INSOLVÊNCIA
DISPENSA DE AUDIÊNCIA DO DEVEDOR
AUDIÇÃO DE PARENTE DO DEVEDOR
Sumário

I - Antes de decidir pela dispensa da audição do devedor prevista no artigo 12.º do CIRE e inclusivamente pela sua não citação para deduzir oposição ao pedido de insolvência, o tribunal deve ter o cuidado de ordenar todas as diligências que razoável e prudentemente seja possível realizar para localizar o devedor sem atrasar excessivamente o processo, já que só essa demora excessiva pode justificar aquela dispensa.
II - Havendo notícia nos autos de um filho do devedor e elementos que possibilitem contactá-lo, o tribunal tem de ordenar diligências para o localizar e, apurando a sua existência e localização, ordenar que o mesmo seja citado nos moldes em que o seria o próprio devedor.
III - Omitidas estas diligências e não realizada a citação do filho do devedor mencionado nos autos, a dispensa da audição do devedor (mesmo que seja efectivamente desconhecido o seu paradeiro) determinada nesse contexto enferma de falta de requisitos legais, cometendo-se o vício da falta de citação que gera a nulidade dos actos processuais subsequentes.

Texto Integral

Recurso de Apelação
Processo n.º 629/13.7TBPNF-B.P1 [Tribunal Judicial da Comarca de Penafiel]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.
B…, S.A., com sede em …, requereu no Tribunal Judicial de Penafiel o decretamento da insolvência de C…, NIF ……….
Falhadas as diligências encetadas para citação pessoal do requerido, foi dispensada a sua audiência prévia e realizada audiência de julgamento na sua ausência, após o que, por sentença proferida em 3 de Junho de 2013, foi decretada a insolvência do requerido.
O requerido interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. O douto despacho que dispensou a audição do devedor, violou o disposto no artigo 12º, nºs 1 e 2, do CIRE.
2. Desde logo, a citação postal não foi realizada pelos CTT, por considerar a morada indicada pela Requerente, como insuficiente.
3. A citação promovida por Agente de Execução, constatou que a morada era insuficiente e disso, informou o Tribunal.
4. Todavia, o Agente de Execução logrou obter a informação que o Requerido não residia na morada indicada.
5. Mas, maugrado tal informação, foi ordenado ao Órgão de Polícia Criminal Competente, que averiguasse o paradeiro do Requerido e família, no mesmo local onde o Agente de Execução apurou que este não residia.
6. Dos autos constavam elementos que continham a morada do filho do Requerido.
7. Todavia, nenhuma diligência foi ordenada na morada deste, para o ouvir, dando-se, assim, cumprimento, ao disposto no nº2, do artigo 12º, do CIRE.
8. Era igualmente do conhecimento do Tribunal que o Requerido era sócio de inúmeras sociedades comerciais, mas nenhuma informação acerca do seu paradeiro foi recolhida junto destas empresas.
9. Ademais, incumbia ao Tribunal dar cumprimento às diligências previstas no artigo 244º, do CPC, mas nada disto foi realizado.
10. Em face do exposto, temos de concluir que, o despacho que dispensou a audiência do Requerido, violou os pressupostos previstos no artigo 12º, do CIRE.
11. Fazendo um avaliação deficiente dos seus pressupostos.
12. Pelo que, o despacho que dispensou a audiência do devedor, violou o estipulado nos artigos 12º, do CIRE, 3º, 3º-A, 244º, do CPC e 20º, nº4, da CRP.
13. Por outro lado, o despacho que ordenou a notificação da sentença, foi enviado para um endereço que o Tribunal sabia ser insuficiente.
14. Mais: o Tribunal num juízo de prognose, de acordo com as regras da experiência, sabia que o Requerido, não iria ser notificado da sentença, na morada indicada.
15. Assim, a notificação da sentença efectuada ao Requerido, violou o regime estatuído no nº, 2, do artigo 37º, do CIRE.
16. A douta sentença que declarou a insolvência do Requerido padece de uma flagrante nulidade, havendo uma contradição insanável na decisão em apreço, quando nela se diz que, por um lado o Requerido é titular de diversas quotas em sociedades comerciais e, por outro lado que este não tem outros bens penhoráveis, além de um quota no valor de 74.819,68 € na sociedade “D…, Lda.”
