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ACÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
FALSA IDENTIDADE
COMUNICAÇÃO AO BANCO DE PORTUGAL
CONTRATO DE MÚTUO
INCUMPRIMENTO
Sumário
Não comete um facto ilícito culposo o banco que celebrou um contrato de mútuo com certas pessoas, recebeu as cinco primeiras prestações respectivas e, uma vez interrompido o pagamento, comunicou à Central de Responsabilidade de Crédito o incumprimento, associando-o às pessoas cuja identidade fora assumida pelo mutuário, e que ao ser confrontado com a alegação das pessoas que possuem essa identidade não anula de imediato a comunicação e decide esperar a produção de prova da falsificação.
Texto Integral
Recurso de Apelação Processo n.º 145/12.4TJPRT.P1 [Juízos Cíveis da Comarca do Porto]
Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. B…, contribuinte n.º ………, e mulher C…, contribuinte n.º ………, residentes em …, Vila Nova de Gaia, instauraram acção judicial contra D…, S.A., pessoa colectiva n.º ………, com sede em …, …, Oeiras, pedindo a condenação do réu i) a pagar aos autores a indemnização de €7.500,00, acrescida de juros de mora desde a citação e ii) a corrigir a comunicação feita ao Banco de Portugal e demais instituições bancárias a operar em Portugal.
Para o efeito, alegaram que apesar de não terem celebrado com o réu qualquer contrato, foram contactados para procederem ao pagamento das prestações de um contrato de crédito supostamente celebrado pelos autores mas que cujas assinaturas constantes do contrato em poder do réu os autores de imediato informaram serem falsas e não terem sido feitas pelos próprios. O réu não se certificou no momento da celebração do contrato, de que as informações correspondiam à verdade e não exigiu a presença dos contratantes no momento da assinatura do contrato, quando o devia ter feito. Os autores ao tomarem conhecimento dessa situação apresentaram queixa-crime que veio a ser arquivada. Apesar de os autores terem informado o réu dessa situação o réu comunicou ao Banco de Portugal que os autores não tinham pago prestações do alegado contrato, razão pela qual os autores viram recusado um pedido de empréstimo que solicitaram a outro banco, vendo afectado o seu bom nome e o seu crédito.
A acção foi contestada, pugnando-se pela improcedência total do pedido, mediante a alegação de que o contrato foi celebrado de modo perfeitamente normal, tendo o réu recebido através da internet os documentos necessários e aceite celebrar o contrato, do qual aliás chegaram a ser pagas algumas prestações. Tanto quanto é do seu conhecimento e resulta da documentação disponível os autores serão os legítimos titulares do contrato, não havendo, até ao momento, prova definitiva em contrário, mas apenas a alegação dos autores. Apesar disso decidiu aguardar pelo desfecho do inquérito e não dar à execução a livrança preenchida aquando da resolução do contrato por incumprimento. A comunicação ao Banco de Portugal é um procedimento a que está obrigado uma vez verificado o incumprimento do contrato de crédito e foi mantida porque esse incumprimento se manteve. A actuação do réu não causou aos autores qualquer prejuízo e muito menos vexame ou vergonha.
A acção prosseguiu até julgamento, findo o qual foi proferida sentença julgando o pedido de cancelamento do registo de incumprimento junto do Banco de Portugal extinto por inutilidade superveniente da lide e o pedido de condenação no pagamento da indemnização improcedente.
Do assim decidido, os autores interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações do seguinte modo:
“Conclusões:
a) A única questão que se colocou ao Tribunal “a quo” reconduzia-se a saber – in casu, assente que está que a R. não exigiu a presença dos AA. No momento da assinatura do contrato de crédito e, por via dessa omissão, permitiu que as suas assinaturas fossem falsificadas – se a R. praticou um facto ilícito e culposo, ao comunicar ao banco de Portugal o incumprimento de um contrato de crédito por parte dos AA., maxime após os AA terem comunicado à R. que esse contrato não tinha por eles sido outorgado, e ainda se desse comportamento da R. resultaram danos para os AA que devam ser ressarcidos e em que medida, satisfazendo-se assim o pedido de indemnização por eles formulado.
b) A decisão recorrida violou, nomeadamente, o disposto no art. 483º n.º 1, art. 484º e art. 496º n.º 1 todos do Código Civil, bem como também viola o art. 26º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
c) No domínio da responsabilidade extracontratual, importa desde logo apreciar se, in casu, se verificam os respectivos pressupostos constantes do artigo 483º do Código Civil, mais concretamente, se pode ser considerada ilícita a actuação da R. quando comunicou ao Banco de Portugal uma alegada situação de incumprimento dos AA. de responsabilidades bancárias ou quando não retirou tal comunicação face à informação que lhe foi prestada pelos AA. em confronto com a forma grosseiramente negligente como o contrato de crédito foi celebrado.
d) Importando, assim, igualmente indagar se o comportamento dos serviços da R., designadamente quando os AA. lhe comunicaram que não tiveram qualquer intervenção no contrato, revela uma atitude culposa.
e) Devendo ter-se também presente que é responsável civilmente quem, segundo o art. 484º do CC, afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, respondendo, neste caso, pelos danos causados.
f) Existindo, jurisprudencialmente, largo consenso no sentido de se considerar abarcada por esta responsabilidade, como constituindo conduta antijurídica, aquela que lese o crédito ou o bom-nome de outrem, quer os factos abrangidos sejam verdadeiros ou não verdadeiros, conquanto sejam dolosa ou culposamente apresentados e em condições susceptíveis de afectar esse crédito ou bom-nome, ou possuam virtualidade de atingir ou diminuir a confiança na capacidade da pessoa para cumprir as suas obrigações ou apresentando-a em condições desleais ou deformadoras, dessa forma afectando o crédito ou a imagem e reputação ou a integridade moral da pessoa visada.
g) Por crédito pode entender-se o prestígio da pessoa, gerador de confiança financeira, de convicção social de solvabilidade, ao passo que o bom-nome ou reputação abrangerá tudo o que se refere ao prestígio da própria pessoa, no plano da lisura e do relevo da sua conduta social.
h) De acordo com o entendimento perfilhado pelo Tribunal “a quo”, no caso em apreço, face à matéria de facto assente, “tenderíamos para considerar como abusiva a não comunicação imediata (isto é, após contacto do A.) por parte da R. ao Banco de Portugal no sentido de cancelar o registo de incumprimento, se não ocorresse uma circunstância que torna o caso em apreciação pelo menos invulgar e aceitável a posição da R.”
i) A R., segundo o Tribunal “a quo”, agiu de forma equilibrada e justificada, face às circunstâncias do caso (designadamente por ter ocorrido o pagamento das 5 primeiras prestações), ao não executar desde logo título bancário, e procedendo no sentido de remover a informação relativa ao incumprimento do contrato, logo que teve elementos que apontaram com alguma segurança de que teria ocorrido uma falsificação de assinaturas.
j) Não se poderão aceitar os argumentos constantes da decisão recorrida, porquanto os mesmos são contrários à lei e à jurisprudência dominante nesta matéria.
k) Da matéria de facto provada, não se poderá admitir que a efectivação pela Ré da comunicação ao Banco de Portugal se tenha operado num contexto legítimo, maxime se tivermos presente que o contrato de crédito foi assinado de forma não presencial – facto esse que é determinante e foi ignorado pelo tribunal “a quo”.
l) Ainda que se admitisse como mera hipótese – o que não se concede – que tal comunicação ao Banco de Portugal havia sido efectivada num contexto legítimo, um juízo desta natureza não se afigura possível de manter em face do que então se desenrolou, e que era do conhecimento da R., e que não mereceu da sua parte qualquer correcção da comunicação remetida ao Banco de Portugal.
m) É que, ab initio, a R., supondo que foram os AA. quem subscreveram um contrato de crédito que se encontrava por saldar, limitou-se a extrair dessa situação uma das consequências, dirigindo a um serviço centralizado uma comunicação que, na aparência, assentava sobre factos verdadeiros.
n) Comunicação que se impunha à luz do cumprimento de uma obrigação legal, conforme decorre da decisão recorrida.
o) Se contássemos apenas com a referida comunicação singela, não haveria razões para responsabilizar a R., porquanto esta teria actuado de boa fé, não existindo motivos para lhe assacar, por si só, a ilicitude comportamental.
p) Não é esta a fonte de responsabilidade da Ré no caso em apreço, mas antes a inércia que se seguiu a diversas comunicações feitas pelos AA., quer pessoalmente quer por intermédio do seu mandatário, devidamente circunstanciadas, e dando conta à R. das consequências ocorridas e da inexistência de qualquer incumprimento contratual por parte dos AA.
