DOCUMENTAÇÃO DOS ACTOS DE AUDIÊNCIA
GRAVAÇÃO DEFICIENTE
NULIDADE
PRAZO PARA A ARGUIÇÃO DA NULIDADE
CONHECIMENTO OFICIOSO
Sumário

I - Se os sujeitos processuais impugnam a decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal da Relação, caso venha a conhecer da totalidade do objecto dos recurso, deve tomar conhecimento da prova oralmente produzida na Audiência, através do respectivo registo gravado.
II - A deficiente documentação equivale à sua inexistência, configurando uma nulidade, que se repercute na nulidade do julgamento.
III - Logo que dela se aperceba, deve o tribunal a quo suprir a nulidade, que é sanável e sujeita ao regime de arguição e de sanação dos artigos 120º, nº 1 e 121º, do CPP, em conjugação com o artº 9º do citado DL nº 39/95.
IV - A nulidade decorrente da omissão ou deficiência na gravação da prova produzida na audiência de julgamento pode ser suscitada até ao termo do prazo de interposição de recurso, podendo ter lugar na própria alegação de recurso.
V - Incumbindo ao tribunal de recurso reapreciar a prova gravada, a nulidade resultante da falta ou da deficiência documentação, deve também ser conhecida oficiosamente pelo tribunal de recurso, o qual deve determinar a sua reparação, independentemente de tal nulidade só ter sido arguida no recurso.

Texto Integral

Proc. n.º 1927/09.0JAPRT.P1

Acordam em Conferência no Tribunal da Relação do Porto

Relatório

O Ministério Público acusou os arguidos:
1. B…, solteiro, empresário, nascido a 11.04.1988, filho de C… e D…, residente na Rua …, .., . ° Esq. - .. - Gondomar, actualmente preso no Estabelecimento Prisional de Passos de Ferreira;
2. E…, desempregado, nascido a 05.01.1971, em …, Vila do Conde, filho de F… e G…, residente na Rua …, nº .. - … - Albufeira, ou Rua …, nº …., . traseiras, na Maia, Identificação Civil nº …….;
3. H…, divorciado, empresário, nascido a 31.05.1970, em Moçambique, filho de I… e J…, residente na Rua …, nº …, Habitação .., no Porto, identificação civil nº …….;
4. K…, divorciado, cobrador, nascido a 10.08.1982, em …, Gondomar, filho de L… e M…, residente na Rua …, .. – …, ­Gondomar, identificação civil …………;

imputando-lhes a prática, em co-autoria material e concurso efectivo, dos seguintes crimes:
a) B…:
1. Um crime de rapto p. e p. pelo art. 161°, nº 1, alínea a) e nº 2, com referência ao artigo 158°, nº 2, alínea b), todos do Código Penal;
2. Um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22°, 23°, 131°, 132°, nº 2, alíneas d), g) e h), todos do Código Penal;
3. Um crime de incêndio p. e p. pelo art. 272°, nº 1, alínea a) do Código Penal;
4. Um crime de falsificação de documentos p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 255°, alínea a) e 256°, nº 1, alínea a) e nº 3 do Código Penal;
5. Um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art. 86°, nº 1, alínea a) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 12/2011, de 27 de Abril;
6. Um crime de roubo p. e p. pelo art. 210°, nºs 1 e 2, alíneas a) e b) e nº 2, por referência às alíneas f) e g) do nº 2 do art. 204°, ambos do Código Penal.

b) E…:
1. Um crime de rapto p. e p. pelo art. 161°, nº 1, alínea a) e nº 2, com referência ao artigo 158°, nº 2, alínea b), todos do Código Penal;
2. Um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22°, 23°, 131°, 132°, nº 2, alíneas d), g) e h), todos do Código Penal;
3. Um crime de incêndio p. e p. pelo art. 272°, nº 1, alínea a) do Código Penal;
4. Um crime de falsificação de documentos p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 255°, alínea a) e 256°, nº 1, alínea a) e nº 3 do Código Penal;
5. Um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art. 86°, nº 1, alínea a) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 12/2011, de 27 de Abril;
6. Um crime de roubo p. e p. pelo art. 210°, nºs 1 e 2, alíneas a) e b) e nº 2, por referência às alíneas f) e g) do nº 2 do art. 204°, ambos do Código Penal.

c) H…:
1. Um crime de rapto p. e p. pelo art. 161°, nº 1, alínea a) e nº 2, com referência ao artigo 158°, nº 2, alínea b), todos do Código Penal;
2. Um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22°, 23°, 131°, 132°, nº 2, alíneas d), g) e h), todos do Código Penal;
3. Um crime de incêndio p. e p. pelo art. 272°, nº 1, alínea a) do Código Penal;
4. Um crime de falsificação de documentos p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 255°, alínea a) e 256°, nº 1, alínea a) e nº 3 do Código Penal;
5. Um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art. 86°, nº 1, alínea a) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 12/2011, de 27 de Abril;
6. Um crime de roubo p. e p. pelo art. 210°, nºs 1 e 2, alíneas a) e b) e nº 2, por referência às alíneas f) e g) do nº 2 do art. 204°, ambos do Código Penal; e, ainda,
7. Em autoria material, um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art. 86°, nº 1, alínea d) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 12/2011, de 27 de Abril.

d) K…:
1. Um crime de rapto p. e p. pelo art. 161°, nº 1, alínea a) e nº 2, com referência ao artigo 158°, nº 2, alínea b), todos do Código Penal;
2. Um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22°, 23°, 131°, 132°, nº 2, alíneas d), g) e h), todos do Código Penal;
3. Um crime de incêndio p. e p. pelo art. 272°, nº 1, alínea a) do Código Penal;
4. Um crime de falsificação de documentos p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 255°, alínea a) e 256°, nº 1, alínea a) e nº 3 do Código Penal;
5. Um crime de roubo p. e p. pelo art. 210°, nºs 1 e 2, alíneas a) e b) e nº 2, por referência às alíneas f) e g) do nº 2 do art. 204º, ambos do Código Penal.

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N…, na qualidade de ofendido dos crimes em causa, veio deduzir contra os arguidos pedido de indemnização civil, em que pediu a condenação solidária dos demandados a pagarem-lhe a quantia global de € 148.603,29, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que diz ter sofrido em consequência da conduta ilícita dos referidos arguidos, quantia essa acrescida de juros à taxa legal, a partir do momento da notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.
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Os arguidos apresentaram contestações, nos termos seguintes:
O arguido B…nega a prática dos factos que lhe são imputados e, consequentemente, a sua responsabilidade por qualquer indemnização devida ao ofendido.
Os arguidos E…, H… e K… oferecem o merecimento dos autos.
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II- FUNDAMENTOS DE FACTO:
Realizada a audiência de discussão e julgamento, o tribunal colectivo considerou provados os factos seguintes:
O ofendido N… é beneficiário, com o nº 174182985, do SNS.
O ofendido dirigia-se quase diariamente, de madrugada, à localidade …, em …, Espanha, para ali se encontrar com a namorada que, à data, trabalhava na Boite “O…”, nesta localidade.
Nestas deslocações, o ofendido fazia-se transportar no veículo automóvel de marca BMW, de cor branca, matrícula ..-FG-...
No dia 9 de Novembro de 2009, cerca das 13h31, na Área de Serviço …, sita na Rotunda …, na cidade do Porto, foram comprados três telemóveis de marca "Nokia", modelo …., pretos, da operadora "P…", com os números:
• ……542
• ……501
• ……546
Para pagamento destes aparelhos, no montante de € 104,70 (cento e quatro euros e setenta cêntimos), foi usado o Cartão Visa do Q…, com a referência ……. …………......., da conta nº ……., titulada pelo arguido B….
No dia 25 de Novembro de 2009, depois das 2.26 horas, na Área de Serviço … de …, o arguido B… encontrou-se com um mecânico que lhe fez entrega da viatura de marca BMW, série ., matrícula ..-HV-.., propriedade do B….
Pelas 03h07, o ofendido passou a Portagem de Valença (sentido Valença-Espanha).
Às 03h07, passou a portagem de Valença (sentido Valença-Espanha), um veículo BMW que ostentava a matrícula ..-AB-.., fazendo-o pela Via Verde e sem utilização do respectivo identificador.
Cerca das 03h20, o ofendido N… entrou na Avenida … (sem saída), sendo de imediato seguido pelo BMW matrícula ..-AB-.. que se colocou na traseira, impedindo-o de sair da artéria.
Ao mesmo tempo, dois indivíduos que não foi possível identificar, efetuaram três disparos, procurando dessa forma assustar o ofendido e do mesmo modo impedir que viessem a ser parados por qualquer outra pessoa, deixando no local uma cápsula deflagrada, de calibre 9 mm Parabellum, de marca FN, de origem nacional, do lote 89-6 e duas cápsulas deflagradas, de calibre .223 Remington, de marca EIDGENSCHISSE MUNITIONSFABRIJK THUN, de origem suíça, do lote 94 (melhor examinadas a fls. 2936 a 2943 cujo teor aqui se dá por integrado e reproduzido).
De imediato os dois indivíduos saíram do BMW preto e dirigiram-se ao veículo do ofendido, tentando abrir a porta do lado do condutor, o que não conseguiram porque o N… quando se apercebeu do que estava para acontecer, accionou o sistema de segurança do veículo, bloqueando as portas.
Perante esta situação, um dos indivíduos, que empunhava uma pistola-metralhadora, partiu o vidro da porta do condutor, enquanto o outro empunhava uma pistola de 9 mm que apontava ao N… ordenando-lhe que saísse da viatura.
Porque o ofendido não obedeceu às ordens que lhe estavam a ser dadas, um dos indivíduos deitou-lhe as mãos, arrastando-o para fora do veículo, começando imediatamente a desferir-lhe socos, murros e pontapés na cabeça e corpo.
Seguidamente os dois indivíduos pegaram no ofendido e colocaram-no na mala do BMW ..-AB-.. arrancando, de imediato, do local.
Um dos indivíduos seguiu no banco traseiro do BMW, conduzido por um terceiro, e, empunhando a pistola, desatou a desferir pancadas na cabeça do ofendido.
Por seu lado, o outro indivíduo entrou no BMW branco do ofendido e passou a conduzi-lo, saindo também daquele local.
Deslocaram-se, então, para local que não foi possível determinar, já em Portugal, e, em sítio ermo, pararam os veículos, retiraram o ofendido da bagageira e continuaram a agredi-lo com murros, socos, pontapés e coronhadas no corpo e na cabeça.
Seguidamente amarraram-lhe as mãos com fita adesiva grossa, vendaram-lhe os olhos e voltaram a coloca-lo na mala do BMW.
Cerca de uma hora depois, voltaram a imobilizar as viaturas, retiraram o ofendido do veículo, imobilizaram-lhe as duas pernas, desde o meio da coxa até aos tornozelos, utilizando uma fita adesiva muito resistente, impedindo-o do mínimo movimento.
Voltaram a colocá-lo na viatura de onde cerca de meia hora depois o retiraram, introduzindo-o numa outra onde continuou a ser violentamente agredido por um dos indivíduos.
Este indivíduo utilizou, então, um alicate com o qual torturou o N…, infligindo-lhe golpes e lacerando-lhe a carne, no nariz, braços, ancas e em outras partes do corpo, assim lhe provocando intensas e violentas dores.
Já ao final da manhã do dia 25 de Novembro de 2009, dirigiram-se até um local ermo situado na serra em …, freguesia …, …, Chaves e ali retiraram mais uma vez o ofendido do interior do veículo onde se faziam transportar.
Colocaram o ofendido numa cova natural, tipo sepultura, com 1,40 metros de comprimento e 60 centímetros de profundidade, no sentido descendente, pelo qual corre a água da chuva, rodeada por arbustos, e ali o deixaram amarrado, amordaçado, com as calças descidas, sem qualquer hipótese de, pelos seus próprios meios, sair daquele local e procurar ajuda, sabendo que o abandono do arguido naquelas condições determinaria, com grande probabilidade, a sua morte.
O local onde o N… foi abandonado situa-se a 525 metros da EN . (Vila Real-Chaves), não é visível desta e a única forma de se lhe aceder é utilizando um caminho de difícil acesso, em terra batida e sem qualquer movimento de pessoas.
Esta localização insere-se numa área montanhosa que no período de Inverno se caracteriza por temperaturas muito baixas (negativas ou 1 a 2 graus positivos), forte precipitação e formação de geada ou neve.
No local onde abordaram o ofendido N…, os autores dos factos perderam o telemóvel com o número ……542 IMEI ………….. que veio a ser ali encontrado.
Pelas 04h47, foi comprado na Área de Serviço …, um telemóvel de marca LG, modelo …, preto, com o número ……201.
Após deixarem o ofendido na sobredita cova, os indivíduos não identificados dirigiram-se ao veículo do N…, BMW, de cor branca, matrícula ..-FG-.., que tinham levado até àquele local, regaram-no e incendiaram-no, assim o destruindo totalmente.
Os estragos produzidos no veículo vieram a ser avaliados em € 61.603,29 (sessenta e um mil, seiscentos e três euros e vinte e nove cêntimos).
Seguidamente puseram-se em fuga.
O ofendido veio a ser encontrado, por mero acaso, pelas 13h50, por dois elementos da GNR que haviam sido alertados pelo Presidente da Junta de Freguesia …, … que, ao circular na EN., sentido Vila Real-Chaves, detectou uma coluna de fumo, no interior da serra.
Esses elementos da GNR, após verificarem que o fumo provinha do veículo do ofendido que estava a arder a cerca de 300 metros da estrada, vieram a encontrar o N…, a cerca de 225 metros daquele local, e apenas porque, desesperado, conseguiu emitir alguns gritos.
O N… encontrava-se fortemente debilitado, em estado avançado de hipotermia, tendo sido transportado para o Centro Hospitalar … onde, no momento da admissão, apresentava edema frontal, ferida corto-contusa occipital de 1 cm de comprimento; epistaxis em hemostasia; equimose do ombro direito e nas costas; ferimentos no membro superior direito com edema do cotovelo direito; dor no antebraço direito; fractura do 7º arco costal direito.
Como consequência directa e necessária das agressões que lhe infligiram resultaram para o ofendido as seguintes lesões, melhor descritas no relatório do exame médico-legal de fls. 3224 a 3228 que aqui se dá por integrado e reproduzido e que demandaram para consolidação médico-legal um período de 60 dias, resultando das mesmas como consequências permanentes sequelas próprias de fractura óssea (calo de consolidação) e (eventualmente) cicatriz vestigial no local da lesão da face:
Na face: queimadura rosada ocupando toda a metade inferior da região frontal; cicatriz linear com crosta acastanhada, de forma estrelada, localizada na asa direita do nariz, com 1 cm de maiores dimensões; cicatriz acastanhada, arredondada, de 5 mm de maiores dimensões, localizada no dorso do nariz.
Na Raquis: equimose roxo-amarelada localizada sobre a região escapular direita, com dimensões de 25 por 18 cm.
No Abdómen: equimose roxo-amarelada, ocupando todo o flanco direito, com extensão à nádega homolateral e face lateral da coxa; com cerca de 24 por 19 cm; sobre esta equimose apresenta múltiplas crostas castanhas escuras, a maior das quais com 2 por 2 cm.
No Membro superior direito: múltiplas escoriações com crosta castanha escura, ocupando uma área que se estende por toda a face posterior dos dois terços distais do braço e terço proximal do antebraço, a maior das quais com 8 por 3 centímetros.
No membro inferior direito: equimose roxa, de 5 por 3 cm, na face antero-medial do terço proximal da perna.
No dia 22 de Novembro de 2010, o arguido B… guardava na residência dos seus pais, sita na Rua …, nº .., .º esquerdo, em …, Gondomar o seguinte:
- Um documento comprovativo do carregamento do telemóvel com o número ……755, utilizado pelo arguido B… desde, pelo menos, o mês de Novembro de 2009;
- Um par de binóculos de marca "Pentax", modelo …, melhor examinados a fls. 3229-3230, cujo teor aqui se dá por integrado e reproduzido.
Nesse mesmo dia 22 de Novembro de 2010, pelas 11h15, o arguido B… guardava no estabelecimento comercial denominado "S…", sito na Rua …, nº .., no Porto, o seguinte:
- Um telemóvel de marca "Nokia", modelo …., melhor examinados a fls. 3229-3230 cujo teor aqui se dá por integrado e reproduzido;
- Dois intercomunicadores de marca "Haccer XPLORER" …., melhor examinados a fls. 3229-3230 cujo teor aqui se dá por integrado e reproduzido.
Também a 22 de Novembro de 2010, o arguido H… detinha na sua residência sita na Rua …, nº …, Hab. .., no Porto, os seguintes objectos:
- Um rádio intercomunicador, da marca "KENWOOD", de cor preta, com teclado frontal, melhor examinado a fls. 2137, cujo teor aqui se dá por integrado e reproduzido;
- Uns binóculos da marca "RENNO", melhor examinados a fls. 2137, cujo teor aqui se dá por integrado e reproduzido;
- Uns binóculos da marca “STARBLITZ”, melhor examinados a fls. 2137, cujo teor aqui se dá por integrado e reproduzido.
Ainda a 22 de Novembro de 2010, pelas 9h30, na sede da empresa "KSINAIS" sita na Rua …, nº …, no Porto, foram apreendidos os seguintes artefactos:
- Dois rádios intercomunicadores, da marca "KENWOOD", modelo "…", de cor preta, melhor examinados a fls. 2137, cujo teor aqui se dá por integrado e reproduzido;
- Dezassete cartuchos de caça, munições de calibre 16 GAUGE, melhor examinados a fls. 2136, cujo teor aqui se dá por integrado e reproduzido;
- Um cartucho de caça (munição) de calibre 12 Gauge, melhor examinado a fls. 2136, cujo teor aqui se dá por integrado e reproduzido.
A morte do ofendido apenas não se concretizou por motivos alheios à vontade de quem o abandonou nas circunstâncias descritas, tendo o ofendido sido encontrado de forma fortuita pelos Bombeiros Voluntários …. Foi apenas devido à intervenção destes que foi possível facultar ao ofendido a atempada assistência médica que lhe salvou a vida.
Durante o tempo em que foi violentamente agredido e torturado, o ofendido sofreu dores horríveis; sofreu momentos de terror, porque desconhecia os locais para onde era transportado e até que ponto ia ser torturado; temeu pela sua vida e, após o seu abandono, pensou que ia morrer; teve a sensação de ter sido enterrado vivo e que não mais voltaria a ver a sua família.
Após a sua saída do hospital, o arguido parecia um “bicho”, tendo sido auxiliado pela sua antiga companheira nos cuidados diários, uma vez que durante várias semanas sofreu dores intensas e não conseguia dormir.

