COMPENSAÇÃO
CONTRATO DE FINANCIAMENTO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CORRESPECTIVIDADE DE PRESTAÇÕES
Sumário

I – Pressupondo a compensação uma reciprocidade de créditos, não se verifica essa reciprocidade se não for reconhecida a validade e exigibilidade do contra-crédito, ou crédito activo ao compensante.
II - Existindo embora uma unidade genética, causal e económica entre um contrato de financiamento e um contrato de compra e venda, celebrados em conjunto, com vista à aquisição de um veículo automóvel, mantêm, ainda assim, esses contratos a sua individualidade própria, permitindo reconhecer os sinalagmas estabelecidos em cada um deles.
III - Deste modo, o preço pago por esse veículo não é correspectivo do mútuo realizado com vista à aquisição do mesmo, mas, antes, a contrapartida directa pela sua venda.
IV - Por sua vez, a entrega por uma instituição de crédito do valor mutuado a uma sociedade vendedora de tal veículo é feita não no cumprimento de uma obrigação própria da primeira perante a segunda, mas em substituição do adquirente desse mesmo veículo.
V - Neste contexto, o incumprimento atempado de uma obrigação de registo assumida pela indicada sociedade perante a instituição de crédito mutuante pode dar origem à responsabilização daquela pelos danos eventualmente sofridos com esse incumprimento pela segunda, mas nunca à possibilidade de esta lhe exigir directamente a devolução do valor mutuado.
VI - Porque assim é, este valor mutuado não é passível, enquanto tal, de compensação com as dívidas que a referida instituição de crédito tenha com a dita sociedade vendedora.

Texto Integral

Pº 1378/12.9TJPRT.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório
1- B…, S.A., com sede na Rua …, n.º …, ..º, no Porto, instaurou a presente ação declarativa contra o C…, S.A., com sede na …, n.º .., ..º, em Algés, alegando, em breve resumo, que no exercício da sua actividade comercial vendeu, no dia 11/05/2011, a D…, pelo preço de 25.500,00€, um veículo automóvel cuja aquisição foi financiada pelo R.
Nesse processo de financiamento, por si intermediado, assumiu perante o R. a responsabilidade pelo averbamento do citado veículo em nome do comprador, com reserva de propriedade a favor daquele.
E, para tal fim, desenvolveu as necessárias diligências procedimentais.
Sucede que, por razões a que é completamente alheia, o referido registo foi recusado por o dito veículo ter sido, entretanto, registado em nome de um terceiro com base em documentação falsificada, já depois de concretizada quer a venda, quer o financiamento indicados.
Ora, não obstante estes factos, o R., imputando-lhe a responsabilidade pela aludida recusa do registo, decidiu compensar o valor que já lhe houvera entregue para pagamento da viatura, com a dívida que tinha para consigo, referente às comissões geradas por outros contratos de financiamento por si intermediados.
A seu ver, no entanto, esta compensação carece de fundamento legal. Até porque nenhuma dívida reconhece para com o R.
Pretende, por isso, que seja declarada a nulidade de tal compensação e que o R. seja condenado a pagar-lhe a quantia de 25.250,00€, acrescida de juros de mora desde a data da citação até integral pagamento.

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2- Contestou o R. reconhecendo, quer a concretização dos contratos de compra e venda e financiamento mencionados pela A., quer a compensação que esta pretende ver anulada.
No entanto, e ao invés, tem essa compensação como plenamente válida, na medida em que aqueles contratos foram celebrados no pressuposto de que seriam integralmente cumpridos e que a reserva de propriedade do veículo seria inscrita a seu favor, o que não veio a suceder. Desde logo, porque o comprador, alegando ter sido vítima de fraude, resolveu ambos os contratos; e depois, porque o registo a que a A. se comprometeu, não foi feito.
De modo que, perante estas circunstâncias, solicitou à A. a restituição dos 25.250,00€ que lhe houvera entregue pela aquisição da viatura e, como a mesma se recusou a fazê-lo, viu-se forçada a operar a compensação de tal crédito com a dívida que tinha para com ela, em virtude da celebração de outros contratos.