17. Por conseguinte, a douta sentença violou a alínea c), do nº1, do artigo 668º, do CPC.
18. Por fim, temos de dizer que, a Requerente carece de legitimidade para requerer a insolvência do Requerido.
19. Dado que, este é avalista de uma obrigação de terceiro.
20. Pelo que, uma eventual legitimidade da Requerente, carece de uma decisão judicial transitada em julgado, que declare que o Requerido é responsável pelo pagamento da dívida da sociedade avalizada.
21. Assim, sendo, a douta sentença violou o disposto no nº 1, do artigo 20º, do CIRE.
Nestes termos …deve ao presente recurso ser dado total provimento, nos termos e pelas razões supra descritas e, em consequência, revogar-se a decisão ora em apreço, com os legais efeitos….
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.
Sendo certo que o tribunal não tem de conhecer das questões que possam ficar prejudicadas pela decisão das que a precedam, as conclusões das alegações de recurso demandam deste Tribunal que resolva as seguintes questões:
i) Se estavam reunidos os requisitos legais para a dispensa da audiência prévia do devedor.
ii) Qual a consequência jurídica da dispensa da audiência do devedor fora do condicionalismo legal.
iii) Se a sentença foi regularmente notificada ao devedor e se o não foi qual a consequência jurídica da falha cometida.
iv) Se a sentença é nula por contradição insanável entre os respectivos fundamentos.
v) Se para requerer a insolvência do requerido a requerente necessitava de obter previamente uma sentença que o condenasse a pagar o valor do crédito invocado por esta.

III.
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1- A B… é uma empresa que tem como objecto social a transformação e comercialização de produtos de consumo, designadamente produtos alimentares, bem como actividades conexas ou complementares.
2- O Requerido foi sócio-gerente da sociedade "E…, Lda." desde a sua constituição, a 17 de Janeiro de 1992, até 12 de Setembro de 2012, altura em que renunciou à gerência, mantendo apenas, desde então, a qualidade de sócio, com uma participação de 50% do capital da referida sociedade.
3- A "E…" é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio e distribuição de bebidas, ao transporte de mercadorias por conta de outrem e ao aluguer de veículos ligeiros e pesados de mercadorias sem condutor.
4- Desde a sua constituição até 12 de Outubro de 2012 a "E…" teve a denominação "F…, LDA." e sede em Vila Nova de Gaia, momento em que alterou tal denominação e a sua sede para a mesma morada do Requerido.
5- É também sócio da "E…" e, neste momento, seu gerente único, G…, com domicílio em Rua …, …, ….-… … Vila Nova de Gaia.
6- Foi intentada execução contra a "E…" e os seus sócios, por requerimento de 29 de Junho de 2012, que deu origem ao processo nº 5899/12.5TBVNG, a correr termos junto do Juízo de Execução do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, apresentado como título executivo uma letra, no valor de € 6.405.984,54 e no qual são executados a “E…”, o Requerido e C… e G…, estes últimos na referida qualidade de avalistas.
7- O Requerente possui: quota na sociedade "E…", no valor nominal de €62.500,00, cuja insolvência foi requerida pela Requerente; quota na sociedade "H…, Lda.", no valor nominal de €5.000,00; quota na sociedade "I…, Lda.", anteriormente denominada "J…, Lda.", no valor nominal de €5.000,00; quota na sociedade "K…, Lda.", no valor nominal de €650,00; e quota na sociedade "L…, Lda.", no valor nominal de €2.500,00.
8- O Requerido renunciou ao cargo de sócio-gerente da E…; ao cargo social que igualmente ocupava na sociedade "M…" e cedido a sua quota a sua mulher e seus filhos; alterado a sua morada e divorciado a sua mulher.
9- Em 19 de Junho de 2012, foi constituída a sociedade "N…, Lda.", que tem por sócios O… e P…, filho do Requerido e é entidade patronal de G…, sócio da "E…".
10- No âmbito da relação comercial entre a "B…" e a "E…" (então "F…"), esta última constituiu-se devedora da "B…" no montante de € 5.002.081,50.
