Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
INVENTÁRIO
PARTILHA
BENS COMUNS
EX-CÔNJUGE FALECIDO
LEGITIMIDADE PARA REQUERER O INVENTÁRIO
CUMULAÇÃO DE INVENTÁRIOS
Sumário
I - O ex-cônjuge tem legitimidade para requerer o inventário para partilha dos bens comuns do casal, dissolvido por divórcio, apesar do óbito do ex-cônjuge, que surge representado no processo pelos respectivos herdeiros, que ocupam a posição processual do falecido, por determinação do art. 1785°/3 CC. II - No inventário para partilha de herança de cônjuge falecido após decretado o divórcio e inventário para partilha dos bens comuns de resto, não é possível visto que não se enquadra em qualquer das hipóteses prevenidas no n°1 do art. 1394° CPC. Como resulta da letra deste preceito, só é permitida a cumulação de inventários quando estejam em causa heranças diversas, o que não sucede no caso em apreço. Essa impossibilidade resulta do espírito da lei, emergente do art. 1404°/3 CPC, onde se preceitua que o inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação do casamento, corre por apenso ao processo respectivo.
Texto Integral
Invent-Cumulação-3434-12.4TBPRD.P1-41-14TRP
Trib Jud Paredes-1ºJCv
Proc. 3434/12.4TBPRD
Proc. 41/14 -TRP
Recorrente: B…
Recorrido: C… e outros
-
Juiz Desembargador Relator: Ana Paula Amorim
Juízes Desembargadores Adjuntos: Ana Paula Carvalho
Rita Romeira
*
*
*
Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)
I. Relatório
B… casado sob o regime da separação de bens com D…, residente na Rua …, nº …, freguesia …, Paredes veio requerer, por apenso ao processo de divórcio, inventário para partilha dos bens comuns do dissolvido casal constituído que foi pelo requerente e por E…. Indicou para o cargo de cabeça-de-casal o requerente.
Alegou para o efeito e em síntese, que em 13 de Novembro de 1960 casou-se com E…, em primeiras e únicas núpcias de ambos e sob o regime de comunhão geral. O casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença 17 de Dezembro de 2008, transitada em julgado. Em 08 de Fevereiro de 2010 faleceu a ex-cônjuge E…, sem que se tenha procedido à partilha dos bens comuns do casal. Sucedem-lhe os filhos nascidos do casamento.
-
Em 18 de Outubro de 2012 proferiu-se o despacho que determinou a distribuição do processo, como processo de inventário por óbito, por considerar que se destinava a pôr termo a comunhão hereditária.
-
Promoveram-se as diligências para distribuição do processo.
-
Proferiu-se despacho que nomeou o requerente cabeça-de-casal. Designou-se data para compromisso de honra e declarações.
-
O requerente nomeado cabeça-de-casal prestou declarações e juntou a relação de bens.
-
Proferiu-se despacho que ordenou as citações.
-
Em sede de conferência de interessados, na sequência da reclamação apresentada por um dos interessados, determinou-se a suspensão da diligência e a apresentação dos autos com conclusão.
-
Proferiu-se, em seguida, o despacho que se transcreve:
“Nos presentes autos de inventário em que é inventariada E…, foi elencada como verba única a partilha um bem imóvel comum ao dissolvido casal.
Ora, a inventariada faleceu no estado de divorciada, tendo sido casada sob o regime de comunhão geral de bens com o cabeça de casal, B…, e deixado 5 filhos.
O único bem a partilhar fazia parte do acervo conjugal ainda não partilhado em vida da inventariada e de B….
Vejamos:
Como se julgou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-06-2004, com o trânsito em julgado da sentença de divórcio, no regime da comunhão geral, deixa de haver um património comum “como património colectivo”. E, nas palavras de Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “A situação passa a ser idêntica à da herança indivisa. Cada um dos cônjuges pode dispor da sua meação, como pode pedir a separação das meações, o que não podia fazer antes do divórcio.”.