O arguido B… é oriundo de um agregado familiar funcional, pelo que sempre dispôs de suporte familiar estruturado.
Contudo, o arguido desde a fase da adolescência que apresenta um comportamento irreverente e rebelde.
Concluiu o 11º ano de escolaridade.
À data dos factos em causa, o arguido desenvolvia atividade como empresário individual, na área do comércio de automóveis, para além da exploração de uma oficina de reparação e manutenção.
O arguido residia com a companheira e os dois filhos menores desta.
Atualmente cumpre pena de prisão no Estabelecimento Prisional do Porto, desenvolvendo tarefas de faxina na secção desportiva, para além de frequentar aulas para conclusão do 12º ano de escolaridade.
O arguido dispõe do apoio dos progenitores e da companheira.
Do certificado de registo criminal do arguido constam as seguintes condenações:
- No processo nº 45/04.1SFPRT, dos Juízos de competência criminal e Vila Nova de Famalicão, foi condenado por decisão de 08-02-2006, transitada em julgado em 16-06-2008, na pena de 3 anos de prisão, suspensa por 4 anos, pela prática, em Abril de 2004, de crimes de roubo e detenção ilegal de arma;
- No processo nº 261/07.4GAPVL, da comarca da Póvoa de Lanhoso, foi condenado por decisão de 10-07-2009, transitada em julgado em 10-09-2009, nas penas de 120 dias de multa e 1 ano de prisão suspensa por igual período, pela prática, em 02-07-2007, de crime de resistência e coação sobre funcionário;
- No processo nº 418/08.0PAMAI, da 4ª Vara Criminal do Porto, foi condenado por decisão de 22-07-2010, transitada em julgado em 28-05-2012, na pena de 10 anos de prisão, pela prática, em 17-08-2008, 21.03.2008 e 04-04-2008, de crimes de homicídio qualificado na forma tentada, detenção de arma proibida e roubo qualificado.

O arguido E… tem como habilitações literárias o 6º ano de escolaridade. Frequentou também um curso de formação de secretariado.
Exerceu várias profissões indiferenciadas, desenvolvendo, em paralelo, a atividade de vigilante.
Tem uma filha de 16 anos de idade de um primeiro casamento, bem como uma outra de 6 anos de idade de uma segunda relação.
Desde 2002, o arguido trabalhou a tempo inteiro como vigilante, até 2010, altura em que se deslocou para o Algarve com a sua atual companheira, e onde permaneceu até finais de 2011.
O arguido tem conseguido uma adequada integração profissional, revelando competências a este nível.
Em termos familiares e sociais encontra-se perfeitamente integrado, sendo considerado afetuoso e calmo nas relações de proximidade, e mantendo uma atitude cordial no meio comunitário.
Do certificado de registo criminal do arguido E… não consta qualquer condenação.

O arguido H… é oriundo de um agregado familiar radicado em Moçambique.
Tem como habilitações literárias a frequência do 11º ano de escolaridade que não concluiu.
Cerca dos 18 anos de idade, o arguido realizou um curso na área da moda, fotografia e publicidade, tendo-se estabelecido como fotógrafo.
Atualmente, o arguido estabeleceu uma sociedade que labora na área da publicidade, moda e fotografia, sendo sócios o arguido e a sua esposa, exercendo o arguido funções de sócio e gestor.
O agregado familiar, composto pelo arguido, a esposa e um filho de 7 anos de idade, reside num apartamento adquirido pelo casal, localizado numa zona considerada privilegiada da cidade do Porto.
O arguido tem ainda mais três filhos, de duas relações anteriores, com os quais não mantém relacionamento.
Em termos económicos, o agregado familiar beneficia de uma situação equilibrada, com as remunerações mensais do arguidos e sua esposa, no valor de cerca de € 600,00 cada um, ao que acrescem retiradas financeiras da empresa que, em média, são superiores a € 20.000,00 anuais.
Do certificado de registo criminal do arguido constam as seguintes condenações:
- No processo nº 97/00.3GNPRT, do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, foi condenado por decisão de 02-03-2005, transitada em julgado em 17-03-2005, na pena de 90 dias de multa, pela prática, em 06-08-1999, de crime de condução sem habilitação legal;
- No processo nº 1293/03.2PAPVZ, do Tribunal Judicial de Póvoa de Varzim, foi condenado por decisão de 12-04-2005, transitada em julgado em 03-05-2005, na pena de 90 dias de multa, pela prática, em 11-04-2005, de crime de ofensa à integridade física simples;
- No processo nº 562/09.7PAVNG, do 3º Juízo Criminal de Vila Nova de Gaia, foi condenado por decisão de 12-05-2010, transitada em julgado em 11-06-2010, na pena de 90 dias de multa, pela prática, em Março de 2007, de crime de violação da obrigação de alimentos;
- No processo nº 3658/10.9TAVNG, do 1º Juízo Criminal de Vila Nova de Gaia, foi condenado por decisão de 27-06-2012, transitada em julgado em 03-09-2012, na pena de 180 dias de multa, pela prática, em 10-05-2010, de crime de falsidade de depoimento ou declaração;
- No processo nº 7686/09.9TAVNG, do 3º Juízo Criminal de Vila Nova de Gaia, foi condenado por decisão de 09-12-2010, transitada em julgado em 21-01-2011, na pena de 1 ano de prisão suspensa por igual período, pela prática, em 25-02-2009, de crime de violação da obrigação de alimentos.