Daí que peça a improcedência desta acção e a sua absolvição do pedido.
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3- No desenvolvimento do processo teve lugar, na data aprazada, a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a presente acção totalmente improcedente, por não provada, e absolveu o R. do pedido.
4- Inconformado com o assim decidido, reagiu o R., interpondo recurso para este tribunal, rematando a sua motivação concluindo o seguinte:
“I. A douta sentença recorrida aplicou ao caso dos autos o disposto no artigo 795º n.º1 do Código Civil, de acordo com o qual, quando uma das prestações se torne impossível, o credor fica desonerado da contraprestação e, se já ativer prestado, pode pedir a sua restituição, com base nas regras do enriquecimento sem causa.
II. Ora, a interpretação e aplicação deste preceito feita pelo Tribunal a quo ao caso dos autos é, salvo melhor opinião, errada e carece de fundamento.
III. Ficou provado que a Apelante assumiu perante o C… a responsabilidade pelo averbamento do veículo em nome do comprador, D…, com reserva a favor daquele banco.
IV. Mas ficou também provado que, por motivos a que a Apelante é absolutamente alheia, o averbamento do veículo foi recusado pela Conservatória de Registo Automóvel.
V. A falta de cumprimento da obrigação assumida pela Apelante procede directamente de facto de terceiro.
VI. Na verdade, face ao registo anteriormente efectuado sobre o mesmo veículo, a prestação a que a Apelante se obrigou tornou-se impossível.
VII. E, como tal, deve ser considerada extinta, nos termos do artigo 790º do Código Civil.
VIII. Andou mal, assim, o douto Tribunal a quo, quando decidiu pela aplicação analógica do artigo 795º, que desobriga o credor da contra-prestação.
IX. Lançando mão de uma aplicação analógica cujo fundamento não se vislumbra.
X. Tanto mais que não se verifica, no caso dos autos, qualquer enriquecimento sem causa por parte da Apelante.
XI. Porque a Apelante, deu cumprimento ao contrato de compra e venda celebrado, e entregou o veículo ao comprador.
XII. Portanto, ficou sem o veículo e não recebeu o valor do mesmo!
XIII. Não se vislumbra onde está, por isso, o enriquecimento sem causa a que se refere a douta sentença recorrida!
XIV. Só haveria enriquecimento sem causa se a Apelante tivesse recebido o preço do veículo e esse
XV. Como resulta também provado nos autos, o C…, quando verificou que a obrigação assumida pela Apelante, de averbamento do veículo com reserva de propriedade a seu favor, não foi cumprida
XVI. Exigiu a restituição da quantia de € 25.250,00, correspondente ao valor do financiamento concedido ao tal D… e que a Apelante recebeu como preço pela venda do veículo com a matrícula ..-LG-...
XVII. E, dado que a Apelante não restituiu tal quantia, o C… decidiu compensar este valor com pagamentos de comissões de financiamento devidos à Apelante.
XVIII. Todavia, a conduta do C… é contrária à lei dado que não estão preenchidos os requisitos necessários para que a compensação opere e seja eficaz.
XIX. Andou mais uma vez mal o Mmo. Juiz a quo quando considerou que estão verificados todos os requisitos da compensação.
XX. A Apelante cumpriu as suas obrigações inerentes ao negócio de compra e venda em causa: entregou o veículo, tratou do seu averbamento junto da Conservatória de Registo Automóvel e recebeu o preço devido.
XXI. Se não conseguiu concretizar o averbamento, nos termos em que se obrigou a fazer perante o C…, tal deve-se a factos que lhe são alheios e que estão absolutamente fora do seu controlo.
XXII. Assim, o alegado crédito do C… sobre a Apelante não é exigível,
XXIII. Não existe assim uma obrigação de pagar ou de prestar por parte da Apelante,
Face a tudo o exposto verifica-se que,
XXIV. A Apelante vendeu o veículo, entregou-o ao cliente final e recebeu o preço pelo mesmo. Tratou do respectivo averbamento junto da Conservatória de Registo Automóvel como sempre faz em todos os casos semelhantes.