Embora não queira “isto dizer que com o trânsito da sentença de divórcio os bens comuns deixem de ser património comum e passem a pertencer aos ex-cônjuges em compropriedade, podendo, portanto, cada um deles dispor de metade de cada um desses bens em concreto, pois antes da partilha não se sabe com que bens virá a ser preenchida a meação da cada um dos ex-cônjuges”.
Assim, a fls. 26, no acervo a partilhar, deverá passar a constar, apenas, o direito que cabia à inventariada no bem imóvel que fazia parte da comunhão conjugal.
Notifique o cabeça de casal para rectificar, em 10 dias, a descrição da verba única.
Notifique os demais interessados”.
-
O cabeça-de-casal veio requerer a aclaração do despacho, quanto ás seguintes questões:
a) Se a relação de bens apresentada nos autos a fls. 26 deve ser rectificada, no sentido de ficar a constar apenas o direito à meação pertencente à inventariada E…, no bem imóvel que fazia parte da comunhão conjugal extinta, ou se pelo contrário, deve ser rectificada a mesma relação de bens mas, no sentido de manter a totalidade do património comum através da individualização em verbas autónomas da meação pertencente a cada um dos ex-cônjuges, já que a patrimónios distintos actualmente pertencem.
b) Para a eventualidade de os autos de inventário prosseguirem apenas quanto à meação que integra a herança aberta por óbito da inventariada E…, e atendendo a que o Requerente a ela não concorre enquanto herdeiro, se lhe assiste legitimidade para proceder à rectificação da relação de bens doutamente ordenada, enquanto Cabeça de Casal.
-
Proferiu-se despacho com a decisão que se transcreve:
“Assim não podendo existir, no caso vertente, inventário cumulado e carecendo o requerente de legitimidade para a instauração dos presentes autos, julgo verificada a excepção dilatória da ilegitimidade e, consequentemente, determino a extinção dos presentes autos de inventário.
Custas pelo Requerente.
Registe e notifique”.
-
O requerente e cabeça-de-casal veio interpor recurso do despacho que determinou a extinção dos autos de inventário.
-
Nas alegações que apresentou o recorrente formulou as seguintes conclusões:
1ª Ao recorrente que viu o seu casamento no regime de comunhão geral de bens dissolvido por divórcio, assiste o direito e acção à partilha dos bens comuns do seu extinto casal.
2º O meio processual próprio para o exercício desse seu direito é o processo de inventário
3º A morte do seu ex-cônjuge não extinguiu este seu direito que terá de ser exercido com o envolvimento de todos os herdeiros da falecida, que lhe sucedem quer nos direitos quer na posição processual
4º E esta herança da falecida, a que o aqui recorrente não concorre, terá como acerbo o direito e acção sobre o património indiviso do dissolvido casamento, quiçá adido dos bens que após a dissolução tenham advindo ao património da falecida.
5º O que é dizer que é a definição do “património hereditário” que depende da partilha dos bens comuns do casal e não a situação inversa. Assim e quanto ao despacho de 02-07-2013 que determinou que “no acervo a partilhar, deverá passar a constar, apenas, o direito que cabia à inventariada no bem imóvel que fazia parte da comunhão conjugal.”
6º A relação de bens apresentada, constituída por um único imóvel, notificada aos interessados, não foi objecto de reclamação por falta, excesso ou inexactidão relevante.
7º Até à conferência de interessados não foram suscitadas quaisquer questões com influência na partilha ou na determinação dos bens a partilhar
8º Na conferência também não foi suscitada essa questão pelos interessados, tendo havido apenas reclamação sobre o valor atribuído ao bem descrito.
9º O juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras. – ut artº.608º -2 do C.P.C..
10º A cumulação de inventários não é proibida por lei, não é de conhecimento oficioso e está mesmo subtraída ao poder judiciário quando numa das partilhas não haja “outros bens a adjudicar além dos que ao inventariado hajam de ser atribuídos na outra” e nos outros casos, só pode ser afastada quando “se afigure inconveniente para os interesses das partes ou para a boa ordem do processo”.