O arguido K… estudou até aos 18 anos de idade, iniciando, nessa altura, ocupação laboral, acabando por desenvolver a sua atividade como mecânico de automóveis. Ao mesmo tempo, dedica-se à mediação de seguros em escritório da família.
À data dos factos, o arguido K… integrava o seu núcleo familiar de origem, constituído pela mãe e um irmão mais velho, mantendo um relacionamento familiar harmonioso.
O arguido tem uma filha menor com a qual convive habitualmente.
O arguido tem uma situação económica estável por via da sua atividade de mecânico, por conta própria.
No meio sócio residencial, o arguido é considerado como indivíduo de fácil trato social, com comportamento adequado, sendo-lhe reconhecidas rotinas laborais e investimento profissional.
Do certificado de registo criminal do arguido consta a seguinte condenação:
- No processo nº 4685/05.3TDPRT, do 2º Juízo Criminal do Porto, foi condenado por decisão de 09-04-2008, transitada em julgado em 23-05-2008, na pena de 22 meses de prisão suspensa por igual período, pela prática, em 23-07-2005, de crime de homicídio por negligência.
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De essencial, relativamente à factualidade descrita na acusação, nos requerimentos dos pedidos civis e na contestação, não se provaram os factos seguintes:
- Que em data não concretamente determinada, mas situada no início de Novembro de 2009, os arguidos combinaram entre si obter do ofendido N… (beneficiário nº ……… do SNS) uma quantia em dinheiro em montante não inferior a trezentos mil euros.
- Que mais acordaram concretizar estes seus intentos com recurso a atos violentos contra a integridade física e mesmo contra a vida daquele, como planearam, ainda, fazê-lo após lhe coartarem a liberdade de circulação e movimento.
- Que assim, decidiram passar a monitorizar toda a atividade desenvolvida pelo ofendido, designadamente seguindo diariamente todos os passos, observando e registando todas as suas rotinas, visando, desse modo, apurar quais as melhores circunstâncias de forma, tempo, modo e lugar para a concretização do desígnio a que se haviam proposto.
- Que para levarem a cabo os seus propósitos, os arguidos utilizavam vários veículos automóveis, acordando também na colocação num deles de chapas de matrícula correspondentes a outro veículo da mesma marca e cor, que previamente haviam monitorizado, para, dessa forma, dificultarem a sua identificação.
- Que nas operações de vigilância os arguidos utilizaram binóculos para observarem o ofendido sem que este disso se apercebesse e, muitas vezes, utilizaram rádios intercomunicadores, vulgo "walkie-talkies", para estabelecerem comunicações "seguras" entre todos.
- Que através das vigilâncias se aperceberam que o ofendido se dirigia quase diariamente, de madrugada, à localidade …, em …, Espanha, para ali se encontrar com a namorada que, à data, trabalhava na Boite “O…”, nesta localidade.
- Que os arguidos verificaram que o ofendido se fazia transportar no veículo automóvel de marca BMW, de cor branca, matrícula ..-FG-...
- Que na posse de tal informação, decidiram que o melhor local para a consumação dos seus propósitos era, precisamente, aquela localidade espanhola, por ser o local para onde o ofendido se deslocava normalmente sozinho e a horas em que, habitualmente, não havia pessoas na rua.
- Que deste modo e no desenvolvimento desse plano, decidiram adquirir três telemóveis cuja identificação do proprietário fosse praticamente impossível e que se destinavam a ser utilizados (como único meio) nos contactos que estabeleceriam aquando da consumação do ato a que se tinham proposto.
- Que foi o arguido B… quem se dirigiu à Área de Serviço … e aí adquiriu os três telemóveis, com os números ……542, ……501 e ……546.
- Que pelas 20h00 do dia 24 de Novembro de 2009, todos os arguidos se reuniram num café situado em …, Gondomar, local onde ultimaram os preparativos para a concretização do plano que tinham previamente gizado, que teria lugar nessa mesma noite e madrugada.
- Que deste modo, cerca da 02h30 do dia 25 de Novembro de 2009 o arguido H…, que se fazia transportar na viatura de marca "Renault", modelo "…", matrícula ..-BF-.., iniciou, na entrada da A3, no sentido Porto-Valença, o seguimento do ofendido, o qual conduzia o BMW, de cor branca, matrícula ..-FG-...
- Que no dia 25 de Novembro, foi cerca das 2h00, que o arguido B… se encontrou na Área de Serviço … de …, com um mecânico e que o arguido B… ia acompanhado pelos arguidos E… e K….
- Que depois de estarem na posse deste veículo e em local não concretamente determinado, os arguidos substituíram as respetivas chapas de matrícula pelas ..-AB-...
- Que depois de terem alterado as chapas de matrícula, dois dos arguidos seguiram neste veículo pela A3 no sentido Porto-Valença, em perseguição do ofendido.
- Que também em perseguição do ofendido seguiu o veículo de marca Audi, modelo A4, matrícula ..-AJ-.., propriedade do arguido B…, que era conduzido por outro indivíduo que se não logrou identificar e que fazia parte do grupo constituído pelos arguidos com o objetivo acima descrito, atuando em concertação de esforços com os mesmos.
- Que todos os arguidos que seguiram para Espanha ocultaram os respetivos rostos com "passa montanhas" que impediam a sua identificação.
- Que quando pelas 03h07, o ofendido passou a Portagem de Valença (sentido Valença-Espanha), era seguido pelo arguido H… ao volante do Renault … e do outro arguido ao volante do Audi ...
- Que após ter passado a portagem de Valença (sentido Valença-Espanha), e de acordo com o previamente combinado, o arguido H… inverteu a marcha e regressou ao Porto, ficando a aguardar que os outros arguidos o contactassem e lhe dessem mais instruções.
- Que às 03h07, os restantes arguidos passaram a portagem de Valença (sentido Valença-Espanha), no veículo BMW que ostentava a matrícula ..-AB-...
- Que foram os arguidos que efetuaram os três disparos no local do rapto.
- Que foram os arguidos B… e E… que saíram do BMW preto e se dirigiram ao veículo do ofendido, tentando abrir a porta do lado do condutor e praticaram os atos subsequentes.
- Que foi o B… que empunhava uma pistola-metralhadora, partiu o vidro da porta do condutor, enquanto o arguido E… empunhava uma pistola de 9 mm que apontava ao N… ordenando-lhe que saísse da viatura.
- Que foi o E… que deitou as mãos ao ofendido, arrastando-o para fora do veículo, começando imediatamente a desferir-lhe socos, murros e pontapés na cabeça e corpo.
- Que os arguidos B… e D… pegaram no ofendido e o colocaram na mala do BMW ..-AB-.. arrancando, de imediato, do local.
- Que o arguido E… seguiu no banco traseiro do BMW, conduzido pelo K…, e, empunhando a pistola, desatou a desferir pancadas na cabeça do ofendido.
- Que foi o arguido B… quem entrou no BMW branco do ofendido e passou a conduzi-lo, saindo também daquele local.
- Que foram os arguidos que levaram o ofendido, que o foram agredindo, que o amarraram e lhe vendaram os olhos;
- Que os arguidos ou alguém tivesse exigido que o ofendido lhes fizesse entrega da quantia de € 300.000,00 (trezentos mil euros).
- Que como o ofendido lhes respondia não ter tal quantia, os arguidos continuaram a espancá-lo com murros, socos, pontapés, exigindo-lhe que lhes entregasse, pelo menos, € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros).
- Que foram os arguidos que imobilizaram as duas pernas do ofendido, desde o meio da coxa até aos tornozelos, utilizando uma fita adesiva muito resistente, impedindo-o do mínimo movimento.
- Que foi o arguido E… quem utilizou o alicate para torturar o ofendido, ao mesmo tempo que insistia em que lhes fizesse entrega da quantia de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros).
- Que quando perceberam que o ofendido lhes não iria entregar a quantia peticionada e porque se aperceberam que o mesmo havia reconhecido o arguido B…, os arguidos decidiram livrar-se dele.
- Que foram os arguidos que deixaram o ofendido no local onde foi encontrado e nas circunstâncias em que se encontrava.
- Que durante a madrugada desse dia 25 de Novembro de 2009, cerca das 04h00, os arguidos contactaram o co-arguido H… e pediram-lhe que fosse comprar mais um telemóvel à Área de Serviço …;
- Que foi o arguido H… quem comprou na Área de Serviço …, um telemóvel de marca LG, modelo …, preto, com o número ……201, que entregou pouco tempo depois ao arguido E…, naquele local, passando os arguidos a utilizar estes telemóveis nos contactos que estabeleceram entre todos.
- Que foram os arguidos que atearam fogo o veículo do ofendido, munidos de três bidões de vinte litros de gasolina que haviam comprado pouco tempo antes no Posto de Abastecimento de combustível da ….
- Que antes de o incendiarem, os arguidos, ou alguém, retirou do interior do veículo, fazendo-a sua, a quantia de € 6.000,00 (seis mil euros) em numerário, pertença do ofendido, que posteriormente dividiram entre todos.
- Que os arguidos se puseram em fuga utilizando o Audi .. matrícula ..-AJ-..
- Que os binóculos e os intercomunicadores encontrados haviam, pelos arguidos, sido utilizados nas manobras de seguimento e vigilância do ofendido, efetuadas nos dias que antecederam os factos ocorridos a 25 de Novembro de 2009 acima descritos.
- Que todos os arguidos agiram livre, consciente e voluntariamente.
- Que atuaram todos em conjugação de esforços, de forma concertada e na execução de um plano que previamente traçaram.
- Que quiseram aterrorizar o ofendido, provocando-lhe ofensas na sua integridade física, como provocaram, e cercear-lhe a sua liberdade de circulação, como cercearam, para, desse modo, lograrem que este lhes fizesse entrega de uma quantia em dinheiro que sabiam não lhes ser devida, contra a vontade daquele e que aquele não lhes queria dar.
- Que acordaram entre todos na utilização de armas de fogo, exibindo-as e efetuando disparos, para desse modo lograrem atemorizar o ofendido, como de facto conseguiram, aterrorizando-o de forma a que este não tentasse sequer reagir quando foi abordado e durante todo o período de tempo em que esteve, contra a sua vontade, na companhia dos arguidos.
- Que combinaram também na utilização de objetos, como um alicate, para desse modo infligirem ao ofendido golpes, lacerando-lhe a carne, em várias partes do corpo, provocando-lhe intensas e violentas dores, bem como na utilização das referidas armas de fogo para lhe vibrarem pancadas na cabeça e no tronco, colocando-o na impossibilidade de reagir, como quiseram e conseguiram.
- Que todos sabiam que ao deixarem o ofendido sozinho, ensanguentado e ferido, com os pés e as mãos amarradas de forma a não se conseguir mover, num local ermo, por onde não circulavam nem veículos nem pessoas, o mesmo poderia vir a morrer, resultado que aceitaram como possível e com cuja realização se conformaram, abandonando-o à sua sorte.
- Que agiram os arguidos com a intenção concretizada de se apropriarem da quantia de € 6.000,00 (seis mil euros) que tomaram do ofendido, bem sabendo que a mesma lhes não pertencia nem lhes era devida a qualquer título, a fim de a fazerem sua e aplicarem em proveito de todos, cientes de que o faziam contra a vontade e sem o consentimento do respetivo dono legítimo.
- Que os arguidos quiseram incendiar o veículo do ofendido, o que conseguiram, bem sabendo que dessa forma o iriam destruir completamente, como destruíram, sendo perfeitamente conhecedores do seu real valor patrimonial.
- Que ao colocarem e substituírem as chapas com números de matrícula não correspondentes à viatura de marca BMW que utilizaram para a deslocação a Espanha e o transporte do ofendido, atuaram os arguidos, em comunhão de esforços, com a intenção de se furtar à identificação daquela viatura por parte de terceiros que os surpreendessem na prática daqueles factos, cientes de que assim colocavam em causa a fé pública que merecem os referidos documentos identificativos de veículos.
- Que ao deterem a espingarda e a pistola que utilizaram no dia 25 de Novembro de 2009, os arguidos B… e E… bem sabiam que o faziam sem estarem autorizados e fora das condições legais para a detenção e utilização das mesmas, bem sabendo que tal detenção, uso e posse lhes estava vedada por lei.
- Que ao deter as munições que lhe foram apreendidas, o arguido H… bem sabia que o fazia sem estar autorizado e fora das condições legais para a detenção das mesmas, bem sabendo que tal detenção, uso e posse lhe estava vedada por lei.
- Que agiram todos cientes de que as respetivas condutas eram proibidas e punidas por lei.
- Que desde a data dos factos, o ofendido nunca mais teve sossego, passando a viver aterrorizado.
- Que desde essa data, o ofendido por muitas vezes acorda sobressaltado com a imagem dos arguidos a agredirem-no, e o local onde foi posteriormente abandonado.
- Que jamais o ofendido voltou a sair sozinho, procurando fazer-se acompanhar por terceiros, familiares ou amigos, nas deslocações que faz.
- Que o ofendido evita saídas noturnas, porque ainda hoje tem pavor de represálias.
- Que o ofendido não conseguiu até hoje, ultrapassar o medo que sentiu nessa noite e tudo o mais que foi alegado e não referido, por ser conclusivo.
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A convicção sobre os factos descritos como provados e não provados, e tendo em conta que os arguidos optaram por não prestarem declarações, foi formada com base no confronto de todos os meios de prova produzidos em audiência de julgamento e constantes dos autos.
Assim:
Os inspetores da Polícia Judiciária que foram ouvidos descreveram a intervenção que cada um teve na averiguação dos factos. Designadamente:
U… referiu não conhecer pessoalmente os arguidos, tendo tido participação nas buscas domiciliárias realizadas em casa dos pais do arguido B…, na viatura e no local de trabalho, uma oficina de marmorista, do pai do mesmo arguido, bem como numa oficina explorada pelo próprio arguido, confirmando algumas das apreensões feitas, as quais ficaram registadas nos autos respetivos.
V… disse ter participado nas mesmas buscas referidas pela testemunha anterior, nada de relevante acrescentando.
W… referiu ter participado numa busca à residência do arguido B…, em …, Gondomar, numa altura em que este já se encontrava detido.
X… disse que apenas interveio no visionamento das imagens de videovigilância que foram recolhidas, tendo selecionado os fotogramas considerados relevantes e que constam dos autos.
Y… referiu também ter participado nas buscas à residência e oficina dos pais do arguido B…, bem como a uma oficina que este explorava, numa altura em que o arguido já estava detido.
Z… disse ter participado apenas numa busca a um familiar do arguido B…, nada de relevante tendo sido encontrado.
AB… apenas interveio no visionamento das imagens de videovigilância e fez o tratamento dessas imagens.
AC… referiu ter feito algumas vigilâncias ao arguido E…, a fim de verificar as pessoas com quem andava ou as viaturas que usava, sendo certo que não foi visto com qualquer uma das viaturas em causa nos autos. Disse, ainda, ter feito o reconhecimento de duas quintas na zona … e de Cinfães, para além de ter participado na busca à residência do arguido E…, no Algarve.
AD… referiu ter apenas tido intervenção na busca à residência dos pais do arguido E…, numa altura em que este residia já no Algarve.
AE… disse ter tido intervenção em duas buscas, na residência e na oficina do arguido H…, onde foram apreendidos os bens que constam do respetivo auto que a testemunha confirmou.
AF… referiu ter participado na busca ao arguido K…, nada de relevante tendo sido encontrado.
Ainda da Polícia Judiciária, o Inspetor AG… disse ter procedido à análise dos invólucros recolhidos em Espanha, no local do rapto, constando o respetivo exame dos autos, tendo esclarecido que tais invólucros podem ser disparados pro diversos tipos de armas, das classes C ou A, sendo parcialmente compatíveis com uma metralhadora, embora considere que a arma usada teria sido uma shot-gun e não uma metralhadora.
Já o Inspetor AH… disse ter tido intervenção em várias diligências, tendo estado no local onde foi encontrada a vítima, tendo contactado com esta no hospital, fez algumas vigilâncias ao arguido E… e deslocou-se ao posto de combustíveis, no âmbito de uma diligência relacionada com a aquisição de um telemóvel.
Por sua vez, o Inspetor AI… esclareceu as representações gráficas de fls. 1115 a 1121 dos autos, as quais foram por si elaboradas com base nas listagens de chamadas fornecidas pelas operadoras telefónicas. A mesma testemunha referiu que tais gráficos mostram como os arguidos se relacionam entre si; mostram que determinado número se encontrava em determinado local, num determinado momento; as células de ativação telefónica mostram as chamadas recebidas e efetuadas por determinado número de telefone, bem como o percurso efetuado por esse número, sendo que as células ativadas por cada um dos números estão identificadas nos mapas referidos.
Já o Inspetor AJ… interveio em várias diligências, tendo estado no local onde foi encontrada a vítima; participou em vigilâncias com vista a estabelecer rotinas dos visados; esteve na área de serviço … com vista a confirmar a aquisição de um telemóvel, tendo sido recolhida documentação que consta dos autos; esteve no …, porque telemóveis suspeitos acionaram essa célula; participou na busca domiciliária ao arguido H….
O Inspetor AK… demonstrou ter tido intervenção em toda a investigação, tendo feito uma descrição dos factos, no essencial, tal como consta da acusação. Contudo, muitas são as situações que são conclusões pessoais da testemunha e que não foram devidamente esclarecidas.
Senão vejamos:
A testemunha AK… começou por referir que foi recebida a comunicação, por parte da polícia espanhola, de um rapto de cidadão português. Que na sequência disso se deslocaram a Espanha e aí, através do contacto com testemunhas presenciais, que não foi possível ouvir na audiência de julgamento, averiguaram a identidade da vítima (que já era conhecido da Polícia Judiciária), bem como as matrículas do veículo do ofendido e do veículo que transportava os raptores. Por outro lado, os vestígios encontrados no local, existindo relatórios e autos sobre os mesmos no processo, confirmam o que foi relatado pelas testemunhas presenciais.
Pelos invólucros das munições que as testemunhas disseram terem sido disparadas, apuraram o tipo de armas utilizadas, e pelos demais vestígios, como sejam vidros partidos no chão, confirmaram como o rapto decorreu, já que tais vestígios confirmam a versão das ditas testemunhas.
Não restaram, assim, dúvidas sobre a ocorrência do rapto e a identidade da vítima que, aliás, veio depois a ser encontrada, tendo a testemunha descrito em que circunstâncias isso ocorreu, tendo descrito o local onde foi encontrada e as respetivas características, bem como a situação em que encontraram a viatura do ofendido.
