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PROVA PERICIAL
ESCRITURAÇÃO COMERCIAL
PRESSUPOSTOS DO EXAME
Sumário
I – O segredo da escrituração comercial manifesta-se, nomeadamente, nas restrições colocadas ao exame da escrituração de pessoas, singulares ou colectivas, que não são partes no processo judicial respectivo. II – Tais exames, em conformidade com o disposto no art. 43º do Código Comercial, apenas serão admissíveis quando essas pessoas tenham interesse ou responsabilidade na questão a dirimir devendo, em qualquer caso e sempre que possível, optar-se por meios probatórios menos intrusivos para obtenção dos elementos factuais concretamente pretendidos. III – O objecto de uma perícia judicial deve corporizar-se em factos controvertidos, que se revelem relevantes para o exame e decisão da causa e desde que, para a percepção ou avaliação dos mesmos, sejam necessários conhecimentos especiais que o julgador não possua. IV – Preenchidos estes requisitos nada obsta a que uma perícia se possa referir a factos de natureza ou índole meramente instrumental no contexto de uma dada acção judicial.
Texto Integral
Processo 2002/11.2TBVCD.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I – Relatório
Recorrente(s): B…;
Recorrido(s): C…, Limitada (Sociedade Unipersonal)
Tribunal Judicial de Vila do Conde – 1º Juízo Cível
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Nos presentes autos na sequência de um requerimento apresentado a 20.09.2012 (ref. 11099941) requereu o ora Recorrente (autor no processo) a realização de perícias à escrita comercial e demais documentos do próprio, de seu falecido pai, das Rés e da sociedade “D…, Lda.”, para prova da matéria ali indicada.
Por despacho de 04.10.2012 (ref. 5060678) foi indeferida “a realização da perícia solicitada, por extravasar, largamente, o objecto do processo, ou por serem facilmente apreendidas por outro meio de prova”.
Foi apresentado recurso daquele despacho que indeferiu as perícias requeridas, o qual veio a merecer provimento por douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto que decidiu julgar procedente a apelação apresentada, “revogando-se a decisão recorrida, devendo ser substituída por outra a admitir a perícia requerida pelo Autor, dando-se seguidamente, cumprimento ao nº 1 do art. 578º do CPC”.
Em cumprimento daquele douto Acórdão foi, por despacho de 02.05.2013 (ref. 5477812), admitida a realização de perícia e ordenado o cumprimento do disposto no art. 578º do CPC.
Ouvidas as partes foi proferido o despacho recorrido que decidiu que:
“Em complemento do despacho determinativo da realização de perícia (requerida a fls. 564), esclarece-se que aquela apenas poderá incidir sobre as partes processuais, e não sobre terceiros. Relativamente ao objecto da perícia, a mesma incidirá sobre os pontos da base instrutória indicados a fls. 564, ponto A), quanto ao A., e a fls. 571, ponto B), quanto às RR. Indefere-se a realização de "questões instrumentais" porquanto extravasam o objecto do processo”.
Inconformado com este novo despacho, dele igualmente recorreu o autor, terminando por formular as seguintes conclusões nas alegações respectivas:
1. Quando a concreta factologia em causa nos autos o permitir, é possível realizar perícia a terceiros, quanto à sua contabilidade e escrita comercial, numa acção judicial em que não sejam parte, desde que tenham interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida.
2. Tanto o pai falecido do Autor, como a sociedade D…, Lda., em face da matéria assente e dos factos controvertidos levados à Base Instrutória, têm interesse e responsabilidade na questão em causa nos autos.
3. Errou o despacho recorrido ao, sem qualquer fundamento fáctico ou jurídico, impedir a realização de perícia à escrita e contabilidade comercial, bem como demais documentos, referentes ao pai do Autor e sociedade D…, Lda.,
4. O objecto da instrução probatória de uma acção judicial de processo civil não se restringe aos factos principais da causa levados à Base Instrutória, abrangendo também os factos instrumentais que se situem na cadeia dos factos probatórios que permitem demonstrar os factos principais, ainda por cima quando a parte está onerado com o dever de os demonstrar, como é o caso, pois a dúvida probatória resolve-se contra si.
5. A perícia a efectuar em sede de processo civil pode responder não apenas, de modo directo, sobre os factos seleccionados na Base Instrutória, mas incidir também sobre factos instrumentais que permitam, com base nos dados da experiência comum ou dos conhecimentos especializados dos peritos, tirar ilações acerca deles a fim de possibilitar a resposta do tribunal aos factos principais.