q) Apesar de os AA. sempre terem negado que tivessem tido alguma intervenção no contrato e alertado a R. para os sérios danos que lhes provocava a manutenção dos seus nomes na lista de “maus pagadores”, a R. nada fez.
r) Impotentes perante a inércia da R., os AA. participaram criminalmente os factos em discussão – cf. alínea j) dos factos provados - Certo é que, também aí a R. nada fez.
s) Face à inércia da R., os AA. viram-se então forçados a instaurar a presente acção, como se sobre eles recaísse o ónus da prova da sua inocência – Certo é que, também a instauração da presente acção, por si só, não foi suficiente para motivar a correcção da comunicação remetida ao Banco de Portugal.
t) Tais factos foram ignorados pelo Tribunal “a quo”, como também parece ter sido ignorado pelo Tribunal “a quo” que as consequências que nascem para uma pessoa (principalmente nos dias de hoje) de uma comunicação errada, seriam suficientes para impor um reforço do cuidado e diligência da R. que evitasse o erro e as suas consequências.
u) Cuidado e diligência que a R. não teve, quer ao permitir a celebração de um contrato de crédito dispensando a recolha presencial das assinaturas, quer ao não confirmar as assinaturas apostas nos contratos através de funcionários especializados na detecção de falsificação de assinaturas, quer ainda quando, perante a sua falta de rigor na recolha das assinaturas e o comportamento dos AA. que se seguiu, não deu o benefício da dúvida aos AA. e corrigiu a comunicação remetida ao Banco de Portugal.
v) A avidez pelo lucro não justifica que se aceite a celebração de um contrato de crédito sem se ter qualquer contacto com os mutuários, tal situação por si só é assustadoramente perigosa.
x) Ao aceitar a celebração de contratos nas condições supra mencionadas, a R. terá de assumir o risco e a responsabilidade pela ocorrência de eventuais falsificações e danos delas decorrentes.
w) Não se podendo aceitar que se diga que “quem provocou os danos aos AA. não foi a R., mas sim esses mesmos terceiros”.
y) Sempre esteve na disponibilidade da Ré (e não na disponibilidade de terceiros) a possibilidade de evitar a produção de danos aos AA..
z) Designadamente na origem do problema, solicitando, por exemplo, que as assinaturas no dito contrato fossem apostas presencialmente.
aa) Sempre podia dispor de meios técnicos e de funcionários especializados na detecção de falsificações de assinaturas.
bb) A R. podia e devia assumir as consequências da sua falta de rigor e, dando o beneficio da dúvida aos AA. face à comunicação que lhe foi enviada, negando a autoria das assinaturas, corrigia a comunicação remetida ao Banco de Portugal.
cc) Não se trata aqui apenas da inclusão dos seus nomes na lista, mas sobretudo de tais nomes aí se manterem, nas circunstâncias referidas.
dd) Realça-se que nem sequer foram ouvidos os argumentos apresentados pelos AA. relativamente ao total desconhecimento do empréstimo cujo pagamento lhes era exigido, nem tão pouco tiveram em conta as diligências realizadas no processo-crime e que, inequivocamente, indiciavam que o contrato foi celebrado mediante a prática de crimes (alínea m) dos factos provados), apesar de sempre se terem mostrado disponíveis para prestar quaisquer esclarecimentos, e de alertar, sucessivamente a R., como se referiu, para o facto de que tal situação lhes provocava sérios danos ao seu bom-nome e a impossibilitava de obter empréstimos junto de outras entidades bancárias.
ee) É sabido que no âmbito da legislação bancária e financeira se encontra, de facto, consagrado o direito de as instituições de crédito poderem organizar, “sob regime de segredo”, “um sistema de informações recíprocas com o fim de garantir a segurança das operações” (cf. art. 83º do Dec. Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro).
ff) Tais elementos, para além de não poderem ser utilizados para outros fins, envolvem a denominação legal de dados pessoais, de natureza sensível, pois dizem respeito à vida privada de qualquer cidadão – cf. arts. 3º, nº 1, 7º, nº 1, da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro.
gg) E enquanto dados pessoais dessa natureza estão abrangidos pela protecção legal conferida pela Lei de Protecção de Dados Pessoais.
hh) Os dados recolhidos pela Ré, ao abrigo de qualquer eventual contrato de crédito celebrado em nome dos AA., e relativos à concessão de crédito e solvabilidade, estão abrangidos pelas regras legais de protecção do tratamento de dados pessoais.
ii) Podia e devia a Ré, como bem sabe, assegurar aos AA., enquanto alegados titulares dos mesmos, o direito de informação e os direitos de actualização, rectificação e acesso relativamente aos seus dados – cf. arts. 10º e 11º da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro.
jj) O direito de informação inclui o tipo de dados, a sua origem e os fundamentos da indicação no momento da sua inserção no sistema. Sendo permitida a rectificação de erros e omissões ocorridas.
kk) Para esse efeito os dados pessoais devem ser mantidos actualizados e a entidade que os recolheu, e que processou o seu tratamento, deve tomar as medidas adequadas para assegurar que sejam apagados ou rectificados os dados inexactos, tendo em conta as finalidades para que foram recolhidos e para que são tratados posteriormente – cf. arts 5.º, n.º 1, al. d), 28º, nº 1, al. b), ambos da Lei 67/98.
ll)) E a falta de cumprimento dessa obrigação estabelecida no artigo 5.º n.º 1 al. d), da Lei 67/98, e a não eliminação de dados - (prevista no seu art. 11.º n.º 1, al. d)) - é tão grave, à luz dos normativos de protecção de dados, que a própria lei pune abstractamente essa conduta com coima pela prática de contra-ordenação prevista e punida nos termos do art.º 38º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro.
mm) Sendo a R. uma instituição financeira de crédito, tem de ser necessariamente dotada de meios para responder, em condições apropriadas de qualidade e de eficiência, os seus serviços têm que estar apetrechados e sensibilizados para enfrentar situações como a dos AA., e de pessoas que são injustamente envolvidas em operações comerciais, com vista a evitar ou, ao menos, atenuar, os efeitos negativos decorrentes de actuação similar.
nn) E não o fazendo, entende-se que o seu comportamento é passível de formulação de um juízo de censurabilidade e reprovabilidade pela conduta adoptada, e manutenção da mesma, porquanto não pode a Ré ignorar as consequências resultantes da sua comunicação ao Banco de Portugal.
oo) Sendo insuficiente para sustentar a tese contrária, a alegação de que o caso em apreço foge à “normalidade” das situações, na medida em que a pessoa que beneficiou do crédito pagou as 5 primeiras prestações, e perante essa realidade a R. terá compreensivelmente suposto que o contrato de crédito teria sido celebrado com a pessoa que figura no contrato como titular. (!)
pp) Esta argumentação é de extrema gravidade, na medida em que a R., enquanto instituição financeira de crédito, tem de se munir de todos os cuidados e diligências para garantir que os contratos de crédito são efectivamente celebrados com as pessoas que figuram nos contratos como titulares.
qq) A mera suposição de que o contrato terá sido celebrado com a pessoa que figura no contrato como titular, significará que falharam todos os cuidados e diligências que se impunham à R. e jamais tal suposição poderá ser entendida como compreensível, pelo contrário a mesma encerrará sempre uma dúvida que devia ter funcionado a favor dos AA. e motivado a correcção da comunicação remetida ao Banco de Portugal.
rr) Seguindo o entendimento vertido na decisão recorrida, os AA. são duplamente penalizados. Por um lado, são penalizados porque, sem culpa, viram em seus nomes serem registados no Banco de Portugal uma situação de incumprimento e, por outra lado, vêem-se privados do direito de serem indemnizados pelos danos daí decorrentes porque o beneficiário do crédito (alegado falsificador) pagou as 5 primeiras prestações, ao arrepio daquilo que é a “normalidade”.
ss) A circunstância dessa informação ao Banco de Portugal ser obrigatória, num quadro de incumprimento ou falta de solvabilidade de compromissos financeiros, relativamente a créditos vencidos e não pagos, nos termos do Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro, não desresponsabiliza a R., nem reduz a censurabilidade da sua conduta, porquanto, depois de ter sido alertada pelos AA., e seu mandatário, para a existência de um equívoco, nada fez para o atenuar ou corrigir.