11- (...) montante esse que foi objecto de um Acordo de Consolidação de Dívida e Pagamento em Prestações, celebrado a 17 de Novembro de 2010 entre a Requerente e a "E…".
12- No âmbito do mencionado Acordo foram subscritas pela "E…" oitenta e seis letras de câmbio em branco destinadas a liquidar a dívida para com a Requerente e foi também celebrado o respectivo Pacto de Preenchimento.
13- As letras foram avalizadas pelos dois sócios (e gerentes) da "E…", o Requerido C… e G…, que assinaram o Pacto de Preenchimento de Letra na qualidade de avalistas.
14- A "E…" não cumpriu o Acordo e continuou a não pagar as quantias referentes à sua actividade.
15- A falta de pagamento, na respectiva data de vencimento, determinaria o vencimento imediato da totalidade das prestações devidas nos termos do mesmo Acordo, bem como de quaisquer quantias devidas pela então "F…" à "B…".
16- A 6 de Junho de 2012, a Requerente enviou à "E…" carta a resolver o contrato existente entre ambas, considerando vencida a totalidade das prestações em dívida nos termos do Acordo e interpelando-a para o seu pagamento, acrescido de outros montantes emergentes da relação contratual estabelecida entre as partes, em dívida à data.
17- Na sequência daquela interpelação, a Requerente preencheu, em consonância com o acordado no Pacto de Preenchimento de Letras, uma letra de câmbio pelo montante global de € 6.405.984,54, à data em dívida pela "E…", em que esta figura como Sacado e os seus gerentes, o Requerido C… e G…, figuram como avalistas.
18- No âmbito da Execução foi apenas penhorada uma quota, no valor nominal de €74.819,68, na sociedade "D…, Lda.".
19- (...) não sendo o Requerido possuidor de quaisquer bens outros penhoráveis, móveis ou imóveis.

Além destes factos, é ainda possível extrair do apenso criado para a subida do recurso (o qual vem manifestamente mal instruído, obrigando a solicitar o histórico do processo de origem para consulta por via digital atenta a urgência do processo) os seguintes relativos à tramitação processual:
A] Na petição inicial a credora requerente identificou assim o devedor requerido: C… (…) com domicílio na Rua …, .., .º Esq., …, ….-… .
B] No artigo 23 da petição inicial, a requerente alegou que em 19 de Junho de 2012, foi constituída a sociedade N..., Lda., que tem por sócios O… e P…, filho do Requerido, juntando documentos comprovativos.
C] Ordenada a citação do requerido, foi expedida com essa finalidade carta para o seguinte endereço: Rua …, …, .º Esq., …, ….-… .
D] Essa carta foi devolvida ao remetente, tendo o distribuidor postal assinalado como motivo a quadricula “endereço insuficiente”.
E] Notificada dessa devolução, a requerente insistiu que essa era a residência do requerido constante das bases de dados e requereu a citação por intermédio de agente de execução, o que foi deferido.
F] O agente de execução nomeado lavrou certidão negativa, na qual mencionou o seguinte: “1. deslocou-se à morada indicada nos autos para a realização da diligência (…) onde se verifica que a morada correcta é Rua …, .. – .º ESQ. TRASEIRAS. 2. Porém não foi possível concretizar a mesma porquanto no local já não se encontra a residir o mesmo. 3. Segundo informações dos vizinhos daquela habitação, os proprietários: Q…; S…, encontram-se a residir em França e que aquela habitação esteve arrendada a várias pessoas, que desconhecem a identificação, mas que actualmente ninguém ali reside. (…) 5. No local não é conhecido o nome do requerido, desconhecendo-se o seu paradeiro. 6. Não foi assim possível proceder à citação do requerido, porquanto o mesmo já ali não reside.”
G] Notificada desta certidão, a requerente insistiu que a morada onde foi tentada a citação era a que constava como residência do requerido nas bases de dados e foi indicada pelo próprio em juízo quando meses atrás foi ouvido como testemunha num processo judicial, reiterou a informação relativa ao filho do requerido constante da petição inicial e terminou requerendo a dispensa da audiência do requerido.
