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ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
COMODATO
ABUSO DE DIREITO
Sumário
I- Não obstante o NCPC proceder ao alargamento e reforço dos poderes da Relação no domínio da reapreciação da matéria de facto, deve ser rejeitado o recurso, nessa parte, quando o recorrente não cumpre os ónus impostos pelos n.ºs 1 e 2, al. a) do art.º 640.º. II- Os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores e não criar decisões sobre matéria nova, pelo que não admissível a invocação de factos novos, sem prejuízo dos que são de conhecimento oficioso. III- O comodato precário não legitima a recusa de restituição, pelo comodatário ao proprietário, do bem emprestado, em acção de reivindicação. IV- Não abusa de direito o proprietário que reivindica um bem que fora objecto de contrato de comodato, por tempo indeterminado, celebrado por anterior proprietário.
Texto Integral
Proc. n.º 7571/11.4TBMAI.P1 – 3.ª Secção (Apelação)
Tribunal Judicial da Maia – 4.º Juízo Competência Cível
B…., casada, residente na Rua de …., n.º …, freguesia de …, concelho da Maia, intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo sumária contra C….., divorciado, residente na Rua …, n.º …, …., freguesia de …., concelho da Maia, pedindo que se declare que o prédio que identifica no art.º 1º da petição inicial é propriedade da autora, sendo o réu condenado a reconhecer esse direito de propriedade, bem como a restituir-lhe o imóvel em causa, livre de pessoas e bens, condenando-se, ainda, o réu a abster-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização por parte da autora desse mesmo prédio.
Pede ainda que o réu seja condenado a pagar-lhe, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de € 524,99, acrescido do montante mensal de € 250,00, até efectiva entrega do imóvel.
Para tanto, alegou em síntese, que adquiriu a propriedade de um prédio – que descreveu – por escritura pública de divisão de coisa comum que teve lugar em 06 de Maio de 2010, no Cartório Notarial da Notária Isabel Leão, prédio esse que se encontra ocupado pelo réu em razão de um comodato precário do imóvel, conferido no ano de 2004, por um dos anteriores comproprietários do imóvel, sendo certo que, por notificação judicial avulsa cumprida em 17 de Agosto de 2011, a autora fez cessar a autorização de tal ocupação, ou seja, deu por findo o comodato precário do imóvel, solicitando ao réu que restituísse o imóvel em causa no prazo de 30 dias, livre de pessoas e bens. Sucede que, decorrido o prazo fixado, que atingiu o seu termo em 16 de Setembro de 2011, o réu vem ignorando as suas obrigações, ao não se dignar entregar o imóvel, mantendo-se a ocupá-lo de forma abusiva e não consentida. A autora pretende arrendar o aludido imóvel, sendo certo que com esse arrendamento poderá obter um rendimento mensal, a título de renda, em montante nunca inferior a € 250,00, atenta a localização e características do mesmo, sendo certo que, em consequência da não entrega do imóvel por parte do réu, a autora está a ser privada desse valor mensal.
Citado o réu deduziu contestação, invocando uma excepção de ilegitimidade activa porquanto a presente acção deveria ter sido igualmente interposta pelo marido da autora. Para além disso, alegou que existiu um acordo verbal realizado com o réu, tendo-lhe sido garantido pelos proprietários do imóvel que o réu sempre poderia habitar o imóvel até à sua morte. Acresce que o réu não tem condições económicas que lhe permitam conseguir habitação.
A autora respondeu, alegando que o imóvel em causa é um bem próprio seu, pelo que não se verifica qualquer situação de litisconsórcio necessário activo. De qualquer forma, ainda que assim não se entenda, e considerando que a ilegitimidade é sanável mediante a obtenção do consentimento do outro cônjuge ou o seu suprimento, o cônjuge da autora deu o seu consentimento para a propositura da acção, juntando essa declaração, pelo que estaria sanada essa falta de legitimidade. Impugna ainda a factualidade alegada pelo réu e pede a sua condenação como litigante de má fé.
Proferiu-se despacho saneador, julgando-se improcedente a excepção de ilegitimidade invocada.
Dispensou-se a selecção da matéria de facto assente e da base instrutória.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, vindo o Tribunal a quo a proferir decisão sobre a matéria de facto, nos termos constantes do despacho de fls. 158 a 160, que não mereceu reclamação.
Foi proferida sentença, cujo segmento decisório é do seguinte teor: «Pelos fundamentos expostos, decide-se julgar a presente acção totalmente procedente, por provada, declarando-se que o prédio identificado na alínea A) dos factos provados é propriedade da autora, B….., e, em consequência, condena-se o réu, C….., a: - restituir o mencionado à autora, livre de pessoas e bens, bem como a abster-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização, por parte da autora, desse imóvel. - pagar à autora, a título de indemnização, a quantia de € 524,99 (quinhentos e vinte e quatro euros e noventa e nove cêntimos), acrescida do montante mensal de €250,00 (duzentos e cinquenta euros) até efectiva entrega do mencionado imóvel. Custas pelo réu, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia».