tt) Após as sucessivas comunicações feitas pelos AA. e seu mandatário à Ré, após a participação criminal, após a instauração da presente acção, a R. não procedeu a qualquer averiguação no sentido de apurar responsabilidades quanto à eventual falsificação do documento em apreço, designadamente através de funcionários especializados em detecção de falsificações, mantendo rotineiramente pendente uma situação para que fora convenientemente alertada, com argumentos que deveriam ter sido oportunamente ponderados.
uu) Não pode deixar de se entender que a R. agiu, pelo menos, com mera culpa ou culpa em sentido estrito, omitindo, no mínimo, o dever de diligência (sublinhado nosso).
vv) Forçoso é concluir que todo o circunstancialismo fáctico supra alegado evidencia que a R. agiu muito aquém do padrão de diligência exigível, sendo a sua conduta censurável.
xx) Os AA. viram em seus nomes serem registados, e esses registos serem mantidos, no Banco de Portugal uma situação de incumprimento. ww) A R. não ignorará, e o Tribunal “a quo” também não, as dificuldades que a inclusão de tal base de dados do Banco de Portugal traz a quem desenvolve vários projectos por conta própria, para cujo desenvolvimento necessita de recorrer ao crédito.
yy) Com os transtornos, angústias e encargos inerentes porque atinge o património moral de quem quer que seja o ver-se incluído numa base de dados de incumpridores, “maus pagadores” ou clientes de risco.
zz) Essas angústias e transtornos, esses danos não são de somenos e devem merecer a tutela do direito, devendo, pela sua gravidade, ser indemnizados por quem lhes deu causa, nos termos do art. 496º do CC.
aaa) Deverá considerar-se como facto provado, até por se tratar de um facto notório, aquele em que se refere que com a comunicação feita ao Banco de Portugal no sentido de se incluírem os nomes dos AA. na lista de “maus pagadores”, a R. afectou directamente o bom-nome, o crédito e o prestigio dos AA. e que tal se traduziu na perda do crédito bancário.
bbb) Estão reunidos, in casu, os pressupostos da ilicitude e da culpa funcional da R., sendo a mesma responsável pelos prejuízos causados aos AA. com a sua conduta.”
O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II.
As alegações de recurso demandam deste Tribunal a resolução das seguintes questões:
i) Se é um facto notório que os autores viram afectado o seu bom nome e crédito.
ii) Se o réu cometeu um facto ilícito culposo por não ter anulado a informação do alegado incumprimento dos autores remetida ao Banco de Portugal.
III.
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
a) Em 27 de Fevereiro de 2009, o réu remeteu um fax ao autor marido em que referia, além do mais, que “na impossibilidade de contacto telefónico com V. Exa., solicitamos contacto urgente, assunto do seu interesse”, conforme documento n.º 1 junto pelos autores com a petição inicial.
b) O autor marido, contactou o réu a fim de se inteirar do teor do assunto, tendo o réu comunicado que o autor e a sua mulher se encontravam em situação de incumprimento perante a ré, pretendendo que procedessem ao pagamento das quantias de que, alegadamente, seriam devedores.
c) Nessa sequência, o autor deslocou-se a uma agência do réu no Porto, e obteve a documentação solicitada, designadamente cópia do contrato de crédito n.º 80003011083, conforme documentos n.os 2 e 3 juntos pelos autores com a petição inicial.
d) O autor analisou o referido contrato e comunicou ao réu que as assinaturas apostas no dito contrato, a sua e a da sua mulher, tinham sido falsificadas.
e) O réu comunicou ao autor que a quantia mutuada havia sido transferida para a conta do E…, com o n.º ……........., titulada pelo autor, conta essa que foi também indicada para efeito de débito das prestações do contrato de crédito, conforme doc. n.º 4 junto pelos autores com a petição inicial.
f) O autor deslocou-se às instalações do E…, e solicitou cópia dos documentos referentes à conta de que alegadamente seria titular, tendo o E… facultado ao autor cópias da ficha de cliente particular, do extracto de movimentos da referida conta, e de uma solicitação de transferência da quantia de €6.500,00 para a conta com o NIB …………………, pertencente a F…, conforme documentos n.os 4, 5, 6, 7, juntos pelos autores com a petição inicial.
g) As assinaturas constantes da ficha de cliente particular e da solicitação de transferência, não foram feitas pelos autores, tendo sido falsificadas.
h) A referida conta foi aberta no balcão do E… em …, Coimbra, e o autor reside em Vila Nova de Gaia.
i) Também no contrato de crédito n.º ……….. do réu e na ficha de cliente do E… foi indicada a Rua …, em Coimbra, como sendo a morada dos autores.
j) O autor participou criminalmente a situação ao Ministério Público de Vila Nova de Gaia, tendo dado origem ao processo n.º 121/09.4PHVNG, que correu termos pela 3ª Secção dos Serviços do Ministério Público de Vila Nova de Gaia.
k) Em 1 de Abril de 2009, o autor comunicou por fax ao réu e ao E… que havia participado criminalmente e remeteu-lhes uma cópia da certidão da queixa-crime apresentada, cf. documentos nºs. 9 e 10, juntos pelos autores com a petição inicial.
l) Esse processo-crime foi arquivado por falta de elementos de prova, conforme cópia do despacho de arquivamento junto como doc. n.º 11 junto pelos autores com a petição inicial.
m) No referido inquérito, foi inquirida a testemunha G…, funcionário do E…, que participou nos trâmites de abertura da conta, que esclareceu “ter sido contactado por um indivíduo de nome H… que trabalhava numa financeira denominada “I…”, que se deslocou ao banco para recolher os documentos necessários à abertura de conta, o qual alegou que os titulares não podiam fazer tal deslocação, indivíduo esse que nunca mais viu, o qual aparentava cerca de 60/65 anos, o qual terá ausentado para o estrangeiro, sendo que a citada financeira já foi encerrada”.
n) O autor disse a um terceiro que tentou obter um crédito mas não o conseguiu, por ter em seu nome registado no Banco de Portugal uma situação de incumprimento.
o) O réu comunicou ao Banco de Portugal que os autores se encontravam em situação de incumprimento, conforme n.º 12 junto pelos autores com a petição inicial, que na data de entrada da petição inicial não tinha sido retirada.
p) O réu não instaurou contra os autores qualquer acção com vista à cobrança judicial da dívida decorrente do referido contrato de mútuo.
q) À data dos factos, os autores tinham em vigor três contratos de mútuo celebrados com o J…, S.A., com o K…, S.A. e com o L…, sendo um deles o crédito habitação e os outros inerentes à utilização de cartões de crédito, estando todos a ser pagos, conforme doc. n.º 12 junto pelos autores com a petição inicial.
r) O réu não exigiu a presença dos autores no momento da assinatura do contrato de crédito.
s) Os autores sofreram aborrecimentos e perda de tempo.
t) Através de proposta de concessão de crédito que chegou ao réu via internet, foi celebrado em 25.03.2008 o contrato de crédito nº ………...
u) Recebida a solicitação para celebração do crédito na sua plataforma de internet, o réu remeteu para o autor da referida solicitação e para a morada então fornecida a carta cuja cópia junta como documento nº 1 pelo réu com a contestação, através da qual foi enviada a documentação que deveria ser preenchida e subscrita pelos proponentes/titulares do contrato e devolvida ao réu depois de devidamente preenchida e assinada.
u) Posteriormente, o réu recebeu o formulário destinado à formalização do contrato de crédito, preenchido com os elementos dos autores e com aparentemente as suas assinaturas no local a elas destinado.
v) Juntamente com o contrato de crédito, foi fornecida a documentação de suporte relativa aos autores: cópia dos respectivos bilhetes de identidade e números de contribuinte, cópia de recibo de água, comprovativo da morada indicada em nome do autor, e cópia de três recibos de vencimento do autor para demonstração dos rendimentos, conforme documentos n.os 2 a 7 juntos pelo réu com a contestação.
x) Foi ainda remetido ao ora aqui réu documento identificativo da conta bancária titulada pelo autor junto do E…, S.A. com o NIB …………………, conforme documento n.º 8 junto pelo réu com a contestação, e na qual deveria ser depositado o valor do capital mutuado.
w) Após a celebração do contrato de crédito, o montante mutuado no valor de €7.500,00 foi transferido para a conta bancária em causa, aparentemente titulada pelo aqui autor B…, conforme comprovativo da transferência efectuada em 14.04.2008 com cópia como doc. nº 9 junto pelo réu com a contestação.