H] Por despacho foi ordenado: “averigúe-se na base de dados da morada do requerido; solicite ao OPC competente que averigúe e informe, em 5 dias, do paradeiro do requerido, cônjuge ou pessoa que com ele viva em união de facto ou parente próximo”.
I] Em cumprimento do ordenado oficiou-se à GNR de Penafiel solicitando a informação pretendida e indicando a residência do requerido como sendo Rua …, .., .º Esq., …, ….-… .
J] A informação da GNR nada trouxe de útil.
K] De seguida foi proferido despacho no qual se decidiu: “Face à impossibilidade de citação do requerido, ou de pessoa prevista no n.º 2 do art.º 12.º do CIRE, ao abrigo do n.º 1 do mesmo normativo dispensa-se a audiência do devedor.”
L] Realizada a audiência de julgamento e decretada a insolvência, expediu-se carta para notificação da respectiva sentença ao requerido para o endereço Rua …, .., .º Esq., …, ….-… .
M] Esta carta foi devolvida ao remetente, tendo o distribuidor postal assinalado como motivo a quadricula “endereço insuficiente”.

IV.
Na primeira das suas conclusões das alegações de recurso, o recorrente impugna o despacho que dispensou a sua audiência prévia nos termos do artigo 12.º do CIRE. Segundo o recorrente não estavam verificados os pressupostos dessa dispensa, tendo a 1.ª instância incorrido em erro de julgamento quanto à verificação desses pressupostos.
O artigo 12.º tem a epígrafe “dispensa da audiência do devedor” e nele estabelece-se o seguinte:
“1 - A audiência do devedor prevista em qualquer das normas deste Código, incluindo a citação, pode ser dispensada quando acarrete demora excessiva pelo facto de o devedor, sendo uma pessoa singular, residir no estrangeiro, ou por ser desconhecido o seu paradeiro.
2 - Nos casos referidos no número anterior, deve, sempre que possível, ouvir-se um representante do devedor, ou, na falta deste, o seu cônjuge ou um seu parente, ou pessoa que com ele viva em união de facto.”
Trata-se, como é fácil de ver, de uma norma que visa combater as demoras do processo de insolvência por motivos imputáveis ao devedor. Através dela procura evitar-se que o processo sofra delongas excessivas nos casos em que seja necessário exercer o contraditório relativamente ao devedor (ou seja, nos processos de insolvência requeridos por credores ou outros interessados) e este resida no estrangeiro ou tenha paradeiro desconhecido. Não é pressuposto nem objectivo da norma evitar de forma específica prejuízo para os credores (ainda que seja irrecusável que a preocupação da celeridade tenha em vista precisamente a defesa dos interesses dos credores) ou obstar a que o devedor conheça a pendência do processo de insolvência[1].
O que releva para efeitos da sua aplicação não é, contudo, a residência (no estrangeiro) ou o paradeiro (desconhecido) do devedor, mas sim a circunstância de por força dessa situação a audição do devedor implicar que o processo de insolvência sofra uma demora excessiva. Não basta, portanto, que o devedor resida no estrangeiro ou tenha paradeiro desconhecido para poder ser dispensada a sua audição prévia. O que é necessário é que esse facto implique (quando acarrete) uma demora excessiva para o processo.
O objectivo do legislador é, portanto, assegurar a especial celeridade do processo de insolvência ao longo de toda a sua tramitação, razão pela qual a dispensa está prevista não apenas no momento da citação inicial mas também para qualquer acto processual subsequente em que seja necessário ouvir o devedor. Todavia, daí não resulta um afastamento total ou fundamental do exercício do contraditório.
Com efeito, a demora que conduz à dispensa da audiência prévia tem de ser excessiva, não basta uma qualquer demora, sendo que o critério de aferição desse excesso deve adaptar-se às circunstâncias concretas do caso e, portanto, tem de ter presente a fase em que o processo se encontra e a relevância dessa dispensa. Não é o mesmo dispensar a audiência na fase inicial, antes do decretamento da insolvência e para esse efeito, e decretá-la mais tarde designadamente se o devedor tiver sido citado previamente ao decretamento da insolvência.