*
Inconformado com a sentença, apelou o réu, apresentando as suas alegações que culminam com as seguintes, CONCLUSÕES: 1. A factualidade provada, e articulada, não permite a condenação do apelante; 2. Há erro na apreciação da prova impondo-se a sua reapreciação e consequente alteração da definição de comodato. 3. O meritíssimo juiz a quo define o comodato dos autos como comodato precário; 4. Contudo, face á prova carreada (factura da EDP, depoimento testemunhal) impunha decisão diferente; 5. O contrato foi celebrado com prazo certo, concretamente até ao fim da vida do Réu, ora Recorrente; 6. No caso do comodato a prazo, como o caso de um comodato para toda a vida do comodatário, dada a natureza obrigatória do contrato, a A. é obrigada a respeitar o termo de duração do contrato; 7. Se assim não fosse, não faria sentido que o n.º 2 do artigo 1137.º do Código Civil prescrevesse que “se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restitui-la logo que lhe seja exigida”; 8. Pelo que a restituição mediante interpelação se impõe quando não foi convencionado prazo certo para a restituição nem determinado o uso da coisa; 9. Decorre, portanto, do referido normativo legal que em todos os casos em que se haja fixado prazo certo, o comodatário não será obrigado a restituir a coisa antes do decurso do prazo, a menos que haja justa causa para o efeito - art.º 1140.º do CC; 10. No caso dos cautos, não se pode afirmar que a ora recorrida tenha qualquer causa para terminar o contrato de comodato celebrado; 11. Da disciplina legal do comodato, ressalta ainda, entre as obrigações do comodante, que o mesmo se deve abster de actos que impeçam ou restrinjam o uso da coisa pelo comodatário, podendo mesmo, se tal acontecer, o comodatário lançar mão dos meios de defesa possessórios colocados ao dispor do possuidor, nos termos do art.º 1276 e ss. (artº 1133, n.ºs 1 e 2); 12. “Considerando que as partes podem, nos termos do disposto no artº 278, convencionar que os efeitos do negócio jurídico comecem ou cessem a partir de certo momento, vem igualmente constituindo entendimento prevalecente que o contrato de comodato celebrado por toda a vida do comodatário - ou seja, em que o comodante atribua (como aconteceu no caso em análise) o uso da coisa por toda a vida do comodatário - é válido, porque o seu termo, embora incerto, é determinável. A Morte é certa, o dia da sua ocorrência é que é incerto Vidé, neste sentido, e a propósito, Marques de Matos, in “Ob. cit. págs. 51/52”, o prof. Menezes Leitão, in “Ob. cit. pág. 384. nota 717”; os Profs. Pires Lima e A. Varela, in “Ob. cit. pág. 596, nota 4”; Ac. da RLx de 25/5/2000, in “CJ, Ano XXV, T3, pág. 101”e Ac. RP de 26/1/84, in “CJ, Ano IX, T1, págs., 232/233”). Logo, não tendo, no caso sub-júdice, ainda findado ou terminado uso (determinado) - o qual, em princípio, só ocorre com a morte da ré, se lá continuar a viver) - para que o dito prédio foi concedido à mesma (para sua habitação e ali continuando actualmente ainda a viver), não se verifica o pressuposto legal para que os autores (comodantes) possam exigir à ré a restituição do dito imóvel por cessação do contrato (à luz do artº 1137), já que não estamos na presença da conhecida figura do comodato precário.” In Acórdão RC, Proc. Nº 964/06 de 27/06/2006, disponível em www.dgsi.pt.; 13.“Do art.º 1137º do C. Civ. resulta que o contrato de comodato cessa ou termina quando finde o prazo certo porque foi convencionado; ou, não havendo prazo certo, quando finde o uso determinado para que foi concedido; ou, não havendo prazo certo e nem uso determinado, quando o comodante o exija. VI – Considerando que as partes podem convencionar que os efeitos do negócio jurídico comecem ou cessem a partir de certo momento, constitui entendimento geral que o contrato de comodato celebrado por toda a vida do comodatário – ou seja, em que o comodante atribua o uso da coisa por toda a vida do comodatário – é válido, porque o seu termo, embora incerto, é determinável.”- Ac. citado; 14. O contrato de comodato em apreço mantém-se plenamente válido e em vigor e uma vez que o prazo pelo qual foi constituído ainda não terminou, legitima a ocupação por parte do réu, pelo que, este pode recusar-se a abandonar o imóvel em causa; 15.“A existência de um contrato de comodato constitui precisamente um dos meios, previstos no nosso ordenamento jurídico, que obsta à entrega da coisa pelo seu detentor ao seu proprietário.”- Ac. STJ, de 15/12/2011, Proc. 303705.0TBVLG.P1.S1, disponível no sítio www.dgsi.pt; 16.Inelutável é, portanto, concluir que, como o comodato foi realizado para toda a vida, não assistirá ao comodante a possibilidade de exigir a restituição da coisa ad nutum; 17. Pois que resulta do regime legal do comodato que a restituição ad nutum será apenas admissível para aqueles casos em que a coisa foi entregue para o uso do comodatário sem qualquer fixação de prazo. 18. Se a lei quisesse inequivocamente impor a restituição ad nutum em todos os casos, tê-lo-ia seguramente dito no artigo 1137.º do Código Civil e não faria distinção entre o comodato com prazo certo e sem prazo, para efeitos 19. Em abono da verdade, sempre se terá de reiterar que se pretendeu, com o referido comodato, proporcionar até ao termo da vida do comodatário, ora recorrente, um local onde este pudesse acabar de forma condigna os seus últimos anos de existência; 20. E, contrariamente ao que a ora Autora pretende fazer crer, apesar de o comodato, na sua essência, ser um contrato de favor ou gentileza, certo é que in casu, o mesmo constituiu uma forma de recompensar o ora Recorrente pelos trabalhos por este levados a cabo nos prédios, propriedade da ora Recorrida e sua família; 21. Já que estes eram proprietários de diversos imóveis, onde o ora Recorrente, que exercia as funções de trolha de 1.ª, foi laborando; 22. O ora Recorrente é viúvo; 23. Padece de doença coronária crónica; 24. Não é proprietário de qualquer bem imóvel ou móvel sujeito a registo; 25. Aufere reforma no valor total de € 303,23 (trezentos e três euros e vinte e três cêntimos) mensais; 26. È forçoso, portanto, concluir que o mesmo vive no limiar da pobreza, não dispondo de meios económicos que lhe permitam arrendar qualquer imóvel; 27. A actuação da A. viola os princípios da boa fé, integrando a figura do abuso de direito – art.