A testemunha passou, então, a descrever como foi abordada a investigação, tendo por base a matrícula do veículo automóvel, de marca BMW, usado pelos raptores, que as testemunhas presenciais identificaram como sendo ..-AB-.., e um telemóvel que foi abandonado no local e do qual conseguiram averiguar o IMEI, para além de terem verificado que no mesmo estavam gravados apenas dois números, únicos com os quais esse telemóvel comunicou.
Descreveu como foi encontrado o veículo ao qual correspondia a matrícula (..-AB-..) vista pelas testemunhas e como concluíram que não se tratava do veículo usado no rapto, conclusão a que chegaram pela comparação da matrícula respetiva e da matrícula aposta no veículo usado no rapto, que passou em transgressão no radar da autoestrada em Espanha, ficando a imagem no sistema de videovigilância. Pela comparação das duas matrículas concluíram que existiam diferenças nas letras e nos espaços entre as mesmas, como consta do relatório da perícia efetuada e junto aos autos (fls. 1950 a 1956), como concluíram também que as duas viaturas, aquela a que efetivamente corresponde a matrícula vista pelas testemunhas e a que passou na portagem em Espanha, têm características diferentes.
Concluíram, então, que os raptores usaram uma matrícula falsa, como concluíram que a carrinha que foi usada no rapto com a dita matrícula falsa foi uma carrinha BMW, propriedade do arguido B…, à qual correspondia a matrícula real ..-HV-...
E foi neste ponto que o tribunal já não ficou convencido de tal facto, porque não foi devidamente explicado como se pode afirmar que a carrinha usada no rapto e que ostentava a matrícula ..-AB-.. era efetivamente a de matrícula ..-HV-...
A testemunha justificou tal facto invocando as características desta última que coincidiam com a que é vista na imagem de videovigilância. Sucede que, para além de existirem muitos veículos com essas características, existem aspetos, como por exemplo os canos de escape, que resultam serem diferentes. Acresce que, tendo a vítima sido transportada nesse veículo, segundo a acusação e o próprio depoimento da vítima, e tendo em conta o estado em que a vítima se encontrava, não nos parece natural que feito exame pericial à dita viatura, não tenha sido, como não foi, encontrado qualquer vestígio hemático ou outro que denuncie a presença da vítima dentro dessa viatura, como resulta de fls. 1070 a 1078 e 1653 a 1657 dos autos.
Fica, assim, a dúvida, que não foi possível ultrapassar, sobre se terá sido essa a viatura usada no rapto, sendo certo que, mesmo em relação à propriedade da viatura de matrícula ..-HV-.. ficou alguma dúvida sobre se seria do arguido B…, já que o mesmo nunca foi visto a conduzi-la, embora se trate de uma dúvida ultrapassável, face a alguns depoimentos, a que adiante nos iremos referir, que relacionam um veículo com essas características e com as letras que ostenta na matrícula, com um que esteve na posse do dito arguido.
Seja como for, o tribunal entende que ficou a dúvida sobre se tal veículo, de marca BMW, série ., de matrícula ..-HV-.., ainda que propriedade do arguido B…, foi a que foi usada no rapto do ofendido. E ficando a dúvida, a mesma deve ser decidida a favor do arguido, em obediência ao princípio básico de direito do in dubio pro reo.
O relacionamento do arguido B… com os factos em causa foi, contudo, como foi referido pela testemunha AK…, resultante de outro aspeto, relacionado com os telemóveis alegadamente usados pelos raptores. De facto, a partir do telemóvel que foi deixado no local do rapto, foi possível estabelecer a ligação com dois outros telemóveis, cujos números estavam gravados naquele, e, apurando-se o respetivo IMEI foi possível apurar onde os três telemóveis foram adquiridos e que o valor da aquisição foi pago com um cartão bancário do Q…, titulado pelo arguido B…, como resulta dos documentos e das informações de fls. 136, 533 a 535, 718 e 793 dos autos. Sendo certo que se trata de um indício forte do envolvimento do arguido B… nos factos em discussão neste processo, a verdade é que este facto surge sem possibilidade de estabelecer a ligação com os restantes factos descritos na acusação. Os meros indícios não são suficientes para a condenação, a não ser que sejam tão fortes e que interligados uns com os outros possam levar o julgador a concluir, sem dúvidas, como as coisas se passaram. Na situação concreta, contudo, tendo presente que o telemóvel encontrado no local do rapto e os outros dois com os quais contactava, foram pagos com um cartão de crédito titulado pelo arguido, não fica sequer a certeza se foi o próprio arguido a adquiri-los, se foi o próprio arguido a usar o cartão, se o cartão foi usado à sua revelia. São possibilidades que deixam a dúvida no espírito do julgador, quando nada mais existe que permita corroborar que efetivamente foi o arguido quem adquiriu os telemóveis, até porque quem os vendeu, não o identifica. Sendo este o facto mais importante que existe e se mostra comprovado nos autos através de prova documental entende o tribunal que, só por si, não permite concluir nada mais que não seja o próprio facto - os três telemóveis foram pagos com um cartão bancário titulado pelo arguido B… – nomeadamente, não permite concluir que o arguido teve participação em todos os factos que se mostram descritos na acusação. Mais uma vez, apesar do forte indício, fica a dúvida que se considera inultrapassável face às provas produzidas, dúvida, essa, que tem de ser decidida a favor do arguido.
Foi, ainda, referido, pela testemunha, um outro aspeto com vista a relacionar o arguido B… com os factos, designadamente o facto de ter sido apreendida na oficina do pai do arguido uma fita alegadamente com características idênticas à que foi usada pelos raptores para amarrar o ofendido. Contudo, para além de o ofendido ter sido amarrado com vários tipos de fita, aliás, de várias cores, pelo menos, vermelha, preta e prateada, a verdade é que a fita apreendida na oficina do pai do arguido B… não foi analisada, pelo que não se pode concluir que era idêntica a alguma das fitas que foram usadas.
Finalmente, ainda, segundo a acusação e o que foi referido pela testemunha AK…, o arguido B…, e supostamente, os arguidos E… e K…, receberam o veículo BMW com a matrícula ..-HV-.., na noite dos factos, cerca das 2.00 horas, tendo de seguida substituído a matrícula respetiva pela matrícula falsa que ostentava aquando do rapto, e tendo seguido para Espanha. Ora, também em relação a estes factos a prova produzida não se mostra suficiente, deixando dúvidas sérias na mente do julgador. Desde logo, existe um contacto telefónico entre o arguido B… e a testemunha AL…, o mecânico que lhe foi entregar a dita viatura, contacto, esse, que acionou uma célula telefónica, às 2.26 horas, na zona da bomba de gasolina onde ocorreu a entrega do veículo. Sucede que, a testemunha AL... disse em audiência de julgamento que esse contacto telefónico ocorreu antes da entrega da viatura e que, uma vez no posto de combustíveis, ainda esteve a falar com o arguido, pelo menos, durante um quarto de hora, pelo que o arguido, a ter-se efetivamente deslocado para Espanha para praticar o rapto, teria que ter percorrido o trajeto até à portagem de Valença, onde a viatura BMW que interveio no rapto passou às 3.07 horas, em 26 minutos, o que parece inverosímil se tivermos em conta a distância em causa, mais de cem quilómetros.
Estamos, assim, perante mais uma circunstância que, pelo menos, nos deixa ficar na dúvida sobre a possibilidade de o arguido B… ter praticado os factos.
E se, apesar de toda a descrição da sequência dos factos que foi feita pela testemunha AK…, não foi possível concluir com a necessária certeza sobre a intervenção do arguido B… nos factos, menos ainda é possível relacionar os demais arguidos com a sua prática.
Efetivamente, a testemunha referiu que receberam informação de que o arguido B… estaria acompanhado pelo “E1…”, nome pelo qual é conhecido o arguido E…, sem contudo esclarecer de quem veio tal informação, como foi obtida, quais as provas que o confirmam. É que, o facto de os arguidos se conhecerem não significa que tenham praticado crimes juntos e não foi apresentada qualquer outra prova credível que relacione o arguido E… com os factos, já que o depoimento do ofendido, como melhor referiremos infra, não mereceu credibilidade.
O mesmo se diga em relação ao arguido H…. A testemunha AK… disse que este arguido conduzia o Renault … que teria perseguido o ofendido até à portagem de Valença e que teria adquirido um telemóvel, no posto de combustíveis …, após o rapto, para substituir o que foi perdido no local. No entanto, não é possível ver a matrícula do veículo Renault que passou na portagem a uma hora aproximada daquela em que aí passou o ofendido, nem é possível identificar quem a conduzia, como não foi possível identificar quem adquiriu o telemóvel no posto de combustíveis, apesar das imagens de videovigilância. E não é o facto de próximo da hora da dita compra ter sido captado no sistema de videovigilância do posto uma imagem do Renault … de matrícula ..-BF-.., alegadamente propriedade da empresa da qual a esposa do arguido H… é dona, que prova ter sido o mesmo arguido a adquirir o dito telemóvel. Fica também aqui a dúvida que não possível resolver, na falta de outras provas.
A mesma testemunha disse, ainda, que na noite dos factos, foi possível ver no sistema de videovigilância da portagem da autoestrada, para além do veículo do ofendido, da BMW que ostentava a matrícula ..-AB-.., e de um Renault … cuja matrícula não se apurou, já referido, um veículo Audi .., o que é comprovado pelos fotogramas de fls. 158 a 163 dos autos, sendo que em relação a este se veio a identificar a matrícula como sendo ..-AJ-... Também quanto a este veículo, ficou a dúvida sobre ter tido qualquer intervenção nos factos em discussão. Desde logo, não foi referido como tendo sido visto no local do rapto. Por outro lado, sendo certo que uma testemunha, AM…, disse ter-se cruzado com um veículo de marca Audi e de cor escura, a vir do local onde foi encontrada a vítima, a verdade é que a parte da matrícula que conseguiu fixar, apenas parcialmente coincide com a matrícula do veículo que passou na portagem da autoestrada em Valença, antes do rapto. A isto acresce que feito exame pericial ao veículo de matrícula ..-AJ-.., como resulta de fls. 1055 a 1059 e 1235 a 1236 dos autos, nada de relevante foi encontrado, nomeadamente, quaisquer vestígios biológicos ou hemáticos que pudessem indiciar que o ofendido aí foi transportado para o local onde foi abandonado.
Fica, deste modo, a dúvida sobre se este veículo foi ou não usado pelos raptores na prática dos factos.
A testemunha cujo depoimento se analisa disse, também, que o veículo BMW de matrícula HV foi entregue ao arguido B…, pela testemunha AL…, já com a matrícula falsa aposta. Para além de não haver qualquer prova nesse sentido e de a testemunha não ter como justificar tal facto, essa afirmação contraria o que consta da própria acusação, onde se diz que foram os arguidos que, em momento e local não determinados, trocaram as matrículas, facto de que, aliás, não existe qualquer prova, uma vez que não foi referido por qualquer testemunha e de, como já supra, dito, não haver qualquer certeza de que efetivamente foi o veículo de matrícula ..-HV-.. o que esteve envolvido no rapto do ofendido.
A testemunha AK… disse, ainda, que os telemóveis pessoais dos arguidos B… e E… se encontram na mesma localização nas horas que antecederam o rapto. Também aqui, contudo, temos de dizer que tal facto nenhuma prova faz sobre a participação dos arguidos nos factos. Por um lado, residem todos na área do grande Porto. Por outro lado, não há dúvidas de que os arguidos se conhecem, pelo que é normal que contactem uns com os outros. O que acontece é que das interceções telefónicas mencionadas pela testemunha, em nossa opinião, nada resulta de concreto que possa relacionar os arguidos com os factos em discussão.
Esta testemunha referiu, ainda, tudo por forma a relacionar os arguidos com os factos, que teria sido num posto de combustível na zona …, perto de uma quinta propriedade da família da esposa do arguido H…, que foi adquirido o combustível usado para pegar fogo ao veículo do ofendido. No entanto, nenhuma prova concreta foi produzida sobre tal facto, já que os arguidos não foram reconhecidos como tendo adquirido tal combustível, no dito local.
A testemunha relaciona também a apreensão que foi feita a alguns dos arguidos, de radio-comunicadores e binóculos, com a suposta vigilância que terá sido feita às rotinas do ofendido, antes do rapto. Contudo, nenhuma prova existe no sentido de que essa vigilância existiu, sendo que a posse dos binóculos, que nem sequer têm visão noturna como resulta do respetivo auto de exame, e dos rádio comunicadores, cuja utilização também não foi explicada, já que alegadamente os raptores adquiriram propositadamente os três telemóveis referidos para contactarem, nada demonstra, até porque, passado tanto tempo, se estivessem em causa objetos que pudessem incriminar os arguidos, estes se podiam ter desfeito dos mesmos.
Finalmente, a testemunha acabou por referir que nunca qualquer um dos arguidos foi visto a conduzir algum dos veículos supostamente intervenientes no rapto, parecendo-nos que a conclusão de que a viatura que interveio no rapto foi a de matrícula ..-HV-.. resultou apenas do facto de ser propriedade do arguido B… e ser da mesma marca da que foi vista no local, uma vez que tinham indícios contra este arguido por terem sido adquiridos os três telemóveis em causa com um cartão titulado por si.
Quanto ao facto de a vítima ter dito que reconheceu dois dos arguidos como autores do rapto, a testemunha AK… admitiu que isso só aconteceu à segunda ou terceira vez que foi inquirida, e após ter sido informada pela polícia judiciária sobre alguns dados da investigação. Ou seja, só depois de saber que a Polícia Judiciária suspeitava do arguido B… e o relacionava com o arguido E…, é que o ofendido disse tê-los reconhecido. No entanto, quanto às declarações do ofendido, pronunciar-nos-emos mais adiante.
Finalmente, o inspetor AN… revelou, igualmente, estar a par de toda a investigação, tendo relatado como tiveram conhecimento do crime através da polícia espanhola, como tiveram conhecimento de que fora encontrado o ofendido, relatou as deslocações aos locais do rapto e do abandono do ofendido. Referiu como, através do visionamento das imagens de videovigilância da autoestrada e dos radares, identificaram as viaturas que na noite do rapto passaram na dita portagem de Valença, no sentido de Espanha e de volta. Quanto a essas viaturas referiu terem encontrado a viatura Audi .. num Stand e próximo de um local frequentado pelo arguido B…, pelo que acabaram por concluir que estava na sua posse. No que se refere à BMW confirmou que a análise do fotograma do radar de Espanha revelou que matrícula não coincidia com a da carrinha que tinham encontrado e à qual a matrícula pertencia, pelo que concluíram que os raptores usaram uma matrícula falsa. E, com base na informação de que a Audi .. era do arguido B…, acabaram por encontrar uma BMW com características parecidas com a que passou na portagem na noite dos factos, e que teria sido propriedade do arguido B…r, pelo que concluíram que teria sido esta a carrinha usada no rapto, ostentando uma matrícula falsa. No entanto, como já, supra, referido, pelo que nos abstemos de aqui o repetir, nenhuma das provas produzidas se mostrou suficiente para aceitar tal conclusão.
Explicou, também, como relacionaram o telemóvel que foi encontrado em Espanha, no local do rapto, com outros dois e como apuraram que os três foram adquiridos no mesmo dia e pagos com um cartão de crédito do arguido B…. Referiu as relações que existiam entre os arguidos, para demonstrar que se conheciam.
Referiu que o veículo de marca Renault … com a matrícula ..-BF-.. era propriedade de uma empresa da esposa do arguido H…, referindo que este veículo esteve na noite dos factos, após o rapto, no posto de combustíveis onde foi adquirido um outro telemóvel que logo que ativado começou a comunicar com dois dos outros usados pelos raptores, sendo, no entanto certo que, como também já, supra, dito, não foi possível identificar quem procedeu a tal aquisição. Por outro lado, ainda, ao contrário do que a testemunha disse no sentido de que a mesma viatura Renault … passou na portagem de Valença à mesma hora do ofendido, tal não se mostra comprovado, uma vez que não é possível identificar a matrícula da viatura da mesma marca e modelo que passou em tal local, à dita hora. Não existindo a certeza do facto, não se pode dar como provado, nesta fase do processo.
Quanto à identificação de dois dos arguidos por parte do ofendido, admitiu, também, que os mesmos já haviam sido identificados antes pela polícia.
Descreveu o estado físico em que o ofendido se encontrava quando o ouviu pela primeira vez, no dia a seguir aos factos.
Disse igualmente que houve um contacto telefónico entre o arguido B… e a testemunha AL…, na noite dos factos, referindo que o BMW de matrícula ..-HV-.. foi entregue ao arguido cerca das 2.00 horas num posto de abastecimento. No entanto, como já dito supra, a testemunha referiu que tal entrega ocorreu após as 2.26 horas, hora a que ocorreu o dito contacto telefónico, o que se mostra provado documentalmente, uma vez que foi acionada uma célula de ativação telefónica na zona onde se situa o referido posto, sendo que se mostra mais verosímil que o contacto tenha sido anterior ao encontro do que após o mesmo, altura em que tal contacto já não revela ter justificação. Por outro lado, este facto é relevante em termos de defesa, uma vez que tendo em conta a distância entre o local do encontro e a portagem de Valença onde o veículo usado no rapto passou às 3.07 horas, também não é verosímil que pudesse ter sido o arguido, com aquela viatura, a passar no mencionado local àquela hora, o que deixa dúvidas importantes sobre a sua participação nos factos.
A mesma testemunha referiu que foi encontrada fita em tudo idêntica à usada para atar o ofendido, na oficina do pai do arguido B…. No entanto, como também já dito, não foi feito qualquer exame a tal fita, para além de ter sido usada para atar o ofendido fita de vários tipos e cores, como resulta das fotografias constantes dos autos.
Disse, também, que nos exames efetuados às viaturas BMW de matrícula ..-HV-.. e Audi .., ..-AJ-.. não foram encontrados quaisquer vestígios, nomeadamente hemáticos que pudessem ser relacionados com o ofendido, como disse também que nunca viram os arguidos a conduzir tais veículos. Ainda quanto à viatura BMW, apesar de referir que apresentava as características da que foi captada no fotograma do radar de Espanha, admitiu que existem diferenças quanto aos canos de escape.