11º O douto despacho de 02-07-2013 conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento.
12º Acrescendo que se mostra inconcludente, não se mostrando compreensível a decisão face aos fundamentos que invoca; se os ex-cônjuges não podem dispor em concreto da metade de cada um dos bens que integram o património comum pois que antes da partilha não se sabe com que bens virá a ser preenchida a meação da cada um dos ex-cônjuges, como compreender que se decida afastar essa partilha do objecto do inventário que prosseguirá sem perspectivas de acabar com a indivisão de qualquer património (mesmo para os demais interessados).
13º Pelo que o douto despacho se mostra nulo por violação do artº 615º-1-c) e d), aplicável aos despachos ex vi do artº 613º-3
Quanto à sentença de 11-10-2013 que decidiu “não poder existir, no caso vertente, inventário cumulado e carecendo o requerente de legitimidade para a instauração dos presentes autos, julgou verificada a excepção dilatória da ilegitimidade e determinou a extinção dos autos de inventário com custas pelo Requerente.”
14º Com o impulso inicial destes autos o requerente na qualidade de ex-cônjuge requereu a partilha do património comum do dissolvido casal.
15º A morte do outro cônjuge não extingue o direito à partilha, sendo que a posição na relação jurídica controvertida deve ser ocupada pelos herdeiros do defunto.
16º O meio processual próprio para fazer valer o seu direito é o processo de inventário.
17º E a legitimidade processual afere-se pelo interesse na demanda tal como é configurada pelo autor.
18º Ao decidir-se que o requerente que deu início ao processo carece de legitimidade para a instauração dos presentes autos violou-se o artº 1404º do C.P.C. e artº 30º do C.P.C. do actual
19º Ao decidir-se que no caso vertente não pode existir inventário cumulado, para além dos vícios já elencados nas conclusões 9ª, 10ª, 11ª e 13ª, violou-se directamente o artº 1337º nº1 alínea c) e nº2 que estatui mesmo, para casos como o dos autos em que não estão em partilha outros bens, que “não pode deixar de ser admitida a cumulação” e 1404º nº3 parte final
20º Na procedência das conclusões 11º a 13º deve declarar-se nulo o douto despacho de 02-07-2013 e em aplicação do artº 195º do C.P.C. a douta sentença, determinando-se o prosseguimento dos autos, com a continuação da conferência de interessados.
21º Admitindo por mera hipótese e dever de patrocínio que nos presentes autos não pode funcionar a cumulação de inventários, deve reconhecer-se que os presentes autos visam a partilha dos bens comuns do seu extinto casal, devendo prosseguir com os herdeiros determinados do seu ex-cônjuge, face à falta de personalidade judiciária da herança
22º E sempre, reconhecer-se a legitimidade do aqui recorrente nos presentes autos, revogando-se a douta sentença e determinando-se o prosseguimento dos autos para a pretendida partilha dos bens comuns do casal.
-
Não foram apresentadas contra-alegações.
-
O recurso foi admitido como recurso de apelação.
-
Dispensaram-se os vistos legais.
-
Cumpre apreciar e decidir.
-
II. Fundamentação 1. Delimitação do objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC (redacção da Lei 41/2013 de 26/06).
As questões a decidir:
a) -Despacho proferido em 02 de Julho de 2013
- nulidade do despacho com fundamento no art. 615º/1 c) e d) CPC;
b) - Sentença
- legitimidade para requerer o inventário;
- admissibilidade da cumulação de inventário para partilha de bens subsequente a divórcio e inventário por óbito do ex-cônjuge.
-
2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos que resultam dos autos:
- B… casado sob o regime da separação de bens com D…, residente na Rua …, nº …, freguesia …, Paredes veio requerer, por apenso ao processo de divórcio, inventário para partilha dos bens comuns do dissolvido casal constituído que foi pelo requerente e por E…. Indicou para o cargo de cabeça-de-casal o requerente.