6. Errou o despacho recorrido a, de forma generalista, infundamentada e global, considerar que todos os quesitos sugeridos para a realização da perícia que não constavam da Base Instrutória “extravasam o objecto do processo”.
7. As perguntas instrumentais formuladas pelo Autor no seu requerimento de provas como quesitos sobre os quais propunha a perícia cingem-se ao objecto do processo, contendo-se no âmbito estrito e conexo com os factos principais levados à Base Instrutória, correspondendo a questões instrumentais no encadeamento lógico-jurídico dos factos principais levados à Base Instrutória.
8. A perícia incidente sobre a contabilidade, escrita comercial e demais documentação do Autor e seu pai devia também responder às questões formuladas sob os nºs 1, 3, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 17, 18, 19, 20, 21, 22 a 35, 38 a 40 do capítulo do requerimento de provas do Autor referente àquela perícia.
9. Pelas mesmas razões a perícia incidente sobre as Rés devia também abranger as questões formuladas sob os nºs 2 a 6, 7 a 9, 11 a 16, 18 a 25, 27, 28 a 30, do capítulo do requerimento de provas do Autor referente àquela perícia.
10. A perícia incidente sobre a sociedade D… devia também responder às questões formuladas sob os nºs 1 a 4 do capítulo do requerimento de provas do Autor referente àquela perícia.
11. As perícias indeferidas são o meio processual apto, idóneo e seguro à demonstração dos factos carecidos de prova e cujo ónus impende sobre o Autor, sendo certo que não é expectável, face ao teor dos mesmos, que outros meios de prova o permitam, designadamente que existam testemunhas, na disponibilidade ou conhecimento do Autor que os possam afirmar com verdade e credibilidade.
12. Sendo de notar que tal circunstância, mesmo que se verificasse, não é impeditiva, em si, da realização da prova pericial, pois é o Autor quem, face aos factos alegados, deve escolher e requerer o meio probatório que considera mais eficaz, com vista à sua demonstração judicial.
13. Violou, assim a decisão recorrida o art. 20º da Constituição da República Portuguesa, os arts. 266º, 513º, 519º, 534º, 578º do Código Processo Civil e 43º do Código Comercial.
14. Devendo a mesma ser revogada e substituída por outra que admita a perícia requerida ao pai do Autor e à sociedade D… e devendo a mesma ser revogada e enviados os autos à 1ª instância para que se proceda à prolação de decisão fundamentada quanto à admissibilidade e relevância das questões instrumentais deduzidas pelo Recorrente, substituindo-se o despacho recorrido por outro que admita a formulação questões instrumentais formuladas pelo Autor.
Foram aduzidas contra-alegações nas quais se requer a confirmação do decidido referindo-se que “a decisão ora recorrida revela-se absolutamente correcta e inatacável, não só por constituir uma área de subjectividade do julgador, mas também por cumprir irrepreensivelmente as normas legais aplicáveis à prova pericial, nomeadamente aquelas que, de alguma forma limitam a admissibilidade e extensão deste tipo de prova.”
II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos dos artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil (CPC), este na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24/8, aqui aplicável, não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam.
Assim, estão em causa nos autos as seguintes duas questões fundamentais:
A) Da admissibilidade da perícia a terceiros no presente litígio;
B) Do objecto da perícia com definição dos factos a abordar na mesma.
III - Fundamentação de Direito
A) A prova pericial destina-se a demonstrar a realidade dos enunciados de facto produzidos pelas partes (artº 341º do Código Civil), constituindo, apenas, um meio de prova, cabendo ao tribunal considerá-la no conjunto das provas produzidas e decidir de acordo com a convicção fundamentada a que chegar.
A matéria referente à escrituração mercantil (ou comercial), no que refere às situações e condições em que a mesma pode ser exibida judicialmente e em que pode ser objecto de prova pericial, encontra-se regulada nos arts. 41º a 44º do Código Comercial, sendo para nós indiscutível que tais disposições não foram revogadas pelo art. 519º do C.P.C., conforme, aliás, se decidiu no Acórdão do STJ de 22/04/1997, que, uniformizando jurisprudência nesse sentido, enunciou que “O artigo 43.º do Código Comercial não foi revogado pelo artigo 519.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 1961, na versão de 1967, de modo que só poderá proceder-se a exame dos livros e documentos dos comerciantes quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida”.
O art. 41º do Código Comercial estabelece – como resulta da respectiva epígrafe – o princípio do segredo da escrituração mercantil que, todavia, apenas vale em plenitude nos limites que aí se encontram previstos, obstando a que tal escrituração seja examinada com o único objectivo de verificar se o comerciante arruma ou não devidamente os seus livros de escrituração mercantil.
