cessão de créditos, pelo que a transmissão do referido cheque para a autora não implicou a transferência de qualquer crédito.

Porto, 14 de Novembro de 2013
Freitas Vieira (Relator)
Madeira Pinto (1º Adjunto)
Carlos Portela (2º Adjunto).
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[1] Com efeito, apesar do eu dispõe o artº 5º, nº1, da referida Lei 41/2013, de 26 de Junho, o respeito pela validade dos actos processuais praticados em data anterior à sua vigência implica que, no que pode contender com a validade daqueles atos, se continue a aplicar o CPC de 1961, a que se irão referir por isso as normas do CPC de ora em diante citadas sem especial ressalva)
[2] Obrigações, Vol. II, págs. 253
[3] Em sentido contrário V Ac. do mesmo STJ, de 03-6-2004, Proc. 815/04 (Noronha do Nascimento); ac. do STJ de 6-11-2012, Proc. 314/2002.S1.L1 (Alves Velho), para além das posições doutrinárias expressas no sentido e citadas no ultimo aresto - ASSUNÇÃO CRISTAS, Cadernos de Direito Privado, n.º 14, pp. 63, 64. e L.M. PESTANA DE VASCONCELOS, A Cessão de Créditos em Garantia e a Insolvência, pp. 405, 408.
[4] Só assim não será no caso de conflito de cessionários - cfr. artº 584º do CC.