º 334.º do Código Civil; 28. O recorrente apenas executou trabalhos de servente nos prédios da A. e sua família pois que lhe foi criada a expectativa de que poderia habitar no referido imóvel até ao fim dos seus dias; 29. “ Para que haja abuso de direito, na concepção objectiva, não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, basta que tenha a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico, basta que objectivamente esses limites tenham sido excedidos de forma evidente. O abuso de direito na sua vertente de “venire contra factum proprium”, pressupõe que aquele em quem se confiou viole com a sua conduta os princípios da boa fé e da confiança em que aquele que se sente lesado assentou a sua expectativa relativamente ao comportamento alheio – Ac. STJ, Proc. 071B1964, de 28/06/2007, disponível em www.dgsi.pt; 30. “I - Assume a natureza de comodato o negócio jurídico pelo qual o proprietário de uma moradia consente que uma antiga amante e a filha de ambos utilizem esse mesmo imóvel, gratuitamente, com o fim especifico de nele habitarem. Este contrato é valido independentemente da observância de forma especial, que a lei não exige. Não se tendo fixado prazo de duração do respectivo uso habitacional e sendo a restituição sem termo previsto, não se trata de comodato precário mas antes destinado a satisfazer uma necessidade duradoura, pelo que não assiste ao comodante o direito de exigir, a qualquer momento, a restituição do imóvel, não podendo resolver o contrato sem justa causa.”- Ac. STJ, Proc. 073658, de 03/06/1986, disponível em www.dgsi.pt 31. A douta sentença violou, assim, expressamente, as normas citadas nestas alegações, devendo ser revogada, absolvendo-se o Réu do pedido, com todas as legais onsequências.
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A autora apresentou contra alegações que culminam com a seguinte, CONCLUSÃO:
Pelo exposto e pelo que doutamente for suprido, a decisão proferida por douta sentença
de fls. e ora recorrida deve ser mantida, porque está elaborada em harmonia com os preceitos legais e em estrito cumprimento da Lei, não tendo qualquer vicio que a invalide, negando-se por isso provimento ao recurso para se fazer, inteira e sã JUSTIÇA.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
* II
As questões a decidir incidem, essencialmente, sobre:
- Erro na apreciação da matéria de facto;
- Qualificação do contrato e verificação dos pressupostos para requerer a restituição do imóvel; e,
- Abuso do direito, por forma a verificar se o exercício do direito da autora de exigir a restituição da coisa emprestada viola os limites impostos pela boa fé.
III
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
A) A Autora é dona e legítima proprietária de um prédio misto, composto por casa de um pavimento, duas dependências, quintal e cultura, sito na Rua …, n.º …, no Lugar de …., freguesia de …, concelho da Maia, descrito a seu favor na Primeira Conservatória do Registo Predial da Maia sob o número setecentos e cinquenta e oito, inscrito na matriz urbana sob o artigo 63 e inscrito na matriz rústica sob o artigo 141.
B) Sendo que tal bem imóvel foi adquirido por escritura pública de divisão de coisa comum que teve lugar em 06 de Maio de 2010, no Cartório Notarial da Notária Isabel Leão, exarada a fls. 140 a fls. 103 verso do Livro de Cento e Cinquenta e um das notas para escrituras diversas.
C) O referido imóvel acha-se ocupado pelo Réu, em razão de um comodato precário do imóvel, conferido no ano de 2004, por um dos anteriores comproprietários do imóvel.
D) A Autora requereu, em 27 de Julho de 2011, neste tribunal a notificação judicial avulsa cuja cópia se encontra junta a fls. 22/23 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
E) O réu foi citado dos termos dessa notificação judicial avulsa em 17 de Agosto de 2011 conforme certidão de notificação cuja cópia se encontra junta a fls. 27 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
F) Após a data mencionada em 5) o réu não procedeu à entrega do imóvel.
G) A Autora pretende realizar obras urgentes de conservação do referido imóvel.
H) Pretende a autora colocar o imóvel no mercado de arrendamento.
I) O que lhe permitirá obter um rendimento mensal, a título de renda, em montante nunca inferior a € 250,00.
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Tendo assim resultado não provado, e designadamente, que:
1) O réu é actualmente reformado.
2) Não tendo qualquer formação profissional.
3) O réu aufere um montante inferior ao salário mínimo de reforma.
4) O réu, tendo em conta a sua idade e o facto de sofrer de doença crónica, encontra-se actualmente muito debilitado.
5) Estando a recuperar de doença cardíaca que o obrigou a estar internado durante largas semanas.
6) Sempre foi assegurado ao réu pelos proprietários do imóvel que poderia habitar no imóvel até à sua morte.
IV
Do erro na apreciação da prova:
Começa por sustentar o recorrente que, «Há erro na apreciação da prova impondo-se a sua reapreciação e consequente alteração da definição de comodato. O meritíssimo juiz a quo define o comodato dos autos como comodato precário. Contudo, face à prova carreada (factura da EDP, depoimento testemunhal) impunha decisão diferente».
Vejamos:
Dispunha o art.º 712.º, n.º1 do CPC, na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto, que a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto podia ser alterada pela Relação nos casos aí expressamente especificados, ou seja:
“a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685º-B, a decisão com base neles proferida; b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em quea decisão assentou”.
O NCPC, aprovado pela Lei nº 41/2003, de 26 de Junho introduziu significativas alterações no domínio dos poderes de reapreciação da matéria de facto consentidos à Relação, procedendo ao alargamento e reforço dos mesmos.