Analisemos, pois, as situações em que pode ter lugar o exame a tal escrituração, já que é essa a questão que se coloca nos presentes autos conforme se aventa, aliás, nas doutas contra-alegações produzidas nos autos, relativamente a um terceiro que nem sequer é parte nos autos, razão pela qual o tribunal recorrido indeferiu o pretendido exame à escrita (no caso, aludimos aos D…, Lda. e ao falecido pai do Autor, E…).
A esse propósito, dispõe o art. 43º do Código Comercial que, fora dos casos previstos no número anterior (casos que aqui não ocorrem), “…só poderá proceder-se a exame nos livros e documentos dos comerciantes, a instâncias da parte, ou de ofício, quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida”. Ou seja, o que releva, para efeitos de admissibilidade do exame, não é o interesse concreto de uma das partes na efectiva demonstração dos factos para prova dos quais foi requerido ou ordenado (interesse que pertenceria a quem tem o ónus de os provar e a quem deles poderia beneficiar), mas sim o interesse na resolução da questão que depende do apuramento desses factos e o que releva para aquele efeito não é apenas o interesse que o titular da escrita possa ter, mas também a sua responsabilidade na questão em que tal apresentação é exigida.
Ora, sendo certo que qualquer uma das partes em litígio tem interesse ou responsabilidade nas questões que se suscitam e estão controvertidas no âmbito de uma acção judicial em que são partes e que, como tal, estão inseridas no objecto do litígio que entre elas se desenvolve, parece claro que não poderá deixar de ser admissível, à luz do disposto no citado art. 43º, o exame à escrita comercial de qualquer uma dessas mesmas partes com vista ao apuramento de determinados factos que são necessários à apreciação e decisão daquelas questões que, naturalmente, são do interesse ou responsabilidade das as partes envolvidas.
Questão assaz diversa e será para esses casos que remete a exigência legal serão, porém, os casos em que o exame incide sobre a escrita comercial de alguém que não é parte na causa, onde, efectivamente, terá que ser analisada em concreto a questão de saber se essa pessoa – apesar de estranha à causa – tem ou não algum interesse ou responsabilidade na questão que determina a realização do exame. Neste sentido, pode ver-se, aliás, o Acórdão do STJ de 21/04/2003, onde se afirma que “…essa exigência somente se justifica no caso de a escrita pertencer a terceiro, uma vez que, sendo os livros e documentos de qualquer das partes no processo, não faz sentido referir tal pressuposto, em virtude da sua existência ser inerente à própria qualidade de parte na acção”.
Pois bem. No requerimento de prova do A. temos, desde logo, uma perícia muito extensa na sua delimitação, âmbito e alcance na medida em que foi requerida a ordenação de “perícia colegial à escrita comercial e demais documentos, nomeadamente bancários, fiscais, de gestão e actas dos órgãos sociais do Autor, de E…, e de ambas as Rés e da D…, Lda.”.
Por outro lado, como vimos, dos artigos 42º a 44º do Código Comercial resulta que a exibição judicial dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos – e por maioria de razão a perícia sobre tais livros e documentos – implica a necessidade de se exercer o contraditório em relação aos comerciantes terceiros, visados pela perícia, nomeadamente para o exercício dos direitos que lhes conferem o artigo 43º do Código Comercial.
Mas sobretudo, em linha com o alegado pela requerida a perícia requerida “à escrita comercial e demais documentos, nomeadamente bancários, fiscais, de gestão e actas dos órgãos sociais do Autor, de E…, e da D…, Lda.” constitui uma exibição judicial dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos numa situação em que estes terceiros não terão qualquer interesse na questão em causa, como nela não têm qualquer responsabilidade que lhe possa ser imputável.
Esse interesse implicaria um litisconsórcio que no caso não ocorreu sendo certo que, sem prejuízo da proximidade entre as rés e a empresa D…, Lda., inexistem razões bastantes para onerar terceiros com a devassa da sua escrituração num contexto em que nem sequer são partes no processo.
A situação surge ainda mais flagrantemente a evitar no caso do exame da escrituração de alguém já falecido, ignorando-se como proceder a tal exame e que seriam os responsáveis por assegurar o mesmo. Alega doutamente o recorrente que a razão para este exame à escrita comercial do pai do autor, entretanto falecido, teria a ver, no essencial, com a questão de saber se o Autor sucedeu a seu pai num contrato verbal de distribuição de adubos especiais celebrado entre o pai do Autor e uma sociedade antecessora da Rés na década de 1950, defendendo o Autor que as mesmas continuaram sensivelmente idênticas ao longo do tempo (vide quesitos 9º a 56º da Base Instrutória). Ora estes factos, salvo melhor opinião, não justificam, pelo menos, nesta fase processual, os inconvenientes e delongas de um exame pericial a terceiro, entretanto falecido.
