DECLARAÇÕES DE CO-ARGUIDO
COMPARTICIPANTE
OMISSÃO DE DILIGÊNCIAS ESSENCIAIS
NULIDADE DEPENDENTE DE ARGUIÇÃO
Sumário

I – Inexiste impedimento legal a que um comparticipante não constituído arguido nos autos (por, à data dos factos, não ter completado 16 anos de idade) deponha como testemunha na audiência de julgamento em que estão a ser julgados outros comparticipantes.
II – A omissão de diligências probatórias que podiam/deviam ser ordenadas, oficiosamente ou a requerimento, pelo tribunal constitui uma nulidade dependente de arguição [art. 120.º, n.º 2, al. d), do CPP], que pode ser invocada em sede de recurso, ou uma irregularidade [art. 123.º, CPP], conforme se trate de diligência essencial ou simplesmente necessária à descoberta da verdade.

Texto Integral

Processo n.º 648/11.8 PBCHV.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório

No âmbito do processo comum que, sob o n.º 648/11.8 PBCHV, corre termos pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Chaves, B…, devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento, por tribunal singular, acusado pelo Ministério Público da prática, em co-autoria material, de um crime de roubo simples.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, por sentença datada de 30.05.2013 (fls. 144 e segs.), depositada na mesma data, foi o arguido absolvido.
Inconformado, o Ministério Público, representado pela Sra. Procuradora-Adjunta naquele tribunal, veio interpor recurso da sentença absolutória para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação e condensados nas seguintes conclusões (em transcrição integral):
1. “Nos presentes autos o arguido B… foi submetido a julgamento e absolvido da prática do crime de roubo, p. e p. pelo art. 210°, do C. Penal.

2. A testemunha C… foi arrolado como testemunha, no despacho final de acusação e a M.ma Juiz ao abrigo do art. 133°, n°2 permitiu que o mesmo se recusasse a depor em sede de audiência de discussão e julgamento.

3. Resulta do despacho de acusação que a testemunha C…, praticou os factos denunciados nos autos, conjuntamente com os aqui arguidos.

4. À data da prática dos factos denunciados nos autos, a testemunha C… tinha 15 anos, sendo por isso inimputável, atenta a sua idade.

5. Devido à sua idade foi extraída certidão do processado durante o inquérito, para instruir Processo Tutelar Educativo a instaurar ao menor C….

6. A testemunha C… nunca foi constituído arguido nos presentes autos.

7. A inquirição desta testemunha revela-se necessária para a descoberta da verdade.

8. Razão pela qual o Ministério Público, arguiu a nulidade para a acta na audiência de discussão e julgamento desse acto, a qual foi indeferida e como tal interposto o competente recurso.

9. Ao permitir que a testemunha C… se recusasse a depor, a M.ma Juiz praticou actos que se traduziram na omissão de diligências que eram essenciais para a descoberta da verdade.

10. Tal decisão é nula, porque contraria a lei, nos termos do art. 120°, n° 2, al. d.) do C.P. Penal.

11. A declaração de nulidade dessa decisão implicará, necessariamente e por arrastamento, a nulidade da douta sentença ora recorrida, nos termos do art. 122°, n° 1, do C. P. Penal

12. A douta decisão recorrida, por erro de interpretação, violou o disposto nos arts. 120°, n° 2, al. d), 131° e 133°, n° 2, todos do C.P. Penal.

13. Deverá, assim, dar-se provimento ao presente recurso, declarando-se inválida a douta sentença proferida nos presentes autos, ordenando-se a prolação de nova sentença, após a inquirição da testemunha C…, em sede de audiência de julgamento.

*
Como ali se refere, o Ministério Público já havia interposto recurso de um despacho pelo qual fora indeferida a arguição de nulidade por omissão de diligência de prova (audição da referida testemunha) essencial para a descoberta da verdade.
O recorrente sintetizou a motivação desse recurso interlocutório nas seguintes conclusões:
1. Nos presentes autos C… foi arrolado como testemunha no despacho final de acusação.

2. Resulta do despacho de acusação que a testemunha C…, praticou os factos denunciados nos autos, conjuntamente com os aqui arguidos.

3. À data da prática dos factos denunciados nos autos, a testemunha C… tinha 15 anos, sendo por isso inimputável, atenta a sua idade.

4. Devido à sua idade foi extraída certidão do processado durante o inquérito, para instruir Processo Tutelar Educativo a instaurar ao menor C….