- Alegou que em 13 de Novembro de 1960 casou-se com E…, em primeiras e únicas núpcias de ambos e sob o regime de comunhão geral. O casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença 17 de Dezembro de 2008, transitada em julgado. Em 08 de Fevereiro de 2010 faleceu a ex-cônjuge E…, sem que se tenha procedido à partilha dos bens comuns do casal. Sucedem-lhe os filhos nascidos do casamento.
- O cabeça-de-casal B… apresentou a relação de bens, na qual indicou os bens comuns ao dissolvido casal: um imóvel.
-
3. O direito - Despacho proferido em 02 de Julho de 2013 -
- Nulidade do despacho –
O apelante nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 13 suscita a nulidade do despacho proferido em 02 de Julho de 2013, com fundamento no art. 615º/1 c) e d) CPC, por considerar que o despacho recorrido tomou posição sobre a forma como se devia elaborar a relação de bens, quando a relação de bens não foi objecto de impugnação pelos interessados e ainda, porque é inconcludente.
Está em causa a reapreciação do despacho que se transcreve:
“ Nos presentes autos de inventário em que é inventariada E…, foi elencada como verba única a partilha um bem imóvel comum ao dissolvido casal.
Ora, a inventariada faleceu no estado de divorciada, tendo sido casada sob o regime de comunhão geral de bens com o cabeça de casal, B…, e deixado 5 filhos.
O único bem a partilhar fazia parte do acervo conjugal ainda não partilhado em vida da inventariada e de B….
Vejamos:
Como se julgou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-06-2004, com o trânsito em julgado da sentença de divórcio, no regime da comunhão geral, deixa de haver um património comum “como património colectivo”. E, nas palavras de Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “A situação passa a ser idêntica à da herança indivisa. Cada um dos cônjuges pode dispor da sua meação, como pode pedir a separação das meações, o que não podia fazer antes do divórcio.”.
Embora não queira “isto dizer que com o trânsito da sentença de divórcio os bens comuns deixem de ser património comum e passem a pertencer aos ex-cônjuges em compropriedade, podendo, portanto, cada um deles dispor de metade de cada um desses bens em concreto, pois antes da partilha não se sabe com que bens virá a ser preenchida a meação da cada um dos ex-cônjuges”.
Assim, a fls. 26, no acervo a partilhar, deverá passar a constar, apenas, o direito que cabia à inventariada no bem imóvel que fazia parte da comunhão conjugal.
Notifique o cabeça de casal para rectificar, em 10 dias, a descrição da verba única.
Notifique os demais interessados”.
-
Suscita, o apelante a nulidade do despacho, por ter conhecido de questão que não cumpria conhecer e porque a decisão está em contradição com os fundamentos.
A sentença na sua formulação pode conter vícios de essência, vícios de formação, vícios de conteúdo, vícios de forma, vícios de limites[1].
As nulidades da sentença incluem-se nos “ vícios de limites “ considerando que nestas circunstâncias, face ao regime do art. 615º CPC, a sentença não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia[2].
O regime das nulidades da sentença é extensivo aos despachos, como decorre do art. 613º/3 CPC.
O Professor ANTUNES VARELA no sentido de delimitar o conceito, face à previsão do art. 668º CPC e actual art. 615º CPC, adverte que: “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”[3].
A omissão de pronuncia sobre questões que o juiz devesse apreciar ou o conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento constitui um dos fundamentos de nulidade da sentença, previsto art. 615º/1 d) CPC.
O conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento, constitui um vício relacionado com a norma que disciplina a “ordem de julgamento” – art. 608º/2 CPC.
Com efeito, resulta do regime previsto neste preceito, que o juiz na sentença: deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A respeito do conceito “questões que devesse apreciar “ refere ANSELMO DE CASTRO que deve “ser entendida em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e ás controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e integra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado ás partes sob os aspectos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão”[4].
LEBRE DE FREITAS por sua vez tem a respeito de tal matéria uma visão algo distinta, pois considera que devendo: “o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 660º/2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado”[5].
Para melhor precisar o seu entendimento remete para o estudo do Professor ALBERTO DOS REIS cuja passagem se transcreve:
“Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação “ não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (art. 511º/1), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art. 664º) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas”[6].