XXV. Se o registo não foi possível, tal ficou a dever-se a factos totalmente alheios à Apelante.
XXVI. A reserva de propriedade que a Apelante se obrigou a registar constituía apenas uma garantia do bom cumprimento do contrato de crédito celebrado pelo C… com o D….
XXVII. Como ficou também provado a Apelante procedeu sempre de boa-fé, apresentou os documentos necessários ao averbamento da viatura, tal como sempre faz, e se o registo não foi efectuado foi por factos que lhe são completamente alheios.
XXVIII. Em face desta factualidade o apelado não podia obter, como obteve, o reconhecimento da legalidade da compensação por si efectuada.
XXIX. A sentença recorrida, ao absolver o C… do pedido, considerando válida a compensação realizada por este fez, salvo o devido respeito, uma errada aplicação do previsto nos artºs 790º, 795º, 473º e 847º do Código Civil devendo, como tal, ser revogada e substituída por outra decisão que condene o C… no pedido”.
Pede, por estas razões, a procedência deste recurso.
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5- O Apelado respondeu em apoio do julgado.
6- Cumpridos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir:
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II- Do mérito do recurso
1. Definição do objeto do recurso
1. Definição do objeto do recurso
Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objeto do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, é constituído por uma única questão, que consiste em saber se ao R. assistia o direito de compensação por si exercido.
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2. Fundamentos de facto
Na sentença recorrida julgou-se provada a seguinte factualidade, que não vem impugnada:
a) A Autora é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio e reparação de veículos automóveis, conforme Certidão Permanente com o código de acesso 4541-3286-8539, junta a fls. 19 a 25 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
b) No exercício da sua atividade bancária, o Banco Réu colabora com a sociedade Autora, nomeadamente analisando propostas de crédito apresentadas por clientes daquela sociedade, com vista ao financiamento de aquisição a esta de viaturas automóveis.
c) Quando se mostra oportuno, os colaboradores da Autora propõem aos interessados na aquisição de viaturas a apresentação de proposta de crédito, com vista ao financiamento daquela aquisição.
d) Para o efeito, os clientes da Autora entregam a esta sociedade diversa documentação, nomeadamente cópia de documento de identificação e cartão de contribuinte, recibos de vencimento e/ou declaração de IRS, comprovativo de morada e de NIB, etc.
e) Os colaboradores da Autora auxiliam os seus clientes no preenchimento da proposta de crédito, e é esta sociedade quem faz chegar tal proposta aos serviços do Réu.
f) Analisada a proposta, e no caso de o crédito ser aprovado, os serviços do Banco Réu remetem à Autora o contrato de crédito devidamente preenchido, para ser assinado pelo proponente/mutuário nas instalações desta sociedade, que de seguida remete o original do contrato de crédito devidamente assinado pelo mutuário ao Banco Réu.
g) Recebido o original do contrato, e verificada a conformidade dos dados, o Banco Réu procede à transferência para a conta bancária indicada pela Autora do capital mutuado e esta sociedade, recebido aquele montante, entrega a viatura ao mutuário/adquirente.
h) No decurso da sua atividade, a Autora vendeu, a 11 de maio de 2011, a D…, o veículo Mazda, …, com a matrícula ..-LG-.., pelo preço de € 25.500,00, conforme documento junto a fls. 27 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
i) A Autora intermediou o processo de financiamento, como faz habitualmente e quando tal lhe é solicitado pelos clientes compradores.
j) No início do mês de maio de 2011, o Banco Réu recebeu da sociedade Autora uma proposta de crédito, em nome de D…, portador do NIF ………, residente na …, .., R/C, ….-… …, a qual se destinaria a financiar a aquisição da viatura de marca Mazda, modelo ….
k) Recebida a proposta e analisada a diversa documentação do proponente o Banco Réu entendeu conceder o crédito solicitado, com a condição de que fosse registada a aquisição da viatura em nome do D… e a reserva de propriedade a favor do Banco Réu, o que comunicou à Autora, conforme documento junto a fls. 31 dos autos.
l) Para tanto, enviou à sociedade Autora o contrato de crédito devidamente preenchido, incluindo a identificação do mutuário, o referido D…, identificação da entidade vendedora do bem financiado, condições do contrato (mormente capital mutuado, valor e número de prestações, taxa de juro aplicável, etc.) e identificação da viatura financiada (Mazda … com a matrícula ..-LG-..).