Dispõe hoje o n.º1 do art.º 662.º do novo diploma: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu n.º 2 que:
“A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento; b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova; c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Por sua vez, os n.ºs 1 e 3 do art.º 640.º do novo diploma reproduzem os n.ºs 1 e 5 do art.º 685º-B da anterior lei processual civil, correspondendo o n.º 2, com aperfeiçoamento da redacção e da sistematização, aos anteriores n.ºs 2 e 3 do normativo em causa do antecedente diploma, tendo neste sido amputado o respectivo n.º 4.
Se, por um lado, o apelante não indica nas suas conclusões de recurso quais os concretos pontos de facto dos articulados, pois não se procedeu à fixação da base instrutória, que considera erradamente apreciados pelo tribunal recorrido, por outro, quanto aos concretos meios probatórios, apenas refere que a prova carreada (factura da EDP, depoimento testemunhal) impunha decisão diferente, sem que a especifique, sequer.
O que se constata na verdade é que o apelante não cumpriu os ónus impostos pelos n.ºs 1 e 2, al. a) do art.º 640.º do NCPC, de forma a permitir o escrutínio desta instância sobre a decisão da matéria de facto, pelo que se rejeita o recurso nesta parte.
Consequentemente, mantém-se inalterada a decisão sobre a matéria de facto, integralmente.
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Mantendo-se inalterada a decisão da 1.ª instância quanto à matéria de facto, também não cabe conhecer, nesta sede de recurso, seja de factos não provados, seja de factos não alegados nos articulados.
É que invoca agora o recorrente, em sede de recurso, circunstâncias não alegadas na 1.ª instância – como sejam: que “sempre se terá de reiterar que se pretendeu, com o referido comodato, proporcionar até ao termo da vida do comodatário, ora recorrente, um local onde este pudesse acabar de forma condigna os seus últimos anos de existência; que o comodato celebrado in casu, constituiu uma forma de recompensar o ora recorrente pelos trabalhos por este levados a cabo nos prédios, propriedade da ora recorrida e sua família, já que estes eram proprietários de diversos imóveis, onde o ora recorrente, exercia as funções de trolha de 1.ª, foi laborando; que é viúvo, padece de doença coronária crónica; que não é proprietário de qualquer bem imóvel ou móvel sujeito a registo; que aufere reforma no valor total de € 303,23 mensais; que vive no limiar da pobreza, não dispondo de meios económicos que lhe permitam arrendar qualquer imóvel.
Invoca assim o recorrente nesta sede de recurso “factos novos”, não alegados nos articulados, pelo que são aqui inconsideráveis.
Como é sabido, no direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento – cfr. Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, LEX, 1997, pág. 395.
São meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre – cfr., entre outros, Acórdãos do STJ, de 03.02.1999, Proc. 98A1277, (Relator, Aragão Seia), e de 11.04.2000, Proc. n.º 99P312, (Relator, José Mesquita), acessíveis in www.dgsi.pt .
Deles se dizendo, por isso, que são recursos de revisão ou reponderação.
Não sendo, assim, admissível, a invocação de factos novos, nas alegações de recurso – cfr. Teixeira de Sousa, in ob. cit. págs. 395 e 454; Armindo Ribeiro Mendes, in “Os Recursos no Código de Processo Civil Revisto”, LEX, 1998, pág. 52; e João de Castro Mendes, in “Direito Processual Civil (Recursos), Ed. da AAFDL, 1972, págs. 23-24 -, sem prejuízo das hipóteses, de que nenhuma aqui se configura, de factos novos de conhecimento oficioso e funcional bem como dos factos notórios, cfr. art.º 412.º do NCPC (correspondente ao art.º 514.º do CPC).
Isto posto:
A autora instaurou a presente acção contra o réu pedindo que este restituísse o prédio misto composto por casa de um pavimento, duas dependências, quintal e cultura, sito na Rua …, n.º …, no lugar de .., .., concelho da Maia, alegando, no fundo, ser a dona e proprietária do mesmo e que o réu não tinha qualquer título que legitimasse a ocupação que dele vem fazendo, já que apenas tal ocupação se devia em razão de um comodato precário, conferido em 2004, por um dos anteriores comproprietários daquele prédio, sendo que a autora, por notificação judicial avulsa, cumprida em 17.08.2011, fez cessar tal autorização de ocupação, solicitando a restituição do referido prédio, no prazo de 30 dias, livre de pessoas e bens, o que o réu não cumpre.
Na sentença final reconheceu-se à autora o direito de propriedade sobre o referido imóvel (solução que não foi colocada em crise por qualquer das partes, e que por isso não abordaremos), condenando-se, em consequência, o réu a restituir o dito prédio à autora, livre de pessoas e bens, bem como a abster-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização, por parte da autora, de tal imóvel.
Condenação essa por aí ser considerado caber ao réu a alegação e prova de facto que legitime o uso desse prédio e, embora ele tivesse alegado, a este propósito que havia feito um acordo com os proprietários do imóvel que lhe garantiram que nele poderia habitar até à sua morte, o certo é que não logrou fazer prova desse acordo, pelo que resultou apenas assente que o réu habita tal imóvel em razão de um comodato precário, conferido no ano de 2004, por um dos anteriores comproprietários.
Vejamos, então:
Tal como a autora configurou e estruturou a presente acção, estamos claramente perante uma acção de reivindicação.
Como resulta do que atrás se deixou exarado, a autora alegando ser proprietária do referido imóvel veio pedir que o réu seja condenado a restituir-lho.
Já vimos que esse direito de propriedade sobre o imóvel foi reconhecido à autora pela sentença ora impugnada.