No que se refere às declarações do assistente N…, o tribunal entendeu que se mostraram muito pouco credíveis, sendo que apenas foram tidas em conta quanto à versão deste sobre a sequência dos factos de que foi vítima, uma vez que tal versão encontra confirmação noutras provas, designadamente nas lesões que sofreu e se mostram documentadas nos autos, para além de terem sido confirmadas pelas testemunhas que viram o ofendido após os factos, sendo também confirmadas pelos vestígios, nomeadamente, os invólucros das munições que foram disparadas, deixados no local do rapto, ou nas circunstâncias em que o ofendido foi encontrado. Todos estes aspetos vão ao encontro da versão apresentada pelo ofendido sobre a sequência dos atos de que foi vítima, pelo que, nessa parte, se deu credibilidade ao ofendido.
Já quanto ao restante pelo mesmo relatado, aquilo que disse mostrou-se inverosímil, nada existindo nos autos que o confirme. Foi o caso do motivo que invoca para o rapto, a extorsão, que não convenceu o tribunal, até porque não é credível que uma pessoa que se encontra numa situação de risco elevado para a sua vida, como era o caso do ofendido, se limite a negar pagar qualquer quantia, não tentando uma qualquer forma de negociação de maneira a ser libertado. Aliás, o ofendido, questionado sobre tal situação, limitou-se a insistir que não pagava, e que não o faria mesmo que soubesse que o matariam, sem querer explicar melhor os seus motivos. Também não se mostrou verosímil a justificação que o ofendido apresentou para, supostamente, ter consigo, na viatura, a quantia de € 6.000,00, sendo certo que essa justificação não encontra confirmação, antes é contrariada pelo documento que juntou aos autos em audiência de julgamento e que vem confirmar que o pagamento para o qual o ofendido disse ter na sua posse a quantia em causa, ocorreu em data bastante posterior aos factos, pelo que não é credível que o ofendido tivesse aquela quantia consigo, naquele momento. Finalmente, um último aspeto que não mereceu credibilidade nas declarações do ofendido, foi o facto de o mesmo referir que reconheceu logo dois dos arguidos. Desde logo, o mesmo não os identificou quando foi ouvido pela polícia judiciária, tal como os respetivos inspetores confirmaram, só o fazendo mais tarde, quando confrontado com as suspeitas que a polícia judiciária já tinha contra os dois arguidos que depois disse ter reconhecido. Aliás, o ofendido, em audiência de julgamento referiu, num primeiro momento, ter decidido revelar que reconheceu dois dos arguidos, após saber das suspeitas da polícia judiciária, o que vai ao encontro do que foi dito por um dos inspetores, acabando por negar tal facto posteriormente. Por outro lado, também não se mostrou convincente o depoimento em causa, quanto ao motivo invocado pelo ofendido para ter reconhecido os dois arguidos, já que o mesmo refere conhecer o arguido B… apenas de vista, mas diz não ter qualquer dúvida de que era ele, apesar de se mostrar, na sua versão, vestido de preto e encapuzado. Por sua vez, quanto ao arguido E…, diz tê-lo reconhecido pelos olhos verdes, quando ficou claro em julgamento que o mesmo tem olhos azuis, e pela voz que, apesar de distorcida, reconheceu, quando refere que nunca falou com ele, a não ser dizer boa noite, quando ia à discoteca onde o arguido E… trabalhava. Mais uma vez, o seu depoimento se reveste de pouca credibilidade. Finalmente, também as razões alegadas para não ter identificado logo os dois arguidos que diz ter reconhecido, não se compreendem, uma vez que o ofendido diz não ter revelado os nomes por medo das consequências, mas não teve medo no momento do rapto, ao ponto de se negar terminantemente a pagar qualquer quantia, não teve medo quando supostamente disse a dois amigos que reconheceu os dois arguidos, logo após ter saído do hospital, quando, estranhamente, nada contou à sua ex-companheira que foi quem o apoiou desde início, que o foi buscar ao hospital a Chaves e que o manteve consigo até recuperar, testemunha essa que referiu que até suspeitava de outra pessoa.
Por todas estas razões e também pela atitude do ofendido em audiência de julgamento que insistia em fazer afirmações que se recusava a explicar, quando questionado pelos ilustres defensores dos arguidos, não mereceu o seu depoimento credibilidade, a não ser quanto aos factos que encontram confirmação noutras provas produzidas ou constantes dos autos.
As restantes testemunhas que nada presenciaram sobre os factos concretos em causa, disseram o seguinte:
AO… disse não conhecer os arguidos. Referiu que a viatura de matrícula ..-AB-.. estava registada em seu nome, mas que se tratava apenas de uma questão formal, sendo que a mesma era propriedade de AP… que vivia no Algarve, o que veio ser confirmado quando foi encontrada a carrinha.
AQ…, comerciante de automóveis, referiu conhecer o arguido B… e disse ter levado a carrinha BMW de matrícula ..-HV-.. da oficina do arguido para o seu Stand, tendo sido vendida. Confirmou que tal viatura estava na posse do arguido B…, tendo referido que teve no seu Stand vários veículos do arguido, admitindo que também lá teve uma Audi .., embora não se recorde da matrícula ou da cor. Esclareceu que na conversa que teve com o arguido, intercetada numa escuta telefónica, falaram da viatura BMW, mas apenas porque a mesma tinha sido vendida ao arguido pelo “AS…” e a testemunha tinha receio de haver algum problema com a documentação da mesma. Este depoimento vem contrariar as conclusões dos inspetores da Polícia Judiciária que encontraram tal conversa intercetada suspeita e a consideraram como um indício de que a viatura em causa tinha sido usada no rapto, já que a testemunha AQ… explicou o motivo da preocupação que demonstrou quando falou com o arguido sobre a viatura em causa, sendo que a sua justificação se mostrou clara e plausível.
AP… referiu apenas não conhecer os arguidos e nada saber sobre os factos.
AT… disse, igualmente, não conhecer os arguidos, referindo que ela e o marido foram donos da viatura BMW cuja matrícula não recorda mas que sabe ter o número “67”, acrescentando que em Novembro de 2009 viviam no Algarve e que a dita viatura tinha os estofos pretos. Este depoimento acaba por confirmar que a carrinha a que corresponde a matrícula original ..-AB-.. não foi a usada no rapto, apesar de ter sido essa a matrícula que a viatura usada ostentava.
AU… referiu ter adquirido a viatura Audi .. de matrícula ..-AJ-.., em Dezembro de 2009, tendo-se apresentado como vendedor um tal AL…, do qual recebeu a respetiva documentação, não apresentando o veículo qualquer problema.
AV…, operadora do Posto …, no …, disse que no posto também vendem telemóveis e que se recorda de ter vendido três telemóveis a uma mesma pessoa que, no entanto, não consegue identificar, porque atende diariamente muitas pessoas, apenas se recordando da situação por ter vendido três telemóveis ao mesmo tempo e à mesma pessoa. Não se recorda sequer da forma de pagamento que foi utilizada na altura. Deste depoimento resulta que, mesmo apurando-se que foi usado um cartão bancário titulado pelo arguido B…, não se apurou se foi efetivamente o próprio quem adquiriu os telemóveis, uma vez que entendemos que, não se tratando de um cartão onde fosse necessário assinar um talão, por exemplo, não podemos concluir, com a necessária certeza, na falta de outras provas, que foi o arguido o autor de tal ato.
AW... disse que trabalha no posto de abastecimento da …, no …, mas que não se recorda se os arguidos, que não conhece, foram lá abastecer bidões com combustível, sendo certo que aquela é uma zona agrícola, pelo que é frequente ir lá muita gente encher bidões de combustível.
AX… referiu ter sido caseira numa quinta da família da esposa do arguido H…, no …, durante três anos, incluindo o ano de 2009, dizendo apenas que o arguido H… ia lá várias vezes, quase sempre acompanhado por outras pessoas, nada de relevante resultando do seu depoimento.
AY… que depôs apenas quanto ao pedido de indemnização civil, por ter sido prescindido o seu depoimento quanto à acusação, disse ter vivido maritalmente com o ofendido e não conhecer os arguidos. Referiu que veio buscar o ofendido ao hospital de Chaves e descreveu o estado em que o mesmo se encontrava, tendo-o mantido em sua casa durante cerca de quinze dias, uma vez que o mesmo não se encontrava em condições de cuidar de si, devido aos múltiplos ferimentos que apresentava.
AZ…, agente da brigada de trânsito da GNR, referiu que seguia de patrulha, quando viram fumo e se dirigiram ao local, onde encontraram uma viatura a arder, tendo ainda visto a respetiva matrícula (que correspondia ao veículo do ofendido). Relatou que o colega que acompanhava ouviu um gemido e acabou por encontrar o ofendido. Descreveu o local onde o ofendido se encontrava, bem como as condições do mesmo. Disse, ainda, que na altura identificou a testemunha AM… que referiu ter visto uma viatura a sair daquele local.
BB…, Guarda da GNR na reserva, confirmou o que foi dito pela testemunha anterior, uma vez que se deslocaram ambos ao local, descrevendo a situação do ofendido e confirmando que o mesmo não tinha qualquer possibilidade de sair do local pelos seus próprios meios.
BC… disse ser comerciante de automóveis e não conhecer os arguidos. Referiu que viu a viatura BMW com a matrícula “HV” num leilão e que a comprou em 26 de Abril de 2010 a um tal BD…, desconhecendo a quem este a adquiriu, sabendo apenas que o mesmo é revendedor de automóveis.
BE… referiu conhecer apenas o arguido B…. Disse que andava muitas vezes com o ofendido que tinha uma namorada em Espanha. Certo dia recebeu um telefonema de um amigo comum, o BF…, a dizer que o ofendido fora raptado, tendo-se deslocado a Espanha na companhia de dois amigos. Referiu, mesmo, que inicialmente desconfiaram que a namorada do ofendido estivesse envolvida nos factos. Referiu que, entretanto, tiveram conhecimento de que o ofendido foi encontrado, e que veio a Chaves, acompanhando a testemunha AY… que foi companheira do ofendido, buscá-lo ao hospital. Disse que o ofendido não queria falar e que das vezes que falou com ele, nunca lhe disse quem lhe fez aquilo.
BG…, mãe da testemunha anterior, referiu conhecer apenas o ofendido N…. Disse que foi contactada por uma brasileira, namorada do ofendido, dizendo que este foi raptado por uns indivíduos “de cor escura, altos e fortes”. No entanto, não soube esclarecer como a namorada do ofendido tinha o seu número de telefone.
AM… disse que passava na estrada nacional, quando viu fumo negro no monte e, como é Presidente da Junta de Freguesia …, decidiu ir ver o que se passava. Quando entrou no caminho que levava ao local de onde vinha o fumo, diz ter-se cruzado com uma carrinha Audi, escura, tendo ainda visto uma parte da matrícula, mas que agora já não recorda. Na Audi lembra-se de ter visto duas pessoas nos bancos da frente.
AL…, mecânico de automóveis, disse conhecer o arguido B…, o qual era cliente da oficina onde a testemunha trabalhava. Referiu que o arguido lhe disse que tinha uma carrinha Audi .. num Stand, quando o questionou sobre uma viatura a pedido de um cliente, admitindo que a matrícula contivesse as letras “AJ”, a qual acabou por vender a um cabeleireiro, o que vai ao encontro do que disse a testemunha AU…. Disse, também, que nessa altura o arguido B… tinha uma carrinha BMW Série ., a qual não pegava, pelo que o arguido lhe pediu para a ver. Que uma vez reparada, entregou tal carrinha ao arguido B…, estando este acompanhado por duas ou três pessoas que não sabe identificar, nas bombas da … em ... Confirmou o seu número de telemóvel e admitiu que teve um contacto telefónico com o arguido B…, o que é corroborado pelo acionamento da célula de ativação telefónica já supra, mencionada (…, às 2.26 horas), esclarecendo que tal contacto ocorreu antes de lhe fazer a entrega do veículo no posto de abastecimento referido. Disse que chegou primeiro à …, que a chamada foi antes de o arguido B… aí chegar e que, após a chegada do arguido, lhe falou sobre a reparação que fez, tendo estado nesse local cerca de 15 a 20 minutos. Referiu, ainda, que a velocidade limite de uma carrinha como aquela que entregou ao arguido é de 225 a 230 km/hora. O depoimento desta testemunha, como, aliás, já supra, mencionado veio lançar a dúvida, para além das outras já referidas, sobre se era possível o arguido B…, com a viatura que lhe foi entregue pela testemunha AL… nas circunstâncias descritas, embora levando esta aposta a matrícula falsa “..-AB-..”, ter passado, às 3.07 horas, na portagem de Valença (como é confirmado pelos registos de videovigilância respetivos), tendo em conta a distância em causa, a velocidade máxima que a viatura pode atingir e o tempo decorrido.
BF… disse ser amigo do ofendido N…, referindo que se deslocou ao local onde ocorreu o rapto, onde falou com a namorada daquele, a qual, contudo, não soube dizer quem foi. Disse que, no dia seguinte, contactou com o ofendido, já em casa, o qual se encontrava muito ferido, quase irreconhecível, e que logo lhe disse que reconheceu dois dos raptores como sendo o B1... (arguido B…) e o E1… (arguido E…). Este depoimento, contudo, não mereceu credibilidade. Desde logo, porque contraria todos os demais que referem que o ofendido tinha receio e, por isso, não revelou qualquer nome. E especificamente, contraria o depoimento da testemunha BE…, também amigo do ofendido, que também se deslocou a Espanha com esta testemunha e que até veio a Chaves buscar o ofendido ao hospital e disse que o ofendido nunca lhe referiu quem foram os seus raptores, o que, aliás, foi também referido pela testemunha AY…, que do ofendido cuidou até este se recuperar e que até indicou outros suspeitos de poderem ser os autores dos factos.
BH… disse, também, ser amigo do ofendido N…. Também esta testemunha disse ter-se deslocado a Espanha com as testemunhas BF… e BE…. No entanto, tal como a testemunha BF…, o seu depoimento não mereceu credibilidade, por contrariar as demais provas produzidas. A testemunha referiu que foi a casa do ofendido passados dois ou três dias e que, nessa altura, o ofendido lhe revelou que eram quatro raptores, o que contraria as próprias declarações do ofendido que falou em três pessoas, e que reconheceu dois deles, identificando-os como o B1… e o E1…, o que, por sua vez, contraria a versão relatada pelos inspetores da Policia Judiciária que disseram que o ofendido tinha medo de falar e não identificou ninguém; contraria a própria versão do ofendido que disse que só decidiu contar tudo depois de ter pensado melhor após falar com a polícia e contraria o depoimento das testemunhas AY… e BE… que foram as pessoas que estiveram com o ofendido de uma maneira mais próxima, já que o foram buscar a Chaves.
BI… referiu conhecer o arguido B… que lhe foi apresentado por um amigo comum, a testemunha BJ…, conhecida como “BJ1…” (que não foi possível ouvir), para fazer negócios com automóveis. Relatou um episódio concreto, ocorrido no dia 25 de Novembro (dia dos factos), durante a manhã, em que diz ter estado com o arguido B… e o referido BJ… “BJ1…” e terem ido almoçar os três, referindo lembrar-se da situação por o seu aniversário ser a 24 de Novembro e o BJ… ter dito que, por essa razão, teria que lhes pagar o almoço, o que acabou por acontecer.
BK… referiu apenas que houve uma busca no escritório de imediação de seguros, onde o arguido K… ajudava a fazer cobranças.
BL..., cabo 1º da Polícia Judicial da Guardia Civil espanhola, confirmou que no local do rapto foram recolhidos três tipos de invólucros de munições de dois calibres diferentes, bem como outros vestígios, melhor descritos no auto que foi elaborado. Contudo, referiu que não foram eles que encontraram o telemóvel que foi apreendido, tendo, aliás, ficado a dúvida sobre tal situação, uma vez que da prova produzida em audiência, não resultou apurado por quem o telemóvel foi apreendido, apesar de se fazer referência ao mesmo num relatório da polícia espanhola. De qualquer forma, a testemunha disse que estiveram outras equipas no local, nomeadamente os colegas que fizeram a investigação, já que a testemunha pertence à equipa de recolha de vestígios.
BM… referiu ser pintor de automóveis e conhecer os arguidos, exceto o H…, uma vez que trabalhava no mesmo espaço onde também trabalhava o arguido K…; conhece o arguido B… de o ver no local a falar com o K… e conhece o arguido E… que também chegou a levar lá um carro para reparar. Disse saber que os arguidos B… e K… são amigos e que este último namora com a irmã do B…. Disse, também, que chegou a ver os três arguidos referidos a falarem.
BN… disse que trabalha no ginásio “BO…” que o arguido B… frequentou. Referiu que também esteve inscrito no ginásio, o arguido K… e admite que o arguido E… foi lá fazer um treino experimental.
BP… disse que trabalhava na oficina “BQ…” e que o arguido B… era seu cliente e amigo, levando-lhe vários carros por semana para lavar. Referiu que lhe levou várias carrinhas BMW para lavar e que houve uma que uma vez ficou lá avariada, no início de 2010 ou fim de 2009. Que essa carrinha a foi lá buscar uma pessoa que não pode identificar, uma vez que foi o seu empregado BT… quem foi abrir a porta.
BS…, mecânico de automóveis, referiu ter trabalhado no mesmo local onde funcionava a “BQ…”, recordando que avariou lá uma carrinha BMW série ., cinzenta e que o arguido B… lhe pediu para lhe resolver o problema, o que, contudo, não fez, porque não tinha máquina de diagnóstico. Que o arguido mandou lá buscar a carrinha.
BU… referiu não conhecer os arguidos, mas conhecer o “BJ1…” e que, a pedido deste, foi à Alemanha buscar uma BMW série ., de cor cinzenta, com interior preto, que lhe entregou.
BV… referiu apenas que trabalhou na empresa “BW…” que era do seu irmão, e onde também trabalhou o AL…, tendo lá visto os arguidos B… e K….
BX… disse ser amigo da testemunha AL… e ter ido com este entregar uma carrinha BMW, junto a um posto de abastecimento de combustíveis, a uma pessoa que não conhece e que estava acompanhada por outras pessoas, não sabendo dizer quantas, que também não conheceu. Referiu que era normal o AL… entregar viaturas depois de fechar a oficina. Esclareceu que quando o AL… foi contactado pelo telefone, já estava com ele, que pararam no posto de abastecimento e ainda esperaram pelo cliente. Depois de este chegar, o AL… esteve a falar com ele cerca de meia hora.
BY…, especialista adjunto da Polícia Judiciária, disse ter feito exame pericial ao BMW, onde procuraram vestígios biológicos ou hemáticos na mala da viatura e banco traseiro, encontrando-se o resultado do exame nos autos. Referiu, ainda, que numa lavagem normal, os vestígios hemáticos ficariam nos tecidos, sendo que só numa lavagem com lixívia ou outros químicos poderia, eventualmente, conseguir retirar-se os vestígios.
Finalmente, a testemunha BZ… referiu que o arguido E… trabalhou para si, na discoteca “CB…”, cerca de quatro anos, como chefe da segurança. Esclareceu que o arguido trabalhava numa empresa de segurança e que a sua empresa preenchia diariamente um mapa de trabalho que enviava à dita empresa de segurança, não podendo precisar se o arguido faltou alguma vez ou não. Disse que a discoteca abre às segundas, terças, sextas e sábados. Sobre o arguido referiu ser uma pessoa com carácter firme e de confiança.