Seguindo os ensinamentos de ALBERTO DOS REIS E LEBRE DE FREITAS, atendendo ao regime processual vigente, afigura-se-nos ser esta a interpretação que melhor reflecte a natureza da actividade do juiz na apreciação e decisão do mérito das questões que lhe são colocadas, pois o juiz não se encontra vinculado às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas.
Retomando o caso concreto e aplicando a argumentação acabada de expor ao regime especifico do processo de inventário, conclui-se que o juiz do tribunal “a quo” apreciou questão que lhe cumpria conhecer.
Como decorre do art. 1352º/1 CPC, antes de designar data para a realização da conferência de interessados, cumpre ao juiz resolver as questões suscitadas susceptíveis de influir na partilha, onde se inclui determinar os bens a partilhar.
Com efeito, no inventário por óbito apenas são objecto de partilha os bens que integram a herança, os quais são ordenados na relação de bens (art. 1345º CPC).
Por outro lado, no inventário para partilha dos bens comuns do casal, subsequente a divórcio são incluídos na partilha tão só os bens comuns do dissolvido casal.
Suscitando-se dúvidas sobre a natureza dos bens a partilhar, como ficou consignado em acta, no inicio da conferência de interessados, justificava-se tomar posição sobre os bens a partilhar antes de iniciar a conferência, motivo pelo qual, o juiz do tribunal agiu no âmbito dos poderes que lhe são atribuídos em sede de processo de inventário e conheceu das questões que lhe cumpre conhecer.
Suscita, ainda, o apelante a nulidade do despacho, do art. 616º/1 c) CPC, por considerar o despacho inconcludente, na medida em que não se mostrando compreensível a decisão face aos fundamentos que invoca; se os ex-cônjuges não podem dispor em concreto da metade de cada um dos bens que integram o património comum pois que antes da partilha não se sabe com que bens virá a ser preenchida a meação da cada um dos ex-cônjuges, como compreender que se decida afastar essa partilha do objecto do inventário que prosseguirá sem perspectivas de acabar com a indivisão de qualquer património (mesmo para os demais interessados).
Resulta do disposto no art. 668º/1 c) CPC e actual art. 616º/1 c) CPC, que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
A previsão da norma contempla as situações de contradição real entre os fundamentos e a decisão e não as hipóteses de contradição aparente, resultante de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão.
Como refere ANTUNES VARELA: “a norma abrange os casos em que há um vício real no raciocínio do julgador: a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente”[7].
No caso presente existe no despacho uma perfeita coerência no raciocínio e a decisão resulta como a conclusão lógica desse raciocínio, atendendo às premissas de que parte.
Como resulta dos termos do despacho, considera-se que o processo de inventário visa proceder à partilha por óbito de E…, que faleceu no estado de divorciada do cabeça-de-casal, sem ter procedido à partilha dos bens comuns do casal. Daqui resulta que o acervo hereditário da inventariada é composto por um direito, o direito que cabia à inventariada no bem imóvel, mas não integra o bem, porque esse faz parte dos bens comuns do casal e por isso, não poderia ser relacionado como tal.
Não existe no despacho qualquer contradição entre fundamentos e decisão, o que não significa que a decisão de mérito se mostre conforme com o regime legal, mas tal questão não configura uma nulidade, antes um erro na aplicação do direito aos factos.
Conclui-se, assim, que o despacho se mostra válido.
Improcedem, nesta parte, as conclusões de recurso sob os pontos 1 a 13.
-
- Sentença -
- Legitimidade para requerer o inventário -
Nas conclusões de recurso sob os pontos 14 a 18, o apelante insurge-se contra a sentença que julgou extinta a instância, com fundamento em ilegitimidade do requerente para promover os termos do processo de inventário, no segmento que considerou que estando divorciado não é herdeiro da falecida E….
Considera o apelante que na qualidade de ex-cônjuge requereu a partilha do património comum do casal, através de inventário, por ser esse o único meio possível e por isso, tem legitimidade para promover os termos do inventário com tal fim.
