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DÍVIDA POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS
FACTO ILÍCITO E CULPOSO
TRANSMISSÃO POR MORTE
Sumário
Transmite-se aos sucessores do executado a dívida à exequente relativa ao conjunto de danos patrimoniais sofridos por esta em consequência de facto ilícito e culposo praticado por aquele.
Texto Integral
PROC. N.º 530/03.2TAPVZ-A.P1
Do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Póvoa de Varzim.
REL. N.º 891
Relator: Henrique Araújo
Adjuntos: Fernando Samões
Vieira e Cunha
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
I. RELATÓRIO
B… moveu acção executiva para pagamento de quantia certa contra C…, apresentando como título executivo o acórdão proferido em 27.11.2008 no Círculo Judicial de Vila do Conde, confirmado, na parte que ora interessa, pelo acórdão desta Relação do Porto de 07.09.2009.
No decurso da execução ocorreu o óbito do executado C…, tendo o Mmº Juiz, com base nesse facto, determinado a extinção da execução.
A exequente não se conformou com essa decisão e recorreu.
O recurso foi admitido como de apelação, com efeito devolutivo – cfr. fls. 260.
Nas alegações de recurso a apelante pede a revogação da decisão da 1ª instância, apoiada nas seguintes conclusões:
1. Os presentes autos de execução têm como título o acórdão proferido pela 1ª instância em 27.11.2008, que condenou o aqui executado a pagar à aqui exequente, a título de indemnização, a quantia de 5.000,00 €, acrescida de juros, decisão essa confirmada (na parte cível) pelo acórdão do TRP de 07.10.2009.
2. Na pendência da instância executiva foi a exequente notificada do óbito do executado.
3. Ao ser notificada do óbito, a exequente deu a conhecer aos autos que ia requerer a habilitação de herdeiros.
4. Na sequência de tal requerimento, o tribunal a quo decretou a extinção da execução, por morte do executado, sustentando que a responsabilidade civil decorrente da prática de um crime não é susceptível de transmissão aos seus sucessores, os quais não podem ser responsabilizados pelos actos do de cujus que constituam crime e que a relação jurídica daí advinda, atenta a sua natureza pessoal, extinguiu-se nos termos do artigo 2025º, n.º 1, do CC.
5. Ora, a exequente não concorda com tal decisão.
Com efeito,
6. embora a responsabilidade criminal se extinga com a morte do arguido (artigo 127º, n.º 1, do CP), a verdade é que a responsabilidade civil emergente de um crime é regulada pela lei civil (artigo 129º do CP).
7. Além disso, da habilitação de herdeiros não resulta que estes sejam responsabilizados pelos actos do de cujus que constituam crime, pois aquela versa matéria civil, não matéria criminal.
8. Acresce que, com a habilitação, os herdeiros não serão onerados com a condenação civil – sê-lo á, isso sim, a herança.
9. Além do mais, a morte do executado não ocorreu em momento anterior ao trânsito em julgado do processo-crime onde foi deduzido o pedido cível.
10. Quando se verifica essa situação, aí sim, é decretada a extinção do procedimento criminal e da instância civil.
11. Porém, mesmo nesses casos, o lesado pode ser ressarcido através do instituto da habilitação de herdeiros (vide acórdão do TRL de 11.12.2003, proferido no processo 7557/2003-9, disponível em www.dgsi.pt).
12. Ora, se mesmo nessas situações em que o arguido e demandado civil fenece antes do trânsito em julgado do processo crime, o lesado pode ser ressarcido lançando mão da habilitação dos herdeiros do arguido, por maioria de razão também o pode fazer quando já se encontra a correr a instância executiva.
13. Por outro lado, ao contrário do que entende o tribunal a quo na interpretação que faz do artigo 2025º do CC, entre as relações jurídicas que se extinguem por morte do seu titular por serem de natureza pessoal, não se incluem as emergentes de responsabilidade civil.
14. Em anotação ao artigo 2025º do CC, Pires de Lima e Antunes Varela ensinam que, por serem meramente pessoais, extinguem-se com a morte do seu titular as obrigações não fungíveis de prestação de facto (vide “Código Civil Anotado” – Volume VI, Coimbra Editora, Coimbra, 1998).