A par da prova testemunhal referida, o Tribunal teve também em conta, para a decisão, os documentos constantes dos autos, nomeadamente:
A reportagem fotográfica de fls. 72 a 89, que mostra o estado em que se encontrava o veículo da vítima, o local onde a vítima foi encontrada e as lesões visíveis que apresentava.
As fotografias de fls. 389 a 396 que mostram melhor o local onde a vítima foi encontrada.
As imagens, de vídeo vigilância, gravadas na área de serviço …, nos dias 24 e 25 de Novembro, juntas a fls. 108 a 126 dos autos, onde é visível a presença da viatura Renault … de matrícula ..-BF-.., mas onde não é possível identificar a presença do arguido H…. E a fatura de aquisição de um telemóvel em 25 de Novembro de 2009, às 4.47 horas, na …, junta a fls. 1223A e 1223B, mas da qual também não resulta qualquer informação sobre quem o adquiriu
As informações e documentos de fls. 134, 136 (talão de caixa), 533 a 535, 718 e 793 que comprovam que os três telemóveis, o deixado em Espanha no local do rapto e os dois para os quais aquele fazia chamadas, foram adquiridos com cartão bancário titulado pelo arguido B….
Os fotogramas retirados das imagens de vídeo vigilância da portagem de Valença que mostram ter passado na via verde, às 3.06 horas, uma carrinha BMW com a matrícula ..-AB-.., sendo também visível que à mesma hora passaram nessa portagem a viatura do ofendido, uma Audi .. escura que, mais tarde, veio a verificar-se ser a de matrícula ..-AJ-.. (doc. de fls. 306 a 307), e um Renault … escuro, constantes de fls. 158 a 163 dos autos, bem como a informação de fls. 318.
As fotografias, da viatura BMW com a matrícula verdadeira ..-AB-.., juntas a fls. 209 a 211, onde se verifica que tem características diferentes da que é visível nos fotogramas da portagem.
Quanto às lesões da vítima foram tidos em conta os relatórios de urgência e internamento do hospital de Chaves, constantes de fls. 200 a 207, bem como o relatório da perícia médico-legal de fls. 258 a 260, e ainda as fotografias já mencionadas.
As transcrições das interceções telefónicas que, nada de concreto revelam quanto aos factos (fls. 411 a 414, 521, 546 a 547, 946 a 960, 966 a 969).
A reportagem fotográfica de fls. 576 a 585, realizada pela polícia espanhola, que mostra o local do rapto e os vestígios aí encontrados, e onde não se fala no telemóvel que foi encontrado, como já, supra, referido, facto que estranhamos, ficando-se sem saber pro quem foi encontrado.
O auto de exame pericial ao veículo da vítima, junto a fls. 702 a 707 dos autos.
Os mapas das chamadas efetuadas pelos três telemóveis alegadamente usados pelos raptores, e de localização celular, constantes de fls. 712 a 719 e 759 a 771, bem como os gráficos de contactos e de localização celular de fls. 1115 a 1121, que mostram a relação entre os arguidos, mas que, em nosso entender, não contribuem para a prova da prática dos factos pelos mesmos, uma vez que entendemos que nada revelam nesse sentido.
As fotografias da roupa usada pela vítima e da fita adesiva usada para a atar, fita que é de várias cores e não apenas da cor da que foi apreendida na oficina do pai do arguido B… (fls. 178 a 185).
O recibo de indemnização recebida pelo ofendido, da parte da seguradora, pela perda do veículo, junto a fls. 859 a 860.
O relatório de fls. 940 a 942 que revela que o exame lofoscópico ao telemóvel deixado em Espanha não apresenta quaisquer vestígios.
Os exames periciais às viaturas suspeitas de terem sido usadas na prática dos factos, que revelam não terem sido encontrados quaisquer vestígios de que o ofendido possa aí ter sido transportado, relatórios juntos a fls. 1055 a 1059 e 1235 a 1236 quanto à viatura Audi .. de matrícula ..-AJ-.., e a fls. 1070 a 1078 e 1653 a 1657 quanto à viatura BMW de matrícula ..-HV-...
O exame pericial à viatura BMW de matrícula 14-AB-67 que não revela vestígios biológicos – fls. 1551 a 1553.
O relatório de perícia de fls. 1950 a 1956 dos autos, que revela as diferenças entre as matrículas ..-AB-.. apostas, respetivamente, na viatura do Algarve a na que passou na portagem em Valença, bem como as diferenças nas características dos próprios veículos.
Os autos de busca e apreensão e de exame de fls. 1968 a 2009, 2018 a 2019, 2127, 2136, 2137, 2044 a 2077, 2387 a 2389 e 2392 a 2420, e ainda de fls. 2935 a 2945.
Os autos de exame direto aos telemóveis e outros bens apreendidos – fls. 3279 a 3281.
Os exames periciais aos rádios portáteis e aos binóculos apreendidos, juntos a fls. 4132, 4133 a 4135, 4416 e 4676 a 4678, que relatam as suas características.
Documento de fls. 4988, junto pelo ofendido, mas que apenas demonstra que o valor ao qual o mesmo, alegadamente, destinava a quantia que diz que levava consigo e que lhe foi roubada, é diferente daquela quantia e foi pago em data já bastante posterior à data dos factos, cerca de um mês após os mesmos.
Os relatórios sociais relativos às condições sócio económicas dos arguidos e os certificados de registo criminal dos mesmos.