m) Aquele contrato foi assinado por D… nas instalações da Autora, que de seguida remeteu o original ao Banco Réu.
n) A Autora assumiu perante o Réu a responsabilidade total pelo averbamento do veículo em nome do comprador, D…, com reserva a favor daquele banco, conforme documento junto a fls. 29 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
o) A Autora declarou ainda que, na data de 11/05/2011, vendeu ao referido D… o veículo automóvel novo com a matrícula ..-LG-.. com as características melhor descritas na declaração e fatura juntas a fls. 117 e 118.
p) Verificada a conformidade das informações e declarações prestadas por D… e pela Autora, e a assinatura do contrato de crédito, o Banco Réu transferiu (conforme solicitado pelo mutuário – vide “Declarações dos consumidores” no documento junto a fls. 113 a 116), para a conta bancária indicada pela Autora, o capital correspondente ao preço da viatura automóvel supra referida.
q) Para cumprir a obrigação assumida perante o Réu, de averbamento do veículo em nome do comprador, com reserva de propriedade a favor do Banco Réu, a Autora teve apresentar dois pedidos de registo e averbamento da viatura acima identificada, a deferir sucessivamente.
r) Primeiramente, a propriedade haveria de ser registada em nome do Réu e, ato contínuo, o veículo seria averbado em nome do comprador D…, com reserva de propriedade a favor do Réu.
s) Para efeitos de apresentação do registo junto da Conservatória Automóvel, o Réu enviou à Autora dois requerimentos de registo automóvel:
a) Um em que o Réu adquire o veículo à E… (entidade em nome da qual o veículo estava registado, por se tratar de um veículo novo, ainda averbado em nome do importador para Portugal desta marca de Veículos);
b) Outro, através do qual o Réu, já proprietário, vende o veículo a D…, com reserva de propriedade.
t) Estes documentos foram recebidos pelos serviços da Autora no dia 14.06.2011, conforme documentos juntos a fls. 33 e 34 dos autos e, no dia imediatamente seguinte, foram remetidos à sociedade “F…, Lda.”, para efeitos de recolha de assinaturas dos representantes da E… e apresentação dos pedidos de registo, o que veio a ocorrer a 09 de agosto de 2011.
u) Estes pedidos foram recusados porquanto havia sido apresentado um registo de propriedade anterior, segundo o qual a viatura teria sido adquirida e registada em nome de G…, que, afirmando haver adquirido à E…, em 28.05.2011, o referido veiculo automóvel, solicitou o registo desse contrato e, consequentemente, o averbamento da viatura em seu nome, conforme documentos juntos a fls. 37 a 43 e 53 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
v) A Autora desconhecia que já se encontrava efetuado um registo anterior.
w) O Sr. D… não pagou sequer a primeira prestação do empréstimo.
x) No dia 07/06/2011, o Sr. D… enviou ao Réu a carta junta a fls. 294, na qual informou o Banco Réu que, no mesmo dia em que lhe foi entregue a viatura nas instalações da Autora, alguém que se disse representante desta se deslocou a sua casa, tendo recolhido a viatura por alegadamente existirem alguns problemas com a documentação.
y) O Sr. D… nunca mais recuperou a viatura.
z) O Sr. D… foi informado pela Autora que a viatura não foi recolhida por qualquer representante seu e apurou que a Autora nunca chegou a registar a propriedade da viatura em seu nome.
aa) O Réu, por carta de 01 de março de 2012, dirigida à sede da Autora, junta a fls. 72 dos autos, afirma o seguinte: “ foi no pressuposto de que V. Exas. iram cumprir aquela vossa obrigação que o C… aprovou e concedeu um financiamento ao Sr. D… (...)”