São dois os pedidos que integram e caracterizam a acção de reivindicação: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condennatio), por outro.
Como se sabe - entre outras formas que não interessa ora considerar - o demandado poderá contestar o seu dever de entrega, sem negar o direito de propriedade do autor, com base em qualquer relação (obrigacional ou real) que lhe confira a posse ou a detenção da coisa - cfr. Profs. Pires Limae A. Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, pág. 116.
Princípios esses que estão, de uma forma geral, consagrados no art.º 1311.º do CC.
E a existência de um contrato de comodato constitui precisamente um dos meios, previstos no nosso ordenamento jurídico, que obsta à entrega da coisa pelo seu detentor ao seu proprietário.
O comodato, como contrato típico e nominado que é, encontra a sua previsão e disciplina nos art.ºs 1129.º a 1141.º do CC.
Figura essa (o comodato) que naquele primeiro normativo se encontra definida como sendo um contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega a outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela com a obrigação de a restituir.
Contrato esse que é prevalecentemente caracterizado como sendo:
- um contrato de natureza pessoal (constituído intuitu personae), jáque é celebrado apenas no interesse ou benefício do comodatário;
- um contrato de natureza real (quod constitutionem), já que só se considera constituído e perfeito com a entrega da coisa (móvel ou imóvel), não bastante para tal o simples acordo de vontades;
- um contrato gratuito, dado que apesar de fazer surgir obrigações também para o comodatário (cfr. art.º 1135.º, do CC), todavia, nenhuma delas se apresenta como contrapartida pela utilização da coisa. Ou seja, não há a cargo do comodatário prestações que constituam o equivalente ou o correspectivo da atribuição efectuada pelo comodante. Significa, pois, isso que o comodante não tem direito a qualquer retribuição pelo uso que o comodatário faça da coisa.
- um contrato não sinalagmático, precisamente porque muito embora fazendo surgir obrigações para ambas as partes, todavia, não existe qualquer nexo de correspectividade ou relação de interdependência entre elas, e daí dizer-se também que é um contrato bilateral imperfeito.
- um contrato de execução continuada ou periódica, por prolongar a utilização da coisa pelo comodatário até que seja obrigado a restitui-la.
- um contrato não formal ou consensual, já que a sua validade não está dependente da observância de qualquer forma (art.º 219.º do CC).
- um contrato que, fundamentalmente, se funda em razões de cortesia, de favor ou gentileza do comodante a favor do comodatário - Cfr., a propósito desta figura, e para maior desenvolvimento, o Prof. Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações, Contratos em Especial”, Vol. III, 3.ª ed. Almedina, págs. 369/384; Marques de Matos, in “O Contrato de Comodato”, Almedina, 2005, págs. 7 e segs.; os Profs. Pires Lima e A. Varela, in Ob. cit., Vol. II, págs. 380 e segs; Rodrigues Bastos, in “Dos Contratos em Especial”, 1974, págs. 220/236” e o Prof. A. Varela, in “RLJ”, 119-185.
Ora, por todo o atrás exposto, ou seja, subsumindo as considerações de cariz teórico-técnico à conjugação de toda a matéria factual dada como assente somos levados a concluir (tal como o fez o Exmo. Juiz a quo) que estamos na presença de um contrato de comodato celebrado em 2004, entre um dos anteriores comproprietários do prédio ora reivindicado e o réu.
De entre as obrigações do comodante ressalta aquela em que o mesmo se deve abster de actos que impeçam ou restrinjam o uso da coisa pelo comodatário, podendo mesmo, se tal acontecer, o comodatário lançar mão dos meios de defesa possessórios colocados ao dispor do possuidor, nos termos do art.º 1276.º e segs., do CC (art.º 1133.º, n.ºs 1 e 2, do CC).
Por seu lado, de entre as obrigações do comodatário ressalta aquela de restituir a coisa ao comodante logo que findo o contrato (art.º 1135.º, al. h), do CC).
Sendo um contrato que, por natureza, é temporário, todavia, o nosso ordenamento jurídico não seguiu o caminho adoptado por outros (tais como o Italiano) de estabelecer prazos de duração máxima do contrato. Abordando tal questão, os Profs. Pires de Lima e A. Varela, in ob. cit. pág. 595, concluíram mesmo que “é difícil, entre nós, justificar qualquer limite legal de duração do contrato”.
Contrato esse que, nos termos gerais, se pode extinguir por caducidade, por denúncia ou resolução - cfr. o Prof. Menezes Leitão, in ob. cit., pág. 383.
Sumariamente, diremos que a extinção do contrato por caducidade ocorre por morte do comodatário, nos termos do 1141.º, do CC. Solução essa que se justifica pelo carácter pessoal do uso concedido pelo contrato, muito embora autores haja (cfr. os Profs. Pires de Lima e A. Varela, in ob. cit. pág. 600) que, contra a corrente dominante, defendem que estando nós perante meras presunções de vontade, e não perante disposição imposta por razões de ordem pública, possa ser admissível que os contraentes possam convencionar a continuação do contrato, por morte do comodatário, a favor dos herdeiros deste.
Causa de extinção que, como decorre do acima exarado, não ocorre no caso sub-judice, já que o réu-comodatário se mantém vivo.
Vejamos, agora, aquela segunda causa de extinção do contrato (por denúncia).
Estipula o art.º 1137.º, do CC, que “se os contraentes não convencionarem prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação” (n.º 1) e que “se não for convencionado prazo certo para a restituição nemdeterminado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida” (nº 2).
Resulta, assim, do estipulado em tal normativo que o contrato de comodato cessa ou termina necessariamente: a) Ou quando finde o prazo certo porque foi convencionado; b) Ou, não havendo prazo certo, quando finde o uso determinado para que foi concedido; c) Ou, não havendo prazo certo e nem uso determinado, quando o comodante o exija.
