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ARRENDAMENTO URBANO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
FACTO ILÍCITO
ÓNUS DA PROVA
Sumário
Integra a previsão do art. 1093, n. 1 c) do CC e, hoje, a do art. 64 n. 1, c) do Regidamento do Arrendamento Urbano, a conduta do inquilino que no arrendado acumulara lixos que emanam cheiro nauseabundo que se faz sentir noutros apartamentos do mesmo prédio, uma vez que tal prática é ilícita por ofender direitos de personalidade dos vizinhos, nomeadamente a integridade moral e física destes, o seu direito a um ambiente de vida sadio e direito a habitação em condições de higíene, direitos estes consagrados e protegidos, como de interesse e ordem pública, pela Constituição da República, Lei de Bases do Ambiente e Código Civil; recai sobre o inquilino o ónus da prova de que tais sucessos não procedem de culpa sua para poder evitar a resolução do contrato, atento o disposto no art. 799 do Código Civil.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
(C) e mulher (B) apelam da sentença de 15 de Junho de 1990 do Décimo Sexto Juízo do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa que, na acção com processo especial de despejo que moveram a (D) absolveu o Réu do pedido de resolução do contrato de arrendamento de 2 de Outubro de 1967, respeitante à fracção autónoma designada pela letra
H do prédio sito na Rua T, n.5, , concelho da Amadora, e consequente despejo, fundados na acumulação no arrendado de lixo de que emana cheiro nauseabundo que se fazem sentir em todo o prédio e de onde saem insectos.
Na sua alegação os apelantes pedem que se revogue a sentença, decretando-se a resolução do contrato com as legais consequências.
Para tanto, formula as seguintes conclusões:
1. O apelado há vários anos que vem armazenando no interior da fracção despejando detritos de espécie vária, dela se libertando um cheiro nauseabundo que incomoda sobremaneira a vizinhança que habita no mesmo prédio.
2. A situação de falta de sanidade e de ausência total de higíene na fracção despejanda existente, faz do arrendado um potencial foco de parasitas de toda a espécie.
3. Na cozinha do arrendado, e próximo do fogão, acumulam-se toda a espécie de gorduras, as quais se mostram geradoras de um potencial perigo de incêndio.
4. O quadro existente no andar despejando é de molde a pôr em risco a saúde pública, e afecta o sossego e o bem estar dos vizinhos.
5. A existência, no interior do arrendado, de uma lixeira e de toda a sorte de parasitas, tal como dá conta a informação dos Serviços de Fiscalização da Câmara Municipal de Amadora origina, segundo a experiência comum, deteriorações consideráveis no arrendado.
6. A conduta do apelado reveste-se de inegável ilicitude.
7. Pelo facto de tal conduta poder ser apenas omissiva, não obstante na referida Informação se aludir à possibilidade de o apelado ou a sua companheira trazerem lixo para casa, não se conhece exactamente com que finalidade, isso não obsta a que tal ilicitude releve para o efeito da verificação do fundamento do artigo 1093 n. 1 d) do Código Civil.
Por seu turno, o apelado pugna pela confirmação da sentença, formulando as seguintes conclusões: a) os factos provados não constituem uma aplicação reiterada ou habitual de prática ilícita, imoral ou desonesta, nos termos do art. 1093 n. 1 c) do CC, então em vigor. b) Não foi do mesmo violada a al. d) dado que não foi sequer provado qualquer facto que a tal conduzisse.
Cumpre apreciar e decidir.
São os seguintes os factos que se encontram provados.
1. Os apelantes são donos do segundo andar, lado direito, do prédio sito na mesma rua , do concelho da Amadora.
(Esp. A)
2. Por contrato de 2 de Outubro de 1967, os autores deram de arrendamento ao réu, com efeitos a partir de 1 desse mesmo mês, o referido andar, para habitação exclusiva do réu, pelo prazo de seis meses, mediante a renda mensal de 800 escudos, posteriormente actualizado para 2225 escudos.
(Esp. B)
3. Os restantes habitantes do prédio dirigiram ao "Director de Saúde do Concelho da Amadora" e ao "Presidente da Câmara Municipal da Amadora", em Julho de 1987, um abaixo assinado, fotocopiado a fls. 6 e 7, e opondo que na varanda do arrendado existem lixo que deitam maus cheiros, obrigando os restantes inquilinos do prédio a ter, durante a maior parte do tempo, as janelas fechadas para evitar a entrada de moscas e mosquitos, saindo ainda da porta da residência cheiro nauseabundo.
(Esp. C)
4. A companheira do apelado, Efigénia, descura as suas obrigações e cuidados domésticos e tem propensão para desarrumar e sujar a casa.
(Esp. D)
5. O apelado, até Abril de 1990, teve uma parte da área útil da casa atulhada de papéis e na mesma casa teve, até aquela data, detritos vários, nomeadamente espinhas de peixe e cascas de fruta.