“Viemos a apurar que a referida viatura não foi, conforme era vossa obrigação, registada em nome do cliente nem registada a reserva de propriedade a favor deste Banco”
“Dado que o C… está impedido de exercer qualquer direito sobre o Sr. D… (…) vimos por este meio solicitar o pagamento da quantia do empréstimo concedido (e entregue a V. Exas.)”
bb) A Autora nada pagou, na sequência da referida carta.
cc) O Réu é devedor à Autora da quantia de € 25.500,00, referente a comissões de contratos de financiamento celebrados.
dd) O Réu fez sua aquela quantia de € 25.250,00, apesar da oposição da Autora, conforme documentos juntos a fls. 74, 76 e 78 a 81 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
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3. Fundamentação Jurídica
O núcleo deste litigio continua a girar em torno da questão fundamental que lhe deu origem e que consiste em saber se o R. é, ou não, titular do direito à compensação por si exercitado e, na negativa, se o mesmo deve ser condenado a restituir à A. o valor pecuniário de que se apropriou.
Mais do que a compensação, no entanto, o ponto verdadeiramente controvertido é um dos pressupostos desse direito; concretamente, o crédito de que o R. se arroga titular sobre o A. em virtude do incumprimento contratual que imputa a este último.
E é na decisão desse ponto que se joga a sorte da presente acção.
Não há, na verdade, compensação legalmente sustentada se na sua base não se encontrar uma reciprocidade de créditos e não há essa reciprocidade se não for reconhecida a validade e exigibilidade[1] do contra-crédito, ou crédito activo ao compensante [artigo 847.º n.º 1 al. a) do Código Civil].
De modo que toda a nossa atenção se deve centrar na questão de saber se assiste ao R. o direito de crédito por si invocado contra o A. e se o mesmo reúne aqueles requisitos.
Vejamos então.
Para reconhecer esse crédito, a sentença recorrida seguiu, em síntese, o seguinte percurso:
Considerou que, no caso em apreço, existe uma união de contratos; que a prestação a que a A. se obrigou é de resultado e tornou-se impossível por não ser viável o averbamento registral que a mesma se comprometeu a realizar; e que, portanto, tendo o R. já realizado a sua prestação, assiste-lhe o direito de a reaver, por força do regime estabelecido no artigo 795.º n.º 1 do Código Civil, que aplicou por analogia, em articulação com as regras do enriquecimento sem causa. Daqui nasce, segundo a referida sentença, o crédito que o R. legitimamente compensou com a dívida que tinha para com a A.
Esta tese, no entanto, não convenceu esta última que neste recurso sustenta, ao invés, que a sua já citada obrigação de registo se deve considerar extinta por impossibilidade objectiva superveniente e que, nessa medida, nenhum crédito daí resulta para o R. que possa ser compensado com a dívida que este tem para consigo em virtude dos outros convénios entre ambos celebrados.
Na nossa perspectiva, porém, não é necessário percorrer nenhum destes caminhos para concluir que o R. não tem, efectivamente, o direito de crédito de que se arroga titular sobre a A.; pelo menos com os fundamentos que invoca.
Recordemos, antes de mais, os passos essenciais que deram origem a este conflito:
No exercício da sua actividade comercial, a A. vendeu, no dia 11/05/2011, a D…, o veículo Mazda, …, com a matrícula ..-LG-.., pelo preço de 25.500,00€.
Antes de concretizada essa venda, porém, a A. intermediou um processo de financiamento junto do R., com vista à aquisição daquele veículo.
Para o efeito, remeteu-lhe uma proposta de crédito, em nome do referido D…, proposta essa que, depois de analisada, mereceu a concordância do R., com a condição de que fosse registada a aquisição da viatura em nome do indicado cliente e inscrita a reserva de propriedade a seu favor.
Para tanto, o R. enviou à A o contrato de crédito devidamente preenchido, o qual, após ter sido assinado pelo citado cliente, lhe foi devolvido; não sem antes a A. ter assumido perante o R. a responsabilidade pelo averbamento do veículo em nome do comprador, mas com reserva de propriedade a favor do R.
Verificada a conformidade das informações e declarações prestadas, quer pelo dito por D…, quer pela Autora, bem como a assinatura do contrato de crédito, o R. transferiu para a conta bancária indicada pela A., o capital correspondente ao preço da viatura automóvel supra referida.