Por outro lado, exactamente porque o legislador entendeu que o princípio do contraditório só pode ser cerceado reunidos vários cuidados e esgotadas as possibilidades de se fazer chegar ao conhecimento do devedor o assunto que justifica a sua audição, a norma contém um n.º 2 que determina que nos casos em que a dispensa seja decidida deve, sempre que possível, ouvir-se um representante do devedor, ou, na falta deste, o seu cônjuge ou um seu parente, ou pessoa que com ele viva em união de facto.
A redacção da norma não deixa dúvidas quanto a tratar-se de um dever e não de uma faculdade deixada ao poder discricionário do juiz[2]. A única condicionante é que seja possível ouvir o representante ou parente do devedor. Sendo possível ouvi-las, o juiz não pode deixar de determinar a audição destas pessoas (e isto independentemente de saber a que título e qual o âmbito de intervenção consentido a estas pessoas que é algo que a norma não esclarece devidamente[3]). O que significa, necessariamente, que o juiz tem de determinar diligências com vista a localizar estas pessoas e, apurando a sua existência e localização, tem de ordenar que as mesmas sejam citadas/notificadas nos moldes em que o seria o próprio devedor, se não estivesse ausente no estrangeiro ou em parte incerta.
Ora no caso é manifesto que esta solução legal não foi devidamente acolhida nos autos. Na verdade, ainda que as diligências para a localização do devedor com vista à sua citação tenham sido feitas com critério e de acordo com aquilo que era razoável exigir (o endereço era o que constava das bases de dados; a informação colhida pelo agente de execução mostrava ser desconhecida outra morada do requerido; a falta de indicação “traseiras” que foi motivo para a devolução das cartas foi suprida pela averiguação do agente de execução que percebeu a diferença e indagou do paradeiro do requerido), certo é que no processo e por alegação da credora requerente da insolvência constava que o devedor tinha um filho e que este era sócio de uma sociedade comercial devidamente identificada (N…, Lda.) tendo sido junto inclusivamente o código de acesso à respectiva certidão permanente. O que significa, em primeiro lugar, que existia um parente do devedor e, em segundo lugar, que esse parente podia, à partida, ser localizado, obrigando o tribunal a fazer diligências para o citar no lugar do devedor.
Contudo, o que sucedeu nos autos foi que depois de se ter tentado citar o devedor por via postal (sem sucesso, face à devolução da carta com a menção de endereço insuficiente devida seguramente à falta de indicação “traseiras”) e por intermédio de agente de execução (também sem sucesso porque este não conseguiu contactar o citando e apurou no prédio a que corresponde o respectivo endereço constante das bases de dados que o mesmo ali não reside há algum tempo, pertencendo o imóvel a outrem), o tribunal limitou-se a ordenar a solicitação à GNR de informação “do paradeiro do requerido, cônjuge ou pessoa que com ele viva em união de facto ou parente próximo”, informação que veio, como era expectável, negativa.
Todavia, talvez por não se ter atentado suficientemente nas informações constantes da petição inicial e repetidas depois pela requerente aquando do pedido de dispensa de audiência do devedor, não se ordenou a notificação do filho do devedor, na sede da empresa da qual ele era sócio, para informar qual era a residência ou paradeiro do pai (o que permitiria fazer uma última tentativa para o citar pessoalmente) e, tão-pouco, concluindo-se pela inviabilidade de citar o devedor a curto prazo, não se ordenou a citação do filho em substituição do pai, ao abrigo do n.º 2 do artigo 12.º, o que de acordo com a informação prestada pela requerente da insolvência era possível e não oferecia dificuldade alguma.
Resulta, portanto, que havia nos autos informação da existência de um filho do devedor e indicação de local onde este podia ser contactado para se saber do paradeiro do pai e/ou para o citar em substituição do devedor nos termos do n.º 2 do artigo 12.º do CIRE. E resulta que não foram feitas diligências para contactar o filho do devedor, designadamente através da GNR fornecendo-lhe para o efeito a indicação da sede da empresa de que este era sócio e onde podia ser contactado pelos respectivos agentes.
De acordo com os dados do processo essas diligências e esse contacto eram perfeitamente possíveis e a sua realização não importava qualquer demora excessiva para o processo, sendo certo, repete-se, que estando em causa a dispensa de audiência do devedor para dedução de oposição ao pedido de decretamento da insolvência, o critério em função do qual se deve aferir o excesso da demora deve ser particularmente exigente e pressupõe uma ponderação cuidada da suficiência das diligências realizadas para localização do devedor, da inviabilidade da realização de outras de acordo com um juízo de prognose e da demora que estas implicarão[4].