No caso em apreço, não se pode dizer que tenha sido convencionado prazo certo para a restituição ou para o uso da coisa (do prédio).
E será que determinaram o uso da coisa? E, em caso afirmativo, esse uso já findou?
Vejamos.
Dada a natureza do contrato, vem constituindo entendimento dominante que o uso só é determinado se delimitar, em termos temporais, a necessidade que o comodato visa satisfazer, ou seja, o uso determinado da coisa deve conter em si a definição do tempo de uso.
Por outro lado, deve ainda dizer-se que o uso determinado da coisa “emprestada” deve estar expresso de modo claro, por forma a não ser confundível com outro tipo de realidades jurídicas que giram à sua volta, nomeadamente, com a doação.
E, nesse caso, será devida a restituição, esgotado o período temporal estabelecido para esse uso, ou seja, como esclarecem os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in ob. cit. Vol. II, pág. 596, nota 3, nos exemplos ali apresentados: - empréstimo de um livro para figurar numa exposição bibliográfica, ou de um automóvel para certa viagem - logo que se esgote o tempo de duração da exposição e esta seja encerrada, ou a viagem termine.
Como se refere no sumário do Acórdão do STJ, de 31.05.1990, Proc. 077043, acessível inwww.dgsi.pt, (…) não pode confundir-se o fim a que a coisa emprestada se destina com o seu “uso determinado” a que se alude noartigo 1137.º do Código Civil, constituindo este uma sua espécie de que aquele seria o género.
Não pode, portanto, considerar-se como “determinado” o uso de certa coisa, se não se souber por quanto tempo vai durar, ou seja, se for concedido por tempo indeterminado. O que, de resto, se entende e concilia perfeitamente na medida em que, assente em relações de cortesia e gentileza, o comodato visa satisfazer necessidades temporárias.
Rodrigues Bastos in “Notas ao Código Civil”, Vol. IV, pág. 250, entendia que “tem de considerar-se a cedência sempre limitada a certo período de tempo, sob pena de se desrespeitar a função social preenchida por este contrato, cuja causa é sempre uma gentileza ou favor, não conciliável com o uso muito prolongado do imóvel (…). Um comodato muito prolongado de um imóvel converter-se-ia em doação (indirecta) do gozo da coisa, ou, se fosse para durar toda a vida da outra parte, o comodato caracterizar-se-ia em direito de uso e habitação”.
E este entendimento foi e é seguido em vários arestos dos tribunais superiores, nomeadamente, quando está em causa o empréstimo de casa para habitação do comodatário, até à sua morte. - cfr. neste sentido, a título de exemplo, os Acs. do STJ, de 16.02.1983, Proc. 070496; de 01.07.1999, Proc. 99B344; de 13.05.2003, Proc. 03A1323; de 16.11.2010, Proc. 7232/04.0TCLRS.L1.S1; de 15.12.2011, Proc. 3037/05.0TBVLG.P1.S1 e ainda Ac. RL de 14.10.2008, Proc. 2875/2008-1 e Ac. RC de 14.09.2010, Proc. 1275/05.4TBCTB.C1, acessíveis in www.dgsi.pt .
Com efeito, decidiu-se naquele Aresto do STJ de 15.12.2011 (Relator,Salazar Casanova), acessível inwww.dgsi.pt, que “quando a coisa é entregue para um uso determinado, tem-se em vista a utilização da coisa para um determinada finalidade, não a utilização da coisa em si. Emprestar a vivenda para a realização de uma festa constitui comodato para uso determinado, mas não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo da referida vivenda para habitação. Por isso, não será ao abrigo do uso determinado da coisa que ficará impedido o comodante de exigir a restituição ad nutum nos termos do artigo 1137.º/2 do Código Civil”. E, “o uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer, pelo que não se pode considerar como determinado o uso de certa coisa se não se ficar a saber quanto tempo ela vai durar, ou seja, um uso genérico e abstracto que pode subsistir indefinidamente, pois que, de contrário, se atingiria a própria noção do contrato dada pelo artigo 1129 do Código Civil, de que faz parte a obrigação de restituir a coisa entregue, o que revela o carácter temporal do uso”. Sendo que “Pelas razões expostas, afigura-se-nos preferível continuar a seguir a jurisprudência dominante e quase pacífica que indicámos. Quer isto dizer que quando a lei, no artigo 1137.º/2 do Código Civil, admite a restituição ad nutum “se não foi convencionado prazo para a restituição” ela tem em vista obstar à restituição apenas quando houve estipulação de prazo certo. Não há, para este efeito - o de obstar à restituição - tertium genus. A estipulação de uma cláusula “ para toda a vida” implicaria a vinculação das partes, no âmbito de um contrato de natureza obrigacional, a uma prestação correspondente ao usufruto vitalício, não sendo, portanto, válida uma tal cláusula (artigo 280.º do Código Civil) pelo menos enquanto cláusula que importe a ineficácia da faculdade de denúncia ad nutum. Para a lei o que releva é que num contrato desta natureza, em que não haja sido estipulado prazo certo, seja reconhecida a faculdade de denúncia ad nutum. Por isso, seja qual for a cláusula que permita considerar que o prazo convencionado não é um prazo certo, os termos estipulados não vinculam o comodante porque a lei optou por fazer sobrelevar a faculdade de denúncia ao princípio pacta sunt servanda. Tudo se passa como se A. convencionasse com B. que este utilizaria a coisa emprestada nas condições estipuladas salvo sempre a possibilidade de A. pedir a restituição da coisa. Atente-se que a fixação de um prazo incerto não será destituída de interesse. Assim, tornado certo o momento (certus an incertus quando) em que o contrato finda, impõe-se ao comodatário a obrigação de restituição da coisa (artigo 1135.º, alínea h) do Código Civil); não tendo sido convencionado prazo algum e atribuindo o comodante ao comodatário o gozo da coisa enquanto este quiser ou por tempo indeterminado, então impor-se-á ao comodante interpelação nos termos do artigo 1137.º/2 do Código Civil. No primeiro caso o comodatário incorre em responsabilidade imediata, no segundo caso só incorre em responsabilidade se não restituir a coisa depois de para tal, ser interpelado”.