15. Ora, no caso vertente, trata-se de uma execução para pagamento de uma indemnização emergente de responsabilidade civil, logo, uma prestação para pagamento de quantia certa, não uma prestação de facto.
16. Por último – e uma vez mais ao arrepio do tribunal a quo – não se vislumbra no artigo 849º do CPC, qualquer causa de extinção da execução, na qual caibam os motivos invocados no despacho ora em crise.
Não houve contra-alegações.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente, a única questão a solucionar é a de saber se o óbito do executado é causa de extinção da execução.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Importa considerar os seguintes factos:
1. A exequente B… apresentou como título executivo o acórdão do Círculo Judicial de Vila do Conde, proferido em 27.11.2008 no âmbito do processo comum colectivo n.º 530/03.2TAPVZ, do 1º Juízo Criminal da Póvoa de Varzim, já transitado em julgado, no qual o executado foi condenado a pagar-lhe a quantia de 5.000,00 €, a título de danos não patrimoniais.
2. No decurso da averiguação sobre a existência de bens que pudessem ser penhorados ao executado, o Instituto da Segurança Social informou que o executado havia falecido – cfr. fls. 216.
3. Na posse dessa informação, o tribunal requisitou certidão do óbito do executado, constando desta que o mesmo faleceu no dia 29.06.2013 – cfr. fls. 217 a 221.
4. A exequente foi notificada para dizer o que tivesse por conveniente, tendo logo requerido, em 10.10.2013, que os serviços da Segurança Social esclarecessem se a pensão paga ao executado pela instituição francesa era efectuada para alguma conta bancária daquele, e manifestando já aí a sua intenção de promover a habilitação dos herdeiros do executado – cfr. fls. 224.
5. Em 13.11.2013, o Mmº Juiz proferiu o despacho que segue: “Da certidão de nascimento de fls. 220 e 221 consta averbado o falecimento de C…, ocorrido em 29 de Junho de 2013. Tinha esta execução por título o acórdão do Tribunal Colectivo de 27 de Novembro de 2008, nos termos do qual C… havia sido condenado a pagar a B… uma indemnização no valor de € 5.000 (Cinco mil Euros), acrescida de juros desde a notificação da pretensão indemnizatória, até integral pagamento. Refira-se que a decisão relativa à instância cível foi confirmada pelo douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7 de Outubro de 2009. A responsabilidade civil decorrente da prática de actos ilícitos criminais tem natureza vincadamente pessoal. Tal como a responsabilidade criminal, também a responsabilidade civil decorrente da prática de crimes não é susceptível de transmissão aos sucessores do primitivo responsável. Ora, nos termos do disposto no artº 2025º, nº 1, do Código Civil, as relações jurídicas que devam extinguir-se por morte do respectivo titular, em razão da sua natureza ou por força da lei, não constituem objecto de sucessão. Assim, os sucessores de C… não podem ser responsabilizados em consequência de actos praticados pelo de cujus que constituam crime. Pelo exposto, e ao abrigo do preceituado no artº 849º, nº 1, al. f), do Código de Processo Civil (cfr. artº 6º, nº 1, da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho), declaro extinta a presente execução.
Na sequência do precedente despacho, pelos motivos atrás explanados, indefiro o requerimento de fls. 224. (…)”
O DIREITO
O executado faleceu sem que tivesse saldado à exequente a quantia que fora condenado a pagar-lhe.
Essa quantia respeita ao conjunto dos danos não patrimoniais sofridos pela exequente em consequência de facto ilícito e culposo praticado pelo executado.
De facto, havia a lesada (ora exequente) deduzido contra o arguido C… pedido de indemnização cível no âmbito do processo-crime acima referido em 1., tendo o tribunal atendido parcialmente a esse pedido e condenado o arguido (ora executado) a pagar à B… a quantia de 5.000,00 €, acrescida de juros de mora, pelos danos não patrimoniais descritos no acórdão em questão.
Na decisão recorrida entendeu-se que essa obrigação não é susceptível de transmissão aos sucessores do executado, entretanto falecido e, por essa razão, julgou-se extinta a execução.