Está em causa nos autos a relação do autor com os requeridos e a eventual manutenção de condições idênticas poderá ser demonstrada por outras vias, sendo certo que, em rigor, importa, sim, apurar dessas condições, não em relação ao pai do apelante mas ao próprio litigante.
No que concerne à sociedade D… a justificação para pretender o exame à escrita é bem diversa. Assim, alega-se, no essencial, que as Rés tornaram a sociedade D… sua distribuidora exclusiva dos adubos especiais que anteriormente vendiam ao Autor na zona territorial que lhe havia sido concedida (cf. factos M, N e O da matéria assente) pelo que apenas a perícia realizada às vendas efectuadas por aquela sociedade D… de adubos das Rés na zona que antes estava atribuída ao Autor, depois desta as passar a fazer em exclusivo, será passível de provar os alegados e quesitados benefícios económicos; ou seja, porque a área geográfica na qual o Autor actuava limitava-se ao distrito do Porto e concelho de Famalicão e que as Rés passaram a vender adubos exclusivamente para aquela sociedade D… que passou a ser distribuidora exclusiva não só no distrito do Porto e concelho de Famalicão, mas, também, em todo o País, daí resultaria que a perícia decretada apenas à escrita comercial das Rés seria apenas útil para verificar os números brutos de vendas àquela sociedade D…, que vendia para todo o pais, e não as concretas vendas efectuadas na zona geográfica em causa.
Ora, este argumento parece-nos, salvo o devido respeito, não estar suficientemente demonstrado e apenas se poderia eventualmente valorar uma vez feita a análise à escrita das rés que, possível e provavelmente, poderá alcançar uma segmentação regional relativamente às vendas aquela sociedade.
Admitir o contrário seria aceitar a possibilidade de efectivar perícias à escrituração comercial de terceiros que a lei mercantil quis claramente restringir a todos aqueles casos em que se pretendam obter dados de índole regional e não nacional, independentemente de esses dados poderem ser obtidos junto da parte ou através de outros pedidos de esclarecimento menos intrusivos.
Confirmar-se-á, portanto, a decisão em apreço neste segmento.
B) A segunda questão a elucidar prende-se com o sentido, efeito e limites do objecto da prova pericial, importando delimitar, em concreto, o seu âmbito.
O objecto das perícias é enunciado no artigo 388º, do CC, nos seguintes termos: “a prova pericial tem por objecto a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuam, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial”.
Da noção acabada de transcrever vê-se que a função dos peritos é a percepção, a apreciação ou valoração de factos.
Concordantemente com esta noção, o artigo 475.º do novo CPC (antes correspondente ao art. 577º - note-se que o regime em apreço mantém-se, essencialmente, o mesmo após a entrada em vigor do novo Código do Processo Civil), relativo à indicação do objecto da perícia, dispõe no n.º 1 que a parte logo enunciará as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência. Caso o não faça, a pena é de rejeição dessa perícia.
Quanto às questões de facto a submeter à prova pericial, vale aqui o disposto no artigo 513º do CPC, segundo o qual a instrução tem por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova ou, num fraseado próximo, o art.410º que refere os temas de prova remetendo igualmente para os factos necessitados de prova.
Esta enunciação genérica e o próprio interesse em não espartilhar o conhecimento do tribunal relativamente aos múltiplos factos atinentes com a causa parece determinar que o objecto da prova pericial não deve restringir-se às questões de facto que figurem na base instrutória, quando exista. A este propósito, José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, página 537, entendem que as questões de facto “podem igualmente constituir pontos de facto instrumentais, como tais não carecidos de prévia alegação, que constituam via para a prova dos factos principais da causa…” (no mesmo sentido, v.g. Ac. da Rel. de Coimbra de 15.05.2012, processo 198/10.0TBVLF-B.C1, relator: Emídio Francisco Santos, in dgsi.pt).
Isto dito, importa, contudo, que esses factos, ainda que instrumentais, tenham relação com o objecto do litígio, não sejam inócuos ou irrelevantes para o exame e decisão da causa e sejam efectivamente controvertidos; caso contrário, devem ser rejeitados por inadmissibilidade.
Finalmente, nos termos da lei, a prova pericial só é admissível se forem necessários conhecimentos especiais, que o julgador não possua, para a percepção ou avaliação dos factos.