y) A referida conta bancária foi ainda identificada, no contrato de crédito, como a que deveria ser utilizada para débito das prestações que seriam devidas ao abrigo do contrato e por cujo pagamento seriam responsáveis os respectivos titulares, que seriam os aqui autores.
z) Aquando da celebração do contrato, foi igualmente remetida ao réu autorização de débito em conta assinada pelo autor, a qual foi posteriormente remetida ao E…, S.A., para possibilitar o débito das prestações vencidas, conforme documento nº 10, junto pelo réu com a contestação.
aa) Celebrado o contrato e creditado na conta bancária identificada como sendo do respectivo proponente o montante do crédito solicitado, tendo por débito na conta bancária identificada sido efectuado o pagamento das cinco primeiras prestações vencidas, conforme extracto de conta junta como documento nº 11, junto pelo réu com a contestação.
bb) Após 19.09.2008 nada mais foi pago pelo que, em face do incumprimento do contrato de crédito, o réu veio em 20.08.2009 a proceder à resolução do contrato por incumprimento, tendo para o efeito enviado para as moradas constantes do contrato, cartas cujas cópias foram juntas documentos nºs 12 e 13 com a contestação.
cc) As referidas cartas, enviadas sob registo de correio, não foram recebidas conforme documentos nºs 14 e 15 juntos pelo réu com a contestação.
dd) Face ao incumprimento e resolução do contrato, o aqui réu procedeu ao preenchimento da livrança que igualmente havia sido entregue como garantia do cumprimento do contrato de crédito, conforme documento nº 16 junto pelo réu com a contestação.
ee) No processo de inquérito nº 121/09.4 PHVNG que correu termos na 3ª Secção dos Serviços do Ministério Público de Vila Nova de Gaia, não foi alcançada qualquer conclusão no sentido da falsidade da assinatura dos Autores no contrato de crédito ou de que os mesmos não o tenham com certeza celebrado, tendo o mesmo sido arquivado.
ff) O réu colaborou com o referido processo de inquérito, ao qual remeteu os elementos solicitados e entre eles o original do contrato de crédito celebrado.
gg) O réu comunicou aos autores que iria aguardar o desfecho da investigação em causa.
hh) O réu não mais foi contactado ou informado do desfecho do processo-crime, ignorando até ser confrontada com a presente acção que o mesmo havia já terminado.
IV. a] questão prévia:
Deparamo-nos nos autos com uma situação que se repete em inúmeros recursos e que representa não apenas uma violação da lei processual como um menosprezo pelo trabalho da parte contrária e do próprio tribunal.
Referimo-nos ao facto de o recorrente não se ter dado ao incómodo que cumprir o que o n.º 1 do artigo 685.º-A do Código de Processo Civil lhe impunha, isto é, formular, de forma sintética, as conclusões correspondentes aos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
Convém recordar que a formulação de conclusões serve um interesse processual digno de tutela: o de sintetizar os argumentos do recurso e de precisar as questões a decidir e os motivos pelos quais o devem ser no sentido pretendido. Com isso pretende-se alertar a parte contrária – com vista ao pleno exercício do contraditório – e o tribunal para as questões que devem ser decididas e os argumentos em que o recurso se baseia, evitando que alguma escape na leitura da voragem da alegação, necessariamente mais extensa, mais pormenorizada, mais dialéctica, mais rica em aspectos instrumentais, secundários, puramente acessórios ou complementares. E esse objectivo da boa administração da justiça é um fim em si, ou deve (devia) ser.
Ora o que se verifica é que o recorrente redigiu as suas alegações dividindo-as em artigos, depois escreveu a palavra “conclusões” e a seguir repetiu na íntegra, sem qualquer síntese, as alegações. Por outras palavras, do ponto de vista substancial o recorrente não formulou conclusões do recurso como devia, limitou-se a repetir a alegação duas vezes seguidas, intitulando a “segunda alegação” como “conclusões”, o que manifestamente não constitui uma forma válida de cumprimento da exigência legal (muitas vezes esta prática surge dissimulada com a não numeração das ditas “alegações” e a numeração das supostas “conclusões” ou, conforme a criatividade, através do uso de numerações distintas – uma ordinal e a outra cardinal, uma numérica e a outra alfabética, que é o “método” aqui seguido).
Sucede que nos termos do n.º 2 do artigo 685.º-C do Código de Processo Civil, o recurso é indeferido quando a alegação do recorrente não tenha conclusões. Substancialmente essa devia mesmo ser a decisão a proferir no caso. Até porque se a mesma se aplica nas situações em que a falta se deve a mera desatenção ou até lapso informático, se deve aplicar por maioria de razão às situações em que consciente e deliberadamente o mandatário se limita a repetir o texto das alegações, não podendo deixar de saber que não está a formular, como devia, quaisquer conclusões. Com muito boa vontade e atendendo apenas ao aspecto formal, poder-se-ia convidar o recorrente a aperfeiçoar (melhor dizendo, a formular) as “conclusões”.
Considerando, no entanto, que isso representaria apenas mais uma perda de tempo e de forma a não permitir que esta falha seja vista como um obstáculo inesperado ao conhecimento efectivo do recurso (prejudicando a própria parte que é quem tem o direito a que as suas razões de discordância da decisão sejam apreciadas), decidimos, no entanto, prosseguir sem mais com a análise dos fundamentos do recurso.
b] da matéria de facto:
Sem precisarem se pretendem recorrer também da matéria de facto e depois de afirmarem que no recurso é necessário “que se analisem os factos tidos como provados” na sentença, os recorrentes afirmam nos itens (repetidos) 55) e aaa) das suas alegações de recurso que deverá considerar-se provado, até por se tratar de um facto notório, aquele em que se refere que com a comunicação feita ao Banco de Portugal no sentido de se incluírem os nomes dos AA. na lista de “maus pagadores”, a R. afectou directamente o bom-nome, o crédito e o prestígio dos AA. e que tal se traduziu na perda do crédito bancário.
Na sentença recorrida, em sede de decisão da matéria de facto, julgou-se não provado que “com a comunicação feita ao Banco de Portugal, a R. afectou directamente o bom-nome, o crédito e o prestígio dos AA e que tal se traduziu na perda do crédito bancário e no vexame de se verem incluídos na lista de “maus pagadores”” e ainda que “o comportamento da R. causou angústias aos AA.”.
Independentemente de saber se no alegado facto referido pelos recorrentes não existirá algo de conclusivo, certo é que tendo o tribunal “a quo” proferido uma decisão sobre a sua verificação em sede de decisão da matéria de facto, pretendendo a modificação dessa decisão os recorrentes tinham de impugnar a decisão da matéria de facto quanto a esse ponto concreto.
Os recorrentes não mencionam em momento algum das suas alegações, de modo expresso, pretender impugnar essa decisão. O que parece deduzir-se do teor das alegações é a intenção de que este tribunal deduza, porventura por aplicação de presunções naturais, essa conclusão de todo o demais circunstancialismo demonstrado nos autos, como parece poder intuir-se da defesa de que estaremos perante facto notório.
No caso de se entender que essa intenção está manifestada de modo implícito nos referidos itens das alegações, essa pretensão esbarra no incumprimento dos requisitos legais de que depende a impugnação válida da decisão da matéria de facto.
Nos termos do artigo 640.º do actual Código de Processo Civil, o recorrente que pretenda impugnar a decisão relativa à matéria de facto deve especificar obrigatoriamente, sob pena de rejeição do recurso nessa parte, a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. No que respeita à indicação dos meios probatórios a norma legal exige ainda que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Os recorrentes, como vimos, ao contrário do que estavam obrigados a fazer, não indicaram qualquer meio de prova produzido nos autos para fundamentar a decisão que reclamam e a circunstância de se limitarem a defender que o facto em questão é um facto notório indicia que esses meios de prova pura e simplesmente não foram produzidos.
Acresce que de modo algum se pode considerar que aquilo que os recorrentes entendem dever ser “considerado provado” seja realmente um facto notório.
São notórios os factos cuja verificação é de tal modo provável ou frequente e de tal modo conhecida pela generalidade das pessoas de um determinado círculo que estas têm a sua verificação como certa ou inquestionável[2]. Na definição legal do artigo 412.º do actual Código de Processo Civil devem considerar-se notórios os factos que são do conhecimento geral. Esses factos não carecem de ser alegados nem de serem demonstrados, podendo o juiz levá-los em consideração na decisão mesmo que não hajam sido alegados pelo interessado nem sobre eles haja sido produzida qualquer meio de prova (artigo 5.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil).
