PROVA
SMS [SHORT MESSAGE SERVICE]
USO PELO DESTINATÁRIO EM SEDE PROBATÓRIA
Sumário

I - Uma mensagem telefónica, vulgo SMS, uma vez aberta, recebida e lida terá a mesma protecção da carta em papel que tenha sido recebida pelo correio e que foi aberta e guardada em arquivo pessoal.
II – Em tese geral, o destinatário de um SMS pode fazer uso do mesmo em sede probatória uma vez descartada a confidencialidade da mensagem enviada ou algum dever especial de sigilo que possa impender, quer pela natureza da mensagem quer pela qualidade dos intervenientes nessa comunicação electrónica.

Texto Integral

Processo 37/12.7TBALJ-A.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório

Recorrente(s): B…
Recorrido(s): C… e mulher, D….
Tribunal Judicial de Alijó.

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Pelo tribunal “a quo”, foi proferido o douto despacho que ora se transcreve no essencial e que está na origem do presente recurso:
“Os réus pretendem a junção aos autos da transcrição de uma mensagem de telemóvel recebida no nº ………, pertencente ao próprio réu.
O autor opõe-se à junção deste documento, alegando que desconhece como foi obtida a alegada mensagem e sustentando que foi transcrita sem autorização do alegado autor, constituindo, por isso, intromissão abusiva na vida privada e nas comunicações, sendo atentatória da reserva da vida privada.
Cumpre apreciar.
O direito ao oferecimento de provas faz parte do conteúdo do direito de acesso aos tribunais, também este direito fundamental constitucionalmente tutelado.
Este direito, como salientam Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada, vol. I, p. 195, não implica, no entanto, necessariamente a admissibilidade de todos os meios de prova permitidos em direito em qualquer tipo de processo e independentemente do objecto do litigio, assim como não exclui em absoluto a introdução de limitações na produção de certos meios de prova, posto que não arbitrárias ou desproporcionadas.
Ora, o artigo 26º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa estabelece que a todos é reconhecido o direito à reserva da intimidade da vida privada, sendo tal preceito directamente aplicável e exequível por si mesmo, sem necessitar da intervenção da lei ordinária e vincula entidades públicas e privadas.
Por outro lado, dispõe o nº 8 do artigo 32º da CRP que é nula, logo necessariamente ilícita e proibida, a prova obtida mediante abusiva intromissão na vida privada.
Tem sido entendimento jurisprudencial que esta norma, apesar de formalmente prevista para o processo penal, deve ser tida como aplicável em todo e qualquer processo, e reporta-se tanto à prova obtida tanto pelas entidades públicas como pelas entidades particulares, salientando-se que da al. b) do nº 3 do art. 519º do CPC resulta claramente, embora de forma indirecta, a inadmissibilidade de prova que tal.
Temos assim, que será ilícita e, como tal, inadmissível a prova obtida mediante intromissão abusiva na vida privada.
No caso concreto, saliente-se que neste momento processual o Tribunal pondera apenas da admissibilidade ou não da junção de um tal documento aos autos, já que a ponderação sobre se tal documento pode e deve ser valorado ocorrerá num momento posterior.
Ora, no caso concreto, com o devido respeito, atendendo ao tipo de meio de prova em causa, entende o Tribunal que tal meio de prova não põe em causa a reserva da intimidade da vida privada, na medida em que tal meio de prova não foi obtida por nenhum meio ilícito, pelo menos nada é alegado nesse sentido.
Com efeito, os réus limitam-se a transcrever uma mensagem de telemóvel recebido no seu aparelho telefónico e dirigida ao réu marido.
Assim, admite-se a junção dos documentos apresentados pelos réus a fls. 87.”
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Deste despacho, recorreu o autor B… de cujas alegações se extraíram as seguintes conclusões:
1. Na nossa lei processual civil, ao contrário do que acontece na lei processual penal, não encontramos qualquer disposição que nos diga directa e expressamente o que são e quais são provas ilícitas ou proibidas.
2. O artigo 126° do CPP, estabelece expressamente no seu n° 3 que “são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular”.
3. Por sua vez, o n.º 8 do artigo 32° da CRP, sob a inscrição de “garantias de processo criminal”, determina que “são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa à integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.
4. No sentido da aplicação analógica ao processo civil do citado artigo 32°, n° 8 da Constituição veja-se (v. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, p. 348, Isabel Alexandre, Provas Ilícitas em Processo Civil, p. 239).
5. O direito à reserva da vida privada engloba no entendimento do Tribunal Constitucional “ a vida pessoal e familiar (o lar ou o domicílio), a relação com outras esferas da privacidade (v.g., a amizade), e bem assim os meios de expressão e comunicação privados (a correspondência, o telefone, as conversas orais, etc.”). cfr. acórdão n° 128/92, in D. Rep. II Série, de 24 de Julho.
6. O que está em controvérsia não é directamente o mérito da prova e a sua avaliação, mas sim a questão preliminar da admissibilidade da prova, e por isso, deve ter-se como ilícita.
7. Não se acha demonstrado o consentimento do emissor para a transcrição e uso da dita mensagem, ou que esta tenha sido determinada, na ponderação de outros valores ou interesses superiores.
8. Trata-se, in casu, de uma prova nula na sua obtenção (“Documento de Prova”, fls 87) e por isso inadmissível, o douto despacho que admitiu a sua junção aos autos deverá, fatalmente, ser revogado e substituído por outro que a não admita.
9. Não devendo as demais provas requeridas, ser admitidas, porquanto com ela estão directamente conexionadas.
10. Pelo que, o douto despacho recorrido, violou para além de outros, o n.º 3 do art.º 519.º, do Código de Processo Civil, o n.º 1 do art. 26º e o n.º 8 do artigo 32º, ambos da Constituição da República Portuguesa.
Termina peticionando a procedência do presente recurso com a consequente revogação do despacho recorrido a substituir por outro que julgue nulo o meio de prova em que se suporta a transcrição da mensagem e determine a não admissão da sua junção aos autos e, ainda, dos demais meios de prova requeridos que se suportam na aludida transcrição.
Dos autos, não constam contra-alegações.

II - Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos dos artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil (CPC), este na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24/8, aqui aplicável uma vez que a decisão proferida e alvo de dissídio é anterior a 1 de Setembro de 2013 (vide arts.5º e 7º da Lei 41/2013, de 26 de Junho), não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam.
No caso concreto, cumpre apreciar, no essencial, uma questão: a de saber da admissibilidade, ou não, de um dado meio de prova junto por uma das partes litigantes.

III – Fundamentação de Direito
Discute-se nos autos se deve ser considerada admissível a junção aos autos da transcrição de uma mensagem telefónica (SMS – short message service) da autoria do recorrente. Adende-se, com óbvia relevância, que o SMS foi enviado a um dos apelados, no caso o réu marido.
Naturalmente que, no caso concreto, não está em causa uma comunicação em transmissão mas sim uma comunicação já recebida, que terá porventura a mesma essência da correspondência, em nada se distinguindo de uma “carta remetida por correio físico”. E tendo sido já recebidas, “se já foram abertas e porventura lidas e mantidas no computador (ou no telemóvel, acrescenta-se) a que se destinavam, não deverão ter mais protecção que as cartas em papel em que são recebidas, abertas ou porventura guardadas numa gaveta, numa pasta ou num arquivo” (neste sentido, ainda que no âmbito do processo penal, citamos o Ac. desta Relação de 22.05.2013, Relator: Melo Lima, Processo nº 74/07.3PASTS.P1., in dgsi.pt)
Porém, o recorrente, se bem se interpreta, alega que a tutela constitucional prevista nos arts. 32º e, em especial, no 34º da Constituição da República Portuguesa deverá ser entendida não apenas na perspectiva de um dos intervenientes na conversação (o destinatário/receptor) mas sim estendida a todos os respectivos interlocutores para aceder ao conteúdo das mensagens por parte do emitente/interlocutor activo, quer dizer o Recorrente.
É o que ocorre, efectivamente, em sede estritamente regulada pela lei civil, com o destinatário de cartas missivas confidenciais (vide Código Civil, art. 75º) onde se estatui, aí sim, que “o destinatário da carta-missiva de natureza confidencial deve guardar reserva sobre o seu conteúdo, não lhe sendo lícito aproveitar os elementos de informação que ela tenha levado ao seu conhecimento.”
Esse dever de guardar sigilo impende, ainda sobre aqueles que, por motivos funcionais – o que não é, manifestamente, o caso dos autos -, têm acesso à correspondência, por exemplo os profissionais dos Correios, “decorrendo daí um dever de segredo profissional como garantia do direito ao sigilo da correspondência e que não poderá ser violado.” (José Joaquim Gomes Canotilho – Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora 2007, págs.544-545).
Por outro lado, o SMS em apreço, tal como a correspondência que circula através do circuito postal tradicional, não deve ser confundido com uma mensagem ainda não aberta pelo destinatário a qual tem a garantia do sigilo; a comunicação em causa tinha sido já recebida, aberta, lida e guardada pelo destinatário não podendo ter protecção superior, como vimos, à de uma carta postal que se configura como um mero documento escrito.