Acresce que não se tendo tentado sequer o contacto com o filho do devedor (que podia ser feita de imediato através da GNR em vez de se lhe pedir que fosse à procura do devedor no endereço onde já se sabia que ele não era encontrado, independentemente de saber os motivos porque isso acontecia e a quem isso era imputável) não é possível afirmar que daí não resultasse nada de útil para a citação pessoal do devedor ou que resultasse algo cuja realização implicaria uma demora acrescida para o processo.
Repare-se que entre o despacho que ordenou a citação e solicitação pela requerente da dispensa da audiência do requerido tinha decorrido apenas um mês e até ao despacho que ordenou essa dispensa decorreu outro mês (apenas para se pedir a informação que foi pedida à GNR), tempo que teria sido perfeitamente suficiente para notificar o filho do requerido, designadamente através de agente de execução ou da GNR, e obter dele a aludida informação
A questão agora consiste em qualificar a consequência desta falha processual.
Tanto quanto julgamos, constituindo regra a citação do devedor para deduzir oposição ao pedido de insolvência (artigo 29.º do CIRE) e excepção a possibilidade de dispensa da sua citação prévia (artigo 12.º do CIRE), deve entender-se que se não se verificam os pressupostos que permitiam dispensar a citação, esta devia ter sido efectuada e, como tal, não o tendo sido, cometeu-se a nulidade de falta de citação. E isso pode resultar demonstrado pela simples circunstância de não se terem esgotado no processo, como aqui sucedeu, os meios possíveis e viáveis de apurar a residência que permitiria a citação pessoal, quando a demora do processo ainda não era excessiva e este impasse podia, presumivelmente, ser ultrapassado rapidamente se fosse realizada a diligência que o processo permitia antever e para cuja determinação fornecia já elementos suficientes.
Ainda que a norma não o refira e que isso consinta alguma dificuldade de interpretação, afigura-se-nos que a audiência de um parente do devedor prevista no n.º 2 do artigo 12.º do CIRE é também ela um pressuposto da dispensa de audiência do próprio devedor, ou seja, um requisito legal desta faculdade. A dispensa da audiência do devedor só é legítima quando a sua realização acarretar demora excessiva para o processo (por ser desconhecido o paradeiro do devedor ou este residir no estrangeiro) e, nos casos em que for possível ouvir um parente em sua substituição, este seja ouvido. Omitida a audiência do parente do devedor ausente quando a mesma era afinal possível, comete-se ainda a nulidade por falta de citação[5].
Como se defende no Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 17.06.2013, relatado por Maria Adelaide Domingos, in www.dgsi.pt, a propósito da audição dos parentes quando possível, “considerando a finalidade deste preceito, a audição das pessoas aí referidas não pode deixar de ser entendida como uma formalidade essencial à dispensa de citação. Ainda que a sua audição esteja submetida a uma condição ou possibilidade, competindo ao juiz aferir da sua existência em face de cada caso concreto, tem de corresponder a uma real e efetiva tentativa de audição das mesmas, o que implica a realização das diligências tidas por adequadas e necessárias à sua notificação. (…) embora o artigo 12.º do CIRE encerre um mecanismo, ao dispor do juiz, para obviar a demoras excessivas na citação do devedor ou para ultrapassar manifestos expedientes dilatórios, não preclude o dever do tribunal diligenciar pelo cumprimento integral das formalidades essenciais à citação do devedor. Tendo as mesmas sido preteridas, (…) não se encontram reunidos os pressupostos legalmente exigíveis para deferir o exercício do contraditório para momento posterior, com a inerente dispensa da citação do devedor. (…) a dispensa de citação determinou presumível prejuízo para a defesa do citando, já que veio a ser decretada a insolvência sem audição do mesmo, que o deferimento do direito de reação, por via de oposição de embargos ou de interposição de recurso (…) não elimina. Na verdade, ainda que a oposição aos embargos seja permitida, cumulativamente, com a interposição do recurso (este facultado independentemente da situação de revelia – cfr. n.º 2 do artigo 42.º do CIRE), a oposição por meio de embargos encontra-se limitada aos pressupostos do n.