Ora o evento que se alega ter gerado as consequências ditas notórias é a inserção do nome dos autores na lista de responsabilidades de crédito, lista essa que é elaborada para poder ser consultada pelas instituições financeiras em ordem a tomarem as suas decisões relativas à concessão de crédito. Não se trata, portanto, de uma informação que seja conhecida pela generalidade das pessoas ou a que qualquer pessoa possa aceder.
Acresce que dessa lista constam não apenas os créditos que estão em situação de incumprimento como os créditos que estão em situação de cumprimento. O que significa, desde logo, que para se poderem aferir as consequências do conhecimento da inserção do nome dos autores nessa lista é necessário saber quem teve acesso à lista, para que efeito acedeu à lista e que juízo ou resolução formulou em virtude das informações constantes da lista. Sem o esclarecimento desses aspectos é impossível afirmar que a inclusão de um nome na lista tenha uma consequência forçosa, inevitável, cuja verificação é extremamente provável de modos que seja do conhecimento geral e a generalidade das pessoas a tenha por certa. Só uma consequência com essas características podia ser considerada um facto notório.
Não se confundem com factos notórios aqueles cuja demonstração ou conhecimento pode ser alcançado com recurso às chamadas regras da experiência. Enquanto os factos notórios são factos concretos de conhecimento geral, os juízos baseados em regras de experiência são juízos gerais que consentem, por aplicação de uma regra relativa ao devir dos acontecimento humanos ou naturais, deduzir de um facto um outro facto do qual não existe prova directa mas cuja verificação se antevê como natural na presença de outro facto que resultou demonstrado. A prova daquele facto resulta assim de um processo mental que parte do facto demonstrado para, com recurso às regras da experiência e seguindo um raciocínio lógico, presumir a presença daquele, por a sua verificação se antever, nesse contexto, como absolutamente natural.
É certo que os tribunais podem fazer uso das presunções naturais para decidir a matéria de facto e mesmo para a interpretar, esclarecer ou completar (cf. Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 18.03.2004, processo 04B3526, in www.dgsi.pt). No entanto, uma vez que a 1.ª instância também deve fazer uso daquelas regras da experiência, se em 1.ª instância determinado facto foi julgado não provado, só é possível ao tribunal de recurso alterar essa decisão, invocando tais regras e as presunções naturais que as mesmas consentem, se a decisão relativa a esse facto tiver sido validamente impugnada. Com efeito, a decisão proferida sobre a matéria de facto só pode ser alterada pela Relação nos casos e nos termos previstos no artigo 662.º do actual Código de Processo Civil onde se não inclui a consideração oficiosa de regras de experiência ou presunções naturais[3].
Nessa medida, não tendo os recorrentes impugnado de forma válida a decisão da matéria de facto no tocante a este ponto concreto, está vedado a este tribunal decidir se apesar da ausência de qualquer meio de prova existe alguma máxima de experiência que consinta deduzir da mera inserção do nome dos autores na lista do Banco de Portugal a afectação do bom-nome, crédito ou prestigio dos autores. Mantém-se por isso inalterada a decisão da matéria de facto que provém da sentença recorrida.
c] da matéria de direito:
Em sede de subsunção dos factos ao direito, os recorrentes defendem que estão preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil. Vejamos se assim é.
Os autores pretendem com a presente acção obter o ressarcimento dos danos que sofreram em consequência de o seu nome ter sido incluído, mediante comunicação do banco réu, na lista da Central de Responsabilidade de Crédito, como incumpridores. Como fundamento jurídico da sua pretensão invocam o instituto da responsabilidade civil por facto ilícito.
Recordamos que em causa está uma situação em que o banco réu celebrou um contrato de crédito com terceiros que se identificaram com nomes e identidades falsas, e na sequência do não pagamento de prestações de reembolso do crédito efectivamente concedido, após o pagamento até à 5.ª, comunicou ao Banco de Portugal essa situação, fornecendo, naturalmente, a identificação dos clientes que possuía, daí vindo a resultar que os autores, uma vez que as identidades dos mutuários no contrato correspondiam às suas, viram o seu nome constar, como incumpridores, na lista da Central de Responsabilidade de Crédito apesar de não terem contratado com o réu a concessão do aludido crédito incumprido.
Confrontado pelos autores com a invocação de que não tinham celebrado qualquer contrato e que as assinaturas dele constantes eram falsificadas e posteriormente informado da apresentação pelos autores de uma queixa crime tendo por objecto essa falsificação, o banco réu manteve a comunicação do incumprimento ao Banco de Portugal até ao momento em que já na presente acção teve conhecimento do resultado do exame pericial às assinaturas onde os peritos concluíram ser provável que as assinaturas não sejam dos autores.
Na sentença recorrida entendeu-se que a comunicação efectuada pelo réu ao Banco de Portugal era, à partida, lícita, constituindo mesmo o cumprimento de uma obrigação legal, uma vez que o réu tinha efectivamente concedido um crédito e o mesmo estava em situação de incumprimento. Por essa razão, deslocalizou-se a discussão sobre a eventual ilicitude da actuação do réu da comunicação (inicial) para a revogação (posterior) da comunicação, procurando averiguar se o réu estava ou passou a estar, a partir de certo momento, obrigado a remeter ao Banco de Portugal uma nova comunicação, anulando a anterior. E concluiu-se que nas concretas circunstâncias do caso esse dever não se formou antes ter sido produzida nos autos a prova pericial e o banco ter sido confrontado com alguma prova de que não foram os autores a contratar consigo o crédito, pelo que tendo feito apenas nessa altura a anulação da anterior comunicação o réu não cometeu qualquer facto ilícito.
Os autores discordam desta leitura e acentuam os seguintes aspectos da actuação do banco réu: i) não ter exigido a presença dos mutuários no momento da assinatura do contrato de crédito; ii) não ter funcionários especializados na detecção da falsificação de assinaturas a confirmar as assinaturas que lhe são apresentadas; iii) não ter feito quaisquer diligências próprias para averiguar o que se tinha passado uma vez confrontado com a alegação dos autores de que não foram eles a celebrar o contrato; iv) não ter dado o benefício da dúvida aos autores apesar do relevo da comunicação ao Banco de Portugal do alegado incumprimento dos autores e de saber que estes tinham apresentado queixa-crime pela falsificação das suas assinaturas.
O réu por sua vez acentua o relevo dos seguintes factos: i) o contrato foi celebrado após fornecimento de cópias dos documentos necessários, incluindo de uma conta bancária aberta noutro banco, e estes documentos não permitiam detectar a falsificação; ii) até à realização do exame pericial nestes autos não havia prova de que não foram os autores a celebrar o contrato; iii) a comunicação ao Banco de Portugal já tinha sido feita assim que o incumprimento se verificou e antes de os autores contactarem o réu; iv) perante a informação da apresentação da queixa-crime decidiu esperar pelo seu resultado sem instaurar execução contra os autores mas mantendo a comunicação enviada ao Banco de Portugal; v) só agora através da acção teve conhecimento do arquivamento do inquérito e foi produzida prova da falsificação, altura em que anulou a comunicação.
Não há dúvida que o caso sub judice reclama a aplicação do instituto da responsabilidade delitual ou aquiliana. Entre os autores e o réu não existiu qualquer relação contratual que pudesse consentir que se chamassem à colação normas legais da responsabilidade contratual.
Por outro lado, a relação negocial estabelecida entre o réu e as pessoas concretas que sob uma falsa identidade se apresentaram, embora fraudulentamente, a contratar consigo não impunha ao réu deveres de prevenção, de cuidado e de protecção em benefício da generalidade das pessoas ou que qualquer pessoa pudesse reclamar justificadamente. Não seria possível e não é consentâneo com a vida em sociedade e o tráfego económico e jurídico hodierno que na celebração de um contrato os contraentes estivessem vinculados a admitir, detectar e evitar riscos deles decorrentes para toda e qualquer pessoa, desconhecida no momento da negociação, não referida no decurso dela e relativamente às quais era de todo insuspeito que os efeitos do contrato viessem a ter reflexos na esfera pessoal.
Por conseguinte, a análise jurídica que há-de sustentar a decisão final tem de se centrar na verificação dos pressupostos da responsabilidade civil consagrados no artigo 483.º do Código Civil, segundo o qual “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Como qualquer jurista sabe, usando as palavras incontornáveis de Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. I, 5ª ed., página 478, tais pressupostos são: a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) um nexo de causalidade entre o facto e o dano.”