5. A testemunha C… nunca foi constituída arguido nos presentes autos.

6. Em sede de audiência de discussão e julgamento, nos presentes autos, a testemunha C…, foi advertido nos termos do art. 133°, n° 2, do C.P. Penal, quando inquirida.

7. Foi arguida de imediato a nulidade indicando omissão de diligências para a descoberta da verdade material, nos termos do art. 120°, n° 2, al. d) do C.P. Penal.

8. A Mma. Juiz “a quo”, julgou improcedente a arguida nulidade, indicando como fundamento estar perante uma situação enquadrável no art. 133°, n° 2 do C.P. Penal e que a inquirição do C… como testemunha só seria possível se o mesmo expressamente consentisse, face ao disposto no art. 133°, n° 1 e 2, do C.P. Penal — pois o C… foi objecto de um outro processo — ainda que tutelar educativo — e os factos que lhe são imputados nesses autos são os mesmos que foram imputados aos outros dois arguidos.

9. O Processo Tutelar Educativo, visa educar ou reeducar o menor para o direito e a sua inserção, de forma digna e responsável, na vida em comunidade (art. 2° da LTE) e não responsabilizá-lo criminalmente, por esse motivo pratica factos qualificados como crime e não crimes, uma vez que é inimputável (art. 19°, do C. Penal).

10. Os presentes autos e o Processo Tutelar Educativo são totalmente autónomos e independentes entre si, não se podendo considerar que estamos perante a figura de “separação de processos” ou “conexão de processos”.

11. A Mma. Juiz “a quo” ao permitir que a testemunha se recusasse a depor, praticou actos que se traduziram na omissão de diligências essenciais para descoberta da verdade, sendo tal decisão nula atento o art. 120°, n° 2, al. d) do C.P. Penal.

12. Deverá, assim, dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-se por outra que declare inválido 0 acto que permitiu a recusa de depoimento conferida à testemunha C… e se determine que a mesma seja inquirida em sede de audiência de discussão e julgamento na qualidade de testemunha sujeito às obrigações legais inerentes a esse estatuto.

13. A decisão recorrida ao não atender à nulidade arguida, não declarando nulo o acto atacado e ao não ter ordenado que a testemunha fosse inquirida em audiência de discussão e julgamento, violou os arts. 120°, n° 2, al. d), 131° e 133°, n° 2, todos do C.P. Penal
*
Admitidos os recursos (despacho a fls. 170) e notificado o arguido B…, este não respondeu à motivação de nenhum deles.
*
Já nesta instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer em que manifesta total adesão aos fundamentos do recurso intercalar e pronuncia-se pelo seu provimento, o que implica a anulação do processado após o despacho recorrido, impondo-se a reabertura da audiência para inquirição da testemunha cuja audição foi omitida.
*
Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