Assim, e em conclusão (VI) considera este Aresto que, “No contrato de comodato, a cláusula pela qual o comodante declarou proporcionar a utilização da coisa até à morte do comodatário será válida desde que interpretada no sentido de que não obsta, por imposição da própria lei, a que o comodante possa sempre denunciar o contrato ad nutum “.
Contudo, não é unânime a jurisprudência nesta matéria.
É um facto que o contrato de comodato tem carácter temporário, pelo que a determinação do uso a que se refere o n.º 1 do art.º 1137.º do CC envolve, necessariamente, a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer.
Entendemos, porém, que só não se poderá considerar como determinado o uso de certa coisa quando, implicando este a prática de actos genéricos de execução continuada, não for concedido por tempo determinado ou, pelo menos, determinável.
E na esteira deste entendimento considera o Acórdão desta Relação, de 15.01.2007, Proc. 0652373 (Relator, Cura Mariano), que, “Assim, tendo sido convencionado que o comodato da casa se destinava a que a comodatária a habitasse até à sua morte, o comodante não pode exigir a restituição dessa casa, enquanto a comodatária nela residir. Logo, não tendo, no caso sub judice, ainda findado ou terminado o uso convencionado para que a dita casa foi comodatada – o qual, em princípio, só ocorrerá com a morte da Ré, se esta lá continuar a viver - não se verifica o pressuposto legal para que o Autor possa exigir à Ré a restituição do dito imóvel, por cessação do contrato, à luz do artº 1137º, do C.C.”, acessível inwww.dgsi.pt . Neste sentido e, acessível no mesmo sítio, cfr. entre outros, Acórdãos desta Relação de 24.05.2005, Proc. 0520792, (Relator Alziro Cardoso) e de 8.07.2004, Proc. 0421991(Relator Henrique Araújo)
No caso dos autos, conforme decorre da factualidade provada, a duração do contrato não foi convencionada, não tendo sido estipulado prazo certo para a restituição do imóvel identificado nos autos.
Não se provou que os anteriores proprietários do imóvel e o réu hajam convencionado o “uso determinado” do mesmo, pertencente à ora autora, pois não se lhe associou qualquer delimitação no tempo para o gozo do mesmo.
Nada permite determinar quando temporalmente findaria o seu uso e se tornaria exigível a sua restituição.
E, assim sendo, tal uso por tempo indeterminado não permite delimitar a necessidade temporal que, para o efeito, o comodato visa satisfazer.
Em face das considerações acima aduzidas, há que concluir que o referido imóvel ora pertencente à autora não foi pelos então proprietários emprestado ao réu para uso determinado ou, determinável.
A indeterminação do uso da coisa comodatada, bem como da não estipulação de prazo certo para a restituição, acarreta para o réu/apelante, na qualidade de comodatário, o dever de restituir a mesma, logo que a autora enquanto ora comodante o exigir.
Tal exigência, por parte da autora foi levada a cabo através da notificação judicial avulsa do réu, requerida em 27 de Julho de 2011, para que este restitua tal imóvel que está a ocupar, no prazo de 30 dias, sob pena de responder pelos danos causados, caso não cumpra a pretensão da requerente, tendo o réu disso sido notificado em 17 de Agosto de 2011.
Na verdade, não obstante o réu ter alegado na sua contestação que sempre lhe foi assegurado pelos proprietários do imóvel que poderia habitar no imóvel até à sua morte, o certo é que não logrou provar tal factualidade, situação esta a que parece não atentar o apelante, como se evidencia ostensivamente nas suas conclusões.
E, embora venha agora invocar o recorrente nesta sede de recurso circunstâncias não alegados na 1.ª instância,e como tal, na linha do que se deixou já dito supra, em sede de “factos novos”, são aqui inconsideráveis.
No caso em apreço, conforme decorre da factualidade provada, e é nesta que temos de atentar, não convencionaram as partes, por conseguinte, prazo certo para a restituição ou para o uso da coisa.
Bem andou, pois, o Tribunal a quo em julgar procedente a obrigação do réu restituir à autora o prédio emprestado e em considerar razoável o prazo dado pela autora ao réu para a restituição.
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Do abuso de direito, por forma a verificar se o exercício do direito da autora ao exigir a restituição da coisa emprestada viola os limites impostos pela boa fé.
O abuso de direito, como figura geral, está consagrado no art.º 334.º do CC que preceitua “É ilegítimo o exercício de um direito,quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico desse direito”.
A complexa figura do abuso do direito é, portanto, uma cláusula geral, uma válvula de segurança, que visa obstar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico que prevalece na comunidade social em que, por circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito, pese embora validamente conferido por lei.
O princípio enunciado neste preceito legal é um princípio geral que domina todo o direito, já que no moderno pensamento jurídico os direitos subjectivos sofrem vários limites - de ordem moral, teológica e social - sendo a ofensa destes que constitui o abuso de direito.
Como esclarece o Prof. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, págs. 436-438, para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar. E, para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade, à consideração do fim económico ou social do direito, fazendo apelo aos juízos de valor positivamente consagrados na lei.