Por facto entende-se todo o comportamento humano voluntário, no sentido de actuação humana consciente susceptível de ser controlada pela vontade e pela diligência do agente. Facto é assim a interferência no estado das coisas resultante da vontade humana que consiste ou numa intervenção na cadeia de acontecimentos (comportamento activo) que altera o que teria lugar se essa inovação não tivesse ocorrido ou numa ausência de intervenção (comportamento omissivo) que se traduz numa abstenção de uma actuação esperada.
Afirmar que o facto tem de ser voluntário não é o mesmo que defender que ele tem de ser intencional, deliberado, directamente desejado. O facto é voluntário desde que seja susceptível de ser imputado à vontade do agente, ou seja, desde que o agente possua o poder de o controlar. Não é voluntário o acto praticado, por exemplo, sob hipnose, mas já é voluntário o acto praticado por falta da diligência necessária para evitar o que o agente podia humanamente evitar ou por erro de avaliação ou pressuposição.
É manifesto que no caso o réu praticou um facto voluntário: comunicou, por vontade própria e deliberação consciente, ao Banco de Portugal que os autores, alegadamente mutuários num contrato de crédito consigo celebrado, tinham celebrado esse contrato e não tinham pago prestações de reembolso do mútuo obtido.
O que facto que releva para esta análise não é obviamente a celebração do contrato, ainda que indevidamente em nome dos autores. Com efeito, mais do que ser perfeitamente legítima a celebração do contrato e com qualquer pessoa (os autores podiam perfeitamente celebrar eles mesmos um contrato precisamente com o objecto), não é essa celebração que constitui a violação de qualquer direito subjectivo dos autores, designadamente o direito à identidade pessoal no que ela contém de direito à individualidade e não confusão com outrem, porquanto em momento algum vem arguido que o réu tivesse comparticipado conscientemente na celebração de um contrato com identidades falsas, sem o que não existe sequer facto voluntário (ainda que a título de co-autoria). Por conseguinte, a celebração do contrato apenas pode relevar para efeitos de apreciação do grau de ilicitude ou de culpa na comunicação ao Banco de Portugal de factos relativos ao contrato.
É a propósito dos requisitos da ilicitude e da culpa que a discussão tem de ser centrada.
Sabe-se que em sede de definição do âmbito da responsabilidade civil (artigo 483.º do Código Civil), a nossa legislação divide a ilicitude em duas modalidades básicas: a violação de um direito de outrem e a violação de qualquer disposição legal destinada à protecção de interesses alheios. No primeiro caso, a ilicitude advém da ofensa perpetrada a um determinado bem jurídico que a lei protege mediante a qualificação desse interesse como um verdadeiro direito da pessoa. No outro, a ilicitude provém de uma actuação desconforme com a regra de conduta que a lei impõe como forma de tutela de interesses de outrem.
O direito subjectivo é, segundo Orlando de Carvalho, in Teoria Geral do Direito Civil, Sumários para o 2º Ano, Centelha, 1981, pág. 31, o mecanismo de regulamentação adoptado pelo Direito, que consiste na concreta situação de poder que faculta a uma pessoa em sentido jurídico intervir autonomamente na esfera jurídica de outrem, seja porque lhe faculta o poder de exigir de outra um determinado comportamento positivo ou negativo seja porque lhe faculta o poder de por um acto de vontade seu produzir determinados efeitos jurídicos que se impõem inelutavelmente a outra pessoa. Entre os direitos subjectivos mais determinantes para a tutela efectiva da personalidade humana contam-se os chamados direitos de personalidade, como o direito ao bom-nome, à honra e à reputação.
Ao lado das duas modalidades básicas de ilicitude para efeitos de responsabilidade civil, encontram-se várias outras previsões específicas de actos ilícitos. Uma deles é o artigo 484.º do Código Civil, segundo o qual quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados.
Aqui a ilicitude traduz-se na ofensa ao crédito ou ao bom-nome de uma pessoa singular ou colectiva, através da divulgação de factos susceptíveis de os prejudicar. A ofensa ao crédito da pessoa ocorre quando se atinge, diminui ou coloca em causa a confiança dos outros na capacidade ou na vontade de uma pessoa para satisfazer as suas obrigações, a crença dos outros em que a pessoa não faltará aos seus compromissos. Já o bom nome de uma pessoa é ofendido quando se prejudica, diminui ou coloca em crise o conceito favorável que a pessoa tem na comunidade, o reconhecimento público da imagem positiva que ela logrou obter ou construir na comunidade com que se relaciona e onde é conhecida.
No que respeita à culpa, diga-se, citando de novo Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 5.ª ed., pág. 514, que agir com culpa é actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou a censura do direito, o que se verifica quando ele podia e devia ter agido de outro modo. Por outras palavras, a culpa exprime um juízo de reprovação ou de censura normativa da conduta do agente baseado quer em inconsideração, imperícia ou negligência, quer na inobservância de preceitos legais ou regulamentares. E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo.
Esse outro modo que serve de referência conformadora é, afinal, o modo como agiria um bom pai de família perante as mesmas circunstâncias, o modo como actuaria, em iguais circunstâncias, um tipo médio, dotado de mediana inteligência, diligência e sagacidade, colocado na posição do autor do facto – artigo 487º, nº 2, do Código Civil –.
A culpa, acrescente-se, pode revestir duas modalidades: o dolo ou a negligência ou mera culpa. Age com dolo aquele que procede voluntariamente contra a norma jurídica cuja violação acarreta o dano, ou com intenção de ofender o direito de outrem (dolo directo), mas também aquele que não querendo directamente o facto ilícito, todavia o previu como uma consequência necessária, segura, da sua conduta (dolo necessário), ou prevendo-o apenas como um seu efeito possível, se quedou insensível ante a possibilidade da respectiva verificação (dolo eventual). Age com negligência aquele que não procede com o cuidado e diligência a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz e que representa as consequências possíveis da sua actuação mas confia que elas não ocorrerão (negligência consciente) ou nem sequer chega a representar a possibilidade dessas consequências (negligência inconsciente). Pressuposto indeclinável da negligência é que o agente tenha capacidade para proceder com os cuidados que segundo as circunstâncias estariam indicados para afastar o perigo dessas consequências.
Discute-se se a divulgação de factos verdadeiros gera responsabilidade, mas não se questiona que a afirmação de factos consabidamente falsos e dotados daquela capacidade é ilícita. No entanto, como é evidente, se a divulgação do facto consubstanciar o exercício de um direito legítimo ou o cumprimento de um dever a ilicitude é excluída e o comportamento considera-se justificado. A obrigação do réu perante o Banco de Portugal é de comunicar factos reais, factos verdadeiros, informações correctas, pelo que não se pode escudar na obrigação de comunicação para defender que a comunicação é sempre legítima desde que corresponda ao seu conhecimento. Tudo depende de saber se o réu tem condições para saber que era falso que os autores tivessem celebrado o contrato e estivessem em incumprimento das respectivas obrigações[4].
Nesse ponto é necessário ter presente que a comunicação foi feita ao Banco de Portugal quando se verificou o incumprimento[5] do contrato de mútuo (incumprimento que efectivamente ocorreu). Ora nessa altura o réu não tinha ainda sido abordado pelos autores e por estes confrontado com a alegação de que não tinham sido eles a celebrar o contrato e que as assinaturas supostamente da sua autoria eram falsas. Por conseguinte, o que se pode questionar é se os termos em que se processou a negociação e celebração do contrato enfermam de alguma falha, imprevidência ou descuido que o réu tivesse o dever de não cometer.
Referem os autores a esse propósito que o réu devia ter exigido a presença dos mutuários no momento da assinatura do contrato de crédito e ter funcionários especializados na detecção da falsificação de assinaturas para confirmar as assinaturas que lhe são apresentadas. Todavia, independentemente do que se possa entender quanto à razoabilidade dessas exigências, melhor dizendo, desses cuidados, certo é que no caso está por demonstrar – e os autores não o alegam sequer - que se as mesmas tivessem sido observadas o réu teria detectado a burla que se aprestava para ser vitima e evitado a falsificação das assinaturas dos autores ou, ao menos, que ficavam criadas as condições para a poder ter detectado se tivesse observado cuidados básicos.