(Que 1)
6. Já há algum tempo que o apelado vinha acumulando lixo em casa, sem o remover até Abril de 1990.
(Que. 2)
7. Desse lixo emanava um cheiro nauseabundo, que se fazia em todo o prédio.
(Que 3)
8. Era frequente, quando a porta da casa que dá acesso à escada era aberta, verem-se sair insectos através dela.
(Que 4)
9. Na cozinha, onde confeccionava assim mesmo, refeições, todos os dias, o apelado acumulou, desde há algum tempo e até Abril de 1990, resíduos de gordura.
(Que 5)
Nos termos do disposto no artigo 664 do Código de Processo Civil, o juiz só pode servir-se dos factos articulados pelas partes.
Ora, o que se articulou foi o que se passou até
à data da propositura da acção, ou seja, 8 de Janeiro de 1988.
O que se passou depois, desde aquela data e até Abril de 1990 ou, em especial, neste mês, não foi alegado e, por isso, não pode ser considerado.
Desta sorte, os factos que foram julgados provados só relevam enquanto se referem à situação ocorrida até ao dia 8 de Janeiro de 1988.
Na sentença de que se apela parece fazer-se uma interpretação dos factos provados no sentido de que apenas significam que o apelado se limitou a uma pura omissão, ao não ter procedido a limpezas no arrendado.
Porém, esta interpretação não é permitida pelos factos provados. Estes indicam claramente que o apelado não se limitou a puras omissões; pelo contrário, foi por sua acção que se chegou aos resultados apurados.
Foi o apelado quem atulhou a casa arrendada com papéis, quem ali acumulou lixo e detritos vários, nomeadamente espinhas de peixe e cascas de fruta, bem como resíduos de gorduras, conforme as respostas dadas aos quesitos primeiro, segundo e sexto.
Em nenhuma daquelas respostas se diz ter sido o apelado descuidado na remoção de lixos que se acumularam na casa, vindas não se sabe de onde.
Bem pelo contrário: o que se afirmou foi ter sido o apelado quem atulhou a casa com papéis, detritos, restos de comida e gorduras.
Nos termos do disposto no art. 1093 n. 1 c) do Código Civil, o senhorio pode resolver o contrato de arrendamento se o arrendatário aplicar o prédio, reiterada ou habitualmente, a práticas ilícitas.
A questão que em primeiro lugar há que colocar é a de saber se é ilícito que o inquilino de uma parte de prédio urbano, onde residem mais pessoas, acumule no arrendado lixos a ponto de deles emanar cheiro nauseabundo que se faça sentir em todo o prédio e que sirva de ninho daqueles insectos que são atraídos pelos lixos e detritos de alimentos.
A resposta é afirmativa.
A Constituição da República Portuguesa consagra como direito pessoal a integridade moral e física das pessoas (art. 25 n. 1), o direito à protecção da saúde (art. 64 n. 1), o direito a um ambiente de vida humana, sadio e ecologicamente equilibrado (art.
66 n. 1) e o direito a habitação em condições de higíene (art. 65 n. 1) como direitos sociais.
Não pode sofrer dúvida que a emissão de cheiro nauseabundo a partir do lixo acumulado, cheiro esse que depois se espalha por todo o prédio - e, portanto, também pelos restantes apartamentos onde residem outras pessoas - bem como a propagação de insectos a partir de tais lixos contraria aqueles direitos e constitui, assim, conduta ilegal.
Isto mesmo foi declarado pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 4 de Julho de 1978 (Bol. 279, pag. 128) a propósito do caso paralelo da produção de ruídos produzidos num apartamento e que impediam os inquilinos de outro apartamento de desfrutarem do seu andar durante todo o dia, nele repousando.
Também na Lei de Bases do Ambiente se dispõe que todos os cidadãos têm direito a um ambiente humano e ecologicamente equilibrado (art. 2 n. 1 da Lei n. 11/87, de 7 de Abril),que o ar é uma das componentes do ambiente (art6 al.a) e ser contrário à ordem jurídica o lançamento para a atmosfera de quaisquer substâncias susceptíveis de afectarem a qualidade do ar e que impliquem dano ou dano ou incómodo grave para as pessoas (art. 8 n. 1).
Finalmente, o art. 70 do Código Civil, proclama que protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita
à sua personalidade física ou moral.
Mais uma vez o Supremo Tribunal de Justiça reconheceu, agora pelo acórdão de 15 de Outubro de 1985 (Bol.
350, pag. 301), não ser lícito a alguém manter no seu prédio uma pocilga que ocasiona cheiro pestilento e nauseabundo na casa do vizinho, situada a curta distância por tal conduta ofender os direitos de personalidade deste.