A questão que nos cumpre apreciar consiste em aferir se o apelante tem legitimidade activa para promover processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal, subsequente a divórcio, quando o ex-cônjuge faleceu.
O divórcio constitui uma das causas de dissolução do casamento e produz efeitos patrimoniais, na medida em que as relações patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução do casamento.
Decore do art. 1788º CC que dissolvido o casamento, por divórcio, se procederá à partilha do património comum. Procede-se à partilha por via extra-judicial ou judicial.
Optando-se pela via judicial, o processo segue o regime do inventário previsto no art. 1404º CPC. Trata-se de um inventário divisório, pois tem por objectivo partilhar os bens que fazem parte de um património comum nos precisos termos que a lei civil estabelece[8].
Conforme determina o art. 1404º CPC em caso de divórcio, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens, salvo se o regime de bens do casamento for o de separação.
Da conjugação desta norma com o art. 30º CPC conclui-se que qualquer dos cônjuges tem legitimidade para requerer o inventário ou interesse em requerer o inventário para partilha dos bens comuns do casal, atenta a utilidade derivada da procedência de tal pretensão, que consiste na divisão dos bens comuns.
A legitimidade, enquanto pressuposto processual, como observa LEBRE DE FREITAS “exprime a relação entre a parte no processo e o objecto deste (a pretensão ou pedido)”[9].
A apreciação da legitimidade da parte para a acção é aferida pelo pedido e causa de pedir da acção, como decorre do art. 30º/3 CPC.
No caso presente o apelante invocando a qualidade de ex-cônjuge veio requerer, por apenso à acção de divórcio, inventário para partilha dos bens comuns do dissolvido casal constituído que foi pelo apelante e E….
Alegou para o efeito que celebrou casamento com E… em 13 de Novembro de 1960, sob o regime de comunhão geral de bens, o qual foi dissolvido por sentença de 17.12.2008, que decretou o divórcio.
Referiu, ainda, que existem bens no acervo patrimonial comum aos ex-cônjuges que não foram partilhados e por isso, cumpre proceder a inventário para partilha do património comum.
Alegou, também, que o ex-cônjuge faleceu, sucedendo-lhe os filhos nascidos da consumação do casamento.
Tal como o apelante formula a sua pretensão tem interesse directo em promover os termos do inventário para partilha dos bens comuns, subsequente a divórcio, pelo interesse manifesto em proceder à partilha dos bens comuns do dissolvido casal.
No requerimento inicial o apelante não requereu o inventário por óbito do ex-cônjuge, nem resulta dos elementos que instruem estes autos que na pendência do processo tenha formulado requerimento nesse sentido. Constitui esta a única forma de o conseguir, pois está impedido de recorrer à partilha extra-judicial porque o ex-cônjuge já faleceu.
Aliás, o processo inicia-se, por apenso, ao processo de divórcio e só não prosseguiu os seus termos porque, oficiosamente, o juiz do tribunal “a quo” considerou que o óbito do ex-cônjuge impede a instauração de inventário para partilha dos bens comuns, subsequente a divórcio, porque a instauração deste processo e passa a citar-se: ”pressupõe que os que foram cônjuges estejam vivos”.
É notório que o juiz do tribunal “ a quo” interpretou o requerimento com o sentido que o apelante lhe conferiu, como inventário para partilha de bens comuns do casal, subsequente a divórcio.
As partes não se insurgiram contra tal despacho, desconhecendo-se se todos os interessados foram notificados do mesmo.
Contudo, nada obsta a que, após o decesso de um dos ex-cônjuges divorciados, seja requerido inventário para partilha dos bens comuns, subsequente a divórcio contra os herdeiros do falecido, o que decorre, necessariamente, dos efeitos patrimoniais do divórcio e da disciplina do nº 3 do artigo 1785º do Código Civil (redacção da Lei 61/2008 de 31/10), que confere legitimidade ao autor da acção de divórcio para continuar esta contra os herdeiros do réu, se este falecer na pendência da causa[10].