IIFundamentação
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010,[1]www.dgsi.pt/jstj), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso.
Como decorre das conclusões que ficaram transcritas, uma única questão é colocada à apreciação deste tribunal de recurso: se está ferido de nulidade o procedimento adoptado pela M.ma Juiz na audiência de discussão e julgamento de não ouvir a testemunha C…, como tal arrolada pelo Ministério Público no despacho de acusação, por considerar que só com o expresso consentimento desta o seu depoimento seria válido e susceptível de valoração probatória. Noutra perspectiva, a questão está em saber se ocorre, no caso, o impedimento previsto no artigo 133.º do Cód. Proc. Penal.
*
Mesmo que fique prejudicada a apreciação do recurso interposto da sentença, importa conhecer a decisão sobre matéria de facto (factos provados e não provados):
Factos provados
“No dia 9 de Novembro de 2011, pelas 21h30, junto aos balneários das D…, em …, 3 pessoas cuja identidade não foi possível apurar, quando avistaram a ofendida, E…, que descia as escadas junto à rampa do F… e trazia na mão uma carteira de senhora, começaram a correr no mesmo sentido em que a ofendida caminhava e, ao passar por esta, um deles arrancou, com força, a carteira que a ofendida trazia na mão.
De seguida, puseram-se os três em fuga, tendo o menor C… indicado aos elementos das Forças Policiais o local onde se encontrava a carteira da ofendida, a qual, em momento anterior à dita subtração, continha no seu interior um porta-moedas com algumas moedas, um porta cheques, 60,00 euros em dinheiro e um telemóvel de marca Nokia.
Posteriormente, alguns objetos foram apreendidos pela P.S.P. e entregues à ofendida, nomeadamente a carteira, o porta-moedas e dois cartões multibanco.
O arguido B… já foi condenado, mais do que uma vez, pela prática do crime de furto, em pena de multa ou em pena de prisão substituída por multa.
Factos não provados
- Que tivesse sido o arguido B… o autor dos fatos constantes da douta acusação pública relacionados com a subtração, com violência, da carteira pertença da ofendida E….
- Que o arguido B… tivesse agido com o propósito de se apoderar da carteira da ofendida, bem sabendo que a mesma lhe não pertencia.
- Que o arguido B… não se tivesse coibido de utilizar a força física contra a ofendida de modo a impossibilitá-la de qualquer reação com o propósito de se apoderar dos seus bens, bem sabendo que atuava contra a vontade da ofendida.
- Que o arguido B… tivesse agido deliberada, livre e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era prevista e punida criminalmente, não se abstendo de a praticar.
*
Tendo sido indicado pelo Ministério Público como testemunha, C… compareceu na audiência e, depois de identificado, a Sra. Juiz advertiu-o nos termos do artigo 133.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, tendo ele declarado que não consentia em prestar depoimento, como efectivamente não prestou.
Na sequência, a Magistrada do Ministério Pública ditou para a acta o seguinte requerimento:
Atento o artigo 340.º, n.º 1, do CPP, o Tribunal ordena a produção de todos os meios de prova necessários para a descoberta da verdade.
Na inquirição das testemunha C…, ao lhe ter sido feita a advertência de que só prestava declarações se expressamente o consentisse, entende o Ministério Público que existe uma omissão de diligência para a descoberta da verdade, uma vez que viabilizou a que a testemunha não prestasse declarações.
Sendo assim, vem arguir o Ministério Público a nulidade da omissão de tal acto, nos termos do artigo 120.ºm, n.º 2, al. d), última parte, do CPP”.
Pronunciando-se sobre essa arguição, a Sra. Juiz proferiu extenso despacho de indeferimento[2], de cuja fundamentação destacamos os seguintes trechos:
“…o caso ora em apreço tem uma particularidade que é o fato da testemunha C…, ao tempo dos fatos, ter menos de 16 anos de idade e ter participado diretamente nos fatos objeto dos presentes autos, pelo que, não fosse a sua idade, e o C… estaria a ser julgado conjuntamente com os restantes arguidos nestes autos.
Na verdade, porque o C… tinha menos de 16 anos de idade ao tempo dos fatos, a Digna Procuradora-Adjunta, no douto despacho de encerramento do inquérito (cfr. fls.37 e 38) fez expressamente constar que “(...) Realizadas as diligências de inquérito apurou-se que um dos autores de tais fatos foi C…, que à data da prática dos factos ainda não tinha 16 anos de idade (os factos ocorreram a 9 de Novembro de 2011 e o menor nasceu a 25 de Novembro de 1995), (...)” e, por isso, ordenou a extração de certidão do processado a fim de ser instruído inquérito contra o menor, nos termos do disposto no art.74.º da Lei n.º 166/99 de 14 de Setembro (Lei Tutelar Educativa).
Assim, não há dúvida que, para o Ministério Público, C… praticou fatos que a lei qualifica como crime e que, não fora a idade do C… ao tempo dos fatos, contra o C… teria sido proferido despacho de acusação como aconteceu em relação aos outros dois arguidos, face aos alegados indícios recolhidos em sede de inquérito contra aquele.
Por esse motivo, o Tribunal entendeu estarmos perante uma situação enquadrável no art.133.º, n.º 2 do CPP e que só seria possível a inquirição do C… como testemunha se o mesmo expressamente o consentisse, face ao disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 133.º do CPP (o C… foi objeto de um outro processo - ainda que tutelar educativo — e os fatos que lhe são imputados nesses autos são os mesmíssimos que foram imputados aos outros dois arguidos)”.