Dos artigos 1346 e 1347 do Código Civil alcança-se que o direito de propriedade está limitado no sentido de ao proprietário estar vedado a produção no seu prédio de cheiros que afectem a vizinhança.
Ora, não se pode sustentar que ao simples inquilino seja autorizado o que ao proprietário se proíbe.
A propósito, cabe recordar que esta Relação já entendeu poder ser responsabilizado o Senhorio que arrenda o primeiro andar do seu prédio para o exercício de uma actividade ruidosa e perturbadora do descanso do inquilino do rés-do-chão (acordão de
26 de Junho de 1977, in Colectânea, 1977, IV, pag.
918). Isto significa que o pôr termo a uma tal actividade constitui, até, um dever do locador.
Os direitos de personalidade - escreve Jacinto Bastos, in das Relações Jurídicas, I, pag. 20 - são direitos subjectivos absolutos, que têm por fim tutelar a integridade física e moral do indivíduo, impondo a todos os componentes da Sociedade o dever negativo de se obsterem de praticar actos que ofendam a personalidade alheia.
Finalmente, cabe notar que as normas que tutelam os direitos de personalidade, e em especial as que defendem os direitos sociais como são o ambiente e a habitação, são de ordem pública de onde as práticas que lhes são contrárias caberem seguramente na previsão do artigo 1093 n. 1 c) do Código Civil.
Nada há na Lei, nem existe justificação para que só os actos definidos como ilícitos pela Lei penal possam servir de fundamento à resolução do contrato de arrendamento nos termos do artigo 1093 n. 1 c) do Código Civil.
Trata-se de norma da Lei Civil e, por isso, o ilícito ali referido abrange o ilícito civil (cfr. o Acórdão da Relação do Porto de 5 de Abril de 1967, in Jur. Rel. 1967, pag. 387).
Foi à luz destes princípios que esta Relação, por Acórdão de 11 de Fevereiro de 1976, decretou a resolução do arrendamento em caso em que no arrendado, de noite, com frequência, se tocava música ruidosa (Bol. 256, pag. 165) Cfr. também o Acordão de Supremo de 13 de Março de 1986, no Boletim 355, pag. 356.
Na sentença veio a absolver-se o apelado do pedido também com o fundamento de os apelantes não haverem feito prova de aquele ter procedido com culpa.
Sucede, todavia, que, nos termos do disposto no artigo 799 do Código Civil, é sobre o apelado que recai o ónus de provar que não procedeu com culpa. E tal prova não a produziu o apelado.
Neste sentido, os Acórdãos do Supremo de 1 de Outubro de 1971 (Bol. 210, pag. 110) o desta Relação de 11 de Fevereiro de 1976 (no Bol. 256, pag. 165).
Resulta ainda da matéria de facto acima descrita que a conduta do apelado se prolongou no tempo, tendo resistindo às diligências que antecederam a propositura da acção (feita na Delegação de Saúde e na Câmara Municipal), prolongando-se no tempo, até que o Senhorio veio propôr esta acção.
Ocorre, pois, a circunstância prevista no artigo 1093 n. 1 c) do Código Civil, então vigente (e hoje no artigo 64 n. 1 c) do Regime de Arrendamento Urbano aprovado pelo DL n. 321-B/90, de 15 de Outubro) que justifica a resolução de arrendamento.
Em resumo: integra a previsão do art. 1093 n. 1 c) o CC hoje, a do art. 64 n. 1 c) do Regime de Arrendamento Urbano, a conduta de inquilino que no arrendamento acumular lixos que emanam cheiro nauseabundo que se faz sentir noutros apontamentos do mesmo prédio, uma vez que tal prática é ilicita por ofender direitos de personalidade dos vizinhos, nomeadamente a integridade moral e física destes, o seu direito a um ambiente de vida sadio e direito a habitação em condições de higíene direitos estes consagrados e protegidos, como de interesse e ordem pública, pela Constituição da República (arts. 25, 64, 65 e 66), Lei de Bases do Ambiente (arts. 2, 6 e 8) Código Civil (art. 70); recai sobre o inquilino o ónus de provar que tais sucessos não procedem de culpa sua para poder evitar a resolução do contrato, atento o disposto no art. 799 do Código Civil.
Pelo exposto, acordam no Tribunal da Relação de Lisboa em revogar a sentença de que se apelou, decretar a resolução do contrato de arrendamento celebrado a 2 de Outubro de 1967 entre o apelante (C) e o apelado (D) referente ao segundo andar, lado direito, do prédio sito na Rua s T, do concelho de Amadora e condenar o apelado a despejar tal local entregando-o imediatamente ao apelante, livre e devoluto.
Custas pelo apelado, em ambas as instâncias (sem prejuizo do concedido benefício).
Lisboa, 9 de Abril de 1990
A. de Sousa Inês
Afonso de Melo