Não basta, pois, que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores.
Como tem sido entendimento jurisprudencial, há abuso de direito quando, suposta a sua existência, ele é exercido com clamorosa ofensa da justiça, em termos que manifesta e intoleravelmente brigam com o sentimento jurídico dominante na colectividade, o que torna ilegítimo o seu exercício – cfr. Acórdãos do STJ de 08.11.84, in BMJ 341.º-418; de 25.06.86, 358.º-470 e de 20.10.87, 370.º, 559.
Também Manuel de Andrade, in “Teoria Geral das Obrigações”, págs. 64 e 65 considera abusivo o exercício de um direito sempre que o comportamento do respectivo titular se mostre, no caso concreto, gravemente chocante e reprovável para o sentimento prevalecente da colectividade.
Adoptou a lei, no citado art.º 334.º do CC, uma concepção objectiva de abuso de direito, uma vez que não é necessário que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito conferido, bastando que se excedam esses limites – cfr. os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, 4.ª ed., 289 e Mário Júlio de Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, págs.69 e segs..
O abuso de direito existe, portanto, quando admitido um certo direito como válido em tese geral, no caso concreto, o mesmo é exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça.
Como é sabido, agir de boa fé, no contexto do citado normativo, significa agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, e ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança e expectativa dos outros.
Como refere Mário Júlio de Almeida Costa, in ob. cit., pág. 76, por bons costumes há-de entender-se um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente. Logo, o exercício de um direito apresenta-se contrário aos bons costumes quando tiver conotações de imoralidade ou de violação das normas elementares impostas pelo decoro social.
O fim social ou económico do direito corresponde ao interesse ou interesses que o legislador visou proteger através do reconhecimento do direito em causa.
A censura do exercício abusivo do direito não pretende, em certos casos e circunstâncias, suprimir ou extinguir o direito, mas apenas impedir que o seu titular use tal direito. Pretende-se, ao cabo e ao resto que, em certas circunstâncias concretas, um direito não seja exercido de forma a ofender gravemente o sentimento de justiça dominante na sociedade.
São variadas as formas através das quais se pode manifestar o abuso de direito.
Da tipologia de actos abusivos enumerada por Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português”, Parte Geral, Tomo I, págs.198-213 encontram-se a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio, o tu quoque e o desequilíbrio no exercício. E, nesta última categoria de comportamentos abusivos, constituída pelo desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, pode ainda estar em causa: i) O exercício danoso inútil; ii) A exigência do agente daquilo que a seguir deva restituir; iii) A desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem.
Há então que aplicar estes ensinamentos ao caso em apreço e em função dos factos provados, por forma a apurar se a autora/apelada, com a sua actuação, excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé.
É verdade que ficou demonstrado que a cedência gratuita ao réu, por um dos anteriores comproprietários do imóvel foi efectuada por tempo indeterminado e que este o vem usando desde 2004.
Porém, nada se provou que aponte para a susceptibilidade de o réu poder, fundadamente, concluir que o empréstimo do imóvel se iria manter durante toda a sua vida.
Acresce que não é possível enquadrar, dentro da supra enunciada tipologia de actos abusivos, o direito exercido pela autora, de exigir a cessação do contrato de comodato, não relevando a alegação do apelante ao referir, só em sede de recurso, que se pretendeu com o referido comodato, proporcionar até ao termo da vida do comodatário, ora recorrente, um local onde este pudesse acabar de forma condigna os seus últimos anos de existência; que o comodato celebrado in casu, constituiu uma forma de recompensar o ora recorrente pelos trabalhos por este levados a cabo nos prédios, propriedade da ora recorrida e sua família, já que estes eram proprietários de diversos imóveis, onde o ora recorrente, exercia as funções de trolha de 1.ª, foi laborando; que é viúvo, padece de doença coronária crónica; que não é proprietário de qualquer bem imóvel ou móvel sujeito a registo; que aufere reforma no valor total de € 303,23 mensais; que vive no limiar da pobreza, não dispondo de meios económicos que lhe permitam arrendar qualquer imóvel. Constituem “factos novos”, não alegados na 1.ª instância, não demonstrados, assim, também aqui inconsideráveis, como supra já referimos.
Em qualquer caso, diga-se, como anotam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa, Anotada”, Vol. 1.º, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2007, págs. 836-837, o direito à habitação consagrado no art.º 65.º, n.º 1, da CRP, “não justifica por si mesmo a edificação em violação dos limites ao uso da terra e do planeamento urbanístico, nem legitima a ocupação de edifícios alheios, nem impede a demolição de habitações clandestinas. Do mesmo modo, o direito à habitação não preclude o funcionamento de um mercado de arrendamento, através da possibilidade de despejos em casos justificados e da liberdade de fixação das rendas. O direito à habitação justifica seguramente limitações à propriedade no caso de prédios arrendados, e não só (por ex., a penalização fiscal ou, no limite, a expropriação de prédios arrendados em favor dos inquilinos). Mas essas limitações devem obedecer a um princípio de equidade e de proporcionalidade. Os titulares passivos do direito à habitação, como direito social, são primacialmente o Estado e as demais colectividades públicas territoriais e não principalmente os proprietários e senhorios.”, (o sublinhado é nosso).
Do que fica dito, desde logo resulta que a autora, ao exercer o seu direito à restituição da coisa comodatada, não excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social desse direito, o que acarreta, também nesta parte, a improcedência da apelação.
Soçobra, por conseguinte, e in totum, a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
V
Face ao exposto, acorda-se nesta Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do apelante, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Porto, 18.12.2013
Teresa Santos
Maria Amália Santos
Aristides Rodrigues de Almeida