Deste trecho resulta, muito claramente, que a Sra. Juiz apreciou e decidiu a questão, não alicerçada nos elementos factuais de que dispunha, mas com base numa situação hipotética: se o C… tivesse já 16 anos de idade à data da prática dos factos, contra ele teria sido deduzida acusação e estaria a ser julgado conjuntamente com os restantes arguidos nestes autos, situação em que não poderia depor como testemunha, pois seria co-arguido no mesmo processo.
Antecipando a crítica, a Sra. Juiz discreteou assim:
O que se pretende é que não seja o mesmo “obrigado” a depor, sob juramento, se assim o não consentir, porque como todos sabemos das suas declarações pode vir a resultar a incriminação dos restantes arguidos porque não se pode olvidar que o C… interveio diretamente nos fatos objeto de discussão nos autos e não se poderia recusar a depor nem depondo poderia faltar à verdade, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal (cfr. art.ºs 132.º e 348.º do CPP e 360.º do CP).
Pensamos que a ora testemunha C… não pode ser atribuído um regime mais desfavorável, só pelo fato de ao tempo dos fatos ser menor (tanto mais que para o proteger a lei atribui-lhe um regime mais favorável aplicando-lhe um processo tutelar educativo com a finalidade de o educar para o direito) quando, se não fosse a idade poderia não prestar declarações por ser autor dos mesmos fatos que, nestes autos, são imputados aos restantes arguidos”.
Vejamos se esta argumentação convence da bondade da solução adoptada.
Se o impedimento para um arguido de depor como testemunha num processo em que é o único a responder pela prática de um ou mais crimes constitui uma evidência[3], já assim não é quando há pluralidade de arguidos.
A lei exige co-arguição (nos termos do n.º 1, al. a), do artigo 133.º do Cód. Proc. Penal, estão impedidos de depor como testemunhas “o arguido e os co-arguidos no mesmo processo ou em processos conexos, enquanto mantiverem aquela qualidade”) e por isso importa determinar que nexo deve ocorrer entre dois ou mais arguidos para que se possam considerar, reciprocamente, co-arguidos.
Quando há comunhão processual, ou seja, quando dois ou mais arguidos respondem em conjunto, no mesmo processo ou em processos conexos, estão, reciprocamente, impedidos de testemunhar, mesmo que não sejam arguidos do mesmo crime ou de crimes conexos.
É o que estatui o citado artigo 133.º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Penal.
Mas a comunhão processual como critério delimitador do conceito de co-arguido tem um entono formal, não podendo tal posição ser determinada atendendo ao conteúdo da imputação que constitui o objecto processual de cada arguido. Apenas se atende à configuração processual.
Num processo com dois co-arguidos, havendo um arquivamento em relação a um deles, ou em caso de separação de processos, deixa de haver co-arguição e, portanto, o impedimento para depor deixará de existir.
A este critério formal aponta-se o grave inconveniente de possibilitar a manipulação das funções dos diversos intervenientes no processo por parte dos órgãos de administração da justiça penal (com a inerente restrição do círculo protector do co-arguido), falando-se, a este propósito, em “manipulação de papéis” e em “burla de etiquetas”.
Por isso se impôs o conceito material de co-arguido, em que o critério decisivo para determinar o âmbito objectivo daquele impedimento não está na estrita situação de comunhão processual, mas sim no(s) crime(s) gerador(es) dessa situação: o âmbito do impedimento de depor como testemunha assenta na conexão entre as imputações (tratar-se de arguidos do mesmo crime ou de crimes conexos).
É essa situação, em que não ocorre uma tramitação conjunta dos processos (ou seja, inexiste comunhão processual), mas há vários arguidos a quem são imputados os mesmos factos que constituem o objecto processual de cada um, ou imputações diversas, mas conexionadas entre si, que o n.º 2 do artigo 133.º do Cód. Proc. Penal prevê, estendendo-lhe o âmbito do impedimento de testemunhar, embora o faça de forma indirecta ao legitimar a recusa do declarante.
O modelo do depoimento consentido previsto no artigo 133.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal procura conciliar a exigência de trazer o conhecimento probatório do co-arguido a um processo em que ele não se encontra a responder, sem eliminar a garantia do impedimento: a não sujeição dos arguidos do mesmo crime ao constrangimento característico da prova testemunhal.
Pode, assim, dizer-se com Medina de Seiça (ob.cit., 49) que o impedimento na situação de comunhão processual (contemplada no artigo 133.º, n.º 1, al. a), do CPP) é absoluto (porquanto, mesmo que para tanto dê o seu consentimento, o co-arguido não pode depor como testemunha, as declarações que prestar serão sempre na qualidade de arguido[4]), ao passo que na situação prevista no n.º 2 do mesmo preceito legal o impedimento assume carácter relativo, pois o declarante pode consentir prestar depoimento, ou negar esse consentimento.
Mas a co-arguição requer, antes de mais, a aquisição[5] e a manutenção da qualidade de arguido, podendo dizer-se que a aquisição desse estatuto, ora ocorre ope legis (nos termos do artigo 57.º, n.º 1, aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida a abertura de instrução assume automaticamente a qualidade de arguido), ora opera mediante um acto de constituição, verificados que estejam os pressupostos estabelecidos nos artigos 58.º, n.º 1, e 59.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal.