º 2 do artigo 40.º, ou seja, à invocação de factos ou meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da declaração de insolvência. O que significa que o devedor, caso tivesse sido citado, tinha tido a oportunidade de se defender e apresentar aqueles fundamentos de facto e correspondentes meios probatórios (cfr. artigo 30.º, n.º 3 do CIRE), podendo os mesmos influir relevantemente na decisão a proferir, inclusivamente em sentido oposto àquele em que foi proferida, isto é, no sentido da inexistência do facto em que se fundamenta o pedido de insolvência ou na inexistência da situação de insolvência. Para além disso, a não citação do devedor pessoa singular, por ter sido dispensada a sua citação, impossibilita que o mesmo, pelo menos no prazo previsto no artigo 236.º, n.º 1 do CIRE, possa deduzir o pedido de exoneração do passivo restante, bem como a possibilidade de apresentar um plano de pagamentos em alternativa à contestação, caso se verifiquem os pressupostos previstos na lei (cfr. artigos 253.º e 249.º do CIRE), o que igualmente indicia que a dispensa de citação acarreta uma conformação da lide que sempre poderá ser tida como mais desfavorável aos interesses do devedor.”
Concluindo, dir-se-á, portanto que em função do disposto nos artigos 195.º, n.º 1, alínea e), 198.º, n.º 1 e 201.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, ex vi do artigo 17.º do CIRE, por não se encontrarem preenchidos os requisitos da dispensa de audiência prevista no artigo 12.º do CIRE, foi cometido o vício da falta de citação do devedor, o qual gera a nulidade de todo o processado após a prolação do referido despacho.
Por conseguinte, esse despacho deve ser revogado e o processado subsequente anulado, assim procedendo o recurso. As demais questões suscitadas no recurso ficam como tal prejudicadas.

V.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, dando provimento à apelação, revogam o despacho recorrido e anulam todo o processado subsequente à prolação do mesmo.
Custas pela recorrida.

*
Porto, 12 de Dezembro de 2013.
Aristides Manuel Rodrigues de Almeida (Relator; Rto 104)
José Amaral
Teles de Menezes
____________
[1] Cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Júris, 2009, pág. 104.
[2] Neste sentido, cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.10.2011, relatado por António Santos, in www.dgsi.pt, onde se afirma que “estabelece o legislador, no nº 2, do artº 12º do CIRE, um dever vinculado do julgador (e não um poder discricionário, que ele exerce ou não segundo o seu prudente arbítrio), razão porque, inquestionável é que a sua omissão é passível de censura em recurso, da própria norma resulta outrossim que tal dever é para cumprir, é verdade, mas sempre que possível. Tal equivale a dizer que, se não obstante as diligências efectuadas com vista à audição prévia de um representante do devedor (neste âmbito não se justificam naturalmente que sejam empregues os mesmos índices de diligência empregues com vista à citação do próprio devedor), tal não se veio a revelar de qualquer utilidade, impõe-se inevitavelmente prosseguir com o processo, sendo que à não audiência do devedor acresce então e também a não audição v.g. de um seu parente (quando naturalmente em causa esteja uma pessoa singular)”.
[3] Suscitando a questão mas também sem conseguir dar uma resposta específica cf. Catarina Serra, in I Congresso da Insolvência, Almedina, 2013.
[4] Afirma-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05.11.2009, relatado por Ascensão Lopes, in www.dgsi.pt, que através da possibilidade de dispensar a audiência do devedor “é dado ao julgador um poder que deve ser utilizado com um especial cuidado e ponderados os interesses em jogo, potencialmente antagónicos. O da celeridade e o da segurança jurídica por via do exercício do contraditório.”
[5] Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.01.2012, relatado por Ana Resende, in www.dgsi.pt onde se afirma que “não se mostravam desde logo reunidos os pressupostos legalmente exigíveis para deferir tal exercício do contraditório para tão só após a prolação da sentença, e que nessa medida permitisse a dispensa da citação, da forma como foi efetuada. Assim, não se questionado que se está perante uma efetiva falta de citação…”