Sucede que, após a A. ter desenvolvido as diligências necessárias para proceder aos registos a que se comprometera e de ter apresentado os correspondentes pedidos junto da Conservatória do Registo Automóvel, esses pedidos foram recusados porquanto havia sido apresentado um registo de propriedade anterior, segundo o qual a viatura teria sido adquirida e registada em nome de um outro individuo, que, afirmando haver adquirido à E…, em 28/05/2011, o referido veiculo automóvel, solicitou o registo desse contrato e, consequentemente, o averbamento da viatura em seu nome, registo esse que a A. desconhecia.
Entretanto, no dia 07/06/2011, o indicado, D… enviou ao R. uma carta na qual o informou de que, no mesmo dia em que lhe foi entregue a viatura nas instalações da A., alguém que se disse representante desta deslocou-se a sua casa, tendo recolhido a viatura por alegadamente existirem alguns problemas com a documentação referente à mesma. E, nessa sequência, o mesmo D… nunca mais recuperou a viatura, nem pagou qualquer prestação; isto apesar de ter sido informado pela A. de que a viatura não tinha sido recolhida por qualquer um dos seus representantes.
Perante estes factos, o R. decidiu exigir da A. o pagamento da quantia mutuada, mas como aquela se recusou a fazer esse pagamento, o R operou a compensação dessa quantia com a dívida que tinha para com a A., gerada por outros convénios havidos entre ambos.
E é esta compensação que é questionada nesta acção.
Mais do que a compensação, no entanto, como já dissemos, o ponto verdadeiramente controvertido é o crédito de que o R. se arroga titular sobre a A. em virtude do incumprimento contratual que lhe imputa. E, como já adiantámos também, não cremos que lhe possa ser reconhecido esse crédito, com base nos fundamentos que invoca.
Vejamos.
O que se torna necessário saber, no fundo, é de onde deriva esse pretenso crédito.
Do direito à restituição do preço, como se considerou na sentença recorrida, parece-nos, de todo, inviável. Não, necessariamente, por se ter recorrido à analogia com o regime previsto no artigo 795.º n.º 1 do Código Civil para os contratos bilaterais, sendo este, como aí se afirmou, um caso de uma relação contratual trilateral. Nem sequer por se ter considerado também que estamos perante uma união de contratos. Pelo contrário, cremos igualmente que estamos perante esta figura jurídica, uma vez que ocorre a celebração conjunta de diferentes vínculos contratuais ligados funcionalmente entre si[2], mantendo embora cada um deles a sua individualidade própria[3].
Mas é, justamente, porque cada contrato mantém essa individualidade que é possível neles identificar os diversos sinalagmas que lhe dizem respeito.
Ora o preço pago pelo veículo, que o R. pretende ver compensado, não é correspectivo do mútuo pelo mesmo realizado. É, sim, a contrapartida pela venda desse veículo; “no sentido restrito [o preço] é a contrapartida da transmissão da propriedade da coisa vendida”[4], constituindo mesmo a principal obrigação do comprador (artigo 879.º al. c) do Código Civil).
De modo que a entrega desse valor à A., por parte do R., foi feita não no cumprimento de uma obrigação própria deste perante aquela, mas em substituição do adquirente do dito veículo. Por outras palavras, o R., enquanto financiador do negócio, não interveio no contrato de alienação, mas, antes, na execução do contrato de mútuo que celebrou com o referido adquirente, sendo, por conseguinte, credor perante este, e não perante a A., da quantia mutuada (artigo 1142º. do Código Civil).
Esta configuração é importante porque nos ajuda a perceber a razão pela qual o alegado incumprimento atempado da obrigação de registo assumida pela A. não confere ao R. qualquer direito à restituição do preço de venda do veículo cuja aquisição financiou que possa ser exercitável perante aquela.
Não há, na verdade, como resulta do já exposto, qualquer correspectividade entre essa obrigação e a que deu origem ao pagamento do referido preço. Até porque resultam não só de convénios distintos, como foram assumidas por sujeitos diversos. O que, a nosso ver, é bastante para afastar qualquer sinalagma entre elas.