A discussão que, a este propósito, se tem suscitado gira, sobretudo, em torno de duas questões: se o mero suspeito (de um mesmo crime ou de crime conexo) está abrangido pela tutela conferida pela norma de impedimento (de depor como testemunha) e se haverá casos de ultra-actividade do impedimento para além da cessação da qualidade de arguido.
Tem-se entendido que quem não é (nunca foi) arguido pode e deve testemunhar, estando o suspeito, não constituído arguido, abrangido pela norma (de proibição de valoração como prova contra si das declarações que prestar) do artigo 58.º, n.º 5, do Cód. Proc. Penal.
A qualidade de co-(arguido) cessa com a decisão definitiva que ponha termo ao processo (cfr. artigo 57.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal).
Não obstante, questiona-se se o arguido cujo processo foi resolvido deixa de estar impedido de testemunhar nos processos dos restantes arguidos em relação ao mesmo crime ou a crimes conexos com o(s) que havia(m) constituído objecto da sua própria imputação e isso acontece, sobretudo, nos casos de arquivamento, arquivamento em caso de dispensa ou isenção de pena, de suspensão provisória do processo, de despacho de não pronúncia e de sentença absolutória ou condenatória.
Autores há (sobretudo alemães) que defendem que, para esse efeito (determinar se pode ou não testemunhar num processo por um dado facto), considera-se ainda arguido quem tiver sido definitivamente condenado por esse facto, ou que tiver sido dele absolvido por causa da sua inimputabilidade.
Essa tese parece ter tido eco no legislador quando operou a revisão do Código de Processo Penal em 2007 (Lei n.º 48/2007, de 29/8), pois reconheceu a persistência do fundamento do impedimento, colocando-o, tão só, na disponibilidade do arguido.
Antes dessa revisão, uma vez julgado o arguido, com decisão transitada em julgado, entendia-se que nenhuma razão existia para que ele, independentemente de dar ou não o seu consentimento, não prestasse depoimento como testemunha no outro processo. Dizendo de outro modo, a exigência do consentimento expresso de um arguido de um mesmo crime ou de um crime conexo, para poder depor como testemunha, em caso de separação de processos, pressupunha que essa testemunha mantivesse ainda a qualidade de arguido, ou seja, que o processo em que era arguido se mantinha em curso (cfr. Acórdão da Relação de Évora, de 30.06.2004, disponível em www.dgsi.pt).
Agora, mesmo em caso de condenação transitada em julgado, exige-se o consentimento expresso daquele que é chamado a depor como testemunha no processo do arguido conexo.
No entanto, no acórdão da Relação de Coimbra 22.05.2013 (disponível em www.dgsi.pt), num caso de suspensão provisória do processo, tendo ambos os arguidos cumprido as injunções que lhes foram impostas, o que determinou a prolação de despacho de arquivamento, decidiu-se que “inexiste qualquer impedimento legal para o ex-arguido depor como testemunha no julgamento de outro co-arguido, sendo inaplicável o art.º 133.º, n.º 2, do CPP, pois inexiste razão para que não seja, obrigatoriamente, prestado o respectivo depoimento como testemunha sem necessidade de qualquer consentimento”.
No caso que nos ocupa, temos uma situação em que o mesmo crime foi cometido por vários agentes em comparticipação, sendo um dos comparticipantes o referido C…, indicado como testemunha na acusação deduzida pelo Ministério Público contra os outros dois comparticipantes.
Acontece que, à data dos factos, aquele C… não tinha, ainda, completado 16 anos de idade.
Por isso nunca foi constituído arguido, nem tinha que o ser, pois que, sendo penalmente inimputável, não poderia ser criminalmente responsabilizado, pelo que não se verificavam os pressupostos de qualquer das apontadas vias de aquisição da qualidade de arguido.
Não há aqui qualquer “burla de etiquetas” entre co-arguido e testemunha.
A questão do depoimento consentido, melhor dizendo, da necessidade do consentimento expresso para depor como testemunha num determinado processo só se coloca em relação àquele que é arguido (do mesmo crime ou de crime conexo) em “processo separado” e não é o caso do C….
Argumenta-se no despacho recorrido que, sendo o menor obrigado a depor sob juramento, das suas declarações pode resultar a “a incriminação dos restantes arguidos”, além de que no processo tutelar educativo instaurado os factos são os mesmos e ao C… “não pode ser atribuído um regime mais desfavorável, só pelo fato de ao tempo dos fatos ser menor”.
Importa, então, determinar a teleologia da norma (artigo 133.º do Cód. Proc. Penal) que estabelece o impedimento para depor como testemunha.
Ora, se para Medina de Seiça (loc.cit.), “a justificação do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como fundamento essencial uma ideia de protecção do próprio arguido, como decorrência da vertente negativa da liberdade de declaração e depoimento (…) e que se traduz no brocardo latino nemo tenetur se ipsum accusare, o também chamado privilégio contra a auto-incriminação”, já para a jurisprudência essa tutela é a única razão de ser da norma, como podemos verificar, entre outros, nos seguintes arestos (ambos disponíveis em www.dgsi.pt):
Acórdão da Relação de Coimbra, de 15.10.2008 (Des. Alberto Mira):