Na verdade, não se pode de modo algum excluir que os documentos de identidade possam ter sido falsificados de modo a passar despercebida a sua adulteração, tal como não se pode excluir que as pessoas que falsificaram as assinaturas no contrato fossem capazes de repetir essa assinatura na presença de outras pessoas. Repare-se que mesmo nos autos o resultado do exame pericial de reconhecimento das assinaturas imputadas aos autores realizado por técnicos credenciados, experimentados e dotados de meios técnicos específicos foi apenas no sentido de considerar “provável” que as assinaturas não sejam deles, ou seja, numa escala de 0 a 5, entre a “impossibilidade de formular qualquer conclusão” e a “probabilidade próxima da certeza científica da falsificação”, um grau de probabilidade de 2 (apenas mais que “pode ter sido” -1- mas menos que “muito provável” -3-, que “muitíssimo provável” -4- e que “probabilidade próxima da certeza científica da falsificação” -5-). Se isto é assim com técnicos e no âmbito de uma análise pericial, nada permite concluir que se o réu tivesse recolhido as assinaturas presencialmente e tivesse funcionários especializados na detecção da falsificação de assinaturas, a falsificação teria sido detectada e evitada.
Admitimos perfeitamente que a circunstância de o contrato ter sido remetido ao réu já assinado e de ter sido exigida apenas cópia dos documentos de identificação dos mutuários (bilhete de identidade, cartão de contribuinte) e dos demais exigidos para a celebração do contrato (recibos de vencimento, facturas de prestação de serviços essenciais, dados da conta bancária) possa potenciar o risco de falsificações e fraudes.
Não se argumente, todavia, que esse é o risco da actividade do réu e que se ele decidiu organizar-se desse modo deve suportar as consequências desse risco. Também para qualquer pessoa a má guarda ou custódia dos seus documentos de identificação potencia o risco de os mesmos lhe serem subtraídos e serem usados por terceiros para falsificações e usurpações de identidade. E tal como desconhecemos como foram falsificados os documentos que levaram o réu a celebrar o contrato (não temos nos autos sequer o originais dos documentos de identificação dos autores para comparar com as cópias recebidas pelo réu) também desconhecemos como é que os terceiros tinham em seu poder os documentos de identificação dos autores para os poderem falsificar.
Acresce que qualquer que seja o enquadramento dogmático da figura jurídica chamada a tutelar os interesses em conflitos nos encontraremos sempre perante uma responsabilidade por factos ilícitos e uma responsabilidade que exige a culpa. Por essa razão, para além de não se poder chamar à colação qualquer fonte de responsabilidade pelo risco ou presunção de culpa, certo é que a justificação da existência de um dever de cuidado pressupõe sempre a possibilidade de imputar subjectivamente ao agente (abstracto) o dever de ter esse cuidado como necessário.
Não é possível de modo algum sustentar, como defendem os recorrentes, que só porque a falsificação ocorreu o réu teve de omitir necessariamente os deveres de cuidado a que estava obrigado. A definição dos cuidados a que o réu estava obrigado tem abstrair do acontecimento em si mesmo e de ter como critério apenas a razoabilidade da sua exigência e a adequação da sua necessidade aos riscos normais da actividade concretamente desenvolvida. Abstraindo, como pretendem os autores, do modo como concretamente foi feita a falsificação, da capacidade comum de a detectar e evitar, temos para nós que é impossível imputar ao réu a violação de qualquer dever de cuidado na celebração do contrato que reflexamente se transmitisse à posterior informação da vicissitude do seu incumprimento[6], tornando esta (também) ilícita e/ou culposa.
Isto conduz-nos, como fez o Mmo. Juiz “a quo”, a reposicionar a discussão sobre a licitude e/ou a culpa do réu no momento posterior à celebração do contrato e à própria comunicação do incumprimento, colocando o acento na manutenção dessa informação apesar da abordagem dos autores no sentido de não serem eles os mutuários e de as assinaturas não terem sido feitas por eles.
Afigura-se-nos necessário antes de mais caracterizar devidamente a informação em causa. O réu tinha efectivamente celebrado um contrato de crédito e na sequência dele ficado com o direito a receber as prestações acordadas. A informação prestada ao Banco de Portugal era a de que tinha celebrado esse contrato e estavam por pagar prestações que somavam um determinado montante. Essa informação continha além disso a menção dos devedores que eram as pessoas que constavam como tal nos documentos em poder do réu, designadamente o contrato, a livrança e a conta bancária (aberta noutra instituição) para onde a quantia mutuada havia sido transferida.
Cremos que se deve dar relevância ao facto de se tratar de uma informação objectiva e fundada em elementos documentais credíveis e não de uma informação fundada numa mera avaliação subjectiva que o réu pudesse ter feito de algum facto ou circunstância. Por outras palavras, o réu não transmitiu juízos de valor próprios, transmitiu factos que podia documentar, e não prestou a informação de motu próprio mas apenas porque legalmente estava obrigado a fazê-lo.
Cremos ainda que se deve anotar que a informação em causa serve em primeira linha o interesse (privado) das instituições financeiras que a ela têm acesso de avaliarem melhor o risco representado por determinada pessoa e decidirem com mais propriedade se e em que termos lhe poderão conceder crédito. Mas serve ainda o interesse (público) da própria comunidade de que as entidades de concessão de crédito avaliem convenientemente os riscos dessa actividade em ordem a evitar a concessão desmesurada de créditos dificilmente cobráveis porque essa situação acabará, como os nossos dias comprovam dolorosamente, por gerar situações económicas artificiais de aparente abundância de recursos – as tão famosas “bolhas” – que conduzirão, mais tarde ou mais cedo, toda a comunidade para crises económicas.
A questão de saber se ao não ter anulado a informação assim que os autores o informaram que não tinham celebrado o contrato o réu cometeu um acto ilícito e culposo depende do juízo de valor que possamos fazer sobre a existência de um dever jurídico de fazer essa anulação.
Porque estamos a falar de um dever jurídico e não de um dever de cortesia, a sua afirmação pressupõe um fundamento dogmático. Não interessa se pensamos que o réu devia adoptar essa atitude. Interessa se as circunstâncias concretas eram de molde, fruto da ponderação dos interesses em jogo e da razoabilidade na distribuição dos riscos envolvidos, a fundar a existência de uma regra de conduta, um dever de actuação de valor jurídico, ou seja, susceptível de se sobrepor à liberdade de actuação individual e funcionar como regra válida para qualquer pessoa colocada no mesmo lugar. Com efeito, é o próprio artigo 486.º do Código Civil que prescreve que as simples omissões só dão lugar à obrigação de reparar os danos quando, independentemente de outros requisitos legais, havia, por força da lei ou de negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido.
Ao contrário do que defende o réu, não nos parece relevante o argumento de que enquanto não lhe fosse exibida a prova da falsidade o réu podia continuar a actuar como se os documentos e as assinaturas fossem inequivocamente autênticos. Resulta, com efeito, do disposto no artigo 374.º, n.º 2, do Código Civil, que tendo os autores impugnado as assinaturas que lhe eram imputadas, cabia ao réu, interessado em fazer valer os documentos contendo as assinaturas impugnadas, demonstrar que as assinaturas eram verdadeiras. O que significa que independentemente de saber se podia instaurar a execução para obter a satisfação do crédito – se possuía um título executivo não estava, muito provavelmente, impedido de o usar porquanto o seu valor de título executivo não era afectado pela eventual alegação extrajudicial da falsidade da respectiva assinatura[7] -, o réu não se podia recolher à posição cómoda de exigir que os autores provassem aquilo que em sede judicial teria de ser ele a provar.
Todavia, não atribuímos importância ao facto de o réu não ter encetado diligências próprias para apurar se o contrato tinha sido celebrado mesmo com os autores ou com outrem mediante a falsificação das assinaturas destes. Com efeito, tendo os autores assumido a iniciativa de apresentarem queixa crime e sendo o inquérito aberto na sequência dessa queixa um meio idóneo e independente para se apurar a verdade material, parece compreensível que o réu tenha decidido aguardar pelo desfecho desse inquérito em vez de fazer por si mesmo diligências que obviamente ficariam sempre aquém daquelas que o Ministério Público poderia vir a realizar. Ficou provado, com efeito, que o réu ficou a aguardar o resultado do inquérito e que apenas tomou conhecimento desse resultado – logo do seu insucesso no apuramento dos factos – no âmbito da presente acção que assim sucedeu ao inquérito penal como meio judicial de apuramento dos factos. E ficou ainda provado que o réu não instaurou qualquer execução contra os autores para obter o pagamento do crédito a que se julgava com direito tendo ficado a aguardar o resultado da prova judicial, na sequência do qual então sim anulou a informação.