Ora, não havendo, como não há, este sinalagma, o incumprimento atempado da obrigação de registo por parte da A. pode dar origem à sua responsabilização no plano contratual pelos danos eventualmente sofridos com essa conduta, mas nunca à possibilidade de lhe ser directamente exigida pelo R. a devolução do valor que o mesmo mutuou para a aquisição do veículo em causa. Esta conclusão parece-nos linear. E tem directas implicações na compensação exercitada pelo R.
É que, não tendo este último o direito de exigir à A. a restituição daquele valor, mas tão só o direito a ver reparado o prejuízo que lhe poderá ter causado a falta de cumprimento atempado da obrigação de registo pela mesma assumida, era indispensável para o reconhecimento deste último direito no âmbito desta acção, que estivessem nela reunidos e demonstrados todos os correspondentes pressupostos para essa reparação, o que não é manifestamente o caso. Falta, desde logo, saber qual o montante dos danos pelos quais o R. tem o direito de ser indemnizado; e depois, em que medida é que aquela falta de cumprimento da A. lhe é directamente imputável, pois que, por regra, só o inadimplemento ou a impossibilidade de cumprimento culposos do devedor o tornam responsável pelo prejuízo que causa ao credor (artigos 798º nº1 e 801º nº1, ambos do Código Civil).
Poder-se-ía, no entanto, ser tentado a defender que o dano do R. corresponde ao valor que o mesmo deixou de receber em virtude mutuo que efectuou; e como, no caso concreto, não chegou a receber qualquer prestação do mutuário, o montante do seu prejuízo seria equivalente àquele valor. Mas não cremos que assim seja. Para chegar a semelhante equivalência haveria de estar demonstrada, desde logo e além do mais, a inviabilidade de recuperação do capital mutuado junto do adquirente do veículo, o que se ignora. Por isso, não pode afirmar-se que a dita equivalência exista desde já, além de que a defesa do R. também não vem sequer construída na base deste pressuposto.
Por conseguinte, o direito de compensação exercitado pelo R. não lhe pode ser reconhecido, pelo que se impõe a revogação da sentença recorrida e a condenação daquele no pagamento à A. da quantia peticionada, que se apurou estar em dívida para com esta.
Em suma, com a procedência do presente recurso procede também por inteiro a presente acção.
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III- DECISÃO
Pelas razões expostas, acorda-se em conceder provimento ao presente recurso e, revogando a sentença recorrida, condena-se o R., C…, S.A. a pagar à A., B…, S.A. a quantia de 25.250,00€ (vinte cinco mil duzentos e cinquenta euros), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos desde a data da citação até integral pagamento, à taxa legal.
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Porque decaíu na totalidade, as custas serão pagas pelo R.
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Porto, 19/11/2013
João Diogo Rodrigues
Rui Moreira
Henrique Araújo.
___________
[1] Este requisito tem sido objecto de controvérsia jurisprudencial, havendo uma corrente que defende que só podem ser compensados os créditos em relação aos quais o declarante esteja em condições de obter a realização coactiva da prestação, ou seja, de os executar, já que a execução é o meio de obter coercivamente a satisfação do direito do credor (cfr. neste sentido, Ac RP, de 19/01/2006, Pº 0536641, consultável em www.dgsi.pt); e outra, para a qual a exigibilidade judicial do crédito e o reconhecimento judicial do mesmo para efeitos do funcionamento do mecanismo da compensação, são realidades distintas, sendo a primeira requisito da declaração de compensação e a segunda condição da sua eficácia (cfr., neste sentido, Acs. do STJ, de 14/02/2008, Pº 07B4401 e de 06/07/2006, Pº 06S1067, Ac. RP de 09/05/2007, Pº 0721357 (relatado pelo ora segundo Adjunto), Ac.RLx de 13/11/2008, Pº 2511/2008-6, Ac. RG, de 08/09/2011, Pº 723/08, todos consultáveis em www.dgsi.pt).
[2] Uma ligação genética, causal e económica, como se referiu no Acórdão desta Relação de 15/10/2007, Pº 0723560, consultável em www.dgsi.pt.
[3] Cfr. sobre esta noção, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3ª ed., Almedina, pág. 281 e 282.
[4] Vasco da Gama Lobo Xavier, RDES, 21.º, pág. 241.