“O n.º 2 do artigo 133.º do CPP visa exclusivamente a protecção dos direitos de defesa do co-arguido que em processo penal depõe na qualidade de testemunha, em processo separado, para que deu o seu expresso consentimento, de modo a garantir o seu direito à não auto-incriminação”.
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 133/2010:
“…o Tribunal entende que a norma que estabelece o assinalado impedimento relativo visa, exclusivamente a protecção dos direitos do co-arguido, enquanto tal, no processo pertinente, em ordem a garantir o seu direito de se não auto-incriminar.
Para assim concluir o Tribunal tem, antes do mais, em conta que o impedimento cessa no caso de o co-arguido deixar de o ser no processo separado, por qualquer forma por que o procedimento criminal se pode extinguir”.
Não colhe, pois, o argumento de que das declarações do C… resulta “a incriminação dos restantes arguidos”.
O que se impõe é que os arguidos contra quem tais declarações sejam feitas valer possam submetê-las ao contraditório e nada mais.
Por outro lado, não descortinamos que prejuízo (ou que “regime mais desfavorável”) possa advir para o C… da prestação de depoimento, como testemunha, neste processo, já que as suas declarações não poderiam ser valoradas como prova contra ele nem ele pode ser criminalmente responsabilizado pelo seu acto.
O processo tutelar educativo instaurado, embora tendo por objecto os mesmos factos, tem natureza muito diversa do processo penal.
Como se reconhece no despacho em crise, o processo tutelar não tem finalidades punitivas, as medidas tutelares não são um castigo, uma expiação ou compensação do mal do crime (punitur quia peccatum est), visam, sim, garantir que o desenvolvimento do menor ocorra de forma harmoniosa e socialmente integrada e responsável.
O processo tutelar visa a protecção de crianças e jovens e por isso seria totalmente descabido invocar aqui o nemo tenetur.
*
O recorrente pugna pela revogação da decisão recorrida e pela sua substituição por outra que declare inválido o acto que permitiu a recusa de depoimento à testemunha C… e, em consequência, que se determine a sua inquirição na audiência.
A solução mais comum para esta situação é a que considera que a omissão de diligências probatórias essenciais gera o vício previsto na alínea a) do n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal, ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, como se decidiu no acórdão do STJ, de 19.07.2006 (Relator: Cons. Oliveira Mendes), disponível em www.dgsi.pt, de que se transcreve, parcialmente, o respectivo sumário:
I – O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada resulta da circunstância de o tribunal não ter esgotado os seus poderes de indagação relativamente ao apuramento da matéria de facto essencial, ou seja, quando o tribunal, podendo e devendo investigar certos factos, omite esse dever, conduzindo a que, no limite, se não possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.
II – Trata-se, pois, de um vício que resulta do incumprimento por parte do tribunal do dever que sobre si impende de produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa – artigo 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal”[6].
Efectivamente, o tribunal a quo abdicou daquele seu poder/dever de apurar a verdade material, como impõe um Estado de Direito, em detrimento da realização da justiça no caso concreto, mesmo podendo fazê-lo por meio processualmente válido, como se concluiu.
No entanto, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada verifica-se quando faltem factos que autorizem a ilação jurídica tirada, que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis.
Como se refere no acórdão do STJ de 19.03.2009 (www.dgsi.pt/jstj; Relator: Cons. Souto Moura), “é uma lacuna de factos, que se revela internamente, só a expensas da própria sentença, sempre no cotejo com a decisão, e não se confunde, evidentemente, com a eventual falta de provas para que se pudessem dar por provados os factos que se consideraram provados”.
Ou, ainda, como se escreveu no acórdão do STJ, de 21.06.2007 (Relator: Cons. Simas Santos), acessível no mesmo sítio, “…o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição e decorre da circunstância do tribunal não ter dado como provados ou não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão; daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova (artigo 127.º), que é insindicável em reexame da matéria de direito”.
A solução que temos por juridicamente correcta é a proposta por Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2.ª edição actualizada, 1054, que vê na omissão de diligências probatórias que podiam/deviam ser ordenadas, oficiosamente ou a requerimento, pelo tribunal uma nulidade sanável (artigo 120.º, n.º 2, al. d), do Cód. Proc. Penal) que pode ser invocada em sede de recurso ou uma irregularidade a ser arguida nos termos do art.º 123.º da mesma Codificação, conforme se trate de diligência essencial ou simplesmente necessária à descoberta da verdade[7].
O recorrente, como vimos, arguiu a nulidade do acto (ou melhor, da omissão que se traduziu na não inquirição da testemunha C… por se ter considerado verificar-se a necessidade do seu consentimento, nos termos do artigo 133.º, n.º 2, do cód. Proc. Penal) e, perante o indeferimento da arguição, recorreu daquela decisão.
É essa nulidade que, reconhecendo-lhe razão, se impõe aqui declarar, extraindo-se as respectivas consequências dessa declaração.

IIIDispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em, concedendo provimento ao recurso interlocutório, anular a decisão de não inquirir, como testemunha, C… e, em consequência:
A) revogar o despacho de 24.04.2013, que indeferiu a arguição de nulidade;
B) anular a sentença recorrida;
C) determinar que, reaberta a audiência, se proceda à inquirição, como testemunha, de C…, sem necessidade de obter o seu consentimento, por não verificado o impedimento para depor naquela qualidade, após o que deverá ser proferida nova sentença.

Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 19-02-2014
Neto de Moura
Vítor Morgado
________________
[1] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[2] Sendo um acto da audiência, o despacho, mesmo que não ditado directamente, devia integrar o conteúdo da respectiva acta, mas assim não sucede. Trata-se, porém, de mera irregularidade que não afecta a validade do acto.
[3] Como refere A.A. Medina de Seiça, “O conhecimento probatório do co-arguido”, BFDUC, Stvdia Ivridica, n.º 42, Coimbra Editora, invocando a doutrina alemã, que aqui vamos seguir de perto, entre as posições jurídicas de (co-)arguido e de testemunha e os respectivos papéis em sede de direito probatório impera o princípio da incompatibilidade, pois é bem diferente (desde logo, e sobretudo, no que tange ao dever de responder, com verdade, às perguntas que lhe forem dirigidas, que vincula a testemunha, mas não o arguido) o estatuto do depoente conforme assuma uma ou outra veste [de (co-)arguido ou de testemunha].
[4] O autor acaba, no entanto, por admitir que, “no decurso do mesmo processo com pluralidade de arguidos, um arguido possa testemunhar relativamente aos factos autónomos do outro, factos, portanto, que não fazem parte do objecto processual do arguido que deve testemunhar, nem surgem como conexos, nos termos atrás assinalados, à sua própria imputação.
Em sentido contrário se pronunciam, no entanto, Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2.ª edição actualizada, 355) e Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal”, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, II, pág. 203-204).
[5] Recorrendo, ainda e de novo, ao estudo de Medina de Seiça (pág. 19), a determinação da qualidade de arguido é um prius lógico e, em regra, cronológico, da qualidade de co-arguido.
[6] No mesmo sentido, cfr. o acórdão do STJ, de 05.05.2005, CJ/Acs STJ, XIII, T.II, 189.
[7] Assim, os já citados acórdãos da Relação de Évora, de 01.04.2008 (Relator: Des. Ribeiro Cardoso) e da Relação de Guimarães, de 27.04.2009 (Relator: Des. Cruz Bucho), cujos sumários vêm transcritos em Vinício Ribeiro, “Código de Processo Penal – Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2.ª edição, 954.