Temos, assim, sumariamente, descrito um catálogo enunciador das questões a incluir no objecto da prova pericial. Donde deve estar em causa um facto que se revele:
- relevante para o exame e decisão da causa; - controvertido; - cuja percepção ou avaliação necessite de conhecimentos especiais que o julgador não possua.
Atentemos agora no preenchimento, ou não, dos requisitos enunciados relativamente ao que resulta do requerimento do recorrente sobre o objecto da perícia.
No que concerne à base instrutória temos que a mesma possui várias centenas de factos controvertidos. Por outro lado, só relativamente à escrita do autor o requerimento pretende ver respondidas cerca de nove dezenas dos factos quesitados nessa base instrutória. Sem prejuízo dessa indagação são ainda indicadas algumas dezenas de questões instrumentais muito embora todas elas resultem de factos efectivamente alegados nos articulados, em particular no petitório.
Naturalmente que a proliferação de factos poderá justificar algum constrangimento na adopção de um objecto da perícia tão alargado.
Porém, não se vislumbra, atenta a natureza controversa desses factos, poder afirmar da sua irrelevância ou sequer, “prima facie”, da desnecessidade de conhecimentos especiais aqui decorrentes, no essencial, das conclusões obtidas a partir da análise da escrita comercial e documentos conexos.
Irá, pois, na dúvida, permitir-se que o objecto da perícia tenha a amplitude pretendida pelo recorrente/autor atenta inclusivamente a ponderação do ónus probatório que sobre o mesmo impende. Isto dito naturalmente que os peritos apenas estarão adstritos a esclarecer aqueles factos sobre os quais possuam informação bastante para aventar uma resposta; a prolixidade de questões poderá ser acompanhada de uma acrescida dificuldade na elaboração das respostas por parte dos peritos – porém, de tal ponderação não caberá fazer agora.
Uma nota final: independentemente das opções de saneamento e condensação assumidas nesta fase processual, o Tribunal mantém, obviamente, a possibilidade de, uma vez recolhida a prova pericial, encetar novas diligências que entenda relevantes à descoberta da verdade material o que poderá implicar com a obtenção de informação designadamente junto de entidades terceiras. Naturalmente que o poder-dever de intervenção oficiosa do Tribunal quanto à necessidade de promoção de diligências probatórias estará arredada se “não for patentemente justificada pelos elementos constantes dos autos” de tal modo que a promoção de qualquer diligência sempre implicará a vontade da parte nesse sentido a qual, “não se tendo traduzido pela forma e no momento processualmente adequados, não deverá agora ser substituída pela vontade do juiz, como se de um seu sucedâneo se tratasse” (“Os poderes Instrutórios do Juiz: Alguns Problemas”, Nuno Lemos Jorge, Julgar, nº 3, pág. 70).
Anote-se, porém, que “in casu” não se poderá deixar de valorar e tomar boa nota da intenção já manifestada pela parte (no caso, o autor) o que poderá motivar uma actividade oficiosa do Tribunal, a jusante, uma vez obtida já informação adicional bastante que legitime essa intervenção (designadamente a notificação de empresas que não são partes nesta acção para prestação de esclarecimentos).
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Sumariando:
I – O segredo da escrituração comercial manifesta-se, nomeadamente, nas restrições colocadas ao exame da escrituração de pessoas, singulares ou colectivas, que não são partes no processo judicial respectivo.
II – Tais exames, em conformidade com o disposto no art. 43º do Código Comercial, apenas serão admissíveis quando essas pessoas tenham interesse ou responsabilidade na questão a dirimir devendo, em qualquer caso e sempre que possível, optar-se por meios probatórios menos intrusivos para obtenção dos elementos factuais concretamente pretendidos.
III – O objecto de uma perícia judicial deve corporizar-se em factos controvertidos, que se revelem relevantes para o exame e decisão da causa e desde que, para a percepção ou avaliação dos mesmos, sejam necessários conhecimentos especiais que o julgador não possua.
IV – Preenchidos estes requisitos nada obsta a que uma perícia se possa referir a factos de natureza ou índole meramente instrumental no contexto de uma dada acção judicial.
V) Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta Relação em alterar a decisão recorrida ordenando que a perícia a efectivar ao autor e rés tenha como objecto os factos solicitados pelo autor no respectivo requerimento atinente, sem restrições. No mais, confirma-se o decidido.
Custas em partes iguais por apelante e apelados.
Registe e notifique.
Porto, 3 de Dezembro de 2013
José Igreja Matos
João Diogo Rodrigues
Rui moreira