Evidentemente que não se pode concordar.
Após o falecimento de uma determinada pessoa singular, dá-se a vocação ou chamamento de uma ou mais pessoas (os sucessores) à titularidade das relações jurídicas transmissíveis do falecido.
São objecto de vocação ou devolução sucessória todas as relações jurídicas ou todas as coisas não exceptuadas por lei, designadamente, para além dos bens patrimoniais, certos direitos pessoais[1] e, bem assim, no lado passivo das relações jurídicas, as obrigações e as dívidas[2]. Em relação a estas últimas é útil sublinhar que, em princípio, a morte do de cujus não extingue as suas obrigações, sendo as situações jurídicas passivas integradas no objecto da herança, ocupando os sucessores do falecido a posição jurídica que este detinha. Cabe, por isso, à herança responder pelo pagamento das dívidas do falecido – artigo 2068º do CC.
No entanto, a responsabilidade dos herdeiros do de cujus está limitada às forças da herança, quer esta seja aceita a benefício de inventário ou aceita pura e simplesmente – artigo 2071º CC –, residindo a única diferença entre as duas espécies de aceitação no ónus da prova relativamente à insuficiência dos bens herdados.
A decisão impugnada baseou-se no disposto no artigo 2025º para afastar a transmissibilidade da dívida do executado aos seus sucessores.
O que essa norma refere, no seu n.º 1, é que não constituem objecto de sucessão as relações jurídicas que devam extinguir-se por morte do respectivo titular, em razão da sua natureza ou por força da lei, acrescentando o n.º 2 que podem também extinguir-se à morte do titular, por vontade deste, os direitos renunciáveis.
Identificam-se na norma três causas típicas de intransmissibilidade sucessória: a natural, a legal e a convencional.
Na primeira dessas causas integram-se os chamados direitos, poderes e deveres jurídicos pessoais, v.g., os direitos parentais e os deveres conjugais, insusceptíveis de avaliação pecuniária. Também os direitos patrimoniais pessoais aí cabem, v.g., direitos convencionais a prestações pecuniárias estabelecidas com carácter intuitus personae e direitos a alvarás e a licenças de carácter pessoal.
A intransmissibilidade sucessória com raiz legal ocorre em variadíssimos casos, v.g., quanto à qualidade de associado (artigo 180º do CC), aos direitos de uso e habitação (artigo 1485º e 1490º do CC), ao direito de alimentos e à obrigação de os prestar (artigos 2013, n.º 1, alínea a) e 2014º do CC), etc.
Finalmente, a inereditabilidade pode resultar de convenção: v.g., quando num contrato de compra e venda, com pagamento do preço em prestações, se estabelece que o direito ao pagamento das prestações se extinguiria por morte do vendedor.
A indemnização que a exequente pretende cobrar judicialmente não se inscreve em nenhuma das ressalvas previstas no artigo 2025º, razão pela qual não restam dúvidas de que essa dívida do executado se transmite aos seus sucessores.
E se assim se conclui, importante será agora descortinar como se procede, em processo civil, à colocação do sucessor no lugar que ocupava o de cujus na acção executiva interposta pela apelante.
A solução terá de ser a preconizada pela apelante no seu requerimento de fls. 224, ou seja, terão de habilitar-se os herdeiros do falecido, mediante o competente incidente processual, para que contra eles se faça prosseguir a execução.
Porém, no imediato, terá de ser oficiosamente decretada a suspensão da instância executiva, uma vez que se mostra documentalmente comprovado o falecimento do executado – artigos 269º, n.º 1, alínea a) e 270º, n.º 1, do NCPC.
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III. DECISÃO
Nestes termos, na procedência da apelação, revoga-se a decisão recorrida e decreta-se a suspensão da instância executiva.
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Custas a final.
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PORTO, 29 de Abril de 2014
Henrique Araújo
Fernando Samões
Vieira e Cunha
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[1] Por exemplo, os direitos morais de autor, o direito de resposta por ofensas nos órgãos de comunicação social, e os demais direitos de personalidade.
[2] Capelo de Sousa, “Lições de Direito das Sucessões”, Volume, I, 3ª edição, páginas 279/280.