Confrontando toda a prova testemunhal e documental mencionada, verifica-se que o único indício forte e realmente importante que resultou da mesma prova é o que relaciona a aquisição dos três telemóveis alegadamente usados pelos raptores, já que um deles foi deixado no local do rapto, com o arguido B…, uma vez que esses três telemóveis foram pagos com um cartão bancário titulado pelo referido arguido. Nada mais de relevante se provou. Por um lado, não foi possível relacionar, com a necessária certeza, as viaturas suspeitas com os factos, desde logo porque nas perícias realizadas, nada foi encontrado, designadamente quaisquer vestígios biológicos, que possam indiciar que o ofendido, tendo em conta o estado em que foi encontrado, aí foi transportado. Por outro lado, nenhuma testemunha presenciou os factos e o depoimento do ofendido não merece credibilidade pelos motivos já, supra, expostos.
Entendemos, assim, que o forte indício mencionado e que parece relacionar o arguido B… com a prática dos factos, não é suficiente para a partir daí concluir pela sua autoria, ficando, pelo menos, uma dúvida de tal maneira forte que não é possível ultrapassar devido à inexistência de outras provas, pelo que não se puderam dar como provados os factos que confirmam a sua intervenção na prática dos ilícitos em causa.
Em relação aos demais arguidos, as provas são mesmo totalmente inexistentes, não existindo sequer indícios sobre a sua participação nos factos, já que os depoimentos das testemunhas apenas revelam que existia alguma relação de amizade entre os arguidos ou alguns deles, e nada mais.
Finalmente, quanto ao arguido H…, entendemos que também não foi possível dar como provados os factos que lhe imputam a detenção de munições, desde logo porque as mesmas foram apreendidas na sede de uma empresa que é da sua esposa, pelo que, também aqui, fica, pelo menos, a dúvida sobre se tais munições estavam na posse do arguido. E na dúvida, não se podem dar os factos como provados.
… …. …..
*
DECISÃO:
Por tudo o exposto, os Juízes que constituem este tribunal colectivo decidem assim:
1º - Julgam a acusação totalmente improcedente, por não provada, e, consequentemente, absolvem os arguidos B…, E…, H… e K…, da prática de todos os crimes que lhes são imputados na acusação.
2º - Julgam, também, improcedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante N… contra os arguidos e, consequentemente, absolvem estes do pedido.
*******
**
Inconformados com esta decisão dela vieram recorrer o MP e o Ofendido N…, questionando a decisão sobre a matéria de facto, invocando erro de julgamento e erro notório na apreciação da prova.