Neste contexto, cremos bem que o elemento fundamental para a decisão passa pelo juízo de prognose que o réu podia e devia fazer sobre a possibilidade de estar a pôr em perigo interesses legítimos dos autores. Se no caso for possível considerar que o réu devia ter admitido como provável que os autores tinham razão na sua alegação, deve entender-se que estava obrigado a remover de imediato a informação que veiculara ao Banco de Portugal e que não o tendo feito omitiu culposamente uma actuação devida. Se, pelo contrário, os dados à sua disposição só lhe permitiam admitir esse cenário como possível mas não corroborado pelos elementos que tinha disponíveis, devemos entender que sobre o réu não recaía ainda um dever jurídico no sentido de anular a informação.
Nesse particular temos como absolutamente decisivo um facto também referido na decisão recorrida com esse objectivo. Trata-se da circunstância de ter sido efectuado o reembolso de algumas prestações do crédito concedido e a partir da conta bancária aberta noutro banco também em nome dos autores e para a qual o montante mutuado havia sido transferido. Esse facto, a nosso ver, sem outro indício que apontasse para a verosimilhança da alegação dos autores, justifica perfeitamente que ao réu não seja imputado um juízo no sentido de o julgar vinculado ao tal dever de actuação. Neste contexto, essa exigência afigura-se-nos excessiva, demasiada.
É preciso não esquecer, com efeito que a definição do âmbito da responsabilidade civil não tem apenas um objectivo de repartir os riscos da vida em sociedade, de definir quem deve suportar as consequências de um determinado evento danoso, impondo regras de actuação que tornem a vida em comunidade tolerável. A definição do seu âmbito serve ainda o interesse de viabilizar a própria vida dos membros da comunidade ao facultar a cada um saber com o que conta, saber como e perante quem actuando de uma determinada forma poderá ter de responder, permitindo-lhe tomar as suas decisões de modo consciente e responsável e aproveitar a liberdade de agir que o direito naturalmente lhe proporciona. Nessa medida, o desenvolvimento de regras de actuação e de normas de conduta capazes de gerar consequências que não estejam explícitas antecipadamente (diríamos, desenvolvimento praeter legem) só deve ter lugar em casos devidamente justificados seja pelo relevo social do resultado que com elas se quer evitar, seja pelo grau de censura que é possível fazer incidir sobre o agente. Se nos é permitido, no direito é tão de evitar que a culpa morra solteira, como forçar um casamento entre nubentes com sentimentos vagos e incertos.
Concluímos, pois, que no caso, ao não ter anulado a informação do incumprimento dos autores transmitida antes ao Banco de Portugal o réu não cometeu um facto ilícito e culposo que o faça responder pelos danos causados aos autores ainda que se tenha vindo a apurar que não foram os autores a celebrar o contrato a que respeita aquele incumprimento.
As normas legais de protecção dos dados pessoais em nada interferem com esta conclusão uma vez que o direito à correcção dos dados incorrectos pressupõe sempre a demonstração da sua incorrecção e, portanto, daí não advém nenhuma obrigação de eliminação ou rectificação dos dados antes de se apurar que os mesmos são incorrectos ou independentemente dessa demonstração. Não resulta de nenhuma das normas deste diploma um dever de cuidado acrescido, cuja afirmação prescinda de algumas das considerações que acima se expuseram sobre a ilicitude e a culpa. O mais que as disposições da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, trariam para a discussão que aqui nos ocupa seria um fundamento específico da ilicitude da conduta, se acaso não existissem já os artigos 484.º e 486.º do Código Civil, que permitem, todavia, resolver inteiramente a questão jurídica suscitada nos autos.
Podemos assim concluir dizendo que improcedem as conclusões do recurso e que a sentença recorrida deve ser mantida.
V.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação confirmam a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes (tabela I-B).
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Porto, 30 de Janeiro de 2014.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto111)
José Amaral
Teles de Menezes
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[1] E sem prévio convite a qualquer aperfeiçoamento, uma vez que este vício – a falta de conclusões – conduz automaticamente à rejeição de recurso sem que a lei preveja a possibilidade da sua sanação – neste sentido Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil – Novo Regime, Almedina, pág. 155 –.
[2] Escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.10.2005, processo n.º 05A3054, in www.dgsi.pt, que o facto notório tem que ser conhecido, “não bastando para tal classificação qualquer conhecimento, pois é indispensável um conhecimento de tal modo extenso e difundido que o facto apareça como evidente, revestido de um carácter de certeza resultante do conhecimento do facto por parte da massa dos portugueses que possam considerar-se regularmente informados por terem acesso aos meios normais de informação”. Identicamente, escreveu-se no Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 26.09.1995, in Boletim do Ministério da Justiça, 449, pág. 293, que ao definir os factos notórios como os que são do conhecimento geral a lei elege “o conhecimento, e não os interesses, como critério de notoriedade, a lei faz apelo a uma ideia de publicidade, implicando a extensão e difusão do conhecimento à grande maioria dos cidadãos, de modo que o facto apareça revestido de um carácter de certeza". E no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-06-2010 sublinhou-se que “um facto é notório quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos”. Cf. ainda Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, pag. 397, Castro Mendes, in Do Conceito do Prova em Processo Civil, págs. 628-636, e Vaz Serra, Provas, in Boletim do Ministério da Justiça, 110, págs. 83-88.
[3] Neste sentido, no domínio do anterior Código de Processo Civil, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18.04.2005, processo n.º 05B3162, e de 20.06.2006, processo n.º 06A1647, e do Tribunal da Relação de Lisboa de 31-05-2007, processo n.º 4269/2007-6, in www.dgsi.pt; Calvão da Silva, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 135.º, pág. 127.
[4] Refere Sinde Monteiro, in Ofensa ao crédito ou ao bom nome, "culpa de organização" e responsabilidade da empresa, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139.º, 3959, pág. 128, que não é porque a informação transmitida a terceiros é susceptível de diminuir a confiança na capacidade e vontade para cumprir as obrigações que a comunicação “tem logo por isso de ser ilícita….Existe aqui a patente possibilidade de se estar perante um conflito no exercício de direitos ou liberdades fundamentais… A conduta só será ilícita se … tiver violado algum dever de cuidado que nas circunstâncias se impusesse … quando podia e devia tê-lo evitado. Ou seja, não se pode dizer que se verifica um acto ilícito pela simples razão da afirmação, mesmo implícita, de um facto capaz de prejudicar o crédito de um empresário, como também não se pode afirmar sem mais que não há qualquer acto ilícito pelo facto de … se limitar a exercer a sua actividade empresarial normal, em termos de liberdade económica.”
[5] Este aspecto, muito importante no caso concreto, não resulta, contudo, totalmente claro da matéria de facto. Na petição inicial os autores limitaram-se a alegar que em Março de 2009 tinham informado o réu que as suas assinaturas no contrato eram falsas e que no início de Maio de 2009 a comunicação existia. Todavia, o documento que juntaram para provar esse facto – e que é apenas relativo à autora, inexistindo nos autos documento relativo ao autor – reporta-se às “responsabilidades referentes a 31 de Maio de 2009”, não mencionando a data da comunicação nem se a informação já antes constava da lista. O réu no artigo 41.º da contestação confessa que fez a comunicação quando se verificou o incumprimento do contrato e que quando foi abordado pelos autores alegando a falsidade das suas assinaturas decidiu manter essa informação.
[6] No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.01.2011 (Salazar Casanova), in www.dgsi.pt defende-se que incorre em responsabilidade o banco que solicita ao mutuário a entrega de livrança subscrita em conjunto com terceiro, confiando que a assinatura desse terceiro subscritor era verdadeira, não a conferindo com a assinatura aposta em bilhete de identidade. Todavia, na matéria de facto do caso aí decidido não encontramos qualquer facto que revele que a assinatura na livrança era desconforme da do bilhete de identidade e que permitisse deduzir que se a conferência das assinaturas tivesse sido feita a falsificação teria sido detectada.
[7] Neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.09.2010 (Nuno Cameira) in www.dgsi.pt em cujo sumário se pode ler: I - Não comete facto ilícito e, por isso, não responde pelas perdas e danos decorrentes da penhora efectuada, o Banco que, sendo portador legítimo de duas letras por virtude do disposto no art. 16.º da LULL, move uma execução contra a aceitante para pagamento das quantias inscritas nos títulos. II - O facto do Banco ter sido avisado pela aceitante de que a sua assinatura era falsa e de ter decaído nos embargos por não ter provado, como lhe competia, a respectiva veracidade, é insuficiente para tornar ilícita a promoção e desenvolvimento do processo executivo.