Como se ajuizou igualmente no Ac. R. Lisboa de 15/07/08, Proc. nº 3453/2008, www.dgsi.pt, “na sua essência, a mensagem mantida em suporte digital depois de recebida e lida terá a mesma protecção da carta em papel que tenha sido recebida pelo correio e que foi aberta e guardada em arquivo pessoal”, salientando ainda que “tratando-se de meros documentos escritos, estas mensagens não gozam de aplicação do regime de protecção da reserva da correspondência e das comunicações” - no mesmo sentido tinha já sido decidido no Ac. R. de Coimbra de 29/03/06, Proc. nº 607/06, www.dgsi.pt. 896/07.5JAPRT.P1 e foi reiterado, por exemplo, nesta Relação em 27.01.2010, relator Artur Vargues, processo com o nº convencional JTRP00043463.
Ora, no caso em apreço, o recorrido usou documentação sua, que lhe foi destinada sem declaração, expressa ou tácita, de “confidencialidade” sendo que, em bom rigor, estamos perante um simples “sms”; nem sequer se poderá definir o mesmo como uma carta-missiva, ainda que não confidencial. Poderia inclusivamente o réu marido ter optado pela apresentação da mesma às autoridades judiciais para outros fins, designadamente de responsabilização indemnizatória, caso o desejasse e fizesse uma possível interpretação do conteúdo da mesma que legitimasse essa demanda.
Ainda neste âmbito não será igualmente caso de aplicação do art.78º do Código Civil num contexto em que não foi alegada a condicionante em causa e estamos perante um envio de um “sms” a alguém que dele fica depositário.
Em síntese conclusiva, entendemos que, não estando perante missiva confidencial, sendo a junção feita aos autos pelo próprio destinatário do “sms” que dele se apossou em modo idêntico ao que ocorreria com qualquer documento escrito que entrou legitimamente na sua posse, por meio lícito, considerando ainda não ser caso de uma possível violação de um qualquer dever de sigilo profissional, a admissão liminar solicitada não terá motivo para ser indeferida.
Assim, deve ter-se como admissível a sua junção nos termos doutamente decididos, sem prejuízo da valoração a conceder pelo Tribunal no modo e momento processualmente adequados.
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Resta sumariar a fundamentação aduzida (art.713º, nº7 do CPC revogado, hoje replicado nos mesmos exactos termos no art. 663º, nº7):
I - Uma mensagem telefónica, vulgo SMS, uma vez aberta, recebida e lida terá a mesma protecção da carta em papel que tenha sido recebida pelo correio e que foi aberta e guardada em arquivo pessoal.
II – Em tese geral, o destinatário de um SMS pode fazer uso do mesmo em sede probatória uma vez descartada a confidencialidade da mensagem enviada ou algum dever especial de sigilo que possa impender, quer pela natureza da mensagem quer pela qualidade dos intervenientes nessa comunicação electrónica.

IV – Decisão
Pelo exposto, decide-se:
Julgar improcedente o recurso apresentado, confirmando integralmente a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.

Porto, 3 de Dezembro de 2013
José Igreja Matos
João Diogo Rodrigues
Rui Moreira