O arguido B…, invoca, preliminarmente, a nulidade prevista 363°, do C. P. Penal.

Nesta Relação, no seu douto parecer, o Sr. PGA, entende que se deve declarar nulo o acórdão recorrido, e julgar verificado o vício do erro notório na apreciação da prova, de decretar o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do seu objecto.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
Questão prévia

No processo em análise, por acórdão proferido a 24-6-2013, foi decidido absolver os arguidos B…, E…, H… e K…, de todos os crimes por que vinham acusados.
O arguido B…, confrontado com os recursos atrás referidos, do MP e do Ofendido, veio invocar a nulidade da gravação da prova, prevista 363°, do C. P. Penal, por não ter sido registado parte do depoimento da testemunha BI…, que ele considera relevante para a sua defesa, pois que o mesmo é fundamental para determinar a impossibilidade de o arguido/respondente ter estado em dois locais simultaneamente – nas instalações da testemunha junto às freguesias de … e … e em … (…), local dos factos, não obstante constar da fundamentação desta decisão sob recurso, um resumo do depoimento desta testemunha.
Por isso, e uma vez que tanto o Ministério Público como o assistente, impugnam a decisão sobre a matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 412°, nº 3, do C. P. Penal, implica que este Tribunal da Relação, caso venha a conhecer da totalidade do objecto dos recursos, tome conhecimento da prova oralmente produzida na Audiência, através do respectivo registo gravado, incluindo o depoimento da citada testemunha.

Ora, escutado o registo gravado do depoimento da testemunha BI…, verifica-se, com efeito, que há uma parte do depoimento que não ficou gravada.
Sobre esta matéria, dispõe o Artigo 363.º do CPP, que as declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade.
Assim, a documentação das declarações orais na audiência é obrigatória e não admite qualquer excepção e, designadamente, não depende da concordância dos sujeitos processuais, nem pode ser por eles prescindida.
De facto, já na Exposição de Motivos da PL I09/X se dizia que, a audiência de julgamento passa a ser sempre documentada, não se admitindo que os sujeitos processuais prescindam de tal documentação, seja qual for o tribunal materialmente competente (artigos 363.° e 364.°).
A documentação garante os poderes de reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso, daí que se tornasse obrigatória, regra geral, a documentação integral, na acta, das declarações orais prestadas na audiência de julgamento seja qual for o tribunal ou o processo, como dissemos, tornando-se irrelevante a manifestação de vontade dos sujeitos processuais no sentido de que não pretendem a documentação.
Com isto, pretendeu o legislador tornar não só realmente efectivo o princípio do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, como permitir ao tribunal ou a qualquer interessado o permanente e fidedigno conhecimento do que foi dito na audiência e da exacta intervenção de cada um dos actos da cena judiciária, servindo para instruir o recurso em matéria de facto, e no tribunal de recurso, para o reexame do julgamento nesta matéria.
Por isso, a deficiente documentação (gravação parcial ou inaudível) é como se não existisse, ferindo igualmente o julgamento de nulidade, devendo o tribunal supri-la, logo que dela tomar conhecimento, conquanto se não tenha esgota o respectivo poder jurisdicional, porque lhe compete zelar pela conformação legal do processado.
Porque estamos perante factualidade cuja apreciação se mostra questionada, configura-se que não pode este Tribunal aceder, com toda a segurança exigível, ao que foi afirmado, para poder exercer plenamente a sua função de reapreciação da prova.
Neste ponto, dispõe o nº 1 do artº 118º que “a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”.
A falta de gravação, ou a sua deficiência, está prevista como nulidade (artº 363º), mas não está prevista como insanável, nem consta do artigo 119º, pelo que se trata de uma nulidade sanável, dependente de arguição, sujeita ao regime do artº 120º, do CPP.
Ora, refere ainda o artº 9º Decreto-Lei nº 39/95 de 16/02 (onde se prevê a gravação da prova e que a Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o novo Código, não incluiu nos diplomas revogados, referenciados no seu artigo 4.º), que “Se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade”.
Por isso, tal omissão ou deficiência, de gravação, constitui uma nulidade sanável, sujeita ao regime de arguição e de sanação dos artigos 120º, nº1 e 121º, do CPP, em conjugação com o artº 9º do citado DL nº 39/95.

Mas a questão objecto de controvérsia, não reside aqui, cuja constatação parece óbvia, mas antes no prazo de arguição desta nulidade.
De facto, há várias orientações, onde, essencialmente, uns defendem que deve ser arguida no prazo de 10 dias, atento o disposto no art.º 105º do CPP, outros, entendem que pode ser arguida dentro do prazo das alegações de recurso, podendo a arguição ter lugar na própria alegação de recurso.
Ora, o prazo de arguição das nulidades depende do momento do seu conhecimento, o que sempre levaria a considerar que o prazo, neste caso, só corre quando a parte interessada ouvir os registos da gravação.
Acontece, porém, que os sujeitos processuais não têm a obrigação de controlar as condições da gravação, de ver se a prova foi correctamente gravada, pois pressupõe-se que a gravação foi efectuada em boas condições de audição, sendo certo que só há possibilidade de controlar a qualidade da gravação quando, a seu requerimento, são entregues à parte, os registos da gravação para poder avaliar da necessidade e interesse de interpor recurso sobre a matéria de facto.
Efectivamente, os sujeitos processuais só têm interesse em aceder aos registos da prova, por regra, quando proferida a decisão final, pois só aí estão em condições de aferir da necessidade ou da utilidade de impugnar a matéria de facto, pelo que, detectando nessa altura qualquer anomalia na gravação será então no prazo das alegações de recurso que a nulidade há-de ser suscitada.
No caso concreto, o arguido fora absolvido, pelo que não tinha qualquer interesse em analisar a prova gravada, até ao momento em que os ofendidos e o MP vêm recorrer, impugnando a matéria de facto.
Assim, a parte não está sujeita a um especial dever de diligência, que lhe imponha a audição do registo áudio da prova nos 10 dias imediatos a tê-los recebido pelo tribunal, quando é certo que ele se destina a servir de suporte a uma alegação de recurso para cuja elaboração dispõe o recorrente de 30 dias, sendo ainda de presumir que a cópia recebida do tribunal não enferme de qualquer anomalia.
Por isso, a nulidade decorrente da omissão ou deficiência na gravação da prova produzida na audiência de julgamento pode ser suscitada até ao termo do prazo de interposição de recurso, podendo a arguição ter lugar na própria alegação de recurso. Efectivamente, a lei, que no caso de impugnação da matéria de facto, fixou para o recurso o prazo de 30 dias, pretende conferir ao recorrente um prazo acrescido em 10 dias para levar a efeito a tarefa de ouvir a gravação (cfr. artº 411º, nº 4 do CPP), sendo certo que o já referido DL nº 39/95, no artº 9º, não fixa qualquer prazo para a arguição desta nulidade, limitando-se a dizer que pode ser corrigida “a todo o tempo”.
Ora, tratando-se de nulidade sanável, dependente de arguição, como já referimos, a sua não arguição, ou a sua arguição intempestiva, afastaria o desvalor da violação cometida, sanando-se o vício, tendo como consequência, a impossibilidade do recurso da matéria de facto, o que não parece ser a vontade do legislador, já que a gravação da prova tem como principal finalidade, garantir um duplo grau de jurisdição, como já dissemos.
Por outro lado, este vício de omissão ou deficiência da gravação da prova afecta o valor do acto de produção da prova, o próprio julgamento, uma vez que não pode produzir os efeitos a que se destinava, pelo que, incumbindo ao Tribunal de recurso reapreciar a prova, pode o mesmo conhecer oficiosamente deste vício, nos termos do disposto no artº 9º do citado DL nº 39/95 que permite que o vício, sempre que seja essencial ao apuramento da verdade, possa ser conhecido e repetido a qualquer momento.
Como reforço desta tese, podemos referir que, antes da actual redacção do art.º 363º do CPP, na vigência do Acórdão uniformizador do STJ nº 5/2002 de 27/06/2002, no sentido de que a omissão de documentação constituía uma irregularidade, havia quem defendesse que a mesma, sendo relevante, seria de conhecimento oficioso, nos termos do nº 2, do artº 123º, do CPP (neste sentido, cfr. Ac. RP de 21 de Março de 2007, Proc. 0642928, Ac. RP de 11 de Abril de 2007, Proc. 0643163, relatora Isabel Pais Martins).
Por isso, agora que é nulidade, mesmo nos casos em que o recorrente, impugnando a matéria de facto, não tenha suscitado a nulidade, por ter presente os depoimentos prestados oralmente na audiência, e estar convicto que a gravação é audível, o tribunal de recurso nunca se poderia ver impedido de reapreciar a prova, nem ficar limitado para julgar o recurso, razão pela qual pode conhecer oficiosamente daquela nulidade.
Neste sentido, vão estes acórdãos:
«Não fica sanada a nulidade, emergente da deficiente gravação dos depoimentos prestados em audiência de discussão, se a parte recorrente da matéria de facto não a arguir no prazo de 10 dias, subsequente à entrega das cópias dos registos realizadas pelo Tribunal. A arguição de tal nulidade é tempestiva nas alegações de recurso» (Ac. RL de 10-01-2008, proc. 7497/2007.8).
«A nulidade decorrente da omissão ou deficiente gravação da prova produzida na audiência de julgamento pode ser suscitada até ao termo do prazo de interposição de recurso, podendo a arguição ter lugar na própria alegação de recurso. O vício de omissão ou deficiência da gravação da prova afecta o valor do acto de produção da prova, ou seja, o próprio julgamento, pelo que, incumbindo ao Tribunal de recurso reapreciar a prova e, independentemente de tal nulidade só ter sido arguida no recurso, deve o tribunal ad quem poder conhecer dela oficiosamente e determinar a sua reparação» - Ac. TRL, de 19 de Maio de 2010, proc. 59/04.1PDCSC.LI-3.

A deficiente gravação do depoimento em causa afecta, pois, um direito fundamental do arguido, que é o seu direito ao recurso em matéria de facto.
Germano Marques da Silva (citado por Viníco Ribeiro, CPP, notas e comentário, em anotação ao art.º 363º, pág. 764) refere que a perfeição do acto processual reconduz-se à sua correspondência ao modelo legal, … a inobservância dos requisitos a que a lei subordina os actos processuais repercute-se mais ou menos acentuadamente no acto terminal do processo, pondo em perigo a justiça da decisão.
Por isso, incumbindo ao tribunal de recurso reapreciar a prova gravada, a nulidade resultante da falta ou da deficiência documentação, deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal de recurso, o qual deve determinar a sua reparação, independentemente de tal nulidade só ter sido arguida no recurso.
Concluindo, embora o caso em análise seja mais simples e não se coloque o conhecimento oficioso desta nulidade, o certo é que o vício de omissão ou deficiência da gravação da prova afecta o valor do acto de produção da prova, isto é, o próprio julgamento, pelo que entendemos que pode o tribunal superior dele conhecer oficiosamente e ordenar a sua reparação, mesmo quando esse depoimento venha resumido no texto do acórdão, mais concretamente, na fundamentação da decisão.

A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição (art. 122º, nº 2 CPP).
Não obstante o nº 3 deste art.º 122º, não é possível aproveitar a sentença proferida, pois não se pode antecipadamente dizer que a prova a ser produzida em consequência desta declaração de nulidade vai ser exactamente igual à que foi produzida anteriormente, até porque a declaração de nulidade invalida os actos subsequentes que tenham um nexo de dependência lógica e valorativa com o acto nulo, como sucede com a sentença.

DECISÃO

Acordam os Juízes da 1ª secção deste Tribunal da Relação do Porto, na procedência da questão prévia, em julgar verificada a nulidade por deficiente gravação da prova, determinando a repetição deste depoimento, nos termos sobreditos, anulando-se, consequentemente, a decisão recorrida, da qual não se chega a conhecer.

Sem custas

Porto, 5/3/2014
Donas Botto
José Carreto