O facto que origina a partilha (o evento causal da dissolução do casamento) é anterior ao decesso do ex-cônjuge, constituindo causa autónoma da partilha dos bens comuns do dissolvido casal. Assim, regendo-se esta por regras específicas, deverá até preceder sempre a partilha por óbito.
O processo prosseguiu os seus termos, após distribuição, como inventário para pôr termo a comunhão hereditária, contrariando a pretensão do requerente do inventário expressa no requerimento de instauração do processo, sendo certo que resulta dos seus termos que apenas pretende promover e proceder à partilha dos bens comuns do casal, subsequente a divórcio.
Acresce que tal como resulta do requerimento inicial e das próprias declarações do cabeça-de-casal, o apelante nunca se arrogou herdeiro do ex-cônjuge, nem de alguma forma manifestou interesse directo na partilha dos bens deixados por óbito do ex-cônjuge e por isso, não pode subsistir o despacho que julgou o apelante parte ilegítima.
Conclui-se, assim, que o apelante, na qualidade de ex-cônjuge tem legitimidade para requerer o inventário para partilha dos bens comuns do casal, dissolvido por divórcio, apesar do óbito do ex-cônjuge, que surge representado no processo pelos respectivos herdeiros, que ocupam a posição processual do falecido, por determinação do art. 1785º/3 CC.
Procedem, nesta parte, as conclusões de recurso sob os pontos 14 a 18.
-
- Admissibilidade da cumulação de inventário para partilha de bens subsequente a divórcio e inventário por óbito do ex-cônjuge -
Nas conclusões de recurso sob o ponto 19 insurge-se, ainda, o apelante contra o despacho que indeferiu a cumulação de inventários, para partilha dos bens comuns do casal e por óbito de E….
Alega para o efeito, que nada impede a cumulação de inventários ao abrigo do art. 1337º/1 c)/2 CPC.
Cumpre verificar se estão reunidos os pressupostos para proceder à cumulação de inventários.
A questão da cumulação de inventários surge com o pedido de aclaração do despacho proferido em 02 de Julho de 2013, que determinou a rectificação da relação de bens, no sentido de se proceder à relação do direito à meação nos bens comuns do casal em substituição da relação do imóvel descrito a fls. 26.
Com efeito, nesse requerimento considera o apelante que pelo facto de estar em causa a partilha de um único e mesmo bem, na medida em que o direito à meação é constituído apenas pelo imóvel relacionado, nada impede a cumulação dos inventários devendo por isso, manter-se a relação de bens. Estava em causa manter a relação de bens que consta dos autos, dado o interesse do requerente em promover a partilha dos bens comuns.
Atendendo à particular e especial natureza do processo de inventário para partilha de bens comuns, subsequente a divórcio, o regime previsto para a cumulação de inventários, no art. 1337º CPC, não tem aplicação.
Os motivos indicados no despacho, com apoio em jurisprudência dos tribunais superiores[11], são aqui por nós reiterados, salientando-se que no inventário para partilha dos bens comuns do casal não está em causa a partilha de heranças diferentes, como se prevê no art. 1337º CPC, mas a partilha de um património comum.
Observa-se a este respeito no Ac. Rel. Lisboa de 06 de Abril de 1995: “[t]al cumulação [ inventário para partilha de herança de cônjuge falecido após decretado o divórcio e inventário para partilha dos bens comuns ] de resto, não é possível, visto que não se enquadra em qualquer das hipóteses prevenidas no nº1 do art. 1394º CPC. Como resulta da letra deste preceito, só é permitida a cumulação de inventários quando estejam em causa heranças diversas, o que não sucede no caso em apreço. […] Essa impossibilidade resulta do espírito da lei, emergente do art. 1404º/3 CPC, onde se preceitua que o inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação do casamento, corre por apenso ao processo respectivo”[12].
A cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges origina um único inventário para partilha dos bens do respectivo casal, processo que reveste alguma especificidade[13].
Também não se pode afirmar que estamos perante o mesmo bem, porque no património da falecida E…, apenas se inscreve o direito à meação nos bens comuns. Cada cônjuge tem direito a uma metade ideal, activo ou passivo, que integra a comunhão e por isso, não lhe assiste o direito a metade de certo ou certos bens concretos e determinados.
Conclui-se, assim, que o despacho recorrido não merece censura quando indeferiu a requerida cumulação de inventários, por não estarem em causa a partilha de duas heranças, sobre os mesmos bens, nem uma partilha estar necessariamente dependente da realização da outra.
-
Em sede de conclusão e face ao exposto procedem, em parte, as conclusões de recurso e nessa conformidade reconhece-se que o apelante tem legitimidade para requerer e promover os termos do processo para partilha dos bens comuns do dissolvido casal, constituído que foi pelo requerente e E… e por isso, a relação de bens apresentada obedece ao critério legal, na medida em que individualizou os bens que fazem parte dessa comunhão, sendo chamados os herdeiros da falecida, que ocupam a sua posição no inventário, em conformidade com o art. 1785º/3 CC.
-
Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelo apelante, porque decaiu em parte na sua pretensão, sem prejuízo do apoio judiciário.
-
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar, parcialmente procedente a apelação e nessa conformidade revoga-se, em parte, os despachos recorridos e reconhece-se que o apelante B… tem legitimidade para requerer e promover os termos do processo para partilha dos bens comuns do casal constituído que foi pelo requerente e E…, dissolvido na sequência de divórcio, e por isso, a relação de bens apresentada obedece ao critério legal, na medida em que individualizou os bens que fazem parte dessa comunhão, sendo chamados os herdeiros da falecida ex-cônjuge, que ocupam a sua posição no inventário, em conformidade com o art. 1785º/3 CC, prosseguindo os autos os ulteriores termos, com apreciação do incidente da avaliação e conferência de interessados.
-
Custas a cargo do apelante, sem prejuízo do apoio judiciário.
*
*
*
Porto, 10 de Março de 2014
(processei e revi – art. 131º/5 CPC (redacção Lei 41/2013 de 26/06))
Ana Paula Amorim
Ana Paula Carvalho
Rita Romeira
______________
[1] JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, vol. III, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito, 1982, pag. 297.
[2] JOÃO DE CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, ob. cit., pag. 308.
[3] ANTUNES VARELA, J.M.BEZERRA, SAMPAIO NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Actualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pag. 686.
[4] ANSELMO DE CASTRO Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Coimbra, Almedina, 1982, pag. 142.
[5] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO Código de Processo Civil Anotado, Vol.II, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pag. 704.
[6] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, Coimbra Editora Lim, 1984, pag. 143.
No mesmo sentido pode ainda ler-se o ANTUNES VARELA et al Manual de Processo Civil, ob. cit., pag.688.
[7] ANTUNES VARELA, et al, Manual de Processo Civil,ob. cit., pag. 690.
[8] JOSÉ ANTÓNIO LOPES CARDOSO, Partilhas Judiciais, Vol. III, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 1980, pag. 348.
[9] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA, RUI PINTO Código de Processo Civil – Anotado, Vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pag. 51.
[10] Neste sentido se tem pronunciado a jurisprudência dos tribunais superiores, entre outros: Acórdão da Relação de Coimbra de 26.05.83, in BMJ nº 329, pág. 637; Ac. Rel. Porto 11 de Abril de 2005; Ac. Rel. Guimarães 26 de Junho de 2012, Proc. 1533/09.9TBFLG-C.G1, acessíveis em www.dgsi.pt
[11] Ac.Rel Porto 08 de Fevereiro de 2001, Proc. 0031776 - sumário acessível em www.dgsi.pt.
[12] Ac. Rel. Lisboa 06 de Abril de 1995, CJ Ano XX, Tomo II, pag. 107.
[13] JOSÉ ANTÓNIO LOPES CARDOSO, Partilhas Judiciais, Vol. III